Destino Ilusório
Escrito por Amanda Antônio | Revisado por Mah
- Precisamos comemorar! – gritou , que estava no banheiro se arrumando para ir ao trabalho.
- Não precisamos nada! Eu não vejo a necessidade de comemorarmos o fato de minhas alunas terem me escolhido para ser a responsável por comandar um passeio ao teatro – respondi voltando pra cama com uma xícara de chá.
- Deixa de ser sem graça! Você foi eleita a Professora Princesa! Você ganhou um dia em um SPA. Além do mais, você é a professora mais gostosa e linda daquela escola, as meninas fizeram até uma coroa pra você. - tentava me convencer.
- Claro, elas têm dez anos e pensam que qualquer mulher de vestido que se arrume bem é considerada princesa. E essa coroa é uma tradição, uma forma de agradecer pelo passeio – tentei argumentar.
saiu do banheiro com seu vestido social e minha coroa rosa de papelão em sua cabeça. Seus cabelos loiros presos em um coque frouxo davam um ar de seriedade à sua aparência, sentou na cama ao meu lado e lançou-me um de seus olhares de promotora de justiça, tão intimidante a ponto de escurecer seus olhos verdes.
- Ainda acha que qualquer uma de vestido e que se arrume bem pode ser considerada princesa? – perguntou , com um olhar de psicopata.
- Tudo bem, , sairemos para comemorar hoje. Mas guarda esse olhar de promotora de justiça para os seus criminosos, por favor – disse séria, tirando minha coroa de sua cabeça, enquanto gargalhava.
- Desde os nossos quinze anos esse olhar nunca falha – me abraçou orgulhosa por seu poder de persuasão.
terminou de se arrumar e foi para o tribunal. Eu, felizmente, só tinha os dois últimos tempos de aula, então aproveitei para terminar de corrigir provas. Como gostava de levar mapas, globo terrestre e alguns joguinhos educativos pra incrementar as minhas explicações, saí uma hora antes pra poder preparar tudo na sala antes dos alunos voltarem do lanche. A escola em que eu trabalhava ficava a apenas quinze minutos do meu apartamento, podia até ir de bicicleta, mas como tinha que levar material extra, só com carro mesmo.
- Quem é a professora de geografia que vocês mais amam, hein? – perguntei animada enquanto a criançada entrava na sala.
- Você, senhora Calton – responderam em conjunto.
- Trouxe um mapa e dois globos hoje, o terrestre e o outro é uma surpresa, dependendo do comportamento de vocês, eu revelo depois. Hoje vamos aprender sobre coordenadas geográficas, então abram na página 54 – anunciei animada.
Apesar de a curiosidade ser grande em torno do outro globo, os meninos conseguiram prestar atenção na aula e não conversaram tanto. Tinha dias que era muito difícil de dar aula na sala deles, mas como eles sempre me respeitaram muito, sempre que estava insuportável, eu chamava a atenção deles e eles se controlavam.
Assim que terminei de dar minha aula, peguei o globo misterioso e revelei que era um globo de um bingo. Separei a sala em quatro grupos, eu tiraria as bolinhas com os números que eles teriam que marcar no mapa indicando onde era o local da coordenada que eu havia sorteado para eles. Ficamos jogando até soar o sinal de encerramento da aula. Como em toda sexta-feira, eu esperava por gritos de felicidade quando o sinal tocasse, mas ao invés disso os meninos estavam se divertindo tanto que até pediram para ficar mais um pouquinho para terminar aquela partida, para saberem quem seria a equipe vencedora.
- Professora, me desculpe interromper, mas os responsáveis dos seus alunos já estão no portão à espera deles – o professor de Educação Física comunicou ao bater na porta.
- Meninos, vocês ouviram o tio , beijos, tenham um ótimo final de semana e até segunda – falei usando um tom carinhoso.
Os pequeninos arrumaram suas coisas e foram saindo um a um. continuava na porta e se despedia da meninada, enquanto eu ficava virada de costas para ele arrumando meu material para poder então ir para casa. Eu sabia que ele viria mais uma vez com suas indiretas. Tinha um mês já que sempre que nos encontrávamos, ele era carinhoso ao extremo e lançava umas brincadeirinhas sobre como seria se nós namorássemos.
Eu e o nos conhecemos no primeiro ano de faculdade, pegávamos ônibus juntos e conversa vai, conversa vem, acabamos namorando por um ano e nove meses. Nunca fui muito de namorar, porque além de trabalhar e estudar, era melhor amiga de , ou seja, sua psicóloga particular. Então não sobrava muito tempo pra ter namorado, mas como dizer não para um loiro musculoso de olhos azuis, com barba mal feita que faça você se excitar em apenas imaginar a sensação que é ter aquele rosto másculo em seu pescoço, causando arrepios? Como dizer não para um rapaz carinhoso, companheiro, humilde que ao pedir você em namoro, simplesmente alugou o ônibus em que vocês se conheceram e enfeitou cheio de corações e com uma placa pedindo pra você ser a namorada dele? Sendo que ele nunca nem precisou andar de ônibus, já que seu pai era dono de uma concessionária de carros.
Mas apesar de eu querer fazer dar certo, naquela época não teve como, o tinha ciúme até da minha sombra, e sem contar que ele sempre estava insatisfeito por eu não ter tempo suficiente para ele, vivia dizendo que eu não o amava, sendo que ele dormia praticamente todo dia na minha casa e como naquele ditado que fala ‘‘não dá assistência, abre para a concorrência’’, foi exatamente o que aconteceu, ele começou a andar com seus colegas de turma e usando a desculpa de que ‘‘tenho que aproveitar a minha juventude’’ terminou comigo e quando dei por mim, ele tinha ficado com praticamente todas as meninas do meu curso, sem falar as que estavam cursando Enfermagem, Direito, Administração e outros que não fiz questão de acompanhar. Pelo menos ele foi honesto e terminou tudo, antes de me fazer de otária.
Mas quando a faculdade terminou, ele se acalmou e voltamos a ser amigos, tanto que foi ele que me indicou para o dono da Century, simplesmente a melhor escola da cidade em questão de ensino e de pagamento de professor. Tanto que eu dou aula para apenas três turmas e recebo o suficiente para arcar com minhas despesas essenciais e ainda poder sustentar meu guarda-roupa e bom gosto.
- Então, qual é a boa de hoje? – perguntou se aproximando de mim.
- Eu e vamos sair pra comemorar o fato de eu ter sido nomeada pelas minhas alunas como Professora Princesa, ganhei uma ida ao SPA como agradecimento – respondi sorrindo animada.
- Olha que coincidência, eu estava marcando pra sair com os caras pra comemorar o fato de eu ter sido nomeado o Professor Encantado, ganhei uma bicicleta e vou levá-los para o futebol de sabão – declarou colocando uma coroa de papelão igual a minha, só que pintada de azul na cabeça, enquanto sorríamos um para o outro – Obrigado pelo convite, de qualquer forma – disse irônico.
- Ai, , ia ser a noite das meninas, nunca ia imaginar que você também seria nomeado e, além disso, se eu aparecer com você na boate, os gatinhos não vão chegar em mim – bufei de forma dramática.
- Mais um motivo pra eu ir então... – anunciou lançando-me um olhar possessivo.
Preferi parar com aquela conversa ali comentando sobre as milhões de provas que tinha para corrigir. Ele ainda me acompanhou até o carro carregando meus materiais, colocou-os no banco de trás, me despedi já sentada no banco do motorista e mandando um beijinho de longe. Não podia me despedir dele com os nossos corpos tão perto, vai que ele tente me roubar um beijo, ou não sei, vai que eu me jogue em seus braços, pegue o seu rosto e o guie pelo meu pescoço. Vai que eu peça pra ele me beijar.
Enfim, não podia arriscar a amizade que nós tínhamos por apenas um desejo carnal. Eu amo o , mas não sei, acho que o nosso tempo já passou, não sei se daria certo eu e ele novamente.
Cheguei em casa e estava na sala com uma garrafa de vinho na mão e rebolando ao som de algum blues dos anos 80. Tirei meu sapato, joguei meus materiais pelo escritório e voltei para sala com outra garrafa na mão, entrando no mesmo clima que a minha amiga, e assim passamos a tarde e o início da noite. Ouvir músicas assim me lembrava da época em que nos conhecemos. Morávamos no mesmo prédio, só que eu era do terceiro andar e ela do primeiro. Na rua em que morávamos e ainda moramos existe uma sorveteria que ao mesmo tempo é um bar. Eu tinha quinze anos, e era louca para experimentar o famoso sorvete de licor, só que o senhor Manuel, dono da loja, não me vendia por eu ser menor de idade e não poder tomar álcool. E assim como eu, a vivia tentando comprar também, sendo isso o principal fator que fez com que nós nos tornássemos amigas.
No final das contas, eu e colocamos roupas bem adultas e saltos, passamos um quilo de maquiagem pra passar que tínhamos dezoito, e até inventamos uma conversa sobre faculdade e trabalho, e foi em uma sexta-feira quando finalmente provamos o nosso tão sonhado sorvete com licor, que anos depois descobrimos que de álcool ele não tinha nada. Seu Manuel já nos conhecia e nos enganou. Mas enfim, desde esse dia, nunca mais nos separamos.
- Já sei aonde podemos ir hoje! – declarou deitando no sofá ofegante.
- Bar do Seu Manuel – falei e me deitei ao seu lado, só que no chão entre o sofá e a mesinha de centro, em cima do tapete.
- Nunca canso de me surpreender com o poder da nossa telepatia – falou levantando do sofá – Estou indo me arrumar, trata de se apressar pra pegarmos as mesas boas.
Como já estava meio animadinha e fogosa devido ao vinho, optei por colocar short, e ainda mais porque estava uma noite abafada. Aproveitei pra usar uma blusa cheia de correntes e caveiras, já que no meu dia a dia eu precisava ser a pessoa mais fofa possível, então aproveitava quando ia pra balada pra usar o meu look mais selvagem. , como sempre, estava com um salto alto e um vestido colado cheio de brilhos, combinação que parecia aumentar sua comissão traseira, que já era grande por si só.
Deixamos os celulares em casa, pegamos apenas o cartão de crédito e a chave do apartamento. Como era preciso apenas atravessar a rua para chegarmos ao nosso destino, não teríamos que nos preocupar com a locomoção. Hoje era dia de rock dos anos 80, seu Manuel e sua banda iam dar uma palhinha, então chegamos cedo para pegar uma mesa perto do bar.
O Bar do Seu Manuel era simplesmente o lugar mais legal que eu conhecia, era um típico bar de motoqueiros, bem retrô. Antes de entrar no bar você tinha que passar pela sorveteria, que era meio que uma salinha com duas mesas coloridas com quatro cadeiras cada uma, uns pufes espalhados e então o balcão. No final da loja, tinha uma porta de madeira de cor bronze que era a entrada do bar, e possuía uma placa de caveira e embaixo escrito Perigo; os pisos, as mesas e as cadeiras eram de madeira; havia um mini palco no fundo do bar e dois decks de madeira, um ao lado esquerdo do palco e um mais perto da entrada. Para entretenimento, possuía duas mesas de bilhar e uma jukebox. Nas paredes havia vários pôsteres em preto e branco de fotografias de estrelas, do céu, de casais e de carros. Mas a foto que sempre me impressionou e que às vezes passava horas admirando era uma do seu Manuel com a dona Glória, que foi sua mulher por quarenta e nove anos, e faltando um mês para que completassem as bodas de ouro, ela morreu de câncer.
Assim que sentamos, a diversão começou. Decidimos provar todos os drinks do cardápio, um a um, para então escolhermos o nosso favorito, enquanto vários rapazes desprovidos de criatividade vinham com cantadas conquistadoras de respostas meio grossas de , enquanto eu sorria meio sem graça. Quando a banda do seu Manuel estava se apresentando, eu e ficamos ao lado da nossa mesa dançando, mais loucas do que nunca, rindo de cada balançadinha de cabelo que o senhorzinho de cabelos brancos que estava tocando bateria dava, e sendo encaradas por estarmos cantando alto e escandalosamente. Acabou o show e eu senti um braço me envolver pela cintura.
- Sabia que você estaria aqui – sussurrou em meu ouvido causando arrepios desde os meus fios de cabelo até os dedinhos do pé.
- Você comprou uma bola de cristal e esqueceu de me avisar? – perguntei meio arrastada, tendo em vista que já estava com um nível alto de álcool e com muita preguiça de falar.
- Nossa, vejo que você além de engraçadinha, tá muito respondona - disse com tom bravo, me puxando mais para si.
- Ui, tio , o senhor vai me dar uma advertência por desrespeito ao professor? – perguntei ao me virar e ficar de frente para ele.
- Não, a sua punição será de uma maneira mais severa – disse e me puxou para um beijo.
Suas mãos apertavam meus quadris, meus dedos entrelaçados naquele cabelo loiro sedoso, meu pé inclinado para poder alcançá-lo já que ele era uns vinte centímetros mais alto que eu, sua barba roçando ao redor da minha boca, e a cada segundo a urgência com que nos beijávamos aumentava, devido ao desejo acumulado, à saudade e, no meu caso, à carência. Eu sabia que isso não daria certo, mas quem disse que o meu juízo conseguia convencer meus hormônios e vontades? Estava perdida na sensação que era tê-lo novamente em meus braços, suas mãos começavam a descer pela lateral do meu corpo, quando elas se encontravam em minhas coxas, indo rumo a minha comissão traseira, fomos separados por .
- Amiga, acho que tô tendo uma relação alérgica, tô sentindo meu rosto em chamas, e meu pescoço não para de coçar, sem falar que acho que senti o gosto de kiwi em um dos drinks que tomamos. Tô indo pra casa – comunicou com a respiração entrecortada.
- Tô indo não, me espera pagar a conta rapidinho e eu acompanho você – falei andando rápido em direção ao bar, enquanto sentava e vinha atrás de mim.
Enquanto eu esperava a transação ser aceita, já que o sistema estava lento, me abraçava de lado, não falava nada, apenas ficava me puxando mais e mais para perto de si. Quando a mulher do caixa me entregou o cartão e o comprovante e eu me virei para me despedir e falar algo, não sei, dizer que aquilo tinha sido um erro, ou não sei, pedir desculpa, ele me calou antes mesmo de eu soltar qualquer palavra com um beijo.
- Eu te conheço bem demais pra saber da confusão que tá na tua cabeça, . Não fala nada. Vá pra casa, cuide da sua amiga e amanhã a gente conversa – falou carinhosamente, me dando um último beijo.
Eu e a alérgica a kiwi fomos em silêncio para casa. Acho que mais pelo fato de ela estar sem forças pra falar alguma coisa. Ao abrir a porta, ela foi direto para o escritório pegar seu xarope na caixinha de primeiros-socorros, enquanto eu fui para meu quarto me arrumar para dormir. Quando estava tirando a maquiagem, entrou em quarto pedindo o demaquilante emprestado, foi ao banheiro e ao voltar ela começou a cambalear. Acho que o antialérgico com a bebida estava fazendo efeito. Levantei e a puxei para deitar na minha cama, desliguei as luzes e me joguei ao seu lado.
- Amiga, por que você não ficou lá com o ? – perguntou meio grogue – Eu tinha condições de voltar pra casa sozinha, e vocês pareciam estar no caminho certo de voltar a ser o casal que vocês eram.
- Eu sei, mas eu não tenho certeza se eu quero uma coisa mais séria com o , e ele não quer só ficar por ficar, tanto que ele não me deixou falar nada e disse que amanhã conversaríamos. Ele é muito ciumento e não sei, tô tão confusa, que a única frase que a minha mente tá formando é “não sei” – exprimi minha frustração.
- Ai amiga, é a vida, ela... – começou a falar e adormeceu.
Minha mente não parava de pensar no futuro que eu e podíamos ter, tanto os felizes, quanto os tristes. Será que se eu viajasse para casa da minha mãe que ficava em uma cidade vizinha, a apenas duas horas de trem, ele acharia que eu estaria fugindo dele? Ai, que ideia idiota! Eu não tinha a mínima noção do que ia falar para ele, já que nem eu sabia o que estava sentindo. As palavras surgiriam na hora, talvez ele estivesse bêbado e nem se lembre de conversar comigo. Talvez ele propusesse que nós nos envolvêssemos de uma forma sexual, apenas. A única coisa que eu tinha certeza era que eu queria todas aquelas sensações que ele conseguia causar em mim. Será apenas desejo? Eu sinceramente achava que era a barba rala dele que tinha poderes e me enfeitiçava, única explicação. Enfim, tentei afastar minha mente disso e foi quando eu finalmente consegui dormir.
Fim!