Descongelar
Escrita por Amanda A. | Revisada por Songfics
Esperei os 20 minutos que ele disse que demoraria para chegar enrolada em meu cobertor, como se o ato de me encolher pudesse apagar todas as marcas que haviam em mim. A cada segundo sentia os restos de vida que insistiram em sobreviver se desvairando do meu corpo, e mesmo assim continuava sentindo a dor que passei, impressa e ardendo sob minha pele. Deixei a janela aberta para que ele entrasse o mais rápido possível, ignorando atmosfera congelante que se instalava em meu quarto, da madrugada de algum dia de inverno. Eu nem sabia ao menos que dia era hoje.
Fechei meus olhos e logo fui acordada pelas suas mãos quentes em meu rosto, abrindo meus olhos abruptamente e deixando que eles focassem apenas em seus cabelos caídos sobre seus olhos . Sorri.
- Oi.
Ele não respondeu e apenas me fitou, com a expressão machucada que ele sempre exibia quando precisava cuidar de mim as três da manhã. Eu sabia que ele faria qualquer coisa por mim, porque ele nunca falhara, mas apenas doía mais saber disso; eu não deveria colocá-lo nessa situação.
- O que aconteceu dessa vez? – ele perguntou suavemente, tentando afastar o cobertor enroscado em meu corpo. – Seu rosto, ... O que ele fez com você?
Sorri mais uma vez, deixando que as imagens da noite anterior inundassem minha cabeça, para que pudesse encontrar algum conforto que não fossem as lágrimas que já haviam esgotado.
- Você sabe... Ele estava sempre com outra. – me surpreendi ao perceber que minha voz não oscilava, permanecendo firme mesmo com o turbilhão de sentimentos que me invadiam, não só a dor em meu corpo como a dor em minha cabeça. – Cheguei em sua casa, para passar a noite e o encontrei na cama, de fato, com outra.
A porta estava aberta, o que era comum, afinal, ele sabia que eu apareceria, não é mesmo? Estranhei o silêncio do seu apartamento sempre barulhento com o som dos jogos de futebol na televisão, mas apenas percebi o que estava acontecendo quando pisei em seu quarto e o vi com a mão sobre o corpo nu de outra mulher, roupas jogadas pelo chão, na cama onde ele fazia o mesmo comigo. Na cama que ocupei por noites incontáveis e dias nublados demais. Ele logo percebeu minha presença, afastando-se calmamente suas mãos do corpo morena sob si.
- Eu esperei na sala, , esperei que ela fosse embora. – disse, baixinho, enquanto deslizava os dedos sobre os hematomas que começavam na minha clavícula e percorriam ambos os meus braços. Seus dedos estavam rijos.
Não sei porque esperei. No fundo, eu sabia que aconteceria quando ela fosse embora, eu sabia que o desfecho da minha noite seria exatamente esse. Tendo meu corpo machucado examinado pela única pessoa que não me crucificaria. assentiu e eu continuei:
- E quando ela foi embora, eu não gritei. Você sabe que não gosto de brigas, mas com ele a minha vida era baseada nisso. Mas eu não gritei, , eu apenas disse que não o queria mais. E ele me bateu. Eu não queria, mas ainda sinto seus dedos apertando minha garganta como se estivesse acontecendo agora mesmo. Eu pensei que...
- Não. Você está bem. – sorriu e eu agradeci por ele existir.
Calei-me, abrindo espaço na minha cama para que ele pudesse se aproximar. Suas mãos permaneciam quente sobre as marcas do meu corpo, acariciando-as como se fossem belas. Mas aquela era apenas uma maneira de me fazer acreditar que eu não estava no meu pior estado. Mesmo sendo , eu não poderia acreditar, porque tudo doía tanto e a dor não simplesmente sumiria. Eu estava irrecuperável.
deitou-se ao meu lado, puxando meu corpo para perto do seu, sem muitas palavras. E talvez isso fosse o que mais admirava em nossa amizade tão longa: que o silêncio parecia nos conectar mais do que qualquer som. Senti sua respiração quente em meu pescoço e sua mão afagando meu braço, sutilmente, caminhando até meu ombro. Desejei que seus dedos fossem borrachas e apagassem as marcas de mãos que penetraram sob minha pele. Desejei esquecer tudo.
Não sei como, mas dormi tão rapidamente que sonhei que havia realmente apagado do meu corpo todo o mal que havia se instalado nele.
***
- .
Senti um calor esquentar meu rosto e abri os olhos subitamente. segurava uma caneca com vapor quente, sorrindo. Seus olhos vibravam por conta da luz que invadia o quarto do pequeno chalé de praia da família de .
- Seu rosto está quase como antes. Logo você será a mesma. – ele sentou na cama, entregando-me a caneca e desviando o olhar para longe de mim, observando os outros cantos do pequeno quarto. poderia me conhecer mais do que eu mesma, mas talvez fosse difícil para ele aceitar que eu nunca mais seria a mesma. Mas sorri.
- Bonito como antes? – brinquei.
- Alguma vez ele foi?
- Idiota. – tomei um gole do chocolate quente que ele me entregara, em uma tentativa de tirar o frio do meu corpo, mesmo com o clima ameno lá fora.
havia conversado com a minha mãe no dia seguinte às minhas marcas. Ela chorou, talvez até mais do que eu mesma. Não consegui olhar em seu rosto, então permaneci na cama, embaixo das cobertas, deixando que fizesse o trabalho sujo. Também me esquivei quando ela se aproximou de mim, não queria que ela precisasse me ver no estado em que estava; era injusto com ela.
Passei o resto do dia sozinha no quarto, com entrando uma vez ou outra para tentar me fazer comer. Não comi. Uma vez ou outra, escutei as conversas dos dois, atrás da minha porta. Ignorei as diversas ligações e mensagens que ele havia me deixado, provavelmente encontrando uma justificativa para o que havia me feito, ou talvez me chamando para encontra-lo e resolver tudo. Como se o que acontecera já não tivesse colocado todos os pontos nos i’s.
- Não sei como você convenceu minha mãe. – falei baixo, entregando-lhe de volta a caneca, recebendo um sorriso calmo de , que mexia em seus cabelos parecendo desconfortável. Não entendi o porquê do seu desconforto.
- Joguei meu charme, . E sua mãe entende tanto quanto eu como você precisava de novos ares, pelos menos por alguns dias.
- Ela ama você, é como se ela preferisse que você a filha dela.
- Uau, sei que nos conhecemos a mais tempo do que posso me lembrar, mas pensava que ao menos você me considerava um cara – ele brincou, puxando-me a força para fora da cama, em um movimento brusco e inesperado. Me deixei ser levada, mesmo não sendo a minha vontade.
- O que você está fazendo? – resmunguei, quando segurou minhas mãos e me colocou em sua frente, afastando os fios de cabelos do meu rosto e tocando um machucado já amarelado perto do meu olho. Senti seu toque e fechei os olhos, odiando-me por ter que fazer as pessoas a minha volta sofrerem as minhas dores. Elas eram apenas minhas, era egoísmo compartilhar uma dor.
- Estamos em uma praia paradisíaca... – ele começou, mas coloquei minha mão na sua boca, rindo.
- , não me iluda. Sempre vínhamos para cá nas férias do fundamental com seus pais, e você odiava esse lugar – ri, tentando me arrastar de volta para cama. me puxou de novo, com o rosto sério.
- Escuta e depois você fala. Podemos maratonar sua série preferida e ficar comendo porcarias pelo resto do dia ou comer uma salada em alguma restaurante perto do mar e encontrar algum luau para nos infiltrarmos. Ou ainda podemos ir em algum clube no centro e eu vejo você dançar a noite inteira enquanto me divirto fazendo bom uso das minhas doses alcoólicas.
Fingi pensar, mas na verdade observei suas feições calmas enquanto me fitava. Seus olhos brilhavam por conta do contraste com a luz que entrava pela janela do quarto. Era possível ouvir ao longe o som das ondas se quebrando.
Um arrepio percorreu meu corpo e em seus olhos consegui enxergar toda a preocupação que ele sentia por minha causa; podia ver o reflexo da dor que emanava do meu corpo, mas ao mesmo tempo pude ver como tentava suavizar tudo e tentar, de qualquer maneira, tirar a dor que eu sentia. Sempre havia sido assim: eu sofria e , como uma esponja, sugava a dor para fora de mim. Mas nunca parei para pensar o quanto isso poderia ser prejudicial para ele. Tentar curar meus hematomas e transformá-las apenas em cicatrizes, talvez abrisse feridas nele. Céus, como eu havia permitido machucá-lo tanto?
Coloquei de lado esse pensamento. Se se permitisse ser machucado por mim, eu precisava parar de permitir me machucar para evitar que ele sofresse junto. Suspirei e deslizei minha mão para o seu ombro e fechei os olhos, deixando com que uma expressão de derrota preenchesse meu rosto.
- Você não dirigiu quatro horas até aqui para assistir The O.C. mais uma vez comigo ou beber até cair. Ir à praia é a melhor opção. – respondi, virando-me de costas para ele e dirigindo-me até o guarda roupa, que continha as poucas peças de roupa que trouxera e me ajudara a organizar. Peguei um vestido florido e um casaco, com intenção de esconder os hematomas em meus braços. riu quando me aproximei de volta, empurrando-o para fora do quarto.
- Você está ficando careta – ele bagunçou meu cabelo, deixando-se ser arrastado.
- E você adora isso. Até mais – falei, batendo a porta com força e deixando um leve sorriso escapar enquanto sentava de volta na cama, segurando meu vestido com força. talvez fosse realmente capaz de me fazer esquecer das marcas, nem que fosse por algumas horas. E eu... Eu o amava por tentar.
***
Mesmo com as noites de inverno ficando cada vez mais frias, hoje o clima estava diferente e o leve casaco que optei por passar o dia foi uma ótima escolha. havia me levado para almoçar em um restaurante vegetariano, e eu ri dele, pois ambos amávamos carne, mas ele falou que queria inovar e eu apenas aceitei, assim como aceitei seu esforço.
Antes de deixarmos o chalé, me ajudou um pouco com a maquiagem para disfarçar o meu rosto ainda machucado, encorajando-me ao falar, mais uma vez, que logo elas sumiriam. Desejei que ele parasse de dizer isso, mas ao invés de falar alguma coisa, apenas sorri, em gratidão.
Forcei um pouco para a salada descer, enquanto atacava sua lasanha de brócolis. Ele tentou fazer com que eu experimentasse e, depois de muita insistência, cedi. Senti-me meio estranha enquanto trouxe seu garfo até minha boca, pois, sem querer, lembrei dos momentos carinhosos e ternos que vivi no meu relacionamento, mesmo que no final, tudo tenha se transformado no meu pior pesadelo. O que menos queria era ter que lembrar que houveram momentos felizes naquele turbilhão de tristeza que era o nosso amor, se era possível chama-lo assim. Depois do almoço, comprou sorvetes de morango da nossa sorveteria preferida quando éramos criança, e passamos o resto da tarde em um sebo, apenas observando os livros, pois assim como eu, adorava contemplar o cheiro de livro velho e usado, mas que mesmo assim trazia consigo uma grande história. E enquanto observava os cabelos de abaixado diante de uma imensa prateleira de livros, me senti como um dos livros usados do sebo; assim como eles, fui usada, mas, no final das contas, eu tenho uma história que não me define apenas pela capa velha.
Enquanto andávamos pela areia da praia, no entardecer, uma senhora bem velhinha nos parou, esticando sua bengala em nossa direção:
- Vocês formam um belo casal. É tão bom ver jovens apaixonados nesse pôr-do-sol lindo.
De fato, o sol brilhava em um alaranjado incrível, e mesmo estando ainda um pouco longe de encostar no mar, a visão era linda. Tirei-me do meu devaneio e percebi que engoliu em seco, demonstrando mais uma vez aquele desconforto.
- Obrigada, senhora. Mas não somos um. – falei gentilmente, e peguei pelo braço, acenando de volta para a senhora simpática. permaneceu calado.
Andamos mais um pouco, no silêncio. soltou-se do aperto de minhas mãos em seu braço e apontou para longe, abrindo um sorriso depois de tanto tempo quieto. Segui meu olhar para onde sua mão apontava e consegui perceber uma aglomeração de pessoas perto do mar, com uma grande fogueira lançando fumaça para o céu. De fato, estava certo e havia um luau. Sem esperar minha reação, segurou minha mão e corremos juntos.
O vento da noite recém-desvendada bateu em meus cabelos e cortou meu rosto, em uma sensação reconfortante. Apertei minha mão na de e desejei que aquela sensação nunca acabasse. Tanto quanto a brisa da noite me faziam sentir a mesma de sempre, mesmo quando tudo havia mudado. Os grãos de areia batiam em minha perna enquanto corríamos e só parou quando a fogueira estava bem à nossa frente. Ele não soltou a minha mão e ficou observando o luau sorrindo, parecendo muito feliz. Afrouxei o aperto e soltei minha mão. Já me sentia quente o suficiente com a fogueira. Pousei meus olhos sobre ele, esperando qualquer coisa:
- E aí?
- Esse é o melhor dia da minha vida. – ele exclamou e eu ri da sua reação, passando minhas mãos suadas em meu vestido, torci para que ele não percebesse isso – , eu sempre quis passar uma noite em um luau. E ainda tem uma fogueira de verdade!
- Você é tão previsível. – bati de leve em seu ombro e me afastei devagar, para deixá-lo aproveitar a sua noite tão especial. Não queria estragar um momento feliz na vida dele, já era um peso suficiente. pareceu aceitar, já que não me impediu e nem me chamou de volta.
***
A brisa da noite virou uma friagem e a fogueira já não emana calor para aquecer o luau, mas não era como se alguém além de mim estivesse sentindo frio. Passei o resto da noite sozinha observando a movimentação com meus pés no mar. Era como se estivesse em um clube noturno a céu aberto. Mas não me importei, porque parecia estar se divertindo com a garota que ficou acompanhado por mais da metade da noite. Eu sei que não deveria me importar, e que deveria ficar feliz por ele, mas me odiei por querer que ele tivesse vindo atrás de mim ao invés de me deixar para lá tão rapidamente. Além de idiota, eu era egoísta, e esse era um defeito pior do que ser ingênua demais. Tentei esconder de mim mesma o incomodo que senti enquanto, de longe, observava e a garota ficando cada vez mais próximos. Toquei em meu rosto ainda um pouco dolorido e tentei colocar bem fundo o ciúmes bobo que sentia do meu melhor amigo.
Eu seria injusta demais se me permitisse acabar com a felicidade de para me sentir melhor. Então decidi ir embora e voltar ao chalé, sabendo que me encontraria mais tarde e provavelmente deitaria ao meu lado, o que já era bom demais.
- Ei!
surgiu atrás de mim, puxando-me pelo braço. Não sorri quando me voltei para ele e apenas o fitei, enquanto ele fazia o mesmo.
- Onde você vai, ?
Seu rosto pouco iluminado trazia marcas de preocupação e mais uma vez tirei a felicidade dele. Seria sempre assim? Estaria eu fadada a acabar com os segundos de felicidade que se permitisse ter? Que tipo de pessoa terrível eu era?
Dessa vez, deixei-me fitar seus olhos diante de mim. Sem medo de nada. Mesmo preocupado, seus olhos traziam a minha serenidade... era a única pessoa que me fazia feliz, mesmo quando tudo a minha volta conspirava para dar errado. Ele nunca seria errado, apenas eu era errada, por tentar roubá-lo para mim.
- Eu nunca vou estar pronta para superar, . – deixei, finalmente, escapar. A maior verdade da minha vida naquele momento. A maior e nunca. Eu não conseguiria superar o meu sofrimento, não tinha capacidade de resiliência e não deveria usá-lo para acabar com o gelo que se formava dentro de mim. Eu queria que tivesse sido diferente, mas foi impossível impedir que meu coração se tornasse tão frio.
Desvencilhei-me de e caí sentada na areia, esticando minhas pernas para sentir a maré que subia cada vez mais. sentou ao meu lado, quase que imediatamente. Agradeci por isso, mais uma vez deixando meu lado egoísta me dominar. Quis gritar que “não!”. Quis apenas fechar os olhos e fazer tudo voltar aos tempos onde e eu não tínhamos problemas mais importantes do que nosso sorvete derretendo ou nosso castelo de areia desmoronando. Era tudo tão menos... complicado.
- Está muito cedo para chegar a conclusões, . É tudo muito recente. Você ainda... – fez um gesto, como se estivesse se referindo ao meu rosto e entendi o que ele queria dizer. Evitei que mais pensamentos invadissem minha cabeça. Seria impossível controlar dessa vez.
- Eu aceitei viver em um relacionamento abusivo, eu me fechei dentro de uma concha onde eu acreditava que o fato dele me bater e toda a manipulação psicológica que ele fazia era por que me amava. Que tipo de pessoa eu sou por permitir esse tipo de coisa? – Levantei e quis correr, mas assim como sentou, se levantou rapidamente, colocando-se à minha frente e me segurando pelo cotovelo.
- , por mais que você ache que não, é impossível fugir do amor; não importa de quem ou para quem. Ele não era o amor da sua vida e muito menos foi um amor saudável para fazer com que você perca as esperanças de acreditar que um dia vai seguir em frente.
Arrumei meu cabelo caindo em meu rosto e sussurrei, alto o suficiente para que ele entendesse o que eu dissesse.
- Eu vi você com aquela garota e apenas cheguei à conclusão de que nunca serei capaz de permitir que um estranho entre na minha vida. Não novamente. Não quero o desconhecido, pois sempre saio machucada.
- O desconhecido não precisa ser necessariamente o que você não se sente apta a aceitar. Talvez ele sempre tenha estado perto de você, apenas esperando que você o descubra. Você nunca saberá se criar outra concha. – ele disse e pousou sua mão em minha bochecha, de forma carinhosa. E eu o abracei, apenas.
Pude sentir seu coração batendo acelerado em seu peito e também senti os desenhos geométricos que fazia em minhas costas. Eu sabia que ele apenas fazia isso quando estava nervoso, e pude perceber ainda o seu aparente desconforto com meu abraço abrupto. Não sei porque, mas enquanto deixava com que o cheiro do seu perfume fraco adentrasse minhas narinas, lembrei-me da vez que sentou à minha frente, em sua cama, e começou a cantar “Beautiful Day” me observando, enquanto eu tentava acompanha-lo, rindo da minha performance. Mas lembrei-me exatamente de como seus cabelos estava mais escorrido naquele dia, caindo em seus olhos de maneira a quase esconder o verde dos mesmos, e em como sua voz firme tremia, uma vez ou outra, ou ainda até em como seus olhos brilhavam enquanto ele esboçava um sorriso sugestivo enquanto me olhava rir de mim mesma. E ele nunca havia pedido nada em troca. Nunca. E tudo o que eu fazia era querer cada vez mais dele. Mas, talvez, a verdade fosse que eu apenas o queria.
Levada pela lembrança e sem pensar direito, afastei-me do seu abraço, encostando nossos lábios, beijando-o. E foi como se todo o gelo que havia em mim houvesse, de alguma maneira fora do comum, se transformado em fogo. Eu era o fogo e era minha gasolina. Mas me afastei, assustada, e esfriei ao encontrar seu olhar desconsertado. Mas ele fez com que o frio durasse apenas alguns instantes, puxando-me com força para perto de si e me colocando em modo de explosão mais uma vez.
***
O caminho até o chalé foi apressado, sem muitas palavras. me beijava e eu apenas correspondia, também sem dizer nada. Tudo que parecia precisar ser dito se transformava em nossos lábios colados. Eu sabia que havia muito mais do que apenas beijos para entender o que estava acontecendo, mas não queria entender, só queria aproveitá-lo e deixa-lo me aquecer, acabando com o gelo que as marcas em meu corpo haviam colocado dentro de mim. me fitou com intensidade antes de me colocar com cuidado, mas ao mesmo tempo, ele estava sedento, e eu o queria cada vez mais, mesmo sem entender o que acontecia entre nós, tirando a eletricidade que o contato de nossos corpos percorria em mim.
As mãos quentes de pareciam me dar pequenos choques a cada toque novo que eu sentia dele, a cada nova experiência que compartilhávamos. A intensidade com que ambos queriam aquilo me assustava, pois eu não sabia há apenas algum tempo atrás que eu precisava tanto disso. A cada olhar que ele me direcionava eu sustentava, com convicção; queria que ele soubesse que eu o queria, mesmo quando nem eu mesma sabia ao certo o que eu queria além disso. Naquele momento, toda a certeza que eu tinha era . Deixei ser levada pelo calor que ele me proporcionava.
***
Acordei meio embriagada com a noite, mesmo sem ter bebido. Senti o leve toque macio do lençol por sobre meu corpo nu e imagens da noite passada invadiram a minha cabeça. Será que agora eu poderia entender o que havia acontecido? Eu transei com meu melhor amigo!
Olhei para onde ele estava, dormindo calmamente com os seus cabelos caindo por sobre seus olhos. Sua mão estava pousada em minha barriga por baixo do lençol e eu a afastei. Aquilo havia sido um erro, certo? Eu amava , mas seria daquele jeito? , o que você fez?
Levantei da cama levando comigo o lençol da cama. Caminhei até a janela e a abri, deixando o sol da manhã banhar meu rosto. Sabia que meus hematomas ainda estavam ali e imaginei por que diabos iria me desejar daquele jeito. Talvez quem estivesse embriagado fosse ele. Toquei em meu rosto, quase como sentindo o toque de em mim. Era tão bom, tão ardente... me tocou como ninguém jamais havia me tocado antes. Por melhor que tenha sido, não sentia que estivesse fazendo a coisa certa. Me sentia errada por me envolver com alguém, ainda mais com , que merecia alguém muito melhor que eu.
Meus olhos marejaram e eu me odiei por ter deixado tudo acontecer. Por ter deixado que um relacionamento abusivo tomasse conta de mim e por ter arrastado para a desgraça da minha vida. Eu não poderia estar sendo mais egoísta. Não deveria ter deixado nada disso acontecer.
- ?
Ouvi sua voz sonolenta e uma lágrima escorreu sem a minha permissão.
- ? – olhei para trás e estava sentado na cama, sem nada para cobri-lo, já que eu havia levado o lençol comigo. Voltei devagar até a cama e deitei, virando-me para a parede, evitando , mesmo que ele estivesse ao meu lado.
Ele pareceu entender, tanto que ficou em silêncio, voltando a se deitar logo depois. Parecia que um iceberg dividia nossos lados na cama. Queria evitar esse frio inevitável que se instalava entre nós, porém como eu poderia mudar isso?
Ficamos alguns minutos assim, cada um em seu lado da cama. Eu queria ? Eu queria . Mas seria justo fazer com que ele me queira também? Provavelmente eu seria culpada por estragar outro relacionamento, e o que estava em jogo aqui era muito mais do que apenas sexo. Quando finamente decidi tomar alguma atitude, virei-me em sua direção e encontrei seus olhos me encarando.
- Não deveríamos ter feito isso. – disse calma, mas ao mesmo tempo nervosa demais com sua resposta, não sabia o que esperar. O que aconteceria daqui para frente dependeria de sua resposta. Os segundos foram passando e quando estava pronta para pedir para ele dizer qualquer coisa, ele falou:
- Você não precisa me afastar. Eu posso ficar, você sabe...
Eu sabia, mas como eu me sentiria se eu o machucasse? Eu não me perdoaria jamais.
Lembrei do que disse sobre o desconhecido não ser necessariamente algo que eu não conheço. Entendi que ele estava se referindo a ele mesmo, já que por mais que eu o conhecesse por tanto tempo, nunca desconfiei que isso poderia acontecer entre nós. Eu estaria disposta a ser egoísta e deixar com que a chance de o ferir se tornasse uma possibilidade?
- Não, . Eu só... Não posso machucá-lo também. Eu não consigo nem parar de machucar a mim mesma, como seria capaz de não machucar você? Eu destruo tudo em que eu toco. Não posso fazer isso com a gente – suspirei devagar quando terminei, tirando um pouco do seu cabelo que caia em seus olhos, que não pararam de me encarar nem por um instante sequer.
- Você está doida? Você nunca seria capaz de me machucar, . E eu nunca iria deixar você machucar a si própria. Eu nunca... – foi a vez de ele colocar sua mão em meu rosto, mais especificamente nas pequenas marcar já amareladas em torno de meus olhos e maxilar – E eu nunca deixaria ninguém a machucar.
- Mas você já faz isso, . Não posso permitir que você se sinta na obrigação de nada. Você já faz demais.
- Não o suficiente. – ele apertou minha bochecha, e se aproximou, mas antes que ele me beijasse, virei meu rosto.
- Acho melhor voltarmos para casa. Vou arrumar minhas coisas.
- ...
- , por favor.
Fazia três dias que eu não retornava as ligações de e me odiei por isso. Não nos falávamos desde a viagem de volta para casa, onde o único som era das músicas da playlist de e da sua respiração pesada. Ele não me pressionou a conversar e eu o agradeci por isso mentalmente, porém eu sabia que não deveria arrastar por mais tempo do que o necessário a conversa inevitável. Já havia a cortado uma vez.
Chorava a cada mensagem que ele mandava e eu ignorava. Eu queria poder responder, mas apenas não me sentia preparada para admitir o que quer que fosse preciso. me amava mais do que amiga? E eu? Também o amava dessa maneira?
Não foram só as ligações de que eu ignorei, o causador de toda a tristeza que me impedia de aproveitar os momentos não parava de me ligar. Eu já estava curada fisicamente, mas o físico não se compara em nada com as cicatrizes que para sempre estariam dentro de mim. Ele era o culpado por eu ter tanto medo de me deixar amar, ou deixar ser amada. E eu o odiava tanto. E sentia tanta falta de .
Deveria ligar, eu sabia, mas não tinha coragem. O que eu diria? Era injusto largar o fardo que eu era para cima de e dizer simplesmente que eu sempre deveria ter ficado com ele, desde o princípio. Pedir desculpa por demorar tantos anos para notar, pedir desculpa por deixar chegar em uma situação crítica para notar que era por ele que eu realmente estava apaixonada. Seus beijos e toques apenas me mostraram a verdade que eu guardei tão fundo por tanto tempo. Pedir desculpa também por todo o mal que eu já havia o causado, por todo sofrimento que compartilhei com ele, e ele os tomou como se fossem seus próprios. Não aguentaria ver sofrer ainda mais por minha conta. Mas eu também precisava admitir que ele era o único que podia derreter a pedra de gelo em que meu coração havia se transformado.
Segurava meu celular com força no seu contato, tentada a clicar em seu número e esperar até que ele me atendesse e eu pudesse ouvir sua voz, que mesmo com todo esse turbilhão me acalmaria, nem que fosse por apenas alguns instantes. E no momento que eu estava prestes a ligar, irrompeu em meu quarto pela janela, batendo seus coturnos com força no chão, para se fazer ouvir.
- .
Levantei depressa da cama e fiquei de pé, observando e ainda longe dele. Não percebi que chovia lá fora até ver seus cabelos levemente molhados, assim como seu rosto e suas mãos. Apenas de vê-lo, senti meu corpo aquecendo aos poucos. Deveria ser automático. Esbocei um sorriso, mas ele não fez o mesmo. Percebi suas mãos machucadas e seu punho fechado. parecia irritado, mas devastado também.
- Não é justo você me ignorar. Não. Até quando você vai fazer isso? – ele disse rápido, passando as mãos em seu cabelo e parecendo nervoso.
- , eu...
- Eu vou falar agora – continuou e veio com passos apressados até mim, segurando meus braços com força, mas ao mesmo tempo sentir o toque suave de sua mão em meu corpo me dava forças. – Eu amo você, . Eu amo muito você. Quero ter você e quero protege-la...
- Por que você está machucado? – perguntei, com a voz baixa – Já não basta eu? – sussurrei a última parte, mas sabia que ele havia escutado.
- Você é tão linda e não entende. Quero faze-la entender isso e o quanto você é importante. Quero faze-la se sentir importante, sabe? Eu nunca vou me perdoar por ter deixado com que ele te batesse. Nunca, . – me soltou e segurou sua mão direita machucada nas articulações. Fechei os olhos, desejando que ele não tivesse feito o que eu pensava que tivesse.
- Você não precisava...
- Eu precisava sim. E faria de novo e de novo. Eu sei que de nada adianta socar a cara daquele sujeito, porque nada disso vai fazer desaparecer as marcas que ele provavelmente deixou aqui – ele colocou a mão em meu coração. – para sempre. Mas, céus, , você sabe, eu sei que sabe, que eu sou capaz de fazer você esquecer delas. Não digo fazer com que elas desapareçam, mas posso fazer você esquecer.
Fitei seus olhos e avermelhados, assim como os meus, depois de tantas lágrimas derramadas nas últimas semanas. Pensei em como tomou conta de mim depois de todas as brigas que tivesse com aquele monstro que achava que fosse o amor da minha vida, de todas as vezes que ele me reconfortou e como ele cuidou de mim depois de ver o estado deplorável em que eu me encontrava. Em como realmente me fez sentir especial e amada. E sabia que ele nunca deixaria de me fazer sentir assim. Eu sabia que ele poderia me fazer esquecer todo o mal que eu já havia enfrentado em meu último relacionamento. Eu só...
- , eu amo você. Eu estou apaixonada por você. Fui burra por não ter percebido isso antes, mas não posso. Simplesmente não posso permitir ser egoísta. Não posso fazer com que você fique preso a mim...
- Você ainda não entendeu que é exatamente isso que eu quero? Eu quero você, sempre quis, de qualquer jeito, em qualquer momento. , por favor.
Acabei com a distância entre nós e enterrei meu rosto em seu peito, abraçando-o e sentindo seus braços me rodarem logo depois, com força e ardor. Ficamos assim por um tempo que não saberia dizer. Eu apenas estava abraçada a ele como se fosse a última coisa que eu poderia fazer em vida. E não seria ruim se aquela fosse realmente a última coisa realmente.
Ainda no abraço, me levantou e me deitou em minha cama, deitado comigo, e permanecemos deitados e abraçados, como sempre. Como antes de eu descobrir que eu apenas estava perdendo meu tempo quando tudo o que eu precisava estava ali, ao meu lado. Quando tudo que eu precisava para derreter meu coração fosse ele. Ele sabia que eu havia sido machucada antes e não se importava em remendar todas as feridas abertas em mim. Havia ainda muito caminho para percorrermos até tudo dar certo, isso era inevitável. Havia também um caminho grande a percorrer e reaprender a me amar, para poder amá-lo com todas as minhas forças. seria o meu caminho para reaprender a vida e poder enxerga-la de uma maneira diferente e melhor. Eu estava com tanto medo disso, mas não poderia fugir... Isso sim seria egoísta. Pois acreditava em todas as palavras de e eu acreditava em seu amor por mim, e não o machucaria, nunca iria me permitir chegar a tal ponto.
Sentia meu coração derretendo a cada respiração lenta de em meu pescoço, a cada desenho que ele inventava em meu braço. Não iria fugir, porque, agora, tudo que eu poderia querer era ficar em seu abraço. Mesmo que fosse difícil, mesmo que no meio do caminho coisas ruins pudessem acontecer. Porém, me dava forças para acreditar que estava pronta para enfrentar meus próprios medos e monstros, pois mesmo que eu tivesse que destruir tudo sozinha, ele sempre estaria lá comigo.