Crashes of Heaven

Escrito por Clary Avelino | Revisada por Lyra M.

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Prólogo

  Arkheiu. Vladimir. Dreock. Monstair. Nialla. Neclon. Waller. Tristo. Blaskein.
  Agora, . Eu.
  O décimo demônio convencido a ir até sua morte. Nada disso iria resolver. Nada disso iria ser realmente real. Minha existência rondaria o nada diante da morte.
   Silver. Uma simples garota que tivera a alma prometida mesmo antes de nascer: seu pai vendeu a alma de sua primogênita em troca de riqueza. Luxo. Uma vida longa e cheia de todo o tipo de prazer e pecado.
  Mas, tão podre fora sua existência, que quando seu pagamento chegara ao mundo, nascera com o pior dom que alguém pode ter.
   podia ver demônios. E sua alma, um dia fora tão inocente que trazia os próprios demônios ao fim do poço. Trazia os próprios demônios à morte.
  Um anjo inocente que não tinha noção de nada ao seu redor.
  Fora internada ao informar para todos que via demônios, numa festa da família e com toda a sociedade próxima. Informou quantos demônios estavam ali e quem iria para o inferno. Disse todos os pecados de cada um, e fez Neclon se matar naquela própria noite. Neclon era o demônio enviado para trazer sua alma de volta ao inferno. Sexto enviado. Sexto de sua linhagem.
  Pigarreei, encarando minha forma humana no espelho e estreitando os olhos para aquelas madeixas humanas, que pendiam nos ombros e tinham um formato escurecido. Duas batidas na porta e uma doce voz veio até mim, dizendo que eu podia entrar.
  — Bom dia. — Saudei, segurando minha prancheta com cuidado enquanto fingia examinar suas informações lá — Silver, não é?
  — Bom dia. — Os longos cabelos loiros estavam desengonçados, embaraçados por completo, e parecia que ela não os lavava há tempos. Seus olhos tinham um quê escuro, e eu sentia cheiro de sangue no ar. Mais precisamente, do meio de suas pernas, já que sua camisola branca estava tingida de vermelho no local — Novo médico?
  — Sim. — Tentei não reagir a sua imundice, me mantendo quieto. — Você quer tomar um banho antes de conversamos?
  — Um demônio é meu novo médico? — Seus olhos pararam em mim — Nunca vieram como médicos, essa é nova. Já tive amigos, serve? — Gargalhou, a insanidade beirando em suas palavras. — O cheiro de sangue incomoda?
  — Não sei porque faz perguntas que já sabe as respostas. — Retruquei, colocando a prancheta de lado e rolando os olhos, aquilo já era previsível.
  — Veio buscar minha alma, ? — Se esticou na cama, apoiando a cabeça nas mãos e melando ainda mais a cama com seu sangue podre. Ela não usava calcinha, e eu podia ver claramente sua vagina completamente suja de sangue, alguns pedaços mais escuros e coagulados presos a sua virilha.
  — Com um banho antes, talvez.
  — Oh. — gargalhou tão alto que eu estreitei os olhos em sua direção, ajeitando a roupa que me protegia da nudez — Isso vai ser divertido.

Primeira Parte

  Em todas as contradições possíveis, não era a pessoa mais privilegiada daquele lugar. Seu pai doava uma ótima quantidade de dinheiro para o manicômio todo mês, garantindo que eles a tratariam da pior forma possível. Talvez o homem quisesse vê-la morta o mais depressa. Seu quarto era mais que precário, além de fedido. Uma cama de solteiro, feita de uma alvenaria bem gasta. As paredes tinham tinta gasta e descascada, o chão tinha um piso reto, sem pedras polidas ou esbranquiçado, tinha a coloração avermelhada. Um simples bebedouro. O armário era pequeno e cabia meia dúzia de peças de roupa. Não havia banheiro. Ela tinha que tomar banho com os outros pacientes. Não duvido que sua comida venha com boa parte estragada.
  A vida da menina era um inferno.
  — Eu estou com sede. — resmungou, tombando a cabeça e olhando em minha direção como se esperasse que eu me levantasse para buscar sua água.
  — Você tem duas pernas. Faça bom uso delas. — Respondi de forma categórica, mudando meu olhar para cima dela apenas por alguns segundos, voltando minha atenção para todo seu histórico. Estava ali, detalhado de toda a forma possível. bufou, levantando em seguida com passos pesados e teimosos. Enquanto andava, eu podia perceber o sangue escorrendo por toda sua perna — Vai sujar o chão assim.
  — Eu estou fazendo bom uso de minhas pernas. — Sorriu infame em minha direção, unindo os lábios num sorriso falso. Bebericou a água rapidamente e voltou para a cama, mexia nas unhas dos pés com os dedões das mãos, parecia tentar arrancá-las. — Porque vocês não têm nomes normais? — Parei de ler por um segundo e olhei em direção a mais uma vez — Quer dizer, ? Qual o problema de quem batiza vocês? Acho que você combina com Luke.
  — Mudo meu nome para Luke se você me der sua alma. — Estalei a língua, rolando os olhos com sua gargalhada.
  — Acho que essa foi a melhor proposta que já recebi. — Riu mais uma vez e eu voltei a ignorar sua existência.
  A verdade era que nunca éramos mandados realmente para trazer a alma de como pagamento. Basicamente, éramos seus demônios da guarda. Impedíamos o suicídio, já que a alma estaria podre e, assim, não seria recebida da forma correta. Matá-la também não é uma opção que possa ser considerada, foi uma opção removida quando a menina fez 5 anos. Ela, de alguma forma, sempre conseguia convencer os outros a se matarem. Fez isso com nove demônios antes de mim, e a linhagem de mortos acabaria ali. Todos que me antecederam tiveram a eternidade negada graças à existência de Silver.
  Isso acabaria ali.
  — Qual o lance do absorvente? — Indaguei, tentando esconder a curiosidade em minha voz.
  — Como? — Olhou em minha direção com uma interrogação no rosto, e logo depois entendeu o que eu queria dizer. — Eles não me dão absorvente. Eu prefiro ficar nua, mas como eu tive que receber meu mais novo demônio e melhor amigo, a camisola foi o mais plausível. Não vou sujar minhas calcinhas com sangue. Possível que elas joguem fora dizendo que ele é amaldiçoado também. — nunca pareceu tão sã quanto naquele momento. Sua voz estava num tom correto, e até mesmo sua postura diante do fato tirava toda a armadura de insanidade forjada em cima de si. — Sabe quando eu fui autorizada a usar xampu? No meu aniversário. Eu nem lembro quando foi meu aniversário! Eu tenho piolho, feridas na cabeça e tanta sujeira que eu tenho certeza que existem vermes em meu cérebro.
  — Todas essas coisas são ordens de seu pai, certo? — Eu tinha que ter a mínima confirmação possível. Por mais que um dia ela fosse morrer por culpa das ações dele, o homem poderia pelo menos dar uma boa vida a menina.
  — Ele não gosta de lidar com a verdade, apenas isso. — Nenhuma emoção soava em seu tom de voz e eu pude sentir o vazio em seu olhar.
  — Ninguém gosta, não é mesmo? — Levantei uma sobrancelha e dei de ombros, sentindo o cheiro do sangue não tão forte quanto antes — Sua vida é uma mentira, . Eu sou supostamente seu médico, mas vim aqui te matar. Nove antes de mim fizeram isso. Você nasceu com o propósito de um pagamento. Às vezes a verdade não é a melhor coisa com a qual se lidar.
   começou a gargalhar, voltando a soar alta e escandalosa. Ajeitou o corpo na maca e levantou as pernas, deitando o tronco na cama e deixando os pés pendurados na parede amarelada, manchando com o pouco sangue que não estava seco em seus dedos.
  — Você é engraçado, . — Ria mais que antes, agora limpando lágrimas nos cantos dos olhos. — Eu nasci em meio às mentiras, é claro que eu não dou a mínima para isso. A diferença entre as pessoas não gostarem da verdade e eu, é que eu sempre soube de toda a verdade. Nunca dei a mínima para ela, também. — Gargalhou uma última vez antes de começar a gesticular com as mãos. — Eu só aceito o que eu vejo. O que eu tenho certeza absoluta que é real. Esse é o problema das pessoas, meu caro demônio, elas acreditam nas coisas porque alguém disse. — Seu corpo virou bruscamente em minha direção e eu pude ver toda a loucura que estava presente em seus olhos naquele momento. Deitada na cama, as pernas tortas contra a parede e a cabeça apoiada nas mãos, uma posição torta do pedaço pensante de si e lábios ressecados. Eu nunca teria certeza se Silver era totalmente maluca ou sã demais para o próprio bem. — Se uma única pessoa discorda do que foi proposto de anos em anos na sociedade, todos vão julgar. Podem até concordar, mas não vão assumir sua opinião por medo de não serem aceitos.
  — Então diz que as pessoas devem acreditar apenas no que está diante dos seus olhos?
  — Digo que as pessoas devem parar de serem robôs dos antepassados! — Gritou, levantando da cama com voracidade e andando em círculos pelo quarto. — Um daltônico não vê vermelho ou verde! Não vê de jeito nenhum! Mas porque ele sabe que as cores existem? — Ela estalou o dedo em minha direção e seu sorriso próximo demais me permitiu sentir um hálito ruim vindo dela. — Porque alguém disse! Mas ele, ainda assim, é obrigado a dizer que acha que coisas que nunca viu na vida são reais, para não o chamarem de louco!
  — Tecnicamente, o daltonismo é uma doença…
  — Ver demônios também é sinal de esquizofrenia. — Crispou os lábios e sentou na cama, mexendo na crista que ela chamava de cabelo. — Mas você é real, não é?
  Só naquele momento percebi o desespero de sua voz. O fiasco que era o fio que a separava de toda a única insanidade que conhecia. Hipocrisia, essa era a palavra certa para definir o momento. Uma situação incerta, onde passara anos ouvindo que tudo o que ela via eram coisas que sua mente havia criado. Era chamada de louca. Doente. Mandada para um manicômio porque insistia que tudo ao seu redor era real.
  E era. Tudo ao redor da garota era sim real.
  Só que nem mesmo ela sabia a que ponto havia chegado.
  Virei meu rosto para o espelho e me assustei ao perceber que eu parecia um tanto triste. O fato da criação dela parecia me abalar, nem que fosse da mínima forma possível.
   tossiu e me olhou, havia algo penetrante em seu olhar que parecia chegar ao fundo de mim. Assim que meus poucos sentimentos expressos pela face chegaram ao seu conhecimento, um sorriso satisfeito foi aberto em seus lábios e ela começou a rir.
  Não como antes.
  Não como uma maluca que vive há anos num manicômio.
  Como uma pequena sociopata, emergindo aos poucos para a superfície em que a boa garota vitimizada se escondia. Sua risada era tão diabólica que por pouco eu não perguntei se aquela era Lilith.
  — Vê como é fácil? — veio em minha direção e passou os dedos ásperos em meu rosto, a barba rala arranhando sua pele — Uma história triste e vocês são tocados da forma mais profunda. Um olhar desolado e confuso e todos sentem pena da pobre garota que foi jogada aqui pelo papai malvado… — havia um sarcasmo em sua voz que eu não tinha ouvido até agora. Seus lábios estavam formados num bico manhoso, e os olhos refletiam poder. Os olhos daquela menina refletiam tudo o que ela era. — E ainda me perguntam como eu matei nove demônios. — Deu as costas para mim e foi até o armário, tirando a camisola e jogando-a no chão, procurando por algo — Não seja tão fácil, . Assim você deixa o jogo sem graça.

Segunda Parte

  Eu sabia bem porque todos aqueles demônios haviam se matado.
  Até eu estava considerando a hipótese.
   era a pessoa mais insuportável que eu tive o desprazer de conhecer. E não sabia de quem mais sentia pena: do pai por ter aquela filha ou dela mesma, por se aturar.
  O maior problema diante de toda a situação criada era que o desgosto não era só meu, automaticamente, e eu nos detestávamos mutuamente.
  E como meu dever era conseguir sua alma sem matá-la e impedir um feliz suicídio, eu não podia largar do maldito do seu pé em momento nenhum. tomava banho, eu ficava do lado de fora a esperando. comia, eu estava ao seu lado observando seu nojento prato e como ela não tinha interesse algum em continuar comendo-o. tomava os remédios e eu estava lá, fingindo que não a via jogando-os fora logo depois.
  Eu fingia que estava feliz em ver como a vida dela era patética e péssima, só para deixá-la irritada. Mas, na verdade, eu estava só entediado para porra. Não havia nada que eu pudesse fazer fora dali, eu não podia perder a garota de vista por mais de dez minutos e, infernos, aquilo era horrível.
  Levantei os olhos quando ela saiu do lavatório, cheirava a sabão e a crista estava amarrada num péssimo coque, vários fios escorriam pelo seu rosto e ela parecia ter molhado ele. Fedia, eu sabia que sim.
  — Então você realmente toma banho? Achei que era só brincadeira. — Comecei já andando atrás dela até chegarmos ao seu quarto. já estava vestida quando me deixou entrar, e eu percebi que seu período finalmente havia passado, já que ela não estava mais com sangue pelas pernas.
  Os olhos inquietos me analisaram por completo, e logo em seguida ela virou o rosto, voltando a ignorar minha existência como havia feito antes.
  — Hoje é terça, não é? — Perguntei, mesmo sabendo que sim, era terça-feira. Fui até o calendário preso à parede para fingir estar confirmando minha dúvida e abri um péssimo sorriso, tão infeliz quanto aquele que pairava nos lábios da loira ao meu lado. — Passeio ao ar livre e terapia em grupo. — Li em voz alta — Por que isso não me parece nada bom?
  — Eu odeio ambos, não vou para nenhum dos dois. — Sua voz estava arrastada e ela parecia querer morrer naquele exato momento.
  — Você tem que ir.
  — Luke, eu não vou. — sorriu com escárnio e deu de ombros. Ah, ela ia sim. Nem que fosse a última coisa que eu fizesse.
  — Meu nome é . — Falei entredentes. — , se suas roupas não fossem tão imundas, você seria mais branca que elas. Vamos, um pouco de sol não mata ninguém.
  — Se está tão incomodado com a cor de minhas roupas, compre novas. Lave-as. Isso não é de minha conta. — O tom arisco parecia mais forte que nunca. — Não vai me obrigar a ir.
  — Posso achar milhares de motivos para você ir. — Incentivei.
  — Luke, eu não vou para porcaria alguma. Olha, quer ficar que nem um retardado debaixo do sol? Fique, tomara que você pegue câncer de pele. Quer fazer a porra de uma terapia em grupo com médicos que te odeiam, são pagos para te tratar mal e com um bando de malucos? Ótimo, vá e boa sorte. Eu estou muito feliz esperando minha morte nesse pedaço de chão.
  — Alguém já te disse que você é insuportavelmente chata? — Rolei os olhos, me segurando para não rir dela, porque era isso que eu queria fazer. — Talvez, se você fosse um pouquinho menos arisca, arrogante, chata, sarcástica e insuportável, as pessoas desafiariam as regras daqui para te tratar bem. Mas não, você merece cada pedaço de sofrimento que eles te passam. Me diga, , porque não entregar logo o que você tem quando se vive de forma tão miserável? Você não tenta provar nada para ninguém, não tem quem dar satisfações, e a única pessoa que te resta é um fardo para você tanto quanto você é para ele. Qual o motivo de insistir em algo que obviamente já está perdido?
  — Te irritar, talvez. — Deu de ombros, passando a língua pelos lábios e se aproximando. — O que está tentando fazer, ? Você tem que me matar, lembra? Seu dever aqui é transformar minha vida no lugar que pertence. Por que me dar perspectivas sobre coisas que eu não terei? Por que querer me dar lazer e prazer quando você tem a função de tirar a única coisa que realmente me pertence?
  Calei a boca, semicerrando os olhos para não responder nada. Infeliz era sua insistência, talvez mais que a minha. Talvez mais que todas as pessoas dali.
  — Para você não morrer como uma qualquer. — Respondi de qualquer maneira, analisando seu comportamento. — Sua alma já está condenada ao inferno, . Você vai para lá sendo alguém boa ou ruim. Sua eternidade estará lá. Então, se você vai mesmo para o inferno depois disso tudo, se você vai mesmo conhecer o purgatório e todas as infelicidades dele, porque não honra esse título? Viva o que pode aqui dentro. Desafie as pessoas como você fazia quando estava fora e até mesmo faz, só que escondida. Fuja dessa porcaria de realidade insana que você se colocou.
  – Você está me colocando no mesmo lugar que um porco de abate. Criando algo mentiroso para quando a hora chegar, fazer o que for do seu gosto. – Sorri sem graça ao ouvir aquilo, parecia que era amargo o gosto da verdade.
  – Se alguém está ajudando, você não tem que reclamar. – Suspirei, sentando na cama e batendo as mãos nas coxas – Você é realmente insuportável, sabe disso. Uma porca por falta de escolha. Podia lavar o cabelo pelo menos com sabão, ou quem sabe raspar todo de uma vez. – Rolo os olhos, entendiado com seu jeito – Você não dá opção nem das pessoas sentirem pena de você.
  – Mas você sentiu.
  – Mas eu fui um tolo. Não que eu ainda seja, cheguei num momento de achar bem feito todas essas coisas que acontecem com você.
  – Só por que eu não sou a coitadinha que você queria que eu fosse?
  – Só porque você é desprezível.
  – Tudo bem. – suspirou, levantando e ajeitando a roupa – Eu vou.
  – Mas…?
  – Ganhou um ponto comigo pela sinceridade, gosto de pessoas sinceras.
  – Então, eu tenho pontos com você? – Um sorriso maldoso dominou meus lábios.
  – Ew, não me olhe assim. Você tem um ponto comigo e saiba que vai usá-lo nessa porcaria de terapia. O ponto do passeio vai ser facultativo.
  Assim, consegui convencer a ir para o passeio ao ar livre. Não que tenha sido realmente agradável, foi um porre. Ela reclamava, eu gritava com ela. Seu medo de borboletas a fez sair correndo do jardim, e as outras pessoas realmente não se aproximavam dela. Não é possível que até mesmo os pacientes odeiem a garota, quer dizer, ela fez alguma coisa contra eles?
  Quer dizer, fez?
  Ponderei meu olhar entre alguns pacientes que caminhavam por ali com seus mórbidos olhares a uma que fitava de forma nojenta um esquilo na árvore, provavelmente fugindo dela.
  Até eu fugiria se pudesse.
  – Eles não falam com você.
  – Hm? – A bem-humorada loira perguntou como se não entendesse, voltando o olhar para o bicho como se ele fosse a coisa mais estúpida do mundo.
  – Os outros pacientes não falam com você. Eles se afastam. Por quê?
  – Ah, eu acho que é medo. – Falou, numa simplicidade de quem dá bom dia.
  – E porque eles têm medo de você, ? – Perguntei, um tanto apreensivo.
  – Ah. – Finalmente, parou de prestar atenção no maldito esquilo e virou para mim. – Eu tive uma pequena discussão com uma das enfermeiras, pouco tempo depois que eu cheguei. Disse que ela havia colocado algo em minha comida, e ela disse que não tinha, mas com certeza havia algo ali, eu vi coisas se movendo no prato.
  – E então…?
  – Eu quebrei o prato na cabeça dela e, quando ela foi revidar, bati a cabeça dela na mesa. Ela desmaiou e começou a sair sangue do nariz dela. Vários guardas vieram para cima de mim e eu comecei a assustá-los, falando dos demônios. Disse que se eles chegassem perto de mim, ia mandar meus demônios atrás deles, e que eles iam esquartejar todos e mandar os pedaços para os familiares. – soltou um suspiro orgulhoso. – Depois eu voltei andando para meu quarto e fui dormir.
  – O que aconteceu com ela? Digo, a enfermeira.
  – Ela morreu. Morte cerebral. Algo assim. Meu pai teve que pagar uma puta indenização porque, A) não podem me condenar a pena de morte, pois ele precisa de mim viva; B) eu teria que ficar em um lugar onde ele é influente, e aqui estou eu; C) eu estava gastando seu precioso dinheiro.
  Comecei a rir, achando graça de toda a situação. Com toda certeza, estava no lugar certo. Só que o pai deveria estar fazendo companhia no quarto ao lado. O cara estava se mostrando mais maluco que a doida internada num manicômio.
   ignorava a existência de todos ao seu redor, e eu percebi como ela lidava com todas aquelas coisas. Fingia que nada daquilo era realmente com ela e seguia em frente. Parecia ter criado um mundo imaginário onde não precisaria se importar com nada disso. E a partir disso, não se importava com mais nada. estava com seu foda-se ligado da melhor maneira possível e, sinceramente? Eu adorava isso.
  Depois de algum tempo, começou a resmungar sobre a fome, e voltamos para a sede. O horário do almoço estava aberto e, com isso, ela poderia ter seu momento. Eu não precisava me alimentar e, sinceramente, nem queria. Com aquela coisa que eles chamavam de comida, eu preferia morrer de fome. Não que eu morresse de fome, isso é tecnicamente impossível.
  Naquele dia, ela parecia especialmente quieta. Mal respondia às provocações e sempre estava pensando em algo. Quando tomei a liberdade de perguntar o que estava acontecendo, ela virou para mim com uma baita cara confusa e disse:
  – Não sei, esqueci de algo que deveria lembrar.
  Diante disso, como a história da enfermeira morta e das ameaças com os demônios dela, resolvi puxar assunto para tentar uma conversa enquanto ela se alimentava.
  – Qual era o demônio que você disse que foi seu amigo?
   parou de mastigar, levando mais uma garfada à boca, de modo que sua bochecha ficasse inchada de comida.
  – Não foi um dos demônios enviados para mim, conheci por acaso na festa. – Respondeu, a boca tão cheia de comida que eu quase não entendo o que quis dizer.
  – Que festa? – Fingi interesse.
  – No evento beneficente em que eu fiz meu showzinho. Aliás, foi ela quem me aconselhou. – sorriu, já com a boca vazia – Ela não era um demônio como você, não tinha o próprio corpo humano, possuía dos outros. – Voltou a comer, me explicando com a maior calmaria – Eu consegui identificá-la não sei como, mas começamos a conversar, e ela me contou que estava ali por causa de uma das suas almas... vocês demônios e as almas, que coisinha chata, viu? – rolou os olhos e eu comecei a rir, ela era até engraçada quando não era um saco.
  – Você lembra o nome? – Perguntei, interessado na história.
  – Claro que eu lembro, ela ainda me manda cartas. Catherine Be...
  – Beckhart. – Completei com desgosto – Sério mesmo? Essa menina só dá trabalho para todo mundo. – Rolei os olhos, já não estava com o bom humor de antes – Ela não tem um corpo próprio porque nasceu humana. Catherine virou um demônio por causa de um acordo com Lilith.
  – E você, senhor bonitão, foi um demônio criado por nascença, então nunca teve vida antes disso. – terminou o prato, olhando para mim como quem espera por uma resposta – Eu estou certa, não estou?
  – Sim. – Respondi, estalando os dedos – Só que eu sou filho de dois demônios de criação. Não fui criado para alguém ou por alguém.
  – Demônios de criação e demônios de nascença. Adoro que eu saiba mais de demônios do que quem ensina demonologia por aí. – Tinha um ar convencido em sua fala que era engraçado – Eu não aprendi a identificar os demônios com o passar dos anos, eu sempre soube como eles eram, só não fazia ideia de como sabia. Catherine foi quem me explicou. – Contive a vontade de rolar os olhos mais uma vez – Toda a existência de meu pai após o pacto foi totalmente podre. Suas ações diante do mundo condenaram algo que ele não tinha: humanidade. E aí, quando eu nasci, já sabendo de todas as coisas que aconteceriam comigo, alguém, que até hoje não sei quem, me tornou pura de nascença. Não pura no sentido pecador. Pura no sentido de alma. Então, como pura proteção, eu consigo identificar quem é humano e quem não é. Até mesmo com os anjos. Cat me disse que conseguia ver a aura das pessoas e que, normalmente, quando elas eram puras por algum sentimento bom, eram claras. Auras são ligadas a alma. Minha aura é azul claro, com algumas partes nubladas e coisas que ela não conseguia identificar.
  – Você é podre, mas ainda assim é pura.
  – São como choques no céu. – estirou os braços e levantou da cadeira – Tudo o que tenta entrar, não consegue se eu não deixar. Por isso...
  – Você precisa ceder sua alma.
  – Exatamente. – Piscou para mim, voltando ao seu quarto com uma preguiça típica de quem queria ficar ali o dia inteiro.
  Mas, estranhamente, tinha algo novo quando chegamos ao quarto de . Um grande envelope estava em sua cama, amarelado e com um brasão desconhecido no selo. Os olhos dela adquiriram uma coloração escurecida assim que pousaram no papel e, quando eu percebi que sua intenção era colocar fogo no que tinha ali, saí correndo e peguei. Abri sem o mínimo cuidado e olhei curioso para o que tinha escrito, pensando em tudo o que cercava e como ela precisava daquilo por N motivos.

Prezada Sra. Fitzgerard Silver, o comitê de organização do Baile Anual de Caridade da Fundação Silver tem o prazer de anunciar que seu convite de honra é válido na próxima sexta-feira (10/29/2015). O tema será Halloween, e a fantasia é de escolha própria.
Contamos com sua presença e doação.
Fundação Silver.

  – Vamos ter que arranjar fantasias… – Murmurei pensativo. Sabia que eu podia sair dali e arranjar o que eu quisesse. – Vou conversar com a coordenação daqui para pedir sua liberação por um dia.
  – O que está fazendo? perguntou, uma ruga de dúvida em sua testa.
  – Não é óbvio? – Arregalei os olhos para dar ênfase – Vamos a uma festa.

Terceira Parte

  Pousei meus olhos na cesta de produtos que eu carregava comigo e reformulei a lista que tinha feito mentalmente, torcendo para que sim, eu estivesse com tudo ali.
  1. A hidratação dos três minutos;
  2. Remédio de piolho;
  3. Pente fino e escova de cabelo;
  4. Reparador de cabelo;
  5. Sabonete íntimo;
  6. Shampoo e condicionador;
  7. Absorventes;
  8. Um perfume de flores;
  9. Tudo necessário para higiene bucal.
  Meu primeiro passo era aquele. Deixar mais limpa e dar para ela todas as coisas necessárias que um ser humano necessita em vida. Sorte da menina era que sua parte materna da família não era tão esquisita, tinha uma herança em seu nome deixada pela mãe e ela podia usar a qualquer momento, contanto que não estivesse no manicômio. Quando se é um demônio, tudo é mais fácil. Falar com a avó de foi mais que agradável, era uma senhora simpática que me deu um cartão que era no nome da família. Eu apenas havia comentado que era amigo de e a vida estava bem mais fácil dali. Claro que um charme infernal foi jogado também.
  Mas aquilo não era o ponto agora, eu precisava humanizar o resto de Silver. Ou pelo menos fingir para mim mesmo que eu estava conseguindo humanizá-la. Era preciso o próprio Lúcifer para humanizar aquela menina. Ou, não sei, transformá-la numa de nós. A segunda opção é mais viável.
  Assim que entrei no manicômio com aquela sacola na mão, fui o motivo maior de comentários. Como médico dela, eu tinha autorização para levar o que eu achasse necessário para minha paciente. Ordens do papai que manda médicos com péssimo histórico para cuidar da filhinha querida. Eles deveriam estar achando que eu mataria a garota de overdose ou a faria comer shampoo.
  Seria até engraçado fazer isso.
  Mas não agora.
  Abri a porta com pressa, segurando a risada quando me deparei com jogada no chão do quarto, estirada como se estivesse no meio de um pentagrama - exaltando que ela seria um ótimo sacrifício -, os olhos fixados no teto e os lábios murmurando alguma música repetida.
  – Planejando a morte de alguém? – Perguntei de forma simples, deixando a sacola em cima de sua mesa – Ou alguma entrega de alma?
  – Sua morte, talvez. – Respondeu com a mesma malcriação de sempre. – Onde estava?
  – Na farmácia, comprei algumas coisas para você.
  – Ainda insiste na ideia do baile. – Rolou no chão, encostando a cabeça naquele poço de bactérias e deixando a crina espalhada – Espera aí, você disse farmácia? – E eu nunca tinha visto uma pessoa tão rápida em minha vida como naquele momento. levantou tão rapidamente que eu mal tinha percebido que ela não estava mais no chão quando a sacola branca já estava rasgada e ela abraçava os produtos que cabiam em seus braços raquíticos, como se eles fossem um pedaço do céu enviado para a Terra. – Céus, pode levar minha alma, eu amo você. – Havia uma felicidade descomunal em sua fala, tom de voz e no seu olhar, o rosto estava estranhamente com um repuxo de lábios, que chegava quase no contorno da bochecha.
  Espera aí.
  Aquilo era um sorriso?
  – Tem certeza que não quer usar tudo isso antes? Inferno é inferno, mas ninguém merece gente fedida lá. Alguns usam até terno e saia lápis. – Comentei debochado, cruzando os braços enquanto observava . Peguei o resto das coisas e estendi minha mão livre para ela, esperando que me desse o que abraçava. – Vamos?
  – Para onde vamos? – Ela perguntou curiosa, entregando-me as coisas ao pôr na sacola.
  – Para o meu quarto. Você não toma banho mais junto com os outros, a partir de hoje. Tudo o que tiver de fazer em relação à higiene pessoal será feito lá.
  – E desde quando eu posso isso?
  – Desde quando eu sou seu médico. – Rolo os olhos, vendo que duas enfermeiras se aproximavam de nós, e tentei fazer a cara mais malvada que consegui, como se estivesse indo punir a maluca por algo.
  Mas a verdade foi muito diferente disso.
  Problemas com nudez e não existiam; mal tínhamos chegado ao quarto quando ela já estava sem roupa nenhuma. Suas peças estavam jogadas no chão, e durante o meio tempo em que eu trancava a porta, ouvi o barulho do chuveiro.
  – Você quer o remédio de piolho agora? – Perguntei num grito, sentando na cama e separando tudo para ficar mais organizado. Ouvi um murmúrio positivo como resposta e adentrei o cômodo, observando sua expressão abatida por baixo do véu que a água fazia.
  – Minha cabeça está sangrando, tem muita ferida. – Sua voz, mais fraca do que quando ela acordava, soou baixinha. – Você pode…? – Apontou para o chuveiro e eu entendi seu pedido. Retirei minhas demais roupas e permaneci com a calça, chutando os sapatos de qualquer jeito. Peguei tudo e deixei na pia o que usaria depois.
  – Podemos usar o pente fino depois. – Sugeri enquanto despejava o shampoo em seu cabelo, massageando bem de leve para não machucar ainda mais.
  – Podemos fazer isso hoje. – Teimosa, sempre teimosa demais.
  – Tudo bem. – Não teimei muito porque eu sabia como ela era chata quando queria algo.
  Deixei enxaguar o cabelo e me afastei, observando as cicatrizes prateadas em seu corpo. Finas linhas cobriam boa parte da pele da menina. Costas e braços eram os mais afetados. precisa de um guardião. Suicídio! já tentou se matar. Era isso. Tirava a vida, matava o pai, acabava com a riqueza dele e não dava a alma para ninguém. Touché.
  Peguei o remédio de piolho, sabia que ia ficar mais tempo no cabelo que os outros produtos. Desliguei o registro e sentei no chão, percebendo o olhar dela em cima de mim e segurando o riso.
  – Sente em meus pés. – Sugeri, lendo as instruções na bula. Assim ela o fez, e eu comecei a passar o remédio mecha por mecha, tomando cuidado com as partes muito embaraçadas, para não machucar ainda mais o couro cabeludo da menina. Depois de passar em todo o cabelo, peguei o pente fino e senti minha espinha tremer; sabia que o remédio já estava ardendo e ela ia querer coçar em pouco tempo, não sabia o quanto aquilo ia doer e nem estava pronto para saber. – Vou começar, tudo bem? – Perguntei só para não assustá-la. assentiu e aí eu realmente comecei.
  Deslizava o pente pelo seu cabelo com dificuldade, vendo os pequenos invasores começarem a sair dali. Era horrível, e só de ver eu tinha vontade de coçar minha cabeça. Continuei durante todo o percurso, passando o pente com leveza e deixando os bichos serem levados depois pela correnteza da água.
  O primeiro dia tinha sido difícil.
  O segundo não foi agradável.
  No terceiro eu quase vi chorando, mas a felicidade de estar com cabelos limpos, produtos dignos e cheirando a limpeza tomava conta de cada poro dela. Depois daquilo não houve mais problemas; os piolhos sumiram depois de um comprimido comprado, deixando todos mortos e bem mais fáceis de serem removidos. Havia sim algumas feridas pequenas em sua cabeça, mas nada comparado ao que estava ali antes. A única coisa que eu não podia mudar era sua alimentação, muito difícil conseguir contrabandear comida para dentro do manicômio.
  Hoje era o dia da festa, e toda autorização estava feita. poderia sair, acompanhada de um médico - claramente, eu - que dosaria seus remédios e uma tornozeleira que apitaria caso ela tentasse sair da área da mansão.
  Tudo estava em perfeito controle.
  Chequei o horário no relógio antigo que estava pendurado no canto do meu quarto. Como ia tomar banho em casa, não havia necessidade de usar o meu quarto. Todas as coisas necessárias já estavam guardadas numa pequena mala, minha fantasia estava lá. Ironicamente, anjo foi a opção escolhida por , já que tristemente eu tinha pedido sugestão a ela. Péssima ideia, eu sabia disso.
  Duas batidas na porta de e ela já estava aberta. A mulher vestia roupas normais, que provavelmente foram dadas por alguém, e seu semblante parecia preocupado.
  Assustado.
  Aliás, aterrorizado.
  – Podemos desistir, se você quiser. – Murmurei com um sorriso mínimo nos lábios. Podemos mesmo?
  – Não, chegamos até aqui. Eu vou. – Sua voz soou tão determinada que eu me assustei, assentindo com a cabeça em seguida.
  – Vamos, então.
  Caminhamos de forma lenta até a saída, onde um carro mandado pela fundação do pai dela estava esperando. Meu maior estranhamento era em relação à boa vontade do homem para a filha estar presente no baile. Seria aquela uma tentativa de desculpas?
  A viagem foi longa e tediosa. não falava nada, e nem menos se movia. Desde que entramos no carro, ela estava com a mesma expressão de antes. A única coisa que mudou foi seu olhar, assim que chegamos à entrada da mansão. Olhos quase arregalados, tomados pelo pavor de voltar ao lugar que parecia aterrorizar toda sua vida. Fomos recebidos por uma senhora ruiva, que carregava um olhar maternal e um sorriso gentil, provavelmente bem mais acostumada a lidar com convidados do que nós dois a sermos convidados.
  – Bom dia, Sr…? – Ela me analisava como se tentasse lembrar meu nome em meio aos milhões de rostos que já tinha visto.
  – , não nos conhecemos. Muito prazer. – Estendi a mão livre de forma cordial, já que a outra segurava a mala de lado, seguindo meu recuso ao mordomo de guardar o objeto.
  – O prazer é todo meu, senhor. – Ela virou-se para cumprimentar provavelmente quem deveria ser minha esposa, ou amante, ou qualquer coisa que os homens trouxessem a esses eventos, quando seus olhos ficaram um tanto arregalados e a expressão de choque tomou conta dela – ?
  – Oi, Lucille. – Não havia emoção em sua voz – Poderia levar o Sr. e eu para nosso quarto? Receio que Jensen está ocupado com outros convidados que ficarão hospedados na casa hoje.
  – Não há quarto reservado para você, . Receio que sua vinda foi uma surpresa até mesmo para o Sr. Silver.
  – Eu… – estendeu a sobrancelha e conteve o sorriso que apareceu em seus lábios – Acabei me esquecendo de que eu ficarei com a casa do lago. Ela está limpa, sim? – Lucille assentiu com a cabeça e, de repente, era a pessoa mais cordial e gentil do mundo. – Ótimo. Nossa estadia será lá durante o fim de semana. Não precisam verificar nada, é meu médico e sabe tudo o que pode acontecer comigo. Por favor, chame Ryan e diga que eu preciso que alguém me leve à casa do lago, o mesmo para me buscar no horário da festa. – Quando fez menção de beijar a senhora, um passo para trás foi dado pela mais velha, e todo o sorriso da menina desapareceu. – Obrigada. – Depois disso, saiu andando como se eu não estivesse mais lá.
  – Sua empregada acha que você está dormindo com seu médico. – Alertei, massageando minhas têmporas. – Sua tornozeleira vai apitar se sair da área.
  – A casa do lago fica atrás dessa floresta. – Ela apontou para muitas árvores amontoadas logo ao lado da mansão – Só pedi um motorista porque sei que eles têm medo de mim.
  – Você está aprontando algo… – Estreitei os olhos, caminhando logo atrás dela.
  – Claro que não! – Soou óbvia – Pelo menos não sozinha.
  – … – Freei meus pés, receoso de qualquer coisa que a maluca pudesse ter feito.
  – Calma aí, eu não fiz nada. – Ela rolou os olhos e soltou um longo suspiro enquanto o carro se aproximava. Ryan, o motorista, realmente tinha medo dela, e essa parte foi até engraçada. A casa do lago de fato não era longe; na verdade, a viagem demorou menos de três minutos e, lá estávamos nós. Parecia exagerado ter duas casas daquele tamanho em uma área de menos de… eu não sei, aquilo parecia ter dez metros de distância.
  Piscina, jardim, chaminé, jaccuzi… Até eu queria uma casa no lago daquelas. dispensou o motorista e, ao contrário da outra casa, essa estava completamente vazia. Não tinha empregados, pessoas ou qualquer resquício de humanidade ali dentro. O local estava limpo e era fresco, não entendia muitas coisas sobre decoração, mas todos aqueles tons escuros em tudo ao redor da casa era bizarro. Um miado arrastado ecoou pela cozinha e saiu correndo em direção a um bicho preto.
  – LÚCIFER!
  Parei. Olhei de forma séria em sua direção. Percebi que ele estava tão empolgada com o querido gato que sim, ela não estava fazendo brincadeiras ou coisa assim.
   tinha um gato chamado Lúcifer.
  – Você realmente nomeou seu gato de Lúcifer? – Perguntei, colocando a mala em cima do sofá e segurando minha risada – Eu vou tomar banho e passo na cidade para comprar sua fantasia. Alguma coisa em mente? – Ela só negou com a cabeça e eu dei de ombros, levando a mala comigo até o quarto. Um banho rápido e eu estava me sentindo bem melhor, tinha tirado pelo menos um pouco da atmosfera Silver por cima de mim. Vesti minhas roupas e fui para a sala, estranhando ao ouvir uma voz curiosamente conhecida vinda de lá. Um pentagrama estava desenhado no chão, e havia resquícios de sangue por dentro do desenho – , o que diabos aconteceu aqui?
  – , como é bom te rever. – A voz soou atrás de mim dessa vez e infelizmente eu não tive que virar para saber quem era.
  – Catherine. – O nome saiu num único som, misturando vários sentimentos negativos – O que você tá fazendo aqui?
  – Nós temos uma festa, não temos? – Estava exatamente do mesmo jeito que eu me lembrava. Cabelos loiros e cacheados, agora maiores, perto da cintura. Olhos castanhos e enormes. Blusa com um decote imenso, jaqueta de couro quando não é preciso usar uma, calça de couro também porque vamos matar todos os animais para fazer couro e um coturno… eu acho que não é de couro. E, claro, um copo de uísque na mão.
  – Você foi convidada? – Arqueei a sobrancelha em dúvida. Acho que não, porque, bem, tinha um pentagrama na sala. Normalmente convidados vinham de carro. Barco. Jatinho. Até mesmo um helicóptero. Eles não eram invocados no meio de uma sala de estar.
  – Eu sempre sou convidada, só não apareço. – Catherine rolou os olhos e ainda estava entretida com o gato. Agora ele tentava arrancar o curativo malfeito em sua mão – E pare de me olhar como se eu fosse indesejada, pelo menos eu não vim aqui pra buscar a alma de ninguém.
  – Falando em alma, como vai a do Isaac? – Arqueei a sobrancelha de forma arisca, sentando num dos banquetes do balcão e escorando meus cotovelos neste.
  – Muito bem, falando a verdade, não tenho notícia dele há meses. Águas passadas. Isso de alma acabou para mim, entrei numa fase boa demais para ficar nesse disco repetido. – Ela bebeu o conteúdo do copo em uma única vez e bateu contra a mesa, quase fazendo o objeto em pedaços – Tem tequila nessa casa?
  – Oh, nada de beber demais! – finalmente falou alguma coisa, tirando o copo da mão da outra – Não esqueça que eu sou mais velha que você.
  – Se você ficar chata demais, eu vou para casa. – Um bico apareceu nos lábios de Catherine e eu percebi que havia uma harmonia natural entre as duas.
  – Virou alcoólatra, Beckhart? – Provoquei.
  – Virou babá de maluca, ? – Com um sorriso de quem não tem nada na cabeça, explodiu em gargalhadas, colocando o bichano no chão. – Vá se arrumar, eu tenho trabalho a ser feito com a minha garota maluca, e você… vá caçar almas de alguém por aí. Se me desobedecer, eu te entrego para os seus chefes.
  – Porque eu que sou procurado por todo o inferno por desafiar Lilith. – Rolei os olhos e bufei, soltando o ar de forma lenta em seguida. – Volto em algumas horas.
  – Suma de uma vez. – quase gritou e, quando eu cheguei à porta do meu quarto, ouvi alguém batendo na porta. Seria uma convenção de loucos debaixo de meus pés?
  Eu enrolei durante essas horas. Planejei formas de embebedar e fazê-la ceder a alma. Matar o pai dela, quem sabe. Pensei em chamar Lilith e falar que sua grande amiga estava aqui.
  Mas nada fiz.
  Sentei na cama e procurei algo na televisão.
  Tomei mais um banho.
  Procurei defeitos em minha fantasia, nada.
  Por fim, decidi me arrumar. Obviamente foi bastante fácil e superestimei a arrumação para uma festa. Eu estava pronto em menos de quinze minutos, e ainda não tinha nada para fazer. Aquelas asas incomodavam de forma descomunal e, quando tentei sair do quarto, bati no umbral da porta e quase levei minha coluna junto. Meus passos foram apressados e curiosos e, quando finalmente alcancei meu destino, Catherine mexia numa maleta do tamanho do inferno, à procura de algo. Quando finalmente achou, voou em cima de uma encolhida, ofuscada por alguém que era bem mais maluca que ela.
  – Está pronta? – Perguntei para , já que, como Catherine estava com as roupas de antes, não ia para a festa.
  – Estou? – Perguntou para Catherine e eu ouvi um murmuro positivo como resposta. Ajeitei minhas asas, arqueando minha sobrancelha no momento que vi dois pontos vermelhos na cabeça de por cima dos cachos de Catherine.
  Dois chifres.
  Quando Catherine finalmente saiu de minha frente, pude notar .
  Suas penas estavam cobertas por uma meia calça arrastão e, nos pés, botas tão altas que eu tinha certeza que ela estava alguns centímetros maior que eu. O vestido tinha mangas compridas e era completamente preto, a borda da saia era vermelha e um decote imenso estava no meio, descendo com força até perto do umbigo. Algumas tiras puxavam esse decote, de forma que os seios dela ficaram ainda mais expostos. O fim das mangas tinha uma espécie de véu preto, carregava um tridente na mão e tinha chifres falsos, vermelhos, entre os cachos loiros, os lábios pintados de vermelho escuro e os olhos delineados, fazendo-os ainda maiores e assustadores.
  – Você está de anjo. – notou, um sorriso debochado em seus lábios, os braços cruzados por baixo do decote, e eu juro que aqueles peitos iam pular em minha direção.
  – Você está de diaba. – Retruquei, passando a língua pelos lábios e olhando com olhos estreitos para Catherine – Dedo seu?
  – Eu? – Ela se fez de desentendida – Banalizar a imagem dos demônios e sexualizar eles, diminuindo-os o bastante para não passarem de um fetiche humano? – Fez um tsc com a língua e sorriu de forma irônica – Essa é minha deixa. ,mande a maleta para a dona ainda hoje, coloque no nome de Alyssa Northingarth, ela está em Heaven. Só precisa chegar até a cidade que ela dá um jeito, é bem perto daqui. Ah, não mande uma motorista bonita, nova e que tenha cara de virgem. Só precaução.
  – Obrigada, Cat. – deu um abraço forte na amiga e a outra voltou para o pentagrama, a mais velha fechou o desenho de volta e, com algumas palavras a mais, éramos novamente os únicos ali. – Você é um belo anjo, da até vontade de pecar.
  – Blasfêmia a essa hora, Silver? – Estendi meu braço para ela, que o pegou – Você é uma ótima diaba, devo informar.
  – Está tentando me levar para o outro lado, ? – tinha uma espécie de sorriso desconhecido por mim.
  – Estou tentando te levar para lados mais interessantes. – Dei de ombros, notando que o carro já estava ali. Assim que entramos, informou ao motorista sobre a maleta que continuava lá, e o destino que devia tomar ainda naquela noite.
  Continuou impaciente no pouco caminho que tinha, mexendo nos enfeites da roupa a cada segundo. Finalmente o carro foi estacionado e aí sim, um manual de como ser uma femme fatalle maluca foi ativado na cabeça de . Ela ajeitou sua postura, mexeu nos cachos e me olhou como se pudesse me despir naquele momento.
  – Pronta? – Perguntei, saindo do carro com a garota ao meu lado.
  – Não. Você?
  – Eu só estou aqui pela bebida. – Respondi tentando fazê-la rir, o que não aconteceu – Nada pronto também. Podemos matar todo mundo, se quiser.
  – Tentador. – As portas do saguão principal foram abertas e ela apertou meu braço com força, soltando o ar de forma longa e levantando a cabeça no momento em que todas as pessoas presentes pararam o olhar por cima dela. Silver estava na festa do papai. Fora do manicômio, livre entre pessoas podres. No meio das pessoas, pude identificar Richard Silver como se tivesse um pisca em sua cabeça. Sua taça caiu no chão no momento que seus olhos bateram na filha que deveria estar bem longe dali e até eu gargalhei. – Que no pare la fiesta.

Quarta Parte

  Por incrível que pareça, eu estava me sentindo totalmente confortável naquela festa. não estava bêbada, e o pai não havia feito nada ainda. Fechou a cara e olhou feio em sua direção, voltando para o lado contrário no exato momento. Nesse momento, a maluca estava sentada entre algumas pessoas que eu tinha certeza de que ela não conhecia, falando sobre o maravilhoso manicômio que papai me internou. Sabe, a sinceridade é o começo de uma ótima conversa.
  Deixando claro que ela tinha aberto o bocão para todo mundo, gritando sobre seu demônio da guarda, , que estava com ela naquele exato momento. Por pouco eu não fui internado também.
  Mas eu não podia fazer posar de louca, eu concordei com cada palavrinha que saiu daquela boca vermelha. Ainda perguntei sobre o irmão de uma mulher que eu tinha visto no inferno e falei que ele estava sofrendo muito.
  – Você quer dançar? – Foi o que me perguntou quando alguma música que parecia ser venerada por ela começou a tocar.
  – Você sabe dançar, maluca? – Retruquei, levantando e estendendo a mão para ela logo em seguida.
  – Eu fui criada numa família de nobres. – Numa sincronia de filmes, outros casais estavam dançando os mesmos passos que e eu acabamos de começar naquele exato momento. Ricos e suas danças – Qual a sua desculpa?
  – Eu tenho 114 anos. – Dei de ombros, levantando uma das mãos e olhando mais uma vez para o pai de ; estava fantasiado de Tiwyn Lannister, e eu acho que aquela fantasia combinou perfeitamente. Por pouco não perguntei se eu podia ser o Jaimie.
  – Quem de importante você conheceu? – perguntou, trocando a mão e rodando em seguida.
  – É mito isso de ser velho e conhecer muitas pessoas. Eu só conheci John Lennon, e acaba aí. Não tive sorte com pessoas importantes ao meu redor. – Segurei com força em sua cintura e a girei no ar, vendo com coerência sua calcinha gigantesca com Lucifer’s daughter escrito em letras garrafais brancas – Acho mesmo que seu pai é um demônio, mas Lúcifer tem consideração por seus filhos.
  – Uh, queria ser uma filha de Lúcifer, será que dá tempo? – Ela colocou a mão no queixo e pareceu pensativa, o que me deu uma enorme vontade de beijá-la, mas me contive no momento.
  – Comida de graça é o máximo que você consegue agora. – Alertei, olhando bem para os salgados que estavam sendo servidos antes do jantar – Eu quero alguma coisa com camarão, vamos comer. – Puxei ela comigo, eu estava mesmo era com fome de comida de verdade.
  – Comida sempre é uma boa ideia. – respondeu, me puxando em direção a um amontoado de pessoas. Como já é de praxe, onde tem muita gente, tem comida. Ou bebida. Ou é um show do Justin Bieber... mas não sei se isso pode ser classificado exatamente como gente.
   e eu paramos perto da mesa e, de início, bancar o educado era minha intenção, mas assim que a maluca sumiu do meu lado, percebi que educação não era o que seria usado naquela noite. Um prato onde deveria colocar a comida do jantar estava nas mãos dela, tão cheio de salgados que eu não sabia como não tinha caído e como ela conseguia equilibrar aquilo.
  – Arranje alguma bebida e me siga. – E sem nem pestanejar sobre o fato de que sim, eu estava obedecendo a uma ordem de Silver, peguei a primeira garrafa de bebida que apareceu em meu campo de visão e procurei os chifres ousados entre toda a multidão. Lá estava ela, numa porta afastada das pessoas. Logo depois, havia uma pequena varanda, duas poltronas e um centro com algumas revistas em cima, deveria ser usado para passar o tempo de maneira simples. colocou o prato em cima das revistas e puxou uma poltrona para mais perto da outra, fazendo nós dois ficarmos lado a lado naquele... não sei o que era aquilo. – Comida é uma coisa tão boa.
  – É sim. – Respondi, pegando um salgado qualquer e ajeitando minha posição na cadeira. Abri a garrafa de qualquer jeito e dei um gole, fazendo uma careta pela amargura da bebida. Passei a garrafa para , observando as coisas ao meu redor.
  – ... – começou e eu virei em sua direção – Por que você está fazendo isso?
  – Isso o quê? – Perguntei como quem não quer nada, eu sabia bem do que estava falando.
  – Não finja ser uma coisa que não é. – Seu tom estava sério, ela parecia uma mãe dando reclamação em alguém – Por que está fazendo isso comigo?
  – Porque eu não quero que o resto de sua vida seja tão miserável como já é. – Mexi em meu cabelo com a mão livre, olhando fixamente para – Você vai morrer, e isso vai ser horrível, mas sua vida não precisa ser assim também.
  – Você acha que eu vou ceder minha alma para você? – estalou a língua, dando um longo gole na bebida e rindo baixo. Ainda existiam traços dos péssimos tratos que ela recebia no manicômio, mesmo com quilos de maquiagem, um cabelo arrumado e roupas bonitas, a sofrida ainda pairava sobre ela.
  – Infelizmente, eu preciso que ceda. – Dei de ombros, voltando meu olhar para a frente – Se você não ceder, seu pai morre. Eu sei que isso não significa nada para você, mas sem ele, toda a riqueza vai sumir de algum jeito, pois o pagamento não foi feito. Você passou anos num manicômio, vai estar sem formação acadêmica, dinheiro ou pessoas que não tenham medo de você por um passado sombrio que te cerca. Não vai faltar muito para morrer, depois disso. Vai morrer como qualquer uma, e ainda vai sofrer para isso. Ou pior, pode passar anos na rua, sofrendo como você sofria no manicômio.
  – Você... – começou, parando a frase na metade e enfiando duas bolinhas de queijo na boca – Você não me disse como conseguiu minha liberação do manicômio. Precisa da autorização do meu pai, e ele não pareceu nada feliz com minha chegada aqui. E bem surpreso. – Mudou o assunto, falando de boca cheia e encarando o nada.
  – Sinceramente, eu também não sei. – Respondi de forma sincera – Respondi o convite, para o mesmo endereço que enviou para nós. E seu nome não estava na lista de convidados, chequei isso mais cedo.
  – Oh. – fez uma cara de dúvida, parecendo analisar as opções plausíveis – Você acha que tem dedo na Catherine nisso?
  – Eu tenho é certeza. – Uma gargalhada ecoou de meus lábios e eu encostei a cabeça no encosto da poltrona, olhando – Você quer fazer alguma coisa?
  – Eu...
  – Srta. Silver? – Uma voz vinda do início da varanda interrompeu , fazendo ambos olharmos na direção ao dono. Dona, na verdade. Era Lucille, a empregada que havia nos atendido mais cedo – Acabamos de receber um comunicado de um dos empregados de Elizabeth Fitzgerald.
   levantou tão rápido que quase tropeçou nos próprios pés.
  – O que aconteceu com a minha avó?
  – Sinto muito, . – Pela primeira vez, Lucille tocou na menina, segurando suas mãos com compaixão – Ela faleceu há uma hora, mas não se preocupe, não houve sofrimento. Sua vida se foi enquanto ela dormia. Sinto muito. – Repetiu, se afastando e deixando uma atônita, parada no mesmo local de antes, como uma estátua de gelo.
  Eu havia estado com Elizabeth alguns dias atrás, e ela me parecia extremamente saudável, conversou sobre e falou tão bem da neta, com tanta paixão.
  – Ela era sua segunda opção, não era? – Perguntei, só agora lembrando que a avó tinha guarda da menina caso Richard morresse. Por ser tratada como esquizofrênica, ela era dada como incapacitada. Elizabeth havia entrado em um processo para tirar do manicômio, mas pela influência (dinheiro) de Richard, não havia conseguido.
  – Sim. – estava atônita demais para chorar, parecia ainda processar as informações aos poucos – Ela aparecia para me visitar sempre, meu pai que mandou ninguém autorizar sua passagem. – Riu consigo mesma, adquirindo um olhar mais sombrio – , que horas chegamos na festa? – Perguntou, parecendo estar com algo em mente.
  – Faz umas três horas, suponho eu. – Respondi, checando o relógio – Qual o motivo dessa pergunta?
  – Minha avó mora a poucos quilômetros daqui. – Paralisei, entendendo o ponto dela – Alguns minutos, quase, para quem tem carros rápidos e silenciosos. – Meu pai sabe quem é você. – Alertou, fazendo um nó em minha cabeça.
  – O que eu tenho com isso? – Indaguei, confuso.
  – , pense! – Gritou, vindo em minha direção – Eu não posso receber uma herança porque sou maluca. Toda a herança da minha família materna deve estar em meu nome, caso minha avó morresse. Se eu não entregar minha alma, meu pai será um homem falido. Mas como eu não posso mexer no dinheiro, como meu guardião legal...
  – Seu pai tomará conta de sua herança. – Respondi, apertando o ponto entre meus olhos e soltando um suspiro longo – Elizabeth foi assassinada.
  Richard Silver tinha adquirido um novo patamar para o termo desprezível. Era bom demais para ele, certo demais. não tinha derramado uma lágrima, não tinha conseguido processar as informações direito, suponho eu.
  . – Chamei a maluca, adquirindo um tom mais doce – Você quer continuar na festa? Podemos ir para a casa do lago, se quiser.
  – Não. – Acariciei seus cabelos – Viemos para a festa, não foi? Vamos ficar aqui.
  – Você quer matar seu pai, não é? – Perguntei, olhando sério em sua direção.
  – Quero. – Respondeu, levantando o olhar e encontrando o meu – Me ajude com isso. Por favor.
  Ponderei por alguns segundos, chegando à conclusão de que não tinha mal nenhum naquilo.
  – Ajudo. – Acariciei seu queixo, arrancando um sorriso mínimo vindo dela – Tem um plano? – confirmou com a cabeça, me abraçando com a pouca força que tinha logo em seguida – Sabe de uma coisa? Você não combina com .
  – Ah, é? – Sua voz estava mais forte e uma gargalhada gostosa ecoou de sua boca – E eu combino com que nome? – Havia deboche em sua voz.
  – Você combina com... – Analisei seus traços, aproximando nossos rostos – Sarah.
  – Muito comum. – Sentei numa das poltronas, trazendo comigo e fazendo-a sentar numa das minhas pernas – Escolhe outro. – passou os braços ao redor de meu pescoço.
  – Acho Luke muito comum também. – Respondi, beijando uma cicatriz fina e prateada em seu queixo – Mas reclamei dele apenas uma vez.
  – Não conta para ninguém... – arrastou os lábios pela minha bochecha esquerda – Mas eu gosto de . – Seus lábios pararam em frente aos meus e bastou apenas uma troca de olhares.
  Juntei nossos lábios.
  Uma de minhas mãos parou nos cabelos de . Enrolei meus dedos nas madeixas e aproveitei cada momento do que senti ali. Parecia que pequenos choques transpassavam nossos lábios e atingiam todo meu corpo. O beijo se tornava mais rápido na medida em que os segundos passavam, e eu queria tomá-la para mim, ter em todos os sentidos, e prolongar aquela sensação por quanto tempo conseguíssemos. Com mais intensidade, mais vontade, mais calor e mais tudo o que podia acontecer. O gosto do álcool era ainda mais viciante, e eu quis me afogar em tudo o que aquela maluca conseguia me proporcionar.
  Só percebi que suas unhas estavam arranhando tudo o que conseguiam alcançar debaixo de meus cabelos quando separei o beijo. O batom dela estava melado por toda proximidade de seus lábios e eu comecei a rir, imaginando que estaria da mesma maneira.
  – Suponho que eu esteja lambuzado de batom, correto? – Perguntei por via das dúvidas, recebendo uma gargalhada gostosa e uma cabeça assentindo em concordância – Vamos limpar isso, temos uma festa para melhorar.
   e eu nos separamos na porta dos banheiros, ambos voltamos com as caras normais e sem vestígios de vermelho.
  – Vamos queimar tudo. – murmurou, parando ao meu lado e observando todas as pessoas da festa – Trancar meu pai num lugar do qual ele não possa sair de nenhuma maneira e deixar o fogo se espalhar dali em diante.
  – E, claro, dar um jeito de sair, não é? – Perguntei por via das dúvidas, vacilando meu olhar em sua direção.
  – Talvez. – deu de ombros, encostando o corpo numa coluna ali presente – Quer fazer alguma coisa antes?
  – Olhar o céu. – Respondi de forma simples, sorrindo tímido – Me deixa calmo.
  – Não faz muito sentido, mas vamos. – Ela agarrou minha mão com força e saiu me arrastando pela casa até chegarmos à varanda em que estávamos antes. Diferente de como tinha estado pouco tempo atrás, havia muitas nuvens escuras, a lua estava escondida e estrelas não eram tão visíveis como antes. Raios cortavam a paisagem no meio a cada segundo, partindo o que era perfeito e trazendo-o à mesmice de antes em segundos.
  – Não é o que eu esperava. – Comentei de forma vaga, olhando sério para minha frente – Sabe o que raios me lembram? – negou com a cabeça, sorrindo para mim – Choques no céu.
  – Sempre digo isso. – Sua voz estava tão calma que nem parecia que ela ia cometer um crime em alguns minutos – E que auroras boreais parecem correntes de vento com glitter.
  E naquele momento eu gargalhei, da forma mais genuína que alguém podia deixar a risada ecoar pelos lábios e fazer barulhos estranhos entre os segundos que se passavam. Ri tanto que minha cabeça doía e eu sentia que iria vomitar por ter comido há pouco tempo. Com não foi diferente, ela estava sentada na poltrona, os olhos cheios de lágrimas e a mão tapando a boca para que não ficasse alto demais.
  – Vamos começar isso... – Ela disse finalmente, se recompondo e limpando o rosto. Se Catherine visse o resto de maquiagem que estava no rosto de , a mataria ali mesmo por estragar seu trabalho com tantas coisas – Eu conheço a casa, vou procurar coisas que possamos usar. Você escolhe um quarto e prende meu pai lá.
  – Não posso matar ele antes? – Fiz um bico, estreitando os olhos em sua direção.
  – Claro que não! – Exclamou, me dando um tapa ardido logo em seguida. se aproximou e tomou meus lábios como eu havia feito antes, se afastando com a mesma rapidez e sumindo de meu campo de visão.
  Voltei até a festa, procurando Richard por pouco tempo até encontrar. Não foi difícil. Me aproximei, parando ao seu lado e resolvendo adquirir o meio mais normal do mundo de chegar em alguém: conversa.
  – Eu preciso ter uma conversinha com você. – Murmurei e assim que ele me olhou, soube do que eu supostamente queria falar.
  – Me siga. – E tão fácil quanto roubar dinheiro de cristão, eu estava num local isolado dos outros com Richard. Fechei a porta assim que passei, encostando o corpo na madeira – Eu não sei seu nome.
  – Parece que estamos em desvantagem aqui. – Rebati, cruzando os braços – .
  Encarei a fantasia de Tiwyn Lannister por mais alguns segundos; eu nunca pensaria que Game Of Thrones pudesse ser rebaixado em algum pódio de minha vida, mas aquele cara tinha conseguido dar um ar ruim à fantasia.
  – Você é o demônio que devia ter pego a alma de , não é? – Seus olhos me analisavam com precisão, julgando cada pedaço de mim – Mas, como é esperado... não está tendo coragem para realizar essa simples tarefa, não é?
  – Parece fácil para você, a tarefa. – Murmurei, sentando numa cadeira qualquer, olhando com receio para o homem – Sabe que eu não queria completar isso só por sua causa? Você não merece. Nem um centavo do que recebeu. Isso – apontei para a sala ao redor de mim – é uma ilusão material da vida perfeita que você acha ter.
  – , não é? – Riu, debochando de mim – Você me lembra muito o quarto ou quinto demônio. sempre foi esperta demais, nariguda demais, metia muito o nariz aonde não era chamada e descobria as coisas. Foi um susto para mim saber que, aos dez anos de idade, dois demônios já tinham vindo cumprir sua tarefa e nada aconteceu. Ela continuou ali e assim vai continuar. – Havia um piano ali e Richard encostou o corpo nele, ainda com os olhos em mim – Ela faz amizade, sorri e se finge de coitada. Às vezes, até mesmo se finge de apaixonada. – Estreitou os olhos – Isso soa familiar para você? Porque foi a mesma coisa que ela fez com Vladimir. Ele estudou com ela, sabia? Se infiltrou na escola para conseguir se aproximar de minha filha. E ele não foi morto por outros demônios, ele se matou porque o amor da vida dele teria que viver. Sabe onde estava quando Vladimir morreu? Sentada num banquinho, assistindo ele se enforcar. E depois foi jantar, como se nada tivesse acontecido.
  – Você mandou matar Elizabeth, não foi? – Perguntei, mudando o assunto de súbito.
  – Ah, sim. Aquela velha já passou da hora. – Richard rolou os olhos – Além do que, eu preciso me garantir, não é? Você vai achar que é seu amor verdadeiro, vai morrer, ela vai voltar para o manicômio e, do nada, eu vou falir. Você vê todo esse império que eu construí? Ele precisa ser mantido.
  – Com a herança de outra pessoa?
  – Com qualquer dinheiro! – Richard gritou, se aproximando de mim já exaltado – Quantos funcionários você acha que eu tenho? Cinco? – A cada passo, sua voz aumentava uma oitava – Eu sustento toda essa região! Famílias e mais famílias trabalham para mim! Você sabe quantas pessoas dependem disso para sobreviver? – Parou a um passo de mim, o semblante sério – Eu só te peço que não seja tolo de sacrificar tantas vidas por conta de uma.
  – Você acha que eu me importo? – Comecei, rindo em sua cara – Não seja tolo o suficiente para achar que eu ligo para a vida de alguém além da minha. Todas essas pessoas que você mencionou, não mudarão nada. Sua vida se resumirá em cinzas e ninguém lembrará do seu nome. – Me afastei, parando ao lado da porta e percebendo que Richard estava preso no pentagrama que eu tinha feito sem que ele notasse – Valeu a pena tudo isso? Porque você vai morrer como qualquer um, e ninguém se importará com isso.
  Abri a porta, saindo daquele quarto quando ouvi sua última pergunta:
  – E quanto a ?
  – Meus assuntos com não interessam a você. – Acenei com a cabeça – Tenha uma boa vida no inferno, Sr. Silver. Nos vemos lá.
  Então eu fechei a porta. Peguei uma bandeja inteira de salgados, prendi uma garrafa de uísque debaixo do braço e uma cadeira estava entre meus dedos. Sentei num pedaço afastado do jardim, trancando todas as portas e saídas da mansão, não deixando ninguém sair ou entrar.
  O fogo começou de forma calma, como quem só está ali em visita, e aos poucos vai dominando a casa por inteiro, mais presente que os próprios moradores. Quanto mais presente o fogo se fazia, mais os moradores se incomodavam com isso. Gritavam à procura de redenção. Batiam com tanta força nas portas que elas só não quebravam porque não deviam ser quebradas. Nenhum deles sabia, mas o destino de cada um estava fadado a uma eternidade de sofrimento. Morrer num incêndio era minha prévia pessoal do que ia acontecer com todos eles em pouco tempo.
  Até que eu ouvi.
  Uma voz calma, doce e suave.
  E só uma pessoa era insana o bastante para ser sã naquele momento.
  .
  E então eu deixei as portas abrirem apenas para ela sair, fechando o portão do inferno com a mesma rapidez que tinha aberto.
  – Foi se despedir? – Perguntei assim que ela sentou do meu lado.
  – Ah, não. – riu, apoiando as mãos na grama e jogando o peso do corpo para trás – Eu sei que vamos nos ver em breve.
  Olhei com atenção para sua direção. Não ia fazer perguntas sobre a relação dela com os outros demônios e por que ela havia feito aquilo com eles, quando podia simplesmente negar. Aquilo era um jogo divertido para quem sabia jogar.
  Naquele momento, desfrutando de um uísque caro e com uma visão nostálgica de casa, Silver cedeu a alma para mim.
  Não hoje. Não amanhã.
  Em alguma parte no meio disso.

Quinta Parte

  Entender Silver era como entrar em sua própria loucura, entrar em sua mente e se perder nos devaneios que ela trazia consigo, olhar o que está perto do fim, mas mesmo assim parece que mal começou. Silver era mais do que um paradoxo que não pode ser entendido, e nem deve. Era mais do que uma moça maluca que gritava aos quatro ventos que, sim, era doidinha de pedra e não tinha nada nos miolos. Ao mesmo tempo em que falava sobre sanidade e como ruim era estar sã às vezes, sobre todos os problemas da vida e as soluções que são dadas, horríveis sejam elas. Sua cabeça era como uma mistura de Amy Winehouse e Avril Lavigne, mais confusa que cronologia de uns filmes de heróis por aí. A inocência com qual nascera não a pertence nem nunca a pertenceu, seus olhos são janelas para a alma, e essa alma está destinada ao inferno. Seria tão louca para ser realmente sã?
  Voltamos para o manicômio há dois dias, e nada ela falava. Não murmurava, retrucava algum comentário meu ou fingia que ligava. Ela pedia que eu saísse do quarto enquanto ela tomava banho e não gostava que eu estivesse no almoço.
  – ? – Bati na porta do quarto porque o barulho do chuveiro havia acabado, mas ela não saía – Você está bem?
  Duas batidas depois e eu entrei. estava com sangue entre as pernas e chorava, a toalha amarrada ao redor do corpo e os cabelos molhados, respingando água pelo chão. Só depois eu percebi que havia um pacote unitário de absorvente em sua mão. Aberto e com as abas grudadas.
  – O que foi? – Perguntei num tom doce e seus olhos pararam em mim. Acho que só naquele momento ela percebeu que sim, eu estava ali dentro. limpou os olhos rapidamente e levantou do chão, puxou o absorvente contra si e virou o corpo para voltar ao banheiro. Segurei seu braço, esperando alguma resposta – ?
  – Eu não lembro o que faz com as abas. – Respondeu, estendendo o absorvente para mim – Acho que menstruei de novo e eu ia usar, mas não lembro como colocar na calcinha. – Pacientemente, procurei a caixa dos absorventes no guarda roupa e sentei, lendo em voz alta o que fazia e vendo repetir com um novo. Acho que ela conseguiu, pois quando eu li até o fabricante da marca ela não estava mais no quarto. Tive a impressão de ouvir a porta batendo, só não sabia que era ela correndo de volta para o quarto – Devíamos ter pego todos os salgados antes de queimar a casa. – se jogou do meu lado, vestia minhas roupas e o cabelo estava penteado. – A comida daqui é ruim demais.
  – Ah, é péssima. – Comentei, dando espaço para ela – Mas pelo menos não está queima... – No momento seguinte, eu parei de falar. Não porque quis, porque estava com os lábios nos meus.
  E depois no meu colo.
  As pernas ao redor de meu corpo.
  O beijo ficava mais profundo e eu mais entregue, sentia as mesmas coisas presentes em mim na primeira vez. Só que mais intensas, mais complexas.
  Até que os dedos de pararam em minha blusa, e ela tentou tirá-la.
  – Não. – Parei o beijo, afastando seu rosto do meu e observando seus traços – Não vamos fazer isso.
  – Não? – soou esperançosa, como se pudesse me convencer de que aquele momento era o certo para transarmos.
  – Não. – Mexi em seu cabelo, repetindo a frase de forma mais baixa – Eu não acho que você tenha estabilidade emocional para fazer sexo com alguém. Muito menos eu.
  – Não preciso de estabilidade emocional estando morta. – Sua voz soou fria e ela se jogou na cama. Deitei ao seu lado, deixando-a encostada em meu corpo e acariciando seus cabelos novamente – Eu gosto de Bukowski.
  – Charles?
  – Sim. – Sorriu de forma mínima – Ache o que você ama e deixe isso te matar. – Citou, olhando para o teto enquanto mexia nas minhas roupas – Não amei meu pai, por isso nunca deixei ele levar minha alma. Por mais que eu tenha tentado, nunca amei nenhum dos que vieram antes de você. Também nunca me amei o bastante para tirar minha vida, por mais que uma única vez eu tenha achado que sim.
  – Vladimir... é verdade que você...
  – Fiquei assistindo a morte dele? – Me olhou – Sim. Não consegui sentir nada.
  – Então, você me ama? – Indaguei, tendo certeza que tinha falado aquilo em voz alta.
  – Ah, eu acho que sim. Acho que isso é o mais perto que eu pude de amar alguém além de minha avó. – Seu sorriso era calmo dessa vez – Como se pega a alma de alguém?
  – Existem muitas maneiras. – Beijei sua cabeça – Eu tenho esse colar. – Puxei o cordão por dentro da camisa e mostrei para ela, um pequeno pingente transparente e com a parte de dentro vazia – Fica aí até que eu entregue para quem tem a dívida. – Expliquei rapidamente – É um objeto de magia antiga, você pode dormir que eu colocarei em você e aí... ele aos poucos coleta o que está vivo dentro de você.
  – É só dormir? – Confirmei com a cabeça – Tudo bem, então. – beijou minha testa, sorrindo de um jeito que só alguém que cede a alma para outra pessoa pode sorrir – Boa noite, .
  – Boa noite, . – Encostei a cabeça entre suas madeixas e esperei ela dormir. Calma como era quando queria ser, ela dormiu rapidamente, a respiração ficou leve e eu me afastei, encostando o corpo na parede e colocando o colar em cima dela. Aos poucos, um tom arroxeado começava a tomar conta do pingente e eu pude jurar ver brilhos, como uma corrente de vento com glitter.
  Mas aí então já não havia respiração em . Nem calma e nem agitada. Não havia nada. O pingente estava cheio e ela vazia. Depois disso eu me permiti chorar. Chorava de forma ridícula por uma alma condenada que finalmente havia chegado ao seu fim. Chorava pelas coisas ruins que eu tinha feito e como era tóxico tudo o que eu cheguei a ter com a menina. Eu não devia chorar, não é? Eu a matei.
  Limpei meu rosto e beijei a cabeça de uma última vez. Seus cabelos cheiravam aos produtos que eu havia comprado, e pude notar que não havia mancha vermelha em sua roupa, sinal de que ela havia conseguido colocar o absorvente de maneira certa.
  Puxei o cordão de cima de seu corpo e a cobri, deixando o lençol na altura de seu pescoço porque a havia visto dormir assim na casa do lago. Escondi o pingente por baixo de minhas roupas e saí dali de forma quieta. Andava como se não quisesse chegar a lugar nenhum.
  Mas na verdade, eu não queria.
  Naquela tarde, minha passagem no inferno fora mais que rápida. Um pedido simples e eu estava sendo dado como louco. Mais um que caiu na lábia de Silver. Mas, diferente de todos que vieram antes de mim, eu pude apreciar o sorriso de satisfação de Azazel. Entreguei o colar para ele, o pingente brilhante e chamativo.
  – Você conseguiu... – Segurou o cordão, apertando os olhos para enxergar melhor o que estava dentro do objeto – Muito bem.
  – Eu... – Hesitei, coçando a cabeça e tomando coragem para falar – Quero permissão para morte.
  Os olhos avermelhados pararam em mim e minha espinha gelou.
   está morta. – Seu sussurro doeu – Pensei que havia aceitado isso para justamente não morrer.
  – Eu só quero a permissão. – Repeti, fingindo não ouvir o que ele tinha a dizer.
  E eu sabia que a permissão seria concedida. Assim como fora em questão de segundos. Minha permissão para a morte não fora algo crucial, maldoso ou sádico, era apenas o pedido para ser unicamente humano. Sem toda genética herdada daqueles que me puseram no mundo, eu seria algo mundano e nada extraordinário.
  Assim eu queria.
  Assim foi feito.
  A noite não estava tão exorbitante como algumas noites atrás, tinha apenas nuvens e estrelas apagadas. Nada especial o bastante para ser apelidado como algo engraçado ou interessante, nada brilhante demais para chamar a atenção de um desconhecido que vaga por aí sem o mínimo rumo possível.
  Havia uma árvore.
  Uma grossa corda.
  Galhos pesados.
  E naquele momento eu senti inveja de Vladimir, pois ao menos ele tinha os olhos de em si, ao menos ele tinha toda atenção e admiração de por cima de algo que ele estivesse fazendo.
  E quão doentio aquilo soara? Para quem evitara o sadismo, eu estava próximo demais para não dar uma espiada.
  Com um simples nó, o laço estava feito. Ao redor de meu pescoço como um colar que ficaria ali marcado até que alguém me achasse. Insignificante, sem nome ou reconhecimento. Sem valor para ninguém.
  E por fim, percebi que aquela não era minha história. Não era como eu tinha conhecido alguém e estava me entregando a um sentimento. Por mais que parecesse, aquilo nunca seria sobre mim.
  A história era sombria, sem o mínimo de luz possível para cercar. Poucos pontos de felicidade e grandes momentos de insanidade.
  Aquilo nunca seria sobre mim. Não. Aquela era a história de Silver.
  Respondendo todas as minhas perguntas, sim. Era a história da maluca.
  E de como ela era tão insana a ponto de ser sã.
  Depois disso, eu pulei.

Epílogo

Londres, Inglaterra. 2049.

  – CORRE! – A garota gritou, correndo do lado contrário a irmã, com tanta rapidez que parecia que tinha ensaiado aquilo o dia inteiro. Natasha, com longos cabelos escuros, tentava pegar a irmã mais velha, sem muito sucesso, pois ela era mais rápida. – Natasha, eu cansei. – Finalmente se rendeu, respirando de forma ofegante, a mão por cima do peito e o coração acelerado.
  Natasha e Sarah tinham dez anos de diferença, mas o espírito infantil nunca as separava de verdade. Naquela tarde ensolarada, haviam resolvido brincar no parque e, de uma hora para outra, estavam correndo para todos os lados, revivendo a infância perfeita que ambas tiveram.
  – Você está velha, Sah. – Nat resmungou, sentando ao lado da irmã no chão. As duas estavam jogadas na grama, porque era bom sentir como era fresco ali, como era bom o vento em todas as partes, como era maravilhosa a sensação de liberdade que aquilo trazia.
  – Daqui a pouco eu preciso de uma bengala. – Sarah rebateu, apoiando o peso do corpo nas mãos, os dedos enfiados na terra gélida por baixo da grama – Olhe disfarçadamente para a esquerda, tem um gatinho olhando você.
  E como quem manda alguém virar e olhar com muita obviedade, Natasha virou para a esquerda como se estivesse deslocando o pescoço.
  – Ele é velho demais para estar olhando para mim, acho que ele gostou de você.
  Sarah olhou mais uma vez, de forma rápida. O homem a olhava, tinha cabelos negros e traços maduros, uma barba malfeita e olhos profundos. Não devia ser muitos anos mais velho que ela, ela nem era tão nova assim.
  – Vou falar com ele. – Sarah decidiu, levantando e ajeitando sua roupa, checando uma última vez se não havia resquícios de terra ou grama. Caminhou até o homem e sorriu de forma cordial – Minha irmã pensa que você vai sequestrar uma de nós.
  – Uau. – Foi o que ele respondeu, se rendendo a gostosas gargalhadas em seguida – Garanta depois a ela que eu não sou nenhum tipo de sequestrador. – Ele passou os dedos nos fios de cabelo, sorrindo de forma tímida – Sou Luke, muito prazer. – Estendeu a mão em direção à loira.
  – Sarah. – Ela estendeu a mão de volta, sorrindo do mesmo jeito – Qual sua idade? Apenas perguntando antes que eu realmente ache que você é um sequestrador.
  – Agora consegue diferenciar quem é sequestrador de quem não é pela idade? – Luke uniu as sobrancelhas, balançando a cabeça enquanto ainda gargalhava – Eu tenho trinta recém completados, por sinal.
  – Oh, eu tenho vinte e cinco, não é de tão ruim. – Deu de ombros, sentando ao lado do rapaz – Meus parabéns, se é assim. – Sarah apoiou os cotovelos na mesa, encarando ele sem nenhum pudor – O que te trouxe ao meu parque favorito?
  – Ah, eu acabei de me mudar. Me falaram que aqui é um lugar bom para pensar. – Luke deu de ombros, cruzando os braços e olhando os traços da menina. Ela parecia familiar, ele só não sabia de onde – Você, que parece ser dona da cidade, – Sarah riu do comentário, arqueando uma sobrancelha – gostaria de me mostrar o que podemos fazer a noite?
  – Está me chamando para sair? – Fez um bico, fingindo ponderar – É bom que eu avalio seu perfil de sequestrador. – Dessa vez, Luke foi quem começou a rir, mais ainda. – Venha, eu vou te apresentar à minha irmã antes que ela venha aqui e me faça passar vergonha.
  Assim que os dois levantaram, um único raio cortou o céu, partindo as nuvens e fazendo o azul da tarde ficar ainda mais brilhante. Sarah gargalhou, achando fascinante aquele pedaço da natureza que se expunha a eles de forma espontânea. Luke achou que deveriam ir para algum lugar escondido, pois poderia chover e ele não gostava de tomar chuva, tinha uma imunidade baixa demais e podia ficar doente a qualquer momento.
  Mas, mesmo assim, era maravilhoso poder ver um singelo raio em meio a todo infinito que o céu representava.
  – Sabe por que eu gosto de raios? – Sarah perguntou, voltando a caminhar ao lado do homem. Luke negou com a cabeça, fascinado pela espontaneidade presente na mulher – São como choques no céu.

Fim!



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