Craque

Escrito por Lyli | Revisado por Maria (até capítulo 03) | Natashia Kitamura

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I

Voe pro mundo que te espero hoje à noite
Conheça tudo o que sempre sonhou (...)

Siga o seu caminho sem pensar
Mas lembre onde eu vou estar
Agora e até o fim
Foi a vida que quis assim
Caminho de Volta — Manu Gavassi

  E lá estavam eles mais uma vez, juntos. Eles sempre foram um só. Ela e ele. Ele e ela. e se conheceram no ensino fundamental, onde rolavam paqueras e ele costumava dedicar a ela os gols que fazia na aula de educação física. Nada mais que alguns beijos aconteceu naquela época, mas foi o suficiente para começar algo. No ensino médio, foram para escolas diferentes. Continuaram amigos, mas o fato de não se verem todos os dias esfriou as coisas. Ela teve alguns namorados e ele teve centenas de casos. Ainda assim, eram um do outro. Estavam sempre ligando, sempre se falando na internet e frequentavam as festas do mesmo círculo de amizades. Uns beijos aqui, outros ali. Naquela época começaram a dormir juntos, mas gostavam mesmo de acordar juntos. Os pais dela nunca gostaram da relação, mas aqueles dois eram simplesmente inseparáveis.
  Mais tarde, soube que largou a escola para se aplicar no futebol. Ela achou legal, mas sua mãe fazia questão de falar em alto e bom som que aquilo era uma palhaçada e que ele seria só mais um entre milhões tentando uma chance impossível. Imagine qual foi sua surpresa quando o rapaz entrou para um time profissional. Passou pelo banco do Nova Iguaçu e do Madureira, então saiu do estado para jogar no Atlético Paranaense e voltou para o Rio de Janeiro anos depois com um baita contrato no Vasco. Nessa época ele já era um nome grande, uma estrela em ascensão, e ela estava terminando a faculdade de Medicina. A relação era bastante estreita na época, até que a tragédia que levou os pais dela uniu o casal mais uma vez. Ele estava lá com os braços abertos, pronto pra recebê-la e afagar seu choro. Não demorou até que engatassem um namoro e aí foi só questão de tempo até morarem juntos.
  Agora eram um só de novo e nada podia ser melhor que isso. Caminhavam de mãos dadas pela praia da Barra num momento de descontração. Ele tinha duas semanas de férias do Brasileirão e logo teria que voltar a treinar como louco no Vasco, e o casal voltaria à rotina de não se ver direito, graças aos plantões médicos dela. atendia na emergência do hospital Barra D’Or e amava o que fazia com todo o seu coração. E ela o fazia com maestria. Assim como era craque no futebol, ela era a craque do hospital.
  O casal apaixonado caminhava pela orla num raro momento de sossego de suas vidas agitadas pela mídia e pelos curiosos o tempo inteiro.
  — No seu próximo dia de folga, a gente podia fazer uma viagem. – disse, parecendo desinteressado. conhecia bem esse truque. Era mais uma forma dele querer lhe pagar caprichos que ela não precisava. — Que tal conhecer a Europa?
  — Ou damos um passeio na praia do Leblon, pra variar. — Ele riu da saída dela. Mesmo depois de tantos anos, ainda era ótimo estar com ela. Seria uma pena quando ele lhe contasse o que tinha pra falar. — É sério, você tem que parar de tentar me transformar numa dondoca, .
  — Querer viajar com a minha namorada é querer transformá-la numa dondoca?
   sempre se incomodava quando o namorado tentava empurrar seu dinheiro pela sua goela. Já lhe era chato o bastante que ele pagasse praticamente todas as contas da vida a dois, não ajudava quando cismava em querer lhe levar pra todo tipo de viagem. Amigas a chamavam de louca porque não aceitava que pagasse seus caprichos o tempo todo, mas a vontade da mulher era mais do que simples orgulho. Não gostava de se imaginar como uma daquelas maria-chuteiras aproveitadoras que enrolavam jogadores de futebol no meio das pernas e viviam sob o dinheiro deles. Já lhe era bastante irritante quando saía com o namorado e escutava os repórteres do TV Fama ou outro programa de fofocas ridículo tentando conversar com “o jogador e sua namorada”. Como odiava esse título. Ela tinha certeza absoluta de que era bem mais que apenas a namorada de .
  A discussão divertida acabou por ali e o casal continuou caminhando na beira da praia por um tempo, até que os olhares curiosos começaram a irritar . Rindo dela, puxou sua mão em direção ao flat que dividiam em uma das torres do hotel Sheraton Barra. Ele sempre achara engraçada essa relação de sua namorada com a mídia. Ela nunca se acostumaria com isso, mas o que ele podia fazer? sabia que seu nome continuaria nas notícias, especialmente com o que estava prestes a acontecer em sua vida.
  — Não aguento mais morar em um hotel. — Ele disse, sentando na cama e tacando o chinelo longe. Sabia que a namorada ia se preocupar com a areia nos pés dele se espalhando pela cama, mas no momento ele tinha assuntos mais sérios para tratar com ela. — É um entra e sai de gente danado e a entrada está sempre cheia de adolescentes quando vêm artistas se hospedar na outra torre.
  — A gente podia se mudar, ué. — Ela respondeu do banheiro. Estranhou o tom casual em que falou sobre torrar a grana de enquanto lavava os pés com o chuveirinho. — Tem uns condomínios legais por aqui na Barra mesmo. Esperamos um tempo, juntamos uma grana e compramos.
  Sabia que estava rindo, mesmo sem escutá-lo. Pra ele não existia isso de esperar e juntar dinheiro. O camisa 10 do Vasco podia comprar um apartamento em cada condomínio em volta do autódromo ao estalar os dedos. Secou os pés e voltou para o quarto, encontrando o namorado sentado na cama com os pés descalços sujando o chão de areia e uma expressão ansiosa no rosto.
  — Eu tava mesmo pensando na mudança, mas não pra um condomínio na Barra.
  — Pra onde, então? — Foi até seu armário e procurou as roupas que precisava pra trabalhar no dia seguinte. Já ia passar a ferro e deixá-las separadas, porque adorava fazer tudo com antecedência. — Não pode ser muito longe do meu trabalho, você sabe como é o trânsito por aqui. — Encontrou um terninho verde escuro classudo, que era bonito demais pra ser escondido pelo jaleco, mas optou por ele mesmo. — E, bem... Qualquer lugar é longe do São Januário. — Os dois riram da piada dela com o centro de treinamento do Vasco. A língua de coçava pra dizer à moça que não precisaria mais se preocupar com isso, mas ele ainda não sabia como. apontou para os pés dele. — Vai limpar isso.
  — Amor, vem aqui. — O encarou com o conjuntinho verde nos braços, não compreendendo o tom de voz baixo de . Ele tinha uma mão explanada na cama ao lado de seu corpo, mostrando onde ela devia sentar. — Vamos conversar rapidinho. — sorriu maliciosamente. Deixou a roupa numa cadeira e foi na direção do namorado, já em seu rebolado favorito e um tanto quanto desajeitado. — Calma, amor. — Ela chegou no rapaz e passou os braços por seu pescoço, jogando o corpo contra o dele e o deitando na cama. Com a boca, foi fazendo carinhos no pescoço e na orelha, que o faziam rir. — , se comporta. Estou tentando falar uma coisa.
  — Pode falar. — Sussurrou em seu ouvido, sexy demais para o gosto dele. quase perdia a concentração com aquele corpo que ele amava avançando sobre o seu. — Sou toda ouvidos.
  Puxou a namorada pela cintura e a colocou sentada na cama, ao lado de seu corpo. Ela o olhou intrigada, mas se lembrou de que em época de um grande campeonato de futebol ele costumava ficar muito nervoso e ansioso. E eventualmente negava sexo. Ela temia pelo dia em que o craque fosse escalado pra uma Copa do Mundo.
  — Não é nada disso, safada. — Ele se sentou na cama de novo, rindo. Tinha os pés sobre os lençóis e se apoiava nos joelhos com os braços.
  — Se não é isso, então vou comer. — riu alto. Toda vez que ele negava sexo, ela comia muito. devia ter um sério problema de ansiedade. — E limpa essa merda do seu pé! — Ela saiu do quarto em direção à cozinha e logo começou a ouvir a geladeira abrindo e fechando. — Olha só, a gente só pode começar a ver esse negócio da mudança quando acabar o Brasileirão. — Ela continuou gritando da cozinha enquanto enchia a boca de biscoitos. permaneceu na mesma posição, ainda pensando em como dar a notícia à namorada. — Vou ver se adianto minhas férias e a gente faz isso no tempo livre.
  Seja homem, ele dizia a si mesmo. Era melhor que ela soubesse por ele do que pela mídia. E no encalço que as coisas andavam, logo a notícia chegaria à imprensa. Todos os jornais esportivos venderiam exemplares com o seu nome numa grande manchete enfeitada por um monte de zeros. Seja homem e conte pra ela. Nesse momento, ele gostaria de poder voltar atrás, mas já tinha assinado um contrato e já havia uma grande bonificação em sua conta bancária.
  — Acho que já tenho uma coisa pra fazer quando acabar o Brasileirão. — Disse, inseguro. Tinha certeza de que estava começando errado, mas foi o jeito que deu. — Amor, a gente ainda precisa conversar.
  — Fala logo, to escutando! — Ela gritou da cozinha, provavelmente com a boca cheia de comida. ouviu algo fritando no óleo.
  — É que... Bem, tem um outro time interessado em mim. — A moça ficou em silêncio e isso o preocupou um pouco. Continuou, ainda sem jeito de chegar lá: — Tá quase tudo certo, eu vou sair do Vasco no final do ano.
  Isso era uma baita mentira. Já estava absolutamente certo há duas semanas que ia deixar o Vasco, mas o rapaz tremia só de pensar em explicar o acontecido pra namorada.
  — É só isso? — Ela perguntou, despreocupada. — Me preocupou à toa, sabia? Da próxima vez fala logo, besta. — sorriu, adorando o jeito da mulher. Respirou fundo. Só falta agora metade da notícia. — Qual é o time? Aposto que é o Flamengo, né? Eles estão de olho em você desde a Taça Rio.
  — Não... Não é o Flamengo. — Seja homem, idiota. Conte logo! — É um time maior que o Flamengo.
  — Maior que o Flamengo? — Em seu tom, divertimento e incredulidade ao mesmo tempo. Não era especialista em futebol, mas sabia muito bem o tamanho do rubro-negro. — Moramos no mesmo país?
   fechou os olhos com força e nem achou graça da piada. Com os dentes trincados, ele tentava reunir coragem para dizer logo tudo de uma vez. Respirou fundo algumas vezes e abriu os olhos decidido a soltar a notícia.
  — É o Chelsea. — Falou alto, sabendo que ela o ouviria da cozinha, mas com um tom rouco de medo. Suas mãos tremeram no momento de silêncio que se seguiu. Ouviu o óleo parar de queimar na cozinha. — O Chelsea me quer ano que vem.
   entrou no quarto dando passos lentos. Em seu rosto, podia-se ler surpresa e mais trezentas emoções desconhecidas e fortes se manifestando ao mesmo tempo. Ainda tinha uma espátula cheia de óleo numa das mãos, e o líquido que pingava dela sujava o carpete que ela ia querer limpar mais tarde.
  Isso se ela não saísse batendo a porta na cara de e nunca mais pisasse no apartamento.
  — Chelsea...? O Chelsea? — , com um semblante preocupado, fez que sim com a cabeça. — Na Inglaterra?
  — É. O Chelsea na Inglaterra.
  O casal permaneceu em silêncio por um tempo, mas depois de segundos de tensão suspirou e deixou um grande sorriso escapar.
  — Isso é incrível, amor! — O jovem jogador se surpreendeu ao ver o sorriso. Será que ela percebeu o que estava acontecendo? — Você vai jogar na Europa! Isso é maravilhoso!
   pulou sobre ele, tacando a espátula em qualquer lugar. Os dois se abraçaram na cama, rindo e comemorando a novidade.
  De fato, era incrível. O jovem que começou no banco do Nova Iguaçu de contrato assinado para o próximo ano em um dos melhores times da Europa. Talvez tivesse uma boa recepção na Inglaterra. não contava com um estádio cheio gritando seu nome, afinal não era o Neymar. Mas imaginava uma boa chegada, imaginava Alex Escobar e Tiago Leifert comentando no Globo Esporte sua chegada na nova casa. Se tivesse um ótimo desempenho no começo, já chegaria ao Campeonato Europeu como rei. Com todos os holofotes sobre ele, chegar à Seleção Brasileira seria um pulo. Seu coração se aqueceu ao pensar em si mesmo usando a camisa verde e amarela, mas aí percebeu que antes de tudo isso, ainda tinha um problema.
  Nenhuma notícia muito boa vem de graça.
  — Então, quando você vai? Já fechou o contrato? Vai dar tempo de você jogar no Campeonato Europeu? — falava rápido e parecia bastante animada, embolando as palavras tentando saber detalhes do acontecido.
  — Sim, eu devo vestir a camisa assim que chegar lá. Vai ser uma loucura, tudo muito rápido! — Sorridente, o rapaz mal podia acreditar que sua namorada o apoiava. Só era estranho ela não ter pensado, ainda, na parte ruim da notícia. — Mas primeiro tenho que chegar ao fim do Brasileirão. Mesmo deixando o time, vou ajudar meus camaradas a chegar na Libertadores. — Sentiu a pele da namorada contra a sua durante o abraço e então ficou sério de novo. Se tudo ocorresse do jeito que ele imaginou, teria que se acostumar a passar bastante tempo sem esse toque. — Estou tão feliz que você gostou da notícia.
  O jovem sorria para sua amada, com os corpos próximos o suficiente para que pudessem sentir seus corações acelerados. O sorriso de diminuiu um pouco quando ela percebeu que a novidade boa também poderia ser um pouco ruim.
  — Claro que te apoio, amor. — Sem jeito, a garota tinha um pouco de medo de admitir o que estava acontecendo. — Mesmo sabendo que... Bem... Isso vai ser complicado.
  — É. — Sentaram-se lado a lado na beirada da cama e ficaram em silêncio. — Se eu for mesmo, não tem jeito. Terei que me mudar pra Inglaterra.
  — Espera, como assim se você for? — perguntou indignada, procurando olhar nos olhos do namorado. — Isso não está em questão. — respondeu com silêncio, encarando o chão, e a garota não aguentou ver essa insegurança em seu rosto. Virou-se pra ele e segurou seu rosto com as duas mãos. — , isso é o que todo garoto desse país sonha. É sua carreira deslanchando, caramba! Não vou ser besta de deixar você desistir de uma oportunidade como essa. Você vai pro Chelsea e ponto!
  — Então você... Você iria pra Inglaterra comigo? — Os olhos de brilharam ao pensar na possibilidade. Era um resquício de esperança falsa, porque ele conhecia muito bem sua garota.
  — Olha, eu... — Ela soltou seu rosto e se levantou, passando a andar em círculos pelo quarto. — , isso não é tão simples.
  — É simples, sim! — Ele se ajoelhou na cama, animado com a ideia. — Eu compro uma casa lá e a gente vai passar bem mais tempo juntos. E, nas minhas férias, a gente viaja a Europa inteira!
   ouvia as ideias do namorado e tudo realmente parecia maravilhoso, mas muito ilusório. Como ela faria uma coisa dessas? Sua vida toda estava no Rio de Janeiro. Havia perdido sua família e se lembrava muito bem do gosto de ficar sozinha, longe de tudo e todos. Não queria sentir isso novamente. Passou por sua cabeça dizer sim à proposta e ir passar um tempo com ele na Inglaterra, vendo se um conseguiria se acostumar ao pique do outro na terra da rainha, mas descartou a possibilidade no momento em que percebeu que a vida lá não seria “um se acostumando ao pique do outro”. Seria apenas ela se acostumando ao pique dele, à vida e aos horários dele.
  Sua vida estava no Brasil. Seu emprego, seus amigos, os lugares que gostava de frequentar. Tudo em seu mundo girava ao redor do Rio de Janeiro. Ela tinha sim uma imensa vontade de conhecer outros países, mas não de abandonar tudo o que construiu e ir morar na Inglaterra, se tornando finalmente nada mais que “a namorada do jogador ”. Encarou-o finalmente, e o rapaz percebeu na hora que ela já tinha tomado uma decisão.
  — Você não vai, né? — Ele indagou, desanimado. A garota nem precisou responder, ambos sabiam a resposta.
  Lágrimas invadiram seus olhos e ele nem ligava se alguém poderia pensar que aquilo não era “coisa de homem”. Ia pra Europa, realizar seu grande sonho, algo que imaginava desde os oito anos de idade. A experiência seria maravilhosa, mas também dolorosa. era sua garota. Eles eram um do outro desde sempre. Ela e ele. Ele e ela. Como ia embora e simplesmente ia deixar sua garota? Com o rosto já encharcado de lágrimas, chorou em silêncio enquanto tentava segurar seu choro, ainda em pé no meio do quarto, pensando no que fazer.
  — De quanto tempo é o contrato com o Chelsea? — Ela questionou, imaginando se o relacionamento de quase uma vida inteira aguentaria a distância de um oceano.
  — Dois anos, inicialmente. Se eu for bom, vai subindo.
  Dois anos, tá bom. Os dois sabiam bem que nenhum time europeu paga seis dígitos por um jogador sem a pretensão de fincar os pés do rapaz tão fundo no campo que ele chegue a estranhar o clima quente do Brasil durante suas férias.
  — Você acha que a gente consegue ficar à distância? — Ela perguntou com um tom amoroso e consolador. Sentou-se ao lado dele, encostando os ombros. — Como o Neymar e a Bruna? — se lembrou de todas as histórias de vestiário quando se tocava no nome de Neymar. Definitivamente, namorar Bruna Marquezine enquanto jogava no Barcelona deve ter sido a pior decisão de sua vida, porque aparentemente era uma discussão ridícula por semana e o relacionamento ia se acabando aos poucos. Ele não queria ver sua relação com se tornar isso. — Posso ir te visitar de vez em quando. A gente combina de sempre ligar, fazer skype... Se a gente se esforçar, podemos dar um jeito.
  — Você acha mesmo? — O tom sério dele foi talhante na aproximação amistosa da garota. — Moramos na mesma casa e a gente mal se vê. Com seus plantões fica impossível. Por isso seria perfeito se a gente fosse morar lá, teríamos tempo um pro outro e...
  — PARA! — Ela gritou, cortando a frase dele. — Não teríamos tempo um pro outro; eu sempre teria tempo pra você porque não faria porcaria nenhuma na Inglaterra!
  — Você pode arrumar algum emprego por lá.
  — Ou eu posso continuar no emprego ótimo que tenho aqui! — notou que foi um pouco dura nesta frase e se acalmou, pensando num jeito melhor de dizer o que pensava. — Te amo, , mas não vou largar tudo o que tenho pra te seguir. — Silêncio os envolveu depois que a verdade cruel foi dita. — E nem posso querer que você desista do que conquistou. Seria injusto. — Colocou uma mão sobre a do namorado e ele apertou seus dedos, parecendo que ia senti-la pela última vez. — É a oportunidade da sua vida e o caminho que escolhi pra minha, mas eles não andam juntos.
   respirou fundo e deixou finalmente que as lágrimas caíssem, a livrando do peso de segurar a dor. puxou seu corpo mais para perto e logo estavam abraçados na cama. Ele, com os olhos fechados com força, tentando fugir daquela realidade. Ela, chorando no encaixe de seu pescoço e vivendo a dificuldade de aceitar sua nova vida.
  — E agora? — sussurrou.
  — Acho que você já sabe. — Ele fez que sim com cabeça, confirmando o fim. Nunca, em seus pensamentos mais surreais, poderiam imaginar o relacionamento terminando dessa maneira. — Eu te levo no aeroporto, tá?
  Ele riu, passando uma mão pelo rosto para secá-lo.
  — A gente tem que prometer nunca se distanciar. Isso não é adeus, não pode ser. — Fez uma pausa, imaginando se fazer tudo o que ele imaginava seria possível. — Depois de tantos anos, não vou deixar um maldito time inglês separar a gente.
  Ambos riram, tentando quebrar a tensão. beijou a testa de com carinho, pensando que aquela devia ser a última vez que eles estavam juntos de verdade, como sempre estiveram. Ela e ele. Ele e ela.
  — ? — Depois de momentos de carinhos no silêncio, chamou a atenção do ex namorado.
  — Sim?
  — Você ainda não limpou a areia da porra do seu pé.
  Ele riu alto. Caramba, como ia sentir falta disso.

  Caminhando pela orla da praia da Barra, ela continuava se incomodando com os olhares alheios. Aparentemente, o título de “ex-namorada do jogador ” não sai tão fácil assim. Se dizer como a ex dele era engraçado, porque não se sentia assim. Já fazia quase um ano desde a ida de para a Inglaterra. A garota relutou, mas ele conseguiu convencê-la a ficar com o apartamento. Ele ainda pagava a maior parte das contas porque ela sozinha não tinha condições de manter aquele lugar, o que a incomodava. Por vezes pensou em simplesmente fazer sua mala e alugar uma casa pequena e confortável, onde ela pudesse bancar. Mas aquele flat era seu cantinho com , ela não podia abandoná-lo. Com ele longe, era estar dentro do apartamento que mais a fazia feliz.
  Como ela suspeitava, sua vida não acabou. podia muito bem viver sem . Continuou prosperando no emprego e acabou ganhando uma promoção, se tornando a supervisora de toda a equipe da emergência. O trabalho ficou mais difícil, mas passou a lhe tomar menos tempo. E em seu tempo livre ela só pensava nele. E em como queria que ele estivesse lá. podia muito bem viver sem . Mas não queria.
  Só que não era justo com ele ligar e pedir que ele volte. Sabia que, se ele soubesse o que ela estava passando, voltaria na hora. Quando se falavam, ele sempre demonstrava cansaço e saudade. Ela não. se esforçou para parecer muito bem sem ele. Com o tempo, as ligações que antes eram todos os dias passaram a ser semanais. Antigamente corriam um para o outro quando se viam no skype, mas agora podiam facilmente ignorar-se quando se viam online. A relação esfriou, isso é normal. Mas como doía.
  Voltou para o hotel Sheraton Barra porque não aguentava ser foco de olhares e comentários. Toda vez que saía de casa era esse inferno. Os passeios na orla que gostava de fazer em suas folgas eram sempre estragados pelos curiosos. Lembrou-se do inferno que foi no começo, quando a mídia passou a dizer que ela não o amava o suficiente para largar tudo e ir com ele. Ela ria dessa alegação idiota. Justamente porque se amavam eles tinham que se separar. Essa coisa de deixar tudo para trás por amor é tão coisa de novela que chegava a enojá-la. Ilusório, ficcional. Até mesmo em livros esse tipo de história é bobagem. Mas aparentemente a mídia não concordava com e não hesitavam em lhe citar como uma namorada pouco leal e dedicada. O nome dele em todas as manchetes não ajudava. Mas a deixava tão orgulhosa! prosperou na Europa e foi eleito o melhor jogador do Campeonato Europeu. Ganhando de Messi, ganhando de Neymar. só conseguia pensar em como seria gostoso dar um abraço nele quando ele soube da notícia.
  Entrou em seu apartamento e foi direto ao banheiro lavar a areia dos pés. Sentia falta do rapaz mal educado sempre sujando o chão da casa. Secou os pés e voltou pro quarto. E então seu coração parou.
  Ele parecia mais alto, sem dúvida mais musculoso. Parecia ter dobrado de tamanho. O cabelo estava um pouco maior, mas o sorriso lindo era o mesmo de sempre. tentou falar, mas a emoção da surpresa tomou sua capacidade de fala. Notou que lágrimas ousavam aparecer junto do sorriso mais sincero que desenhou em seu rosto nesse último ano.
  Sem a necessidade de macular o momento com palavras, abriu os braços em um gesto maravilhoso. correu até ele com a pressa de alguém que muito ama e muito sente falta. O abraço gostoso cercado por lágrimas de ambos mostrou que nada tinha mudado.
  E lá estavam eles mais uma vez, juntos. Eles sempre foram um só.
  Ela e ele.
  Ele e ela.

II

Eu quase posso ver
Aquele sonho que estou sonhando
Mas tem uma voz dentro da minha cabeça dizendo
“Você nunca vai alcançá-lo”
The Climb — Miley Cyrus

  O som da gritaria no estádio ecoava em sua cabeça. Com os dentes trincados de dor, ele imaginou os rostos dos torcedores. Ele não devia estar no chão, deveria estar jogando. Aquela era a sua Copa do Mundo, seu momento. Ele deveria ser escolhido o melhor do mundial naquele ano. Tudo ia bem, ele sentia o prazer de trazer orgulho ao seu povo vestindo a camisa verde e amarela. Mas agora, aparentemente, o sonho estava morto. Quando o maldito jogador da outra seleção o atacou, seu sonho caiu por terra. Ele se arrastou com a cara no chão depois do golpe pelas costas. Sabia cair, sabia se machucar e — não se orgulhava muito disso — sabia fingir uma falta pra conseguir um pênalti a seu favor. Quando o jogador vinha de frente, era bem simples se esquivar e se proteger. Mas com o golpe covarde pelas costas, foi impossível.
  Gritava com a dor subindo suas costas. Tentou se levantar pra ver se conseguia dialogar com o técnico, pedir que chame os médicos, mas não dava pra se mover. Junto de cada espasmo da dor excruciante, ele sentia também a dor de perder uma oportunidade única. Podia ver seu sonho batendo asas e voando pra longe. Não precisava de nenhum médico pra lhe dar a notícia. Em sua cabeça, já sabia que estava fora.
  — Vambora, cara! — Seu camarada chegou puxando-o pelo quadril, tentando lhe tirar do chão. quase não ouvia, a decepção gritava mais alto em seu ouvido. — O juiz não vai parar o jogo, levanta!
  Seu amigo estava obviamente preocupado, porque os dez minutos finais de um jogo de quartas de final poderiam ser decisivos. Não era hora de fingir uma falta, era hora de levantar e meter gol.
  — Não dá, cara. — Falou, entre dentes. Nem mesmo tirar o rosto da grama para encarar o amigo ele conseguia. — Me ajuda aqui, chama alguém.
  — Tá sentindo o quê? — Pôs a mão em suas costas, tirando imediatamente quando um espasmo de dor fez o corpo do amigo se contorcer em um grito.
  — Eu... Cara, eu... — Pensou antes de responder e assustou a si mesmo com a verdade saindo de sua boca. — Eu não to sentindo minhas pernas, cara.
  Daí em diante só ouviu gritos desesperados de seu amigo, chamando os médicos e implorando para o juiz negligente que pare o jogo. estava começando a ficar meio tonto e achou que ia desmaiar de dor em certo momento. Notou mais dois pés ao seu lado e subiu um pouco o olhar, vendo outro grande amigo parado ao seu lado. Este, já com os olhos cheios d’água, evitava olhá-lo, mas gritava com a equipe fora do campo balançando os braços e o quadril. Logo sentiu quatro braços o pegando e colocando-o em uma maca. A dor era tanta que, quando caiu de costas na maca, soltou um grito desesperado expurgando de si um pouco do desespero de segurar a dor. Chorava desesperadamente ao ser carregado pra fora do campo. O estádio estava em silêncio. Seu rosto aparecia no telão, preocupando os presentes. Todos os jogadores vestidos com a flâmula verde e amarela o observavam, preocupados. No momento que a maca deixou o espaço verde, soube que estava fora mesmo.

  — O que tá acontecendo com ele? Ninguém me fala nada! — No alto do camarote familiar, ela chorava como se a dor fosse em sua coluna. Os familiares dos outros jogadores da seleção tentavam acalmá-la, mas não adiantava. A assessora de imprensa de tentava lhe dizer pra não fazer escândalo e ficar calma, mas não adiantava. não queria ficar e esperar as notícias, queria as notícias agora. — Me deixa sair, eu vou pro vestiário ficar com ele!
  — , você tem que se acalmar. — Toda vez que a assessora de falava com ela tentando lhe dizer o que fazer, seu sangue fervia. A mulher experiente com seu jeito de adulta e seu tom condescendente usual achava que podia tratar o casal como crianças só porque eram jovens. — Não posso deixar você sair daqui. Acalme-se e vamos juntas até ele quando acabar o jogo.
  — Não ligo pra essa merda de jogo, eu nem gosto de futebol! — A garota histérica deixou que seu refrigerante acidentalmente fosse jogado pra fora da lata em seu gesticular de raiva e preocupação. As famílias dos outros jogadores reclamaram, mas ela nem ouviu. Só pensava em e o que podia estar acontecendo com ele. — Eu vou pro vestiário ficar com o meu namorado e ponto!
  — Não vai, porque ele nem está mais no vestiário! — A assessora perdeu a paciência com a jovem descontrolada. Já tinha trabalho com muitos casais da mídia, mas aquele era definitivamente o mais insuportável. — saiu pro hospital há cinco minutos, agora senta essa merda dessa bunda na cadeira e espera o jogo terminar.
  Paralisada com a notícia, ela se ateve a obedecer. Para o hospital? Então o problema era sério mesmo. O choro veio logo. Os últimos minutos daquela partida foram entediantes para ela, porque só gostava mesmo de ver seu namorado jogando. Antes dele, ignorava com sucesso todo futebol à sua volta. Acabaram se conhecendo em um evento e agora a jovem cantora e o jogador em ascensão eram o casal de vinte anos mais conhecido do Brasil. O namoro era muito especulado e cada pequena briguinha normal de casal se tornava uma grande notícia em sites de fofoca, mas eles conseguiam viver com isso. Ele passou a apoiá-la, indo a todos os shows que conseguia, e ela fez questão de comprar uma camisa da seleção brasileira com o nome e número dele para assistir a cada jogo da Copa do Mundo no Brasil.
  Agora suas mãos tremiam, pois ela pensava pela primeira vez na possibilidade dele não chegar até o final da Copa.
  — Calma, . — A irmã mais velha de a abraçou, também chorando. — De repente nem é coisa séria.
  As duas amigas ficaram juntas em silêncio até o final da partida, ignorando cada urro de felicidade ou revolta da torcida ao seu redor. O Brasil ganhou um jogo com certa dificuldade no final, e enquanto os jogadores choravam sua vitória, as duas meninas ligadas ao craque fora de campo foram chamadas pela assessora de .
  — Venham aqui comigo. — A mulher apontou para um canto enquanto desligava seu celular. As famílias começavam a sair do camarote, junto de outras pessoas. Muitos viam a celebridade ali no canto e comentavam, como é de costume. — Vou falar só uma vez: sem escândalos aqui. Se quiserem gritar, esperem até estarmos no carro. — Ela falava com a seriedade de quem tem uma notícia péssima, o que deixava as meninas ainda mais nervosas. — Fotos de vocês duas chorando é o que menos precisamos agora.
  — Fala logo! — gritou impaciente, fazendo a moça se enraivecer com sua atitude. — O que aconteceu com o ?
  Ela respirou fundo e soltou de uma vez.
  — teve uma fratura grave na lombar. Não está mais em perigo, mas está fora da Copa.
  Os olhos arregalados das meninas se dirigiram à assessora. Conheciam bem . O problema não era a dor, não era o fato de ter sido tirado daquele jogo. O problema era estar fora da Copa. Levantar a taça no Maracanã era o seu sonho de menino que muitas vezes pareceu impossível, até que chegou o momento. Tinha a Copa no seu país. Tinha a camisa da seleção com seu nome atrás. Tinha a torcida de uma nação inteira gritando por seu nome. Ia dar tudo certo, todos tinham certeza. Então o que aconteceu? se pegou sentindo as dores da decepção junto com o namorado que ela nem sabia direito onde estava e se abraçou em prantos, sabendo que a partir daquele dia a vida dos dois mudaria. O corpo foi desfalecendo aos poucos, até que se pegou caindo ajoelhada no chão. Ao movimento de olhos revirados da assessora e sentindo o abraço de sua amiga em suas costas, ela enterrou o rosto nas mãos e chorou ruidosamente, sem medo de fotos ou boatos.

  Na enfermaria daquele hospital particular, ainda chorava. A dor parecia cada vez maior, mas não se podia fazer nada antes que o médico terminasse a avaliação. O doutor o virou de lado com a ajuda dos enfermeiros e ficou pressionando várias partes de suas costas, pedindo que o jogador avisasse onde a dor era mais forte. Os avisos acabavam sempre sendo gritos altos. Já sabia que tinha um problema na coluna, mas não podia imaginar qual. Enfermeiros já tinham saído da sala depois de cochichos com o doutor, mas ninguém se dignou a colocá-lo por dentro do que estava acontecendo. Devia ser grave, provavelmente estavam com medo de contar e vê-lo tentar fazer uma loucura. já não tinha mais esperanças de jogar naquele mundial, mas queria pelo menos poder sair andando do hospital para casa. Com a cabeça baixa.
  — Você é forte, rapaz. E tem muita sorte. — O médico o colocou de volta com as costas na cama e o cumprimentou sorrindo. — Mais dois centímetros pra cima e você já era.
  O médico falava com tranquilidade, como se o fato de estar numa cama de hospital quando deveria estar em campo não fosse horrível.
  — Então não to paraplégico?
  Recebeu um sorriso do doutor em resposta.
  — Mexa os dedos dos pés. — ignorou a puxada de dor que subiu a espinha e movimentou os dedões. Suas pernas funcionavam, mas não podia jogar. Nesse momento, pra ele era o mesmo que estar paraplégico. — Você teve uma fratura na lombar, mas não vou te chatear com detalhes médicos. Já ligamos pros seus pais e estão preparando a mesa de cirurgia pra você. Vamos te operar e você vai correr atrás da bola de novo em menos de dois meses, ok? — Viu o rapaz colocar uma mão no rosto, suspirando em decepção. — Relaxa, garoto. — Colocou uma mão em seu ombro, consolador. — Você é novo, ainda tem muitas Copas pela frente.
  Saiu da sala por um momento para checar se já estava tudo pronto para a cirurgia que acalmaria as dores na coluna de , e este ficou sozinho com seus pensamentos. De fato, haveria muitas Copas ainda. Mas não no Brasil.

   negou mais uma tentativa da assessora de de lhe alimentar. A mulher retirou o saco de salgadinhos da frente do rosto acabado da cantora e sentou-se num banco em sua frente. Ficava se perguntando quando deixou de ser assessora de imprensa e se tornou babá de uma adolescente irritante. Rezava pra que largasse logo dessa menina e arrumasse uma namorada adulta que não precisasse de constante vigilância pra não fazer merda.
  Estavam no aeroporto tentando voltar pra cidade natal de , onde ela foi obrigada a ficar esperando por notícias. A menina gritou e esperneou muito, mas não permitiram que ela fosse ao hospital, porque o local estava cheio de jornalistas e não seria bom pra sua imagem ser filmada chorando desesperadamente pelo namorado. Até porque isso preocuparia ainda mais a população traumatizada com o acontecimento com o craque da seleção. Já tinha parado de chorar e não falava nada com ninguém desde que conseguiu trocar suas passagens. O voo sairia em três horas, as mais longas de sua vida. Ignorou a irmã de seu namorado que estava no celular recebendo mensagens de apoio pras duas via twitter e tentou ligar pra , mas se desanimou quando o celular do jogador tocou de dentro da bolsa de sua detestável assessora. fez questão de ser a menina emburrada naquelas três horas de silêncio no salão de embarque, fazendo com que todos se sentissem desconfortáveis na sua presença.
  A garota só conseguia pensar em seu rapaz, em como ele devia estar destruído por dentro. Se preocupava com seu estado físico sim, mas também com o seu emocional. Quartas de final. No Brasil. A seleção ganhava com um gol dele. Só faltava mais um pouco e o seu sonho de garoto se tornaria uma realidade maravilhosa. Conhecia bem seu , tinha certeza de que ele estava se punindo agora. Queria apenas abraçá-lo e dizer que vai ficar tudo bem, mesmo sabendo que palavra nenhuma vai adiantar. Ela queria poder fazer alguma coisa, qualquer coisa. Voltar pra sua casa era a pior atitude que ela poderia pensar em tomar, mas seu agente junto de sua assessora de imprensa combinaram com a assessora de que seria melhor assim. O jovem iria pra seu canto, em Santo André, e o casal poderia se ver em duas semanas, quando a poeira já estivesse baixando. Quando a Copa já tivesse acabado e o sonho de tivesse sido massacrado de vez.
  — Com licença? — Ouviu uma voz meio amedrontada se aproximando. Era uma criança, não devia ter mais que uns doze anos. Vestia uma camisa do Brasil e tinha uma câmera na mão. — Você é a , namorada do , não é?
  Revirou os olhos. Aquilo era o que a garota menos precisava agora.
  — Não. Sou a , cantora recordista de vendas do ano passado. — Respondeu, ríspida.
  Ouviu a mulher que detestava pigarrear na sua frente e se revoltou de vez. Levantou-se da cadeira e foi ao banheiro ver se conseguia um pouco de paz, deixando boquiaberta a pobre menina.
  Tomou um susto quando se olhou no espelho. Wow. O cabelo estava péssimo, os olhos vermelhos e as olheiras muito aparentes. Toda a sua maquiagem se fora com o choro e o rosto parecia cansado. Talvez precisasse mesmo voltar pra casa. De fato, não seria de grande ajuda que lhe visse assim. Ela precisava de um tempo para descansar e saber como ajudar o namorado da forma correta. Abriu a torneira e passou as mãos molhadas pelo rosto, tentando ver se conseguia parecer menos derrotada.
  — Ei, emburradinha. — A assessora de entrou no banheiro com um celular na mão, fechando a porta atrás de si.
  — Olha aqui, se já veio me dar bronca por causa daquela garotinha, pode deixar esse trabalho pro meu agente.
  — Relaxa! Baixe a guarda um pouquinho. — A moça falou em tom cômico. Estendeu o celular na frente de e o balançou em sua cara. — É o . Quer falar com você.
  Instintivamente fez uma cara de cachorrinho que caiu da mudança, o que fez a assessora revirar os olhos. A menina pegou o celular, meio sem saber o que deveria falar. Fez menção de colocá-lo no ouvido, mas antes deu uma olhada malcriada pra mulher na sua frente, que entendeu o gesto e saiu do banheiro.

  — Alô? — Lá do quarto individual do hospital, ainda meio grogue da anestesia e ao som de nada além do controlador de batimentos cardíacos, sorriu e suspirou ao ouvir a voz daquela que ele mais amava.
  — Oi, minha linda.
  — Você tá bem? — Sua voz já meio chorosa preocupou do outro lado da linha.
  — To com algumas dores, mas vou ficar bem. Calma, amor.
  — Eu fiquei tão preocupada. — A voz dela foi se tornando um pouco mais embolada e suplicante por causa do choro. Isso partia o coração de . — Podia ter acontecido algo grave, a gente imaginou cada tipo de coisa.
  — É... O médico me disse que eu podia ter... — Sentiu a voz lhe falhar por meio segundo. A simples ideia foi capaz de trazer lágrimas aos olhos de . — Eu podia ter ficado paraplégico. Podia ter sido bem pior do que sair da Copa.
  Um grande e triste silêncio se fez. É verdade, podia ter sido pior do que sair da Copa.
  Mas isso não significa que sair da Copa não era bem ruim.
  — Eu to fora, . — Permitiu-se chorar, já que não tinha mais ninguém escutando além de sua confidente favorita. — To fora da Copa. Meu sonho morreu. — Começou a soluçar, deixando a garota do outro lado da linha sem saber o que dizer. — Eu envergonhei meu país, envergonhei meu povo.
   chorava alto, deixando que toda a sua frustração fosse colocada pra fora de seu corpo.
  — Calma, amor. A gente vai dar um jeito de superar isso.
  — Eu sei, eu sei... — Sua voz parecia incrédula. repetia, achando que assim começaria a acreditar. — Mas o meu povo deve estar decepcionado comigo.
  — Não, ! — Ela gritou, ecoando porta do banheiro afora. — O seu povo está do seu lado. O Brasil está do seu lado. Não importa se não foi agora, vai ser algum dia e o seu povo ainda vai apoiar o nosso maior craque!
  O rapaz ficou em silêncio por um momento, pensando nas palavras da namorada. É bem verdade que além do apoio dela, tinha o apoio de seu povo. Sabia que um ou outro falaria besteiras, mas a grande massa seria o seu apoio nessa fase da vida profissional.
  — Eu te amo, .
  — Também te amo, amor.
  Ficaram mais um momento em silêncio, aproveitando apenas o som da respiração um do outro. No quarto do hospital, a enfermeira entrou avisando que ele precisava descansar. Despediu-se da namorada e desligou, se aprontando para uma soneca. O corpo ainda doía um pouco, ainda mais graças à cinta apertada que envolvia seu tronco para ajudá-lo a se curar mais rápido. Recostou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos, um pouco mais tranquilo e sabendo que a mão do povo brasileiro lhe faria carinho durante o sono.
  Porque esse é o nosso Brasil. Um povo que mesmo no fundo do poço, não deixa de apoiar o seu craque.

III

Tenha um filho comigo, querida
Seja milionária
Baby By Me — 50 Cent

  O bebê acordou assustado e ela saiu correndo pela casa para cuidar dele. Pegou seu filho do berço com cuidado e o colocou no colo. Embalou o bebê e ficou balançando a criatura em seus braços, ao som de qualquer música sussurrada. Às vezes tinha vontade de tacar tudo pro alto e fingir que não tinha responsabilidade nenhuma com aquela criança. Ser mãe aos vinte e quatro anos nunca foi sua maior aspiração de vida, mas às vezes as coisas acontecem. Especialmente quando se pega o hábito de transar com seu jogador de futebol favorito no vestiário do time dele. Aí sim essas coisas acontecem mesmo.
  A garota nem se lembrava da última vez em que teve uma noite livre. Sua mãe não a deixava contratar uma babá, mesmo que sua mesada desse pra pagar três ao mesmo tempo. Depois que ganhou, do pai do bebê, uma casa em Olinda, acabou não desrespeitando a ordem da mãe. gostava de sair quase toda noite, ir a baladas, ver gente. Gostava de entrar de graça nos camarotes por causa de sua beleza e conhecer homens famosos, principalmente jogadores de futebol. Mas desde o quarto mês de gestação, quando a barriga começou a aparecer, ela não ia mais a festas e nem saía para beber com as amigas. Agora, em época de Copa do Mundo, ficava bem triste de saber que podia ter participado de tantas festas exclusivas nos hotéis das seleções, mas não pôde por causa do bebê.
  Não que não amasse seu filho. Ah, e como amava. Aquele pequeno pedacinho de seu querido jogador era, sem dúvida, a melhor coisa que já aconteceu em sua vida. Gostava de brincar com ele e de assistir os jogos da Copa com o bebê no colo, mostrando pra ele toda vez que seu pai aparecia na tela. Perguntava-se se a pequena criancinha de dez meses conseguia entender que aquele moço correndo atrás da bola era o mesmo que quase nunca o visitava, mas que sempre reluzia num lindo sorriso quando o via.
   raramente passava em Pernambuco. O jogador do Palmeiras, de vinte e sete anos, era casado há quatro com uma atriz linda e famosa e não podia ser visto com uma maria-chuteira. Quando o caso deles começou, numa festa clandestina durante uma rodada do Brasileirão, ele ficou completamente louco por ela. Tiveram um caso por um ano e, nesse tempo, sempre mandava dinheiro e presentes caros, além de ficar pagando passagem pra que pudessem se encontrar em diversas cidades diferentes durante suas folgas. Era difícil esconder o caso da esposa e da mídia, mas ele dava um jeito. Estava completamente louco pela linda jovem nordestina. Mesmo depois de descobrir que ela já havia saído com três ou quatro colegas de time dele, não ligou. era maravilhosa e por diversas vezes chegou até a passar pela cabeça do craque a ideia de largar tudo só pra ficar com ela. Até o fatídico dia.

  Um dia, num desses encontros casuais, quando acordou da soneca pós-sexo, ele achou a menina chorando sobre a cama do motel. Confuso, fez o máximo pra tirar uma informação dela, mas parecia decidida a não contar. Precisou se esforçar, mas conseguiu descobrir o que acontecia. E quase caiu para trás quando a garota disse, fungando e fazendo biquinho.
  A notícia da gravidez caiu sobre ele como uma bomba. já tinha dois filhos pequenos com sua esposa, não conseguia se ver com mais um. E ainda por cima de sua amante. Se a mídia descobrisse, era o fim de seu casamento e — não é impossível — também de sua carreira. Mas o que podia fazer a respeito? O que está feito está feito. se lembrava bem de ter lhe contado que ia abortar o bebê antes que fosse tarde demais. Olhou pra ele com os olhos marejados naquela tarde em São Paulo e falou fingindo que não era grande coisa.
  — A gente não precisa passar por isso. — Passou as mãos pelo rosto para secar as lágrimas. — Me dá um dinheiro que eu dou um jeito nisso essa semana. Nem minha mãe precisa ficar sabendo.
  — , você está dizendo o que eu to pensando?
  — Tem outro jeito? — Se levantou da cama e andou pelo quarto usando apenas calcinha e um top. — Não vou ser uma mãe solteira desamparada e, pela sua cara, você também não quer mais um filho.
  — Querer eu não queria mesmo, mas se Deus mandou, quem somos nós pra recusar? — riu da maneira como ele parecia tão chato e católico às vezes. não demonstrava nada disso quando traía a esposa com ela. — Nós não podemos fazer isso.
  — Não tem “nós”! — Ela falou, autoritária. — Sou eu! Meu útero, minha decisão. — Ficaram em silêncio por um momento, ambos pensando numa maneira de convencer o outro. — Se eu quiser, eu faço o aborto!
  — Mas você quer? — A garota não respondeu, indecisa. se sentou na beirada da cama, encarando a jovem amante no fundo dos olhos. — Escute, vamos fazer isso. — Estendeu os braços para que a garota se aproximasse e os dois deram as mãos em um gesto de carinho mútuo. — Vamos tentar. Acho que eu quero ter um laço que vai me ligar a você pra sempre. — O jogador puxou as mãos dela e as apoiou em seus ombros. Segurando sua cintura, o craque fez uma súplica. — Só não me peça para abandonar minha família. Eu te darei absolutamente tudo nesse mundo, menos isso.
  Uma pontada de tristeza tomou a garota. Droga, ela amava aquele jogador canalha. Ela queria ser mãe de um filho dele. Mas sabia que se fizesse isso, teria que aceitar ficar em segundo lugar em sua vida para sempre.
  — Nunca vou te pedir pra fazer uma coisa dessas. Não quero acabar igual à Elisa Samúdio.
  Ambos riram da piada de péssimo gosto de . Ele a abraçou e a jovem se sentou em seu colo. Ficaram acariciando um ao outro por alguns segundos, passando as mãos pelos cabelos e fazendo carinhos na pele com as pontas dos dedos, em silêncio. Ainda estavam pensando em como conseguiriam fazer isso.
  — Então... — Ele começou, num tom cômico. — Que tal Jr.?

  As lembranças se esvaíram de sua mente quando ela ouviu a campainha tocar. Pessoas raramente visitavam sua casa, por isso estranhou. É incrível o número de “amigos” que se perde quando se deixa de frequentar as baladas. Viu que seu bebê já tinha dormido novamente e o deixou no bercinho, dando um beijo em Jr. e indo pra sala atender a porta.
  Passou por um espelhinho perto da porta de entrada e quase tomou um susto. Tinha o rosto cansado e o cabelo desarrumado. Sem nenhuma maquiagem, realmente dava pra ver que ela cuidava do filho vinte e quatro horas por dia.
  Ao abrir a porta, a sensação que teve era de que o mundo inteiro ia desabar. estava lá, com um sorriso no canto da boca, feliz por ter conseguido surpreendê-la. não entendia o que estava acontecendo. Sabia que a seleção tinha acabado de ser eliminada da Copa, mas não imaginava que ele apareceria na sua casa no primeiro dia de férias.
  — O que você está fazendo aqui? — Perguntou, intrigada.
  — Também senti sua falta. — Eles riram enquanto entrava na casa, olhando pros lados pra saber se alguém estava olhando ou fotografando. — Disse pra minha esposa que só consegui voo de primeira classe pra São Paulo na segunda-feira de manhã. Temos o fim de semana todo.
  — Então vamos aproveitar!
   se derreteu nos braços do rapaz quando ele a tomou em beijos. Subiram as escadas se agarrando e rindo dos tropeções da pressa. se preocupou se o amante se importava com a aparência dela, mas aparentemente ele nem ligava. Só queria se aproximar, beijá-la, possuí-la. Meses longe dela eram como uma crise de abstinência da droga mais viciante.
  — Cadê o Junior? — Ele perguntou num segundo que a garota o deixou respirar, enquanto a jogava na cama.
  — Dormindo no quarto dele. — tirou sua blusa e jogou longe, dando ao jogador a linda visão de seus seios imprensados dentro do sutiã. Curvou-se sobre ele e começou a beijar toda a área do pescoço musculoso do jogador.
  — Ele já deve estar grandinho.
  — Uhum. — Puxou a camisa do rapaz, ignorando seus sentimentos paternais. Ela era maternal vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. Não podiam deixar de serem pais só nesse momento? — Sabe o que anda grandinha também? Minha abstinência.
   foi descendo os beijos pelo peito do rapaz, sedenta em chegar em sua calça pra tacar o pedaço de pano longe, mas sua vontade foi impedida pelo som da babá eletrônica ecoando pelo quarto. Fechou os olhos e contou até cinco para não ter uma crise nervosa na frente de . Respirou fundo e deixou o rapaz rindo no quarto pra ir buscar seu bebê que chorava alto. Agora devia ser fome.
  Entrou no quarto do Junior e a raiva e a frustração passaram assim que viu seu bebê chorando lá sozinho, tão indefeso. Quando todo esse choro começava era bem frustrante, mas gostava de ser mãe. Pegou o bebê do berço e o levou até seu quarto, balançando-o nos braços e com uma ideia na cabeça.
   ainda estava deitado na cama, com uma mão atrás da cabeça e a outra com o controle remoto, ligando a televisão no canal de esportes. Abriu um grande sorriso ao ver seu filho, mas fez uma cara intrigada quando ela praticamente empurrou o pacotinho em seus braços.
  — Fica com ele enquanto eu faço uma mamadeira. — Deixou o filho no abraço um tanto desajeitado do pai.
  — Espera, não sei acalmar o bebê!
  — Prefere esquentar o leite? — se calou, um pouco contrariado. Não era do tipo de pai que ajudava a cuidar dos bebês, estava mais pr’aquele tipo que fazia bagunça junto dos filhos. — Já volto rapidinho, vou só esquentar um leite.
   desceu as escadas e foi pra cozinha preparar uma mamadeira pra Junior. Ela já chegou no cômodo contrariada pela expressão de quando o deixou no quarto, mal conseguindo segurar um bebê. Esse era o pai de seu filho, um homem que não consegue ficar cinco minutos abraçado na sua criança. A garota não fazia ideia do que tinha na cabeça quando aceitou ter a criança, mas sabia bem o que tinha no coração.
  Nem ela sabe dizer direito quando a paixão por começou. Antes era tudo brincadeira, muitas festas e alguns presentes caros, mas depois de um tempo ela percebeu que passou a olhar o craque com outros olhos. percebeu que a primeira coisa que olhava nele não era seus músculos e sim seu sorriso. De repente os presentes e as viagens não importavam mais, o que importava era estar com ele. E notou que a mudança aconteceu também com o jogador.
  Às vezes aparecia em sua casa sem avisar, apenas para dizer oi, e até sua mãe já o conhecia. Começou a ligar com mais frequência e nem sempre era pra marcar algo, muitas vezes apenas queria conversar, ouvir sua voz. O que aqueles dois começaram a criar acabou se tornando romântico e especial.
  Mas lá no fundo sabia que nunca, em hipótese alguma, deixaria de estar em segundo lugar.
  Pegou o leite na geladeira e o colocou pra esquentar. Agora ela retirava o leite materno durante a manhã e o guardava, porque não aguentava mais dar o peito. E que se dane quem quiser criticá-la.
  Enquanto o leite esquentava, se pegou pensando no que tinha feito com a sua vida. Estava bastante feliz antes, com todas as festas e badalações. Agora tinha os momentos de alegria com seu filho e a euforia das visitas de , mas era bem diferente da vida de antes. Sua mãe a avisou quando decidiu ter o filho que sua vida ia mudar para sempre, mas mesmo assim ela quis fazer isso. Agora se pegava arrependida muitas vezes, pensando em como a vida teria sido se tivesse abortado. Isso não significava que não amava seu filho ou que ia tratá-lo mal, só significava que às vezes queria ter feito de outro jeito.
  Notou que o leite estava fervendo e xingou em voz alta. Retirou a panela do fogo e a colocou no congelador por alguns segundos pra esfriar um pouco o leite. Passou uma mão pela testa, percebendo que já se sentia cansada ainda na metade do dia. Ser apenas uma mãe e dona de casa nunca foi sua aspiração de vida. queria ser grande, queria dinheiro, fama, luxo. Agora tinha sua casa enorme, tinha uma mesada gorda e todo o luxo que quisesse seria seu, mas não se sentia realizada. É como se algo importante faltasse. Retirou o leite do congelador e viu que já estava mais pra lá do que pra cá, mas a falta de paciência não a deixou colocar a panela de volta no fogo. Pegou uma das mamadeiras do armário e colocou o leite nela, já sem paciência pras banalidades da vida de mãe.
  Ela nunca quiser ser mãe, droga! Como aquele idiota conseguiu convencê-la disso?
  Subiu as escadas com a mamadeira na mão e certa raiva em sua aura. Não tinha mais clima pra continuar a pegação que pararam. Quando Junior dormisse, ia ouvir.
  Ela nem tinha certeza do que queria dizer, só precisava desabafar. Ficava o dia inteiro sozinha com o bebê, fingindo que podia ser uma boa mãe e nunca tinha ninguém pra conversar sobre os probleminhas do dia-a-dia, já que o pai de seu filho já estava ocupado resolvendo probleminhas de sua esposa.
  Pôs a mão na maçaneta do quarto com um bico enorme, completamente emburrada. Engraçado como foi visitá-la na intenção de melhorar as coisas, mas sua presença estragou tudo e arruinou o dia de . Quando ela abriu a porta, estava disposta a dizer umas poucas e boas pra figura em seu quarto.
  Mas a figura em seu quarto fez questão de lhe abalar as estruturas. Sentado na beirada de sua cama, embalava o bebê cantando o hino do Palmeiras com o mais bobo dos sorrisos nos lábios. Junior o observava com seus olhinhos arregalados e atentos nas feições paternais do jogador. A visão do craque com seu filho nos braços era tão irritantemente bela. Parecia um daqueles comerciais de margarina, com famílias felizes tomando café da manhã. Mesmo que aquilo que tinham não fosse nem de longe uma família, ela não pôde deixar de sorrir. Estava aí sua resposta, era por isso que tinha virado mãe. Porque amava.
  Suspirou e entregou a mamadeira a , sentando ao seu lado e o abraçando. O jogador deu a mamadeira pra seu filho e os pais da criança o observaram tomando seu leitinho. Secretamente, ambos ainda pensavam em como conseguiriam continuar fazendo isso. resolveu deixar de lado sua frustração pelo menos nesse momento de paz. Os problemas ainda existiam, é claro, mas valia a pena esquecê-los apenas hoje em nome do amor.

IV

Aquele sou eu no canto
Aquele sou eu no holofote
Perdendo minha religião
Losing My Religion - R.E.M.

  Quando ele notou que estava chorando, abaixou a cabeça para que seu povo não precisasse vê-lo derrotado. Ajoelhou-se na grama e pôs sua cabeça no chão, decepcionado consigo mesmo. Como a derrota doía. O barulho da torcida da outra seleção ecoava pelo campo, mas não cobria o som de revolta do montante verde e amarelo. Ele se sentia a pior pessoa do mundo. Decepcionou seu povo, falhou em tentar fazê-lo feliz. Era a vergonha de uma nação depois de nadar pra morrer na praia em uma derrota histórica e humilhante. Estavam todos contando com ele e agora tinham se decepcionado. Sua vontade era de se enterrar naquele campo e nunca mais levantar a cabeça pra olhar nos olhos de ninguém, porque não se achava digno. Seu camarada veio até ele. Quando levantou sua cabeça, viu que ele também chorava. O goleiro da seleção era bem mais experiente que boa parte do time e constantemente os acalmava em tempos difíceis.
  – Vem, irmão. – Estendeu sua mão pra , que a puxou pra se levantar. O jogador mal tinha forças pra se manter nas pernas. Queria se deitar, fechar os olhos e não abri-los nunca mais. – Dias de luta, dias de glória. Hoje é de luta.
  Abraçaram-se sob o som de uma torcida infeliz. chorou em seu ombro, envergonhado de sua atuação. Aquele era o palco pelo qual ele esperou por toda a sua vida. Uma Copa do Mundo no Brasil, local perfeito pra deixar seu povo orgulhoso. Tinha a posição de capitão, a responsabilidade maior e agora sentia vergonha de usar a faixa em seu braço, porque não se achava merecedor dela. Não foi capaz de levar sua seleção até a final e nem de levantar a taça.
  – Eu falhei, cara. – Dizia, entre soluços. Os olhos vermelhos se fechavam com força, porque não queria abri-los e encarar a realidade. – Eu sou uma vergonha, eu falhei.
  – Não é assim, irmão. – O goleiro que o acalmava já tinha passado por três Copas e sabia bem como era amargo o sentimento da derrota. Em seu coração temia pelo amigo, porque sabia que o jovem rapaz colocaria toda a culpa do resultado ruim em si. – Essa foi só a tua primeira Copa, não fica assim. – Soltou-se do abraço e segurou pela nuca. – Se cuida, irmão. Não deixa a derrota te subir à cabeça.
  O amigo se foi, deixando novamente à mercê de seus pensamentos autodestrutivos. O jovem de apenas vinte e dois anos tinha a maior responsabilidade sobre si. Todos diziam que ele era a grande promessa da Copa, que ele levaria a seleção à vitória, que ele seria o craque do mundial. Ele só queria o título pra dar pro seu povo brasileiro, que tem andado tão insatisfeito com a situação do país. Mereciam um motivo pra sorrir, uma coisa pela qual lutar, mais uma razão pra terem orgulho. E não foi capaz de lhes dar isso.
  Levantou-se e se virou para o povo que ele decepcionou. Sabia exatamente o que ia acontecer quando encarasse a torcida, mas o fez mesmo assim. Merecia isso. Quando pôs os olhos na torcida, foi recebido por vaias e gritos de desgosto. Os mesmos que apostavam nele no começo daquela partida, eram os que agora o chamavam de vergonha nacional e o vaiavam. Continuou chorando, mas não fugiu daquela sessão de tortura. Merecia, tinha que ouvir aquilo. Era sua punição por ter falhado na missão que a vida lhe deu.
  Em meio às vaias, resolveu responder a tudo o que lhe diziam, mas não do mesmo jeito. Aquele povo brasileiro que muito já lhe apoio e tanto já gritou seu nome merecia uma resposta. Mesmo que o odiassem agora, jamais deixaria de amá-los. Por isso levantou as mãos ao nível da cabeça e aplaudiu seu povo brasileiro por todas as vezes em que eles o aplaudiram.
  Entrando no vestiário, ele retirou a faixa de capitão e a jogou longe. Não queria saber dela nunca mais. Sentou-se num dos bancos e fechou os olhos, ainda chorando. Os outros jogadores não se aproximaram porque sabiam que precisava daquele momento sozinho. O rapaz que estava sempre feliz, sempre pulando e ajudando os outros, não gostava de companhia em seu sofrimento. Enfrentava a dor de frente como um homem e não precisava incluir outras pessoas em sua vergonha.
  Depois que o técnico e outros membros da comissão técnica fizeram discursos tristes e encorajadores que nenhum dos rapazes realmente ouviu, foram liberados. Tomaram banho em silêncio, foram de ônibus em silêncio e se instalaram no hotel em silêncio. Nem seus dois colegas de quarto, que foram seus melhores amigos durante aquela Copa, ousaram dizer uma palavra. Ninguém podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Estavam fora. E tinha parado de crer em si e no seu talento pela primeira vez na vida.

  Na manhã seguinte, o clima ainda era de tristeza e seria por muitas manhãs. O motivo daqueles garotos para sorrir agora estava longe e só teriam outra chance de chegar nele daqui a quatro anos. O técnico lhes deixou mais algumas palavras durante o café da manhã naquele sábado e avisou logo que pediria demissão assim que a Copa terminasse. Despediu-se dos garotos que se tornaram quase seus filhos com lágrimas nos olhos e partiu, deixando os rapazes sozinhos com sua infelicidade. A seleção eliminada estava de folga a partir dali, mas ninguém queria sair pra aproveitar suas férias. Alguns jogadores já tinham se conformado, outros ainda queriam se enterrar num buraco e não sair por quatro anos, mas nenhum se sentia como . Arrasado, massacrado. Uma vergonha para a flâmula verde e amarela. Ele não acreditava mais em si ou no que era capaz. Esqueceu-se de tantas vitórias, tantos gols. Esqueceu-se da Copa das Confederações, esqueceu-se da Libertadores e do Mundial de Clubes. Era como se todos os méritos de sua carreira tivessem sido apagados pela vergonhosa derrota histórica. Futebol foi tudo em que ele acreditou desde que nasceu. Era sua religião, o ar que ele respirava, mas agora era como se não significasse mais nada. perdeu sua religião quando se viu derrotado sob os holofotes mundiais que acentuavam sua desonra.
  Pegou suas coisas e foi pro saguão do hotel, fazer check out. Os olhos ainda estavam vermelhos e as bolsas de olheiras debaixo deles, roxas. Ao se resolver, saiu de lá para encontrar a única pessoa com quem ele tinha coragem de conversar agora.
   o esperava com uma blusa da seleção e um shortinho. Ele sorriu, era bem típico dela. Provavelmente queria deixar claro que ainda o amava e apoiava mesmo depois do que aconteceu. A namorada abriu os braços e ele deixou todas as malas caírem para tirá-la do chão em um abraço.
  Tocar nela era tão extasiante que ele até se esqueceu por um segundo dos fantasmas que rondavam sua cabeça. O abraço forte dos dois apaixonados se estendeu por muitos segundos. sem dúvida era seu porto seguro, era a âncora onde ele se segurava para não boiar longe da terra. A prima mais velha que mais tarde se tornou sua primeira namorada o apoiava em tudo e segurava sua mão em qualquer tipo de problema. O casal ficava junto desde bem novos, mas só na vida adulta assumiram um namoro sério. Agora, aos vinte e seis anos, era o norte da bússola dele. A pessoa que ele mais precisava ver nesse momento.
  – Senti sua falta. – Ele sussurrou ao seu ouvido, com certa dor se deixando mostrar na voz. – Preciso de você mais do que nunca.
  – Estou aqui, . – A moça o abraçava com força, pois sabia que seu namorado precisava de todo tipo de ajuda. – Vou te ajudar a superar essa, tá?
  Um beijo aconteceu, mas havia mais tristeza do que qualquer outro sentimento. O rapaz não tinha nem certeza se era digno do apoio de sua namorada agora. Ela partiu o beijo e segurou seu rosto, fazendo carinho na bochecha com a ponta dos dedos. O olhar piedoso fazia o craque se sentir ainda pior, porque não gostava de ser merecedor da pena de ninguém.
  – Aonde vamos? Vamos pegar um avião pra casa da minha mãe?
  – Não mesmo. – A garota sorriu, sapeca. – Já conversei com a sua mãe e ela concordou comigo que não vai ser bom pra você ir pra lá agora, porque o bairro está infestado de repórteres. – sorriu, aquelas duas o conheciam mesmo. Era engraçado lembrar de quando os pais dela morreram e a menina foi morar na casa dele. A mãe de era contra o namoro e ficava no pé do casal, mas eventualmente ela teve que se conformar. E agora decidiam o destino dele juntas. – Pelo menos nesse fim de semana, você é só meu.
  O casal deixou o hotel naquele começo de tarde, debaixo de flashes e filmagens. Todos os jornais do Brasil queriam uma exclusiva da sua cara de derrotado. Entraram no carro alugado de mãos dadas e sentiram quando foram seguidos de moto por paparazzis, mas o motorista particular estava instruído para despistá-los. Foi cerca de uma hora e meia de carro até o destino deles. Uma pequena pousada no interior da cidade.
  – Que lugar é esse? – Um sorriso já começava a nascer no rosto de , enfeitando de brilho aquele rosto maravilhoso que amava. – Me trouxe pro interior?
  – Eu duvido que algum fotógrafo chegue até aqui. – Ela comentou, rindo. – Só você e eu, até segunda de manhã.
  Entraram no local e a primeira coisa que viu foram as bandeiras do Brasil enfeitando todo o lugar. A época de Copa do Mundo era sagrada para qualquer estabelecimento comercial. notou o cinza se formando em seus olhos e tratou de otimizar tudo, chamando a atenção dos funcionários para que agilizassem o check in e levassem as malas para o quarto o mais rápido possível, sem tietar . Assim que tudo terminou e se instalaram na suíte, deixou suas malas em qualquer lugar e se sentou na beirada da cama de casal que ficava no canto do grande quarto. encostou-se à soleira da porta e observou o namorado fechar a cara, lembrando do seu grande problema interno.
  – E aí? – Perguntou, desinteressada.
  – Ontem foi o pior dia da minha vida. – Ele lhe sussurrou, triste. Os olhos agora estavam baixos novamente e o desânimo estava de volta. – Eu sou o pior jogador do mundo.
  – Cala essa boca, pirralho. – Ela retrucou, brincalhona. – O pior jogador do mundo não ganharia o título de melhor do Brasileirão por três anos seguidos. – Ele sorriu em automático com o canto da boca. Ela tinha razão, era dono de um talento que merecia reconhecimento, mas o rapaz não conseguia acreditar nele agora. – Vou dar um jeito nisso agora mesmo.
  Sua prima andou até ele tirando a blusa sem cerimônia. O empurrou na cama e bateu as costas nos lençóis, rindo.
  – O que você está fazendo? – Ele indagou, entre risadas quando puxava sua blusa com os dentes.
  – Resolvendo seus problemas do meu jeito. – Montou sobre ele, com uma expressão de vitoriosa. – Se ontem foi o pior dia da sua vida, nada mais justo que hoje ser o melhor.
  E aí lembrou como podia ser deliciosa a “generosidade” de sua namorada quando ele estava pra baixo.

  Sentado na cama, ele assistia a televisão num volume bem baixo naquele começo de madrugada. O Corujão do Esporte passava na Globo e é claro que estavam falando do jogo do dia anterior. dormia ao seu lado, exausta de um dia inteiro tentando fazer o craque se esquecer do acontecido. Era maravilhoso estar com ela, mas não dava pra simplesmente apagar a realidade com sexo. No programa de esportes da noite, Tiago Leifert e Alex Escobar conversavam com a repórter esportiva Fernanda Gentil sobre o jogo. Não demorou até que o nome de entrasse na discussão. Muito foi dito, coisas boas e ruins, mas ele só prestou atenção nas ruins. Em como falavam da sua postura pouco imponente de capitão, de como ele não tinha o controle da zaga, de como o rapaz poderia sim fazer parte do grupo de grandes culpados pela derrota épica. assistia em silêncio, prestando bastante atenção, como se ver aquilo fosse mudar alguma coisa ou pelo menos redimi-lo. Quando começaram a mostrar partes do jogo e dizer novamente porque estava tudo errado dentro da zaga, a televisão se desligou do nada.
   tinha acordado e o encarava agora no escuro. Apenas a luz da lua os cobria, mas podia ver sua expressão indignada coberta do prateado do astro noturno.
  – O que você pensa que está fazendo? – Ela exclamou, em tom de indignação.
  – Só queria saber o que estavam falando de mim por aí.
  – Pois eu te trouxe pra esse lugar no fim do mundo justamente pra evitar isso. – Ela levantou, acendendo a luz. Estranhamente, se desconcentrou da bronca dela e passou a prestar atenção em sua bunda protegida apenas por uma calcinha fio dental. – Você está sob minha custódia, então as coisas serão do meu jeito.
  A garota abriu o armário e colocou o controle remoto lá, no alto de uma prateleira. Depois pegou o celular dele de cima da mesinha do quarto e fez o mesmo. Fechou a porta do armário e encarou um que ria de suas atitudes.
  – Você não acha que eu vou pegar quando você for tomar banho ou qualquer outra coisa?
  Ela ficou em silêncio por um segundo, se sentindo desafiada.
  – Você tem razão. – Foi até sua mochila e a abriu, procurando algo. – Você pode pegar o controle e ligar a TV quando eu não estiver ao seu lado. – Retirou uma tesourinha de cortar unhas de uma nécessaire e andou até a televisão, parando ao seu lado. – Então acho que vou ter que dar meu jeito nisso também.
  Num movimento rápido para que não tivesse tempo de se arrepender, ela se abaixou e cortou o fio da tomada da televisão. não conseguiu conter as gargalhadas.
  – Você é louca, ! Eles vão cobrar bem caro por isso.
  A garota se pegou rindo de si mesma, porque devia ser mesmo louca.
  – Por isso é bom ter um namorado rico. – Gargalharam juntos da atitude insana da jovem. – Agora, sobre você pegar o celular quando eu estiver no banho... – Deixou a tesourinha e o resto do fio da TV caírem no chão e foi se aproximando da cama onde o craque a esperava. – Não sei como controlar isso. Não dá pra cortar seu celular ao meio. – Foi ajoelhada na cama engatinhando até seu namorado, que a esperava ansioso. – Acho que o único jeito vai ser nós dois tomarmos todos os banhos juntos. – Encostou seus narizes, praticamente montada sobre o rapaz. Quando ela queria, sabia transpirar sensualidade com seu tom de voz baixo e rouco. se aproximou pronto para beijá-la, mas a garota se esquivou do beijo num gesto impiedoso. – E que tal tomarmos o primeiro agora?
  Correu até o banheiro da suíte com um sorriso provocador. , é lógico, foi imediatamente atrás.

   acordou cedo no domingo, por volta das oito da manhã. O corpo de um atleta está preparado para lhe tirar o sono bem cedo, não importa que dia da semana seja. Tentou acordar , mas seu beijo matinal foi respondido com uma travesseirada na cara. Sendo assim, se levantou e pegou um roupão. Decidiu passar a manhã na sauna, mas se arrependeu nos primeiros três minutos lá dentro. Havia vários outros homens e aparentemente todos eram técnicos de futebol, porque pareciam saber muito bem qual era o problema da seleção brasileira nessa Copa. Depois de ouvir muitos palpites – alguns bem bobos – e respondê-los monossilabicamente em nome da educação, ele resolveu deixar o lugar. Passou pela academia e viu que também tinha gente, então não entrou lá. Depois foi na recepção e pediu por uma hidromassagem reservada pra que ele pudesse ficar sozinho. Os funcionários o instalaram na banheira e o deixaram sozinho no cantinho tropical da pousada, cercado por plantas, areia e pedras artificiais. fechou os olhos enquanto toda aquela água borbulhava ao seu redor. Em sua mente, apenas os momentos da derrota de sexta-feira reprisavam. Agora ele via com mais clareza onde errou, onde podia ter sido um capitão mais competente. Talvez se tivesse pensado mais, estudado melhor a seleção rival, talvez as coisas fossem diferentes. Se ele fosse menos negligente podia ser que tivessem chance. Podia ser que ganhassem a Copa. Afundou o rosto na água por um momento, ficando completamente submerso até que lhe faltou o ar e voltou a emergir. Encontrou paz na sensação de se isolar na água e esquecer do mundo e repetiu o movimento três ou quatro vezes. Toda vez que emergia novamente, sentia o peso do mundo em suas costas. Mas já que tinha mesmo que viver naquele mundo, ao menos que o encarasse.
  Saiu da hidromassagem alguns minutos depois, se sentindo nada relaxado. Vestiu seu roupão e botou uma toalha no pescoço por causa do cabelo que estava pingando. Voltou pra seu quarto, viver sua depressão com a garota que ele amava.
  Ao entrar na suíte, ouviu a voz dela falando com alguém num tom de pena. Chegou até o quarto intrigado e observou pela fresta da porta que ela estava sentada no chão, com as costas no armário, falando no celular dele.
  – Eu nunca o vi tão triste, sério. Ele está muito mal, tia. – Sua voz soava preocupada demais. – Ele tá fingindo que está tudo bem, mas conheço o . Queria conseguir fazer ele se abrir, mas não sou boa nisso. Só sou boa em fazer piadas e dar de quatro. – riu discretamente. Ela era mesmo boa nisso. Pôde ouvir a pessoa do outro lado da linha gritando com sua namorada e ele já sabia quem era. – Tá, desculpa. Mas é verdade que eu to mesmo preocupada. Nunca vi o assim. To até com medo dele ficar assim... Pra sempre.
  O rapaz se afastou da porta do quarto e foi esperar na sala, devolvendo a privacidade de . Sentou-se no sofá e ficou pensando no que a namorada disse. Na verdade ela não era a única com medo de que aquela sensação fosse permanente. Será que era o fim do craque? De fato, ele não tinha mais vontade de entrar em campo, porque achava que toda vez iria se lembrar da grande tragédia na Copa. Aquele jogo o seguiria por toda a vida. Nunca deixaria de ser o capitão da derrota épica da seleção, mesmo se goleasse a Argentina na final das próximas três Copas do Mundo. Sempre comentariam, sempre lembrariam, sempre comparariam. Isso se ele chegasse a participar de outra Copa, porque poderia muito bem não ser convocado nunca mais. Seu nome podia se tornar um peso no currículo da CBF. O rapaz respirou fundo e tentou se concentrar no sol que fazia do lado de fora, porque nem queria imaginar como seria voltar para seu time.
   saiu do quarto e paralisou no meio da sala quando o viu sentado no sofá. Logo antes ele tinha ouvido a despedida e a porta do armário se fechando, provavelmente com o telefone dentro. A garota o olhava parecendo meio desconfiada de que ele tivesse ouvido a ligação.
  – Era a minha mãe? – Perguntou, casualmente.
  – Sim. – Ela respondeu, meio envergonhada. – Pediu pra você ligar pra ela depois. – Ficaram em um silêncio constrangedor por alguns momentos até que decidiu continuar. – Você tá bem?
  – Claro que não. – Retirou a toalha dos ombros e passou a mão nos cabelos, fechando os olhos e deixando que muitos sentimentos viessem à tona. – Mas você já sabe disso, né?
   queria se aproximar e fazer com que abrisse o coração, mas não sabia como. Ciente de que precisava de ajuda, o rapaz resolveu facilitar as coisas para ela. Não seria difícil, bastava que soltasse o que vinha guardando. Respirando fundo, ele deixou o sofrimento sair em forma de lágrimas e soluços.
  A jovem se ajoelhou na sua frente, pegando uma de suas mãos e a apertando. Era tudo o que sabia fazer pra acalmá-lo no momento.
  – Fica calmo, . Também não é o fim do mundo.
  – Não é o fim do mundo porque não é com você! – Ele finalmente abriu os olhos para encontrar uma jovem cheia de pena na sua frente. Odiava que tivessem pena dele. – Você não viu o que aconteceu? Não tava no jogo? Eu fui uma vergonha! Eu acabei com as nossas chances, envergonhei meu povo e virei a piada do mundial! – Ele gritava chorando e abrindo os braços, enquanto a namorada apenas observava em silêncio. – Agora todo mundo vai lembrar do meu nome como o capitão da seleção fracassada! Nada pode ser pior que isso! É o fim do mundo e eu que causei! Você não tem noção do que eu to sentindo agora e...
  Seus gritos foram interrompidos por um tapa muito bem dado no meio da cara. tinha a mão bem pesada. ficou em silêncio no momento em que a mão de sua namorada séria e impaciente pesou na sua cara.
  – Você ainda é um pirralho mesmo. Percebeu quantas vezes repetiu a palavra “eu”? – a olhou de maneira estranha, não entendendo o motivo da repreensão. – Não existe “eu” em “time”, Sr. Capitão da seleção fracassada. – Ele encarou o chão, envergonhado de sua postura pela primeira vez. Passou uma mão no local onde bateu e que já estava se tornando vermelho. – Já passou da hora de parar com essa palhaçada e começar a agir como um adulto. Você não vai morrer e sua carreira não vai acabar por causa disso. Seleções levam goleada em todas as Copas, até com muito mais gols do que vocês receberam dessa vez.
  – Mas isso nunca tinha acontecido com o Brasil.
  – Acabou de acontecer! – Ela gritou, expressando sua opinião de que todo aquele drama era desnecessário. – Pelo amor de Deus, , eu já te vi perder muitos jogos, mas é a primeira vez que te vejo agir como um perdedor. Esse não é o que eu conheço desde os dois anos de idade. Então me avise quando ele voltar. – Ela se levantou e colocou as mãos na cintura, se dirigindo ao quarto da suíte. – Estarei esperando por ele na cama.
   deixou a sala com um sorrisinho malicioso, como se não tivesse acabado de dar uma baita bronca em . O rapaz riu com ela, percebendo que a garota não podia estar mais certa. Agora se sentia melhor, depois de desabafar tudo o que tinha dentro de si e de ouvir tudo o que guardava. Levantou-se e deixou o roupão no chão, indo pro quarto decidido a não pensar mais na derrota até a hora de ir embora. A palavra de ordem do momento era de aproveitar uma coisa em que ele sabia que era boa.

V

Até mesmo as estrelas, elas queimam
Algumas ainda caem na terra
Nós temos muito que aprender
Deus sabe que valemos a pena.
I Won't Give Up – Jason Mraz

  A saleta escondida no porão do prédio principal da granja Comary estava lotada de novo, como geralmente ficava quase todas as noites enquanto os jogadores estavam hospedados lá. No local minúsculo, a seleção brasileira de futebol se espremia para que coubessem todos. Tinha se tornado um costume deles, desde a primeira semana, se encontrar naquela sala após o toque de recolher para conversarem sobre a difícil pressão que é jogar uma Copa do Mundo em casa. Ali decidiram juntos que negariam uma visita à psicóloga da CBF, ali se reuniram com medo de enfrentar a seleção chilena, ali choraram juntos quando o principal craque da seleção foi tirado da Copa por causa de uma grave falta que lhe feriu a coluna. E agora lá estava o time principal junto do reserva se olhando na sala pouco iluminada, todos com semblante preocupado. Laterais, zagueiros, goleiros e atacantes esperavam ansiosamente pela chegada do último colega para começarem a conversa que podia ser a mais importante de suas vidas. A porta velha de madeira rangeu e se abriu, trazendo um vento gelado. O artilheiro chegou para integrar o time.
  Os vinte e três jogadores e amigos ficaram em silêncio por um segundo, até que o goleiro principal tomou coragem, respirou fundo e abriu os trabalhos.
  – Agora que está todo mundo aqui, já podemos começar. – Ninguém mais tomou coragem para dizer nada, então ele continuou. Aquele era um raro momento que tinha para desabafar, estava decidido a colocar todas as incertezas de seu coração para fora. – Me desculpa por dizer isso, mas tenho quase certeza absoluta de que não vamos passar pela Alemanha.
  Todos suspiraram em frustração, pois pensavam a mesma coisa. O grande time gastou cinco anos de seleção treinando para enfrentar o Brasil. Não seria nada fácil vencê-los no jogo em dois dias.
  – Quase? – Um dos rapazes, aquele que costumava ser o mais brincalhão, tentou quebrar o gelo em um tom de graça, mas foi em vão. – Eu sei que não vamos passar. Não precisamos esperar dois dias para saber que já estamos fora.
  Silêncio os rondou, pois sabiam que ele estava certo. Cada um pensava em seus problemas pessoais e é claro que só sabia pensar nela. E em como queria ter as mãos de para apertar naquele momento.
  – Como é que a gente consegue a proeza de perder em casa? – O rapaz mais bem vestido de todos, que sempre usava algo inusitado, levantou a voz com sua revolta. – O país luta por uma Copa aqui há sessenta anos e a gente vem e estraga tudo?
  Era engraçado como eles já se referiam ao jogo futuro como uma derrota já existente.
  – Eu sei como a gente consegue. Com um futebol de merda. – Um dos rapazes que foi o mais criticado de toda a Copa por ter tido pouquíssima participação nos jogos se expressou. Ele também acreditava que estava indo mal, assim como todo o seu time. – Somos bons, mas não para uma Copa. Pelo menos, não essa Copa.
  – Mas foi um ano! Uma droga de um ano inteiro treinando para essa merda! – Repreendido por seu colega entendido de moda, o rapaz pouco participativo nos jogos se calou. – Aquela vitória na Copa das Confederações foi pura sorte então?
  – Acontece que ninguém realmente liga para a Copa das Confederações. – O goleiro principal e o mais experiente do grupo voltou à conversa. – Eles não mandaram os grandes para cá ano passado, mas estão todos aqui esse ano. E vocês viram o inferno que foi passar por eles. Depois de amanhã será pior ainda.
  Todos baixaram a cabeça, imaginando que tipo de goleada levariam da seleção alemã. Sabiam que podia ser vergonhoso.
  De repente se ouviu um choro sendo abafado e todos voltaram sua cabeça a ele. Um dos mais novos em questão de vestir a camisa verde e amarela era o mesmo que já tinha salvado o time duas vezes nessa Copa e que era considerado o zagueiro do mundial. O rapaz chorava com a cabeça baixa, começando a falar palavras emboladas por seus soluços de tristeza e desapontamento.
  – Não acredito que a gente vai decepcionar o nosso povo. – Ele era um dos poucos que via tudo por esse lado. Para esse jovem, futebol não era só um emprego. Era uma chance de fazer orgulho ao seu país, de fazer a galera gritar. Ele se sentia extremamente destruído por saber que ia deixar seu povo mal. – E não acredito que o nosso cara não tá mais aqui. – Falou, pensando no colega que era a promessa do time desde sempre e que agora estava eliminado graças a um lance covarde de um jogador adversário. – Talvez com ele a gente tivesse chance de...
  – Nem com ele, cara. – O goleiro interrompeu, sendo sincero. – A verdade é que a Alemanha está bem acima do nosso nível.
  Lembraram-se da tarde daquele mesmo dia, quando se uniram na sala de cinema da granja junto da comissão técnica para estudar o time adversário. Ouviram atentamente a instruções e comentários do técnico, mesmo sabendo que aquilo não ia dar em nada. Cada vídeo de jogos da Alemanha mostrava um futebol feito com a maestria de uma equipe que não é feita de astros e sim de um time de verdade.
  – E agora? – O garoto sentimental que amava a camisa verde e amarela perguntou, ainda chorando. – O que a gente faz? Volta para casa e perde de W.O.?
  – De jeito nenhum! – O capitão do time gritou, exaltado. Era um rapaz jovem, mas carrancudo e sempre sério, vivenciando sua segunda Copa. – Pelo menos a honra a gente ainda tem. A gente vai lá e faz o que puder. Mesmo que seja vergonhoso, a gente vai. Mesmo que o hino seja o ponto alto da nossa participação no jogo, nós vamos cantá-lo com toda a garganta. Devemos isso à nossa torcida.
  Todos aceitaram a palavra final do capitão, que era o responsável por dar um tapa na cara do time sempre que necessário. Levantaram-se, prontos para sair. Antes que a reunião se desse por encerrada, o goleiro tomou a palavra mais uma vez.
  – Eu só queria dizer que, mesmo que dê merda, ainda somos um time de jogadores muito bons e de grandes amigos. – Ele disse, procurando os olhos de cada um de seus vinte e dois colegas para ver bem no fundo deles. – Apesar de algumas exceções, somos uma seleção nova que têm muito que aprender. Se até os grandes como a Itália e a França se ferraram, por que não nós? – Todos riram timidamente de sua piada. – Mas o que acontecer no próximo jogo, não faz de nós jogadores ruins. Deus sabe que valemos a pena e quem botou nosso nome na camisa do Brasil também sabe.
  Encararam-se, dessa vez com menos tensão nos olhos. O zagueiro sensível se aproximou passando as costas das mãos nos olhos.
  – E quando a torcida chorar e gritar? O que vamos fazer quando o povo brasileiro fechar os olhos para rezar pedindo por uma vitória que nunca vamos poder dar para eles?
  Cada jogador abaixou a cabeça, com medo da chegada desse momento.
  – Nós vamos levantar a cabeça e agradecer o apoio deles. – Respondeu o goleiro, pensando na derrota iminente contra a Alemanha. – E quando eles nos vaiarem, vamos aplaudi-los. É o mínimo que a nossa torcida merece.
  O grupo deixou a saleta em silêncio, para não acordarem ninguém. saiu de cabeça baixa, ainda triste com o que provavelmente ia acontecer ao seu time.
  – Relaxa, garoto. – O capitão passou um braço por seus ombros, já mais bem humorado. – Podia ser pior. Podia ser a Argentina.
  – Na final. – Disparou o goleiro.
  – No Maracanã. – Continuou o jovem capitão. – É só a sua primeira Copa.
  O rapaz sorriu de boca fechada, começando a se conformar. Com aqueles jogadores mais experientes, tinha acabado de aprender uma nova lição. A derrota podia doer e a vitória podia subir à cabeça, mas a camaradagem deveria existir em qualquer uma das situações. Sem querer, a futura seleção eliminada de uma Copa em casa tinha acabado de ensinar uma valiosa lição ao seu mais novo craque.

Fim



Comentários da autora


Não sei se perceberam, mas fiz o possível para tomar cuidado na hora de citar nomes de jogadores em todos os contos e decidi não citar definitivamente nenhum no último, porque não sei com quem vocês estão lendo. Por isso, em alguns momentos, as coisas ficam bem pouco claras na descrição dos jogadores, mas fiz isso pensando nas leitoras! Se quiserem saber quem é quem, basta me chamar em qualquer rede social.