Cosmic Love

Escrito por Lyra M. | Revisado por Luba

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Capítulo único

Too far away to feel you
But I can't forget your skin
Wonder what you're up to
What state of mind you're in

  Dentre todos os mistérios conhecidos – ou não – pelo homem, alguns tipos em especial podem ser observados: alguns nunca são solucionados, enquanto outros são tão óbvios que a denominação “mistério” nem parece adequada. Alguns imploram para serem escritos, enquanto outros, de tão fantásticos, não parecem caber dentro de palavras.
   acabara de ser protagonista desse último tipo de mistério. Seu desafio, agora, era vencer os obstáculos e encaixá-lo dentro de uma folha de papel. Como? Ele não fazia ideia. Mas Peggy valia a tentativa.
  Ele ajeitou o gorro na cabeça e, logo após, enfiou as mãos nos bolsos da calça cor de mostarda, conforme atravessava a rua. Eram poucas as vitrines que continuavam iluminadas mesmo em plena madrugada, e esse era um detalhe que lhe passava despercebido antes, mas agora era tão fácil de perceber quanto as estrelas em um céu noturno limpo de nuvens.
  Era parte do efeito que Peggy tivera nele: agora era fácil reparar na beleza das pequenas coisas, e tudo que se relacionava ao céu ou às estrelas lhe chamava a atenção, porque o lembrava dela.
  Após andar mais alguns metros, ele parou em frente a uma pequena livraria, recuada, estreita e com a vitrine escura, abarrotada de livros – um espaço simultaneamente caótico e aconchegante, tão familiar quanto o conceito de “casa”. Ele destrancou a porta e entrou, tornando a fechá-la atrás de si, e se dirigiu a um balcão no fundo da loja, com alguns livros como mostruário e uma luminária antiga, que ele acendeu.
  Ele pousou em cima do balcão uma sacola com donuts, que havia acabado de comprar em uma lanchonete ali perto – virara parte de sua rotina, mais uma coisa que havia mudado. Assim que se ajeitou à mesa, retirou um maço de folhas em branco de uma gaveta e respirou fundo. Aquela seria uma noite longa, e ele tinha muito a escrever.
  Era estranho pensar isso, sabendo que ele nunca escrevera nem uma carta sequer, quanto mais um livro, mas era melhor do que ficar remoendo os pensamentos sobre Peggy; mesmo com ela tão longe, ele poderia narrar com precisão de detalhes cada momento passado ao lado dela, e agora se perguntava a todo instante onde e como ela estava, relembrando o cabelo negro como o céu e a pele pálida como a luz do luar.
  Por Deus, aquele não era ele! Mas então, se estava tendo atitudes tão fora de seu normal, qual seria o problema de escrever sua história? sentia que Peggy era mágica, então, nada mais justo do que levar um pouco dessa mágica para o resto do mundo.
  E era isso que ele faria, começando naquele momento.

+++

The stars, the moon
They have all been blown out
You left me in the dark
No dawn, no day
I'm always in this twilight
In the shadow of your heart

And in the dark
I can hear your heartbeat
I tried to find the sound
But then it stopped
And I was in the darkness
So darkness I became

   detestava café, mas era a coisa mais fácil de se preparar. Ele nunca fora muito bom cozinhando, e a livraria de seu avô não era muito espaçosa, então a melhor opção era uma cafeteira, acompanhada de alguns sanduíches e um esforço para conseguir beber o café que nunca ficava no ponto – ora muito doce, ora muito amargo.
  Aliás, havia apenas uma coisa que ele detestava mais que café: a associação clássica e clichê que as pessoas faziam entre café e livros. Ele, como alguém que trabalhava durante a noite em uma biblioteca por pura obrigação, podia dizer que não era poético e intelectual. Era amargo e solitário, ainda mais quando não se tinha o hábito da leitura ou escrita, e muito menos alguém para conversar. Noite após noite, era apenas ele e os livros.
  Pouquíssimas pessoas sabiam ou podiam imaginar que uma biblioteca – que, aliás, também funcionava como livraria – funcionasse 24 horas por dia, mas aquela funcionava. Ele pegava o turno da noite desde quando tinha idade para começar a trabalhar, e não tinha planos de mudar aquilo. Achava idiotice manter o comércio aberto tanto tempo, mas a loja era de seu avô, e ele insistia. Não queria deixá-la sozinha, pois tinha medo de que alguém a roubasse e, em suas palavras, “Nunca se sabe quando alguém precisará de um livro. Palavras são uma arma poderosa”. Assim sendo, assumia o trabalho durante a noite. Era mais calmo, e ele nem precisava trabalhar de fato. Era, basicamente, o único lado positivo daquele emprego, mas ele não ousaria reclamar.
  Foi então que, como se apenas para contradizê-lo, um barulho chamou a atenção de , vindo do lado de fora. A biblioteca não ficava em uma rua movimentada, de modo que, mesmo durante os fins de semana, não era comum que pessoas voltando de festas passassem por ali, fazendo algazarra – quem diria em uma terça-feira pacata como aquela.
  Demorou alguns segundos para que ele decidisse o que fazer; poderia não ser nada, poderia ser um assalto ou coisa parecida, e a rua estaria deserta. Como não era de se surpreender, aquela era a única loja que funcionava durante a noite; a lanchonete ou a boate mais próximas ficavam a algumas ruas de distância. O problema residia todo na curiosidade dele, coçando no fundo de sua mente como um acontecimento que não conseguimos tampouco lembrar ou esquecer. Por fim, ele afastou a cadeira e levantou-se, decidido a descobrir o que era. Quem gostaria de roubar livros, afinal?
  O vento noturno bateu em seu rosto assim que ele pôs os pés para fora da loja, olhando para os dois lados e checando se havia algo fora do normal. Apenas uma coisa lhe chamou a atenção: uma garota. Ela usava uma calça jeans com botas até o joelho, uma blusa preta com decote canoa, que deixava seus ombros de fora, e parecia totalmente deslocada. aproximou-se devagar, sem saber bem o que fazer ou como agir. Nunca a vira antes, e ela nem mesmo parecia machucada, mas era quase como se alguma força como a gravidade o puxasse naquela direção.
  — Hey! — ele chamou de súbito e ela virou-se rápido, enfim reparando em sua presença. Ela cambaleou um pouco ao se virar, e a postura ligeiramente curva o fez se perguntar se ela não havia caído e estava acabando de se levantar.
  A moça recuou alguns passos, trôpega, embora não parecesse bêbada. Desorientada, apenas. Ela o encarou com desconfiança, mas não se afastou mais, o que o encorajou a se aproximar mais alguns passos, devagar e com cuidado.
  — Você está bem? — ele perguntou, franzindo o cenho.
  — Sim. — A resposta curta o deixou sem graça por um momento, mas ele logo se recuperou, falando:
  — Não vou te fazer mal, não precisa ficar na defensiva. Mas você devia mesmo tomar mais cuidado, está muito tarde. — Ele fez uma pausa para refletir, antes de, por fim, se decidir por completar: — E pode ser só impressão minha, mas tem algo de estranho nessa noite. Parece mais escura que o normal.
  Com essa última frase, a moça virou o rosto para ele, intrigada. sentiu seu olhar, analisando-o da cabeça aos pés, e a vergonha o tomou, fazendo-o se arrepender de ter dito qualquer coisa.
  Mas, aliás, reparando bem, não tinha certeza se a noite parecia mais escura que o de costume ou se ela que parecia brilhar. Ele não acreditava no sobrenatural, mas precisava confessar: estava mais inclinado para a segunda opção. O cabelo da moça era longo e negro como o céu acima deles, a ponto de quase parecer azulado, e a pele era tão pálida quanto a luz da lua, perolada. Era impossível dizer a idade dela apenas por seu rosto, atemporal; poderia ter 17 anos ou quase 30, ele não saberia dizer. Havia algo de angelical em seus traços, apesar de tudo, especialmente nos olhos azuis, grandes, e no nariz arrebitado.
  — Qual o seu nome? — ele perguntou, tentando quebrar o gelo. Ela o estudou com cuidado, parecendo ponderar todas as possibilidades, antes de enfim responder:
  — Peggy.
  — Prazer, Peggy. Meu nome é . Você tem certeza de que está bem? — Ela assentiu de novo, insegura. — Olha, sei que nem nos conhecemos, mas só quero ajudar. Se quiser um tempo para se recuperar de seja lá o que for, eu trabalho naquela loja ali, e você pode entrar e descansar um pouco.
  Ela o avaliou mais um pouco, mas parecia mais calma. Assim, assentiu lentamente, e o seguiu conforme ele voltava para a biblioteca. De repente, a noite parecia, no mínimo, mais curiosa.
  — Não tem muito espaço, mas pode ficar a vontade — ele falou após fechar a porta novamente. Peggy andava por entre as estantes, enquanto ele se dirigiu de novo para a escrivaninha no fundo, onde seu café – agora frio – esperava.
  — O que são? — Ela apontou para uma estante, e olhou sem interesse.
  — Esses são os livros de astronomia. — Ele explicou. — Ninguém tem interesse nesses porque são muito antigos, mas são do meu avô, e ele os adora. Diz que tem muita informação interessante.
  — Aposto que têm — Peggy comentou sozinha, com um sorriso pequeno nos lábios. — Posso pegar um?
  — Bem, essa é a intenção de uma biblioteca, não é? Sinta-se em casa — o rapaz comentou, divertido. Ela escolheu um volume grosso, sobre constelações, e se sentou em uma poltrona, folheando as páginas com interesse.

  O tempo passou surpreendentemente rápido, e não conseguiu mais se conter ao ver a moça se levantar pela quinta vez, repondo um livro na prateleira e pegando outro no lugar. Não os lia inteiros, claro, mas folheava tudo com um misto de diversão e desinteresse.
  — Nada interessante? — ele perguntou, depois de pigarrear.
  — Tudo é interessante, mas depende do ponto de vista, eu acho.
   não entendeu a resposta, mas continuou mesmo assim:
  — Você entende de astronomia? Estudou o assunto?
  — Sim, bastante. Mas gosto de ler assim mesmo.
  A resposta vaga o deixou ainda mais confuso do que antes, mas a mudança de cenário era boa; mesmo a simples companhia de alguém era o suficiente para quebrar a rotina, e ele se contentou com o silêncio enquanto ela voltava a folhear as páginas de um dos livros favoritos de seu avô.

  As horas passaram com rapidez, e a voz de Peggy quebrou o silêncio do nada, sobressaltando ; ele quase havia se esquecido da presença dela, que havia se levantado:
  — É melhor eu ir — ela falou, e só então ele reparou na hora: estava quase amanhecendo.
  — Sem problemas. Está tudo bem? — ele perguntou de novo, levantando-se para acompanhá-la até a porta.
  — Sim. Obrigada pelos livros. — Peggy sorriu e, em meio à noite que parecia mais escura que o normal, o sorriso chegava até seus olhos, brilhantes como estrelas.
   gostaria de ter respondido algo, mas não soube o quê. E com a ironia de estar em uma biblioteca e, ainda assim, não ter nenhuma palavra, ele apenas ficou lá, em silêncio, vendo-a ir embora.

+++

  As três batidas leves na porta não pegaram de surpresa. Já era madrugada, mas a rotina já havia se estabelecido, e ao menos daquela rotina ele gostava. Ele levantou-se e seguiu até a porta de entrada da biblioteca-livraria, para abri-la.
  Fazia duas semanas desde que ele conhecera Peggy, e desde então eles se viam quase todos os dias. Ela sempre aparecia de noite, e ficava até quase de manhã, lendo tudo o que podia.
  Eles não conversavam muito, e nada além daquilo acontecia, mas não se importava. Era uma amizade estranha: as conversas, embora poucas, eram leves e fáceis, e a presença dela tinha um quê de tranquilizadora, como olhar para o céu noturno em uma noite estrelada.
  — Você não cansa de ler? — ele perguntou depois de algum tempo.
  — Não. Gosto de ver os pontos de vista das pessoas — ela retrucou com um sorriso pequeno, e riu baixo.
  — Bem, fique aí, se quiser. Vou comprar um refrigerante em uma lanchonete aqui perto.
  Peggy levantou os olhos, interessada. Gostava dos livros, mas a ideia de conhecer mais um pedacinho daquela cidade não parecia ruim.
  — Posso ir? — ela perguntou e, olhando para os olhos azuis e brilhantes dela, teve a impressão de estar falando com uma criança, e foi com um sorriso no rosto que ele respondeu:
  — Claro.
  A pele dela era tão clara que parecia cintilar, e isso era evidenciado quando em comparação à pele dele, ou à noite – era como se houvesse menos estrelas no céu, deixando tudo um pouco mais escuro, mas Peggy olhava tudo com tanto entusiasmo que não parecia perceber isso. Ela reparava nos detalhes, em cada vitrine que permanecia iluminada de noite, perguntando o que cada loja vendia; ela reparava em pequenas flores que por acaso brotavam entre os paralelepípedos na rua, em gatos passando correndo para dentro de becos, e sorria para desconhecidos andando a esmo. Era como se visse um mundo completamente diferente do de .
  Ele a puxou delicadamente pelo cotovelo quando chegaram à lanchonete, e ele se dirigiu direto para o balcão para fazer o pedido, enquanto ela olhava alguns salgados, doces e sanduíches exibidos na vitrine expositora do balcão.
  — O que é isso? — Peggy perguntou com as sobrancelhas franzidas, apontando para um dos pratos.
  — Donuts, só estão em um formato diferente — explicou, ainda com a atenção voltada para o menu. — Espera, você nunca comeu?
  — Não — Peggy respondeu, simples.
  — De onde você veio?
  — Longe — ela respondeu, divertida. —, muito longe.
  Ele pediu apenas um refrigerante, por fim, um café e dois dos donuts que Peggy apontara: em formato de estrela, com cobertura de chocolate e alguns confeitos coloridos por cima.
  Não havia muitas coisas das quais se orgulhava na vida. Seu jeito de encarar as coisas era com uma resignação dolorosa; ele aceitava o que vinha e lidava com isso. Assim, tudo virava rotina com assustadora facilidade, e isso só mudava quando outra casualidade vinha, trazendo consigo um novo hábito ao qual se adaptar. Ironicamente, justo esse era um dos poucos motivos de orgulho: de tanto lidar com rotinas, ele ficara muito bom em identificar quando uma nova se aproximava.
  Naquela noite, caminhando com Peggy de volta à livraria, apreciando a vista ao redor e comendo donuts em formato de estrela, ele podia afirmar com certeza que aquilo se tornaria uma rotina. Uma da qual ele gostaria muito.

+++

  A cafeteira da biblioteca-livraria quase nunca era usada, tamanho o desgosto que sentia por café – ele bebia apenas quando o sono era quase insuportável –, mas agora era ligada todos os dias. Acontece que Peggy gostara muito da bebida quente, desde que fosse bem doce, e agora mais esse item fora adicionado à rotina deles.
  Era uma rotina engraçada, aliás. Nem sempre Peggy aparecia, mas quando o fazia, era como se o tempo não passasse, e ambos estivessem presos em um globo de neve: os dois comendo donuts em formato de estrela, ela bebendo café e folheando algum livro, enquanto ele arrumava o que quer que precisasse ser arrumado na loja. Uma situação simples, mas que trazia um quê de tranquilidade sem o menor traço de monotonia.
  Três meses já haviam se passado desde que eles se conheceram, e agora o Natal já estava próximo. Sob o olhar curioso de Peggy, terminava de decorar uma árvore no canto da loja, perto do balcão. Ele nunca havia gostado muito de datas festivas, mas, daquela vez, estava considerando abrir uma exceção e comprar um presente para algumas pessoas mais próximas, e para Peggy – o motivo da decisão, aliás. Talvez algum livro de astronomia, para ela.
  Havia algo de encantador nela e em todas as coisas que ela fazia. Como se, com o simples ato de assoprar o café muito quente, magia saísse de sua boca, tocando o líquido escuro e tornando-o tão mágico quanto ela; mal se reconhecia com essa imaginação tão poética, mas quase podia ver pequenas estrelas flutuando sobre a xícara, conforme ela inspirava e bebia um gole da bebida quente. E, por Deus, se a mudança que ela estava provocando nele não era motivo suficiente para ele dar um presente de Natal como agradecimento, ele não sabia o que era.
  — Você não se importa com a rotina? — perguntou de repente. — Vir aqui todos os dias, tomar café e comer os donuts em formato de estrela, ler quantos livros conseguir e falar tão pouco. Não cansa?
  — Você gosta de paradoxos? — Peggy respondeu com outra pergunta. — Eu acho engraçado como a vida humana é tão curta, e as pessoas ficam divididas entre aproveitar tudo que podem antes que acabe ou ir aos poucos, apreciando as coisas boas. Eu gosto da calmaria. O tempo não é tão efêmero quanto parece. A vida humana pode parecer tão longa quanto a de uma estrela, mas ninguém sabe disso. É um mistério.
  Aquilo o pegou de surpresa. nunca havia parado para pensar desse jeito, sua vida era uma sucessão de rotina esmagadora atrás da outra, e ele estava acostumado com a correria da cidade grande. A ideia de parar para apreciar um bom livro com uma xícara de chá ou café jamais lhe passara pela cabeça, mas as palavras de Peggy faziam parecer uma decisão bastante sábia – talvez porque ela falasse com certeza, ou tivesse algo em seus olhos que lhe passava a impressão de uma vida inteira vivida, olhos de quem nascera dez mil anos atrás e não houvesse nada no mundo que ela não soubesse demais.
  — Quem é você, Peggy? — ele perguntou com um sorriso, tentando desvendar sem que ela precisasse responder.
  — Eu sou um mistério — ela retrucou, e seus olhos não poderiam revelar uma verdade maior.

+++

  É sempre curioso reparar como o tempo é algo relativo, quase como assistir a um filme – vinte anos podem se passar para os personagens, mas não mais do que duas ou três horas para quem está assistindo. Parando para analisar, se sentia mais como espectador do que como personagem de sua própria história.
  Para ele, tudo passava rápido demais, como para um espectador, mas a verdade era que um longo tempo já havia passado. Ele se lembrava perfeitamente da ocasião em que conhecera Peggy, pois fora apenas dois dias antes do aniversário de seu avô, e agora fazia exatamente um ano desde o ocorrido.
  Era estranho pensar que tanta coisa havia acontecido desde então, e mesmo parecendo que Peggy sempre estivera em sua vida, ele ainda sabia tão pouco sobre a moça. Ela era evasiva no que dizia respeito ao seu passado, e nunca respondia as perguntas. Com o tempo, desistiu de perguntar e contentou-se com o presente e a esperança de um futuro, embora a dúvida jamais tenha ido embora.
  Naquela noite, eles dividiam um pequeno sofá de couro, normalmente usado por clientes que decidiam passar o tempo lendo ali mesmo, em vez de levar os livros para casa. A franja de Peggy caía sobre seus olhos conforme ela mantinha a cabeça abaixada, lendo, e se permitia perder em pensamentos.
  — O que você faz quando não está aqui? — questionou. A curiosidade rondava sua mente há tempos, mas ele nunca vira uma oportunidade real de perguntar, mas algo lhe dizia que aquele era o momento – e ainda que não acreditasse em destino, resolveu seguir a intuição.
  — Ando pela cidade. Vim para cá para conhecer coisas novas.
  — Essa biblioteca deixou de ser novidade há muito tempo — o rapaz retrucou, divertido.
  — Verdade, mas eu gosto da companhia.
  Era aquilo. O sinal pelo qual até então nem havia percebido que estava esperando. Ele afastou da mente algumas dúvidas que ainda restavam, e se deixou guiar pelo impulso, inclinando-se para frente e se aproximando do rosto de Peggy.
  — O que está fazendo? — ela perguntou com o cenho franzido, recuando um pouco.
  — Tentando te beijar — ele falou baixo.
  — Por quê?
  — Porque eu gosto de você, e é assim que nós demonstramos afeição por alguém.
  Peggy recuou como se tivesse levado um choque, embora sua expressão estivesse séria, e não assustada.
  — Preciso ir embora.
  Ela se levantou como se a verdade a tivesse atingido como um raio, e continuou repetindo a mesma frase para si mesma, em voz baixa. não soube o que dizer, mas continuou olhando-a, pasmo. Algo na voz dela deixara claro que não voltaria, mas ele não havia entendido o porquê. E enquanto ela se levantava apressada e saía da livraria, permaneceu sentado, tentando entender o que havia feito de errado e assimilar que outra rotina chegava ao fim.
  Ele recobrou os sentidos, por fim, e decidiu que ao menos daquela vez não permaneceria parado, como em todas as outras situações de seu passado. Daquela vez, ele agiria. Merecia uma explicação, pelo menos; não saberia viver sem entender o que acontecera.
  Assim, ele se levantou e correu em direção ao ar gelado da madrugada, tentando alcançá-la em seu caminho para sabe-se-lá-onde. Ela já estava no fim da rua, meio andando, meio correndo, e ele precisou apertar o passo para conseguir alcançá-la. Àquela altura, ela já estava em um parque no fim da quadra, frequentado por crianças durante o dia, porém melancólico e escuro durante a noite.
  — Ei! Para, para! O que aconteceu? — perguntou, parando de correr, e Peggy virou-se para ele, surpresa. Talvez nem o tivesse ouvido se aproximar, já que parecia ainda mais desolada e confusa do que quando se conheceram.
  — Eu... eu só preciso voltar para casa. Só isso. Fui longe demais — ela disse, e podia jurar ter visto algumas lágrimas se formarem nos cantos de seus olhos, tão cristalinas e brilhantes que poderiam ser pequenas estrelas.
  — Eu não entendo — ele comentou, com a voz falha, tentando segurar a mão dela, para que não se afastasse.
  — Mas também não acreditaria se eu explicasse — ela afirmou misteriosamente.
  — O que estamos fazendo aqui? — ele questionou de novo.
  — Foi aqui que eu caí. — Peggy afastou a mão das dele e recuou alguns passos.
   não se moveu, mas manteve os olhos abertos, confuso. Algumas poucas lágrimas agora escorriam pelo rosto dela, de fato tão cintilantes quanto pequenas estrelas, e ele estava simultaneamente chocado com o rumo dos acontecimentos e encantado com a beleza dela.
  — Eu só queria ver as coisas mais de perto, então decidi vir para cá, mas fiquei tempo demais. Não deveria ter demorado tanto, não deveria ter me envolvido tanto. Desculpe. Mas não se esqueça de mim, sim? Você vive em meio a livros, escreva sobre mim também — ela pediu, recuando mais um passo. — Fique aí, e feche os olhos.
  E lá estava de novo. Aquela sensação de que a noite estava mais escura, como se preparando palco para um espetáculo prestes a começar.
  Foi então que aconteceu.
  Uma luz colorida rasgou o céu, tão bela quanto uma aurora boreal e capaz de ofuscar mesmo a luz da lua e das estrelas, fazendo arregalar os olhos e se perguntar se havia mesmo alguma chance de aquilo ser real, tamanha beleza e imponência da cena. Ele se forçou a manter os olhos abertos, sem querer perder nenhum detalhe do que estava acontecendo, e conseguiu ver o momento exato em que a luz desceu em direção a terra, iluminando Peggy como se fosse um holofote, e aumentando de intensidade até que se tornou impossível continuar olhando.
   fechou os olhos, e não tinha mais como saber o que estava acontecendo, exceto com a ajuda de sua audição; o problema era que ele não escutava nada. Em meio à escuridão de seus olhos fechados, ele só conseguia ouvir uma batida longe, parecida com a de um coração, e que não lhe dava pista nenhuma do que estava acontecendo ao seu redor. Ele não sabia dizer se era o som do coração dela ou o dele próprio, e tampouco conseguia encontrar a origem do som, até que ele parou.
  Quando ele tornou a abrir os olhos, Peggy se fora, assim como a aurora boreal diminuta que havia vindo a seu encontro.
  A ausência daquela luz forte e brilhante deixava a noite parecendo ainda mais escura, mas daquela vez suspeitava que o problema pudesse ser ele. Depois de ter sido iluminado por Peggy durante tanto tempo, agora ele se sentia como se preso ao nada, sem noite e sem dia, em um crepúsculo eterno.
  Ele piscou algumas vezes, tentando ajustar a visão e se recuperar do que havia acontecido. Seus pensamentos estavam agitados, com pedaços de lembranças e informações girando como em um tornado, e ele finalmente entendeu o que havia acabado de acontecer, embora seu lado racional se recusasse a acreditar.
  Não era de se estranhar que Peggy gostasse tanto dos livros de astronomia e parecesse reluzir sob a luz da lua, com sua pele tão pálida que parecia perolada. Ela de fato reluzia. Peggy era uma estrela.
  Peggy. Pegasus.
  Arfando, olhou ao redor, checando se mais alguém vira o que acabara de acontecer, mas era tarde, e a rua estava deserta. Passando os dedos pelos cabelos crespos, ele respirou fundo, e não sabia se estava aliviado ou transtornado por estar sozinho; aquilo tudo fora tão surreal que ele começava a desconfiar da própria sanidade, embora soubesse que tudo era tão verdadeiro quanto as estrelas no céu acima – por mais irônico que essa frase soasse agora.
  Em uma espécie de transe, ele caminhou lentamente de volta à biblioteca, sem saber o que fazer. Os últimos momentos com Peggy ainda estavam frescos em sua memória, assim como o que ela havia dito. Escreva sobre mim também. Ele não fazia ideia de como conseguiria isso. Seria quase impossível colocar toda aquela história em palavras, mas ao mesmo tempo parecia injusto que apenas ele soubesse do acontecido.
  Peggy era um mistério, ela mesma havia dito isso. E aquele mistério merecia ser conhecido pelo mundo.
  Então, ainda em choque e com um sorriso pequeno no rosto, voltou para sua rotina, sabendo que estava tudo bem viver em um pouco de escuridão, desde que ainda houvesse estrelas no céu.

FIM



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