Change My Mind

Escrito por Laís Stéfani | Revisado por Bella

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  Vou contar uma história a vocês. Uma daquelas que alguns chamam de “romance”, outros de “coisa de mulherzinha” e eu, de “cômica tragédia chamada Minha Vida”.
  Sou a Lis, Lis Spencer. Sim, meu sobrenome é Spencer, e sei que não é nem um pouco bonito ou glamuroso ou digno de um romance; é um nome masculino, sim. Quando me chamam de Spencer, alguém perto de mim sempre dá uma risadinha, como se, por eu ser chamada assim automaticamente nascesse a possibilidade de um pênis aparecer no meio das minhas pernas, mas eu nunca realmente liguei para isso aí.
  Tenho dois melhores amigos, um deles se chama Harry e a outra é a Monica. Chamamos ela de Mô, mas todo mundo chama de Graxa, porque seu pai é mecânico e uma vez ela foi para o colégio com a parte de trás das calças manchada de preto, já pode imaginar o que aquilo parecia.
  Um fato curioso sobre Mô, é que ela nunca para com um namorado só, e está sempre sofrendo por “amor”. Eu, por minha vez, deixei esses problemas emocionais por conta dela, porque nunca me interessei em procurar namorados e eles também parecem nunca ter me procurado.
  Harry, bem, ele é legal, é um cara quieto, meio desligado e engraçado naturalmente. Ele trabalha na floricultura da mãe, o que faz com que sofra umas piadinhas no colégio por trabalhar com flores. Hoje em dia, nós estamos no último ano do colegial, prestes a receber a carta de algumas faculdades e descobrir como será nosso futuro. Não quero dar uma de “eu não ligo”, mas não estou pirando com isso como todo mundo parece estar - eu acho que sou a que menos me preocupo com os estudos ali no meio. Claro, eu sei que é importante e tudo mais, e não quero ser uma perdida na vida, não, de verdade. Eu só tenho essa coisa natural de “deixa os problemas para lá, que eles somem sozinhos”. Levo tudo numa boa, numa boa até demais, às vezes.
  Eu gosto de olhar as estrelas, caminhar na ponte de madeira do parque e fazer pinturas em paredes. Harry gosta de cuidar de flores, estudar sobre publicidade e dormir. Mô gosta de decorar (qualquer coisa, mesmo), pintar as unhas e beijar. E por muito tempo, nós fomos os três mosqueteiros.

Os tombos que me trouxeram ao presente

  Quando Deus me inventou, deve ter pintado um alvo bem no meio da minha testa, porque em questão de tragédias, eu tenho até Phd. Afinal, foram elas que me transformaram no que sou hoje e que me trouxeram tudo que tenho na vida.
  Foi quebrando meu braço que eu e Monica nos conhecemos, e desde então somos melhores amigas. Estávamos no ginásio, eu tinha nove anos e subi em uma árvore alta para espiar para dentro das salas de aula pela janela. Cheguei perto demais do vidro, e Monica, que estava estudando naquela sala, abriu a folha da janela, batendo em mim e eu caí. No outro dia, eu arrumei briga com ela no recreio e acabamos indo parar na direção. Depois, ela disse que podia enfeitar meu gesso se eu quisesse e eu aceitei, e depois disso a gente nunca mais se separou.
  No quesito de “quebrar partes do corpo” eu sempre ganhava. Já quebrara o pulso por bater em uma porta de vidro, já ficara dias sem conseguir levantar por ter pisado em uma casca de banana no refeitório do colégio e já apanhara de uma menina três vezes maior do que eu por ter jogado meu suco na blusa dela. Eu tinha diversas cicatrizes por ter jogado uma pedra em uma cachopa de abelhas, ter quebrado a janela da sala de aula com uma bola de bilhar e pisado nos cacos de vidro, entre outros. Eu tinha cicatrizes em cada parte do meu corpo, e era por isso que Harry sempre dizia que estava tentando manter meus dedos seguros - ele sempre cortava os espinhos de flores antes de dar a mim ou a Mô, para que não nos machucássemos.
  Sobre Harry, eu o conheci durante um incidente na rua. Estava correndo para alcançar o ônibus, e ele vindo da direção contrária com um balde de tinta fresca para pintar a fachada da floricultura de sua mãe. E... e aí, de algum jeito, meu pé acabou dentro do balde e a tinta toda em cima dele. Como esperado, depois desse dia, nos encontramos mais algumas vezes e aí ele mudou de colégio e foi parar na minha sala. No início, ele tinha medo de mim, você sabe, por eu poder machucá-lo sem querer como eu sempre fazia quando nos víamos, mas depois de alguns “façam duplas” em que nós sempre sobrávamos, acabamos nos tornando amigos.
  Minha mãe deixou a mim e ao meu pai logo depois que eu nasci, então aquela parte delicada de todas as meninas, que elas geralmente aprendem com as mães, faltou para mim.
  - Aí, você quer matar o último tempo?
  - Temos oratória, né? – Harry me olhou. - Fiz que sim com a cabeça; estávamos tomando um sol no lado de fora do ginásio enquanto o pessoal jogava queimada na educação física, geralmente éramos “acidentalmente” os primeiros a sair do jogo, que podia durar um bom tempo.
  - Tudo bem, eu acho que não vamos perder nada importante mesmo.
  - É...
  - Como vamos pegar nossos materiais?
  - Vivi disse que a Cláudia deixou a porta aberta para as mulheres da limpeza entrarem. Vamos lá, e a gente descobre! – dei de ombros.
  - Não me parece uma boa ideia.
  - Então fica aí – fiz careta e levantei, indo para dentro do prédio.
  Harry me seguiu e, como eu planejava, a porta estava aberta e ninguém nos viu pelos corredores depois que saímos. Esperamos o sinal tocar perto do portão, e nos misturamos com as garotas do reaproveitamento de estudos, que sempre saíam a essa hora. Depois de já fora do colégio, nós só precisamos pensar por um tempo em para onde ir. Decidimos ir para a lagoa do parque.
  Ao chegarmos lá, por ser um horário calmo, quase ninguém caminhava por lá com exceção de alguns cachorros com seus donos, fomos para debaixo de uma árvore perto da água e joguei minha mochila em cima dele para ir pegar umas pedrinhas e jogar na água.
  - Você sabe fazer ela picar?
  - Algumas vezes, quer ver? – ele se levantou e procurou uma pedra redonda o suficiente para jogar na água. Escolheu uma e arremessou-a; contamos juntos ela picar três vezes na água antes de afundar.
  - Aposto que consigo mais. - Peguei uma também e fiz igual a ele; a minha picou quatro vezes. Ele riu, e então pegou outra.
  - Um, dois, três, quatro... cinco! Bate essa, Lis! - procurei por uma pedrinha chata o suficiente para picar várias vezes, mas não achei nenhuma na areia da borda da lagoa, então subi em um tronco grande de árvore, que entrava água adentro, para não molhar os pés, e conseguir pegar uma dentro da água onde ainda era raso. Caminhei em cima dele e me abaixei quando achei a pedra ideal. Peguei-a e virei-a na mão algumas vezes.
  - Observe e aprenda, Styles! - Quando fui jogar a pedra, porém, algo deu errado e coloquei tanta força em meu arremesso que perdi o equilíbrio.
  Meu corpo virou e caí de costas na água, molhando toda a minha roupa mesmo sendo num lugar onde a água pegava em minha canela. Só pude ouvir a gargalhada de Harry ecoando em alto e bom som para todo mundo ouvir. Ele nem se preocupou em me ajudar, só conseguia colocar as mãos na barriga e se curvar de tanto rir de mim.
  Levantei sozinha mesmo, e saí da água me sentindo gelada e irritada. Como sempre, esses pequenos acidentes eram comigo mesma.
  - Droga, para de rir, palhaço! – reclamei e empurrei-o, abraçando meus próprios braços. – Mas que droga, Harry, é tudo culpa sua! – peguei minha mochila e fui andando; ele me seguiu ainda rindo.
  - Foi ideia de quem matar aula, para começo de assunto? E quem decidiu vir para o parque? E quem foi que começou a jogar as pedrinhas? – ele me cutucou e riu mais. Revirei os olhos, mas não pude evitar sorrir também.
  - Foi engraçado, mas não precisa tudo isso.
  - Você não viu a cena como eu vi. - Eu ri um pouco com ele, e fomos tomando o caminho de casa devagar.
  - Pega aqui o meu moletom e coloca em você, ou vai pegar uma gripe daquelas! – ele disse, tirando um moletom grosso e grande de dentro da mochila. Peguei-o sem pestanejar e coloquei, sentindo o frio diminuir na hora.
  Andamos um pouco em silêncio, enquanto ele ainda tentava se livrar da crise de riso.
  - Aí, Harry – olhei-o, e ele me olhou também. – Você não sente vontade de estar com alguém especial às vezes? -Ele olhou para frente e deu de ombros, se equilibrando em cima do pequeno cordão da calçada com seus converses brancos nos pés.   - Às vezes sim, mas aí eu olho em volta e me lembro do porquê de não estar com ninguém. As pessoas de hoje em dia são muito vazias, só se importam com futilidades e não sabem de verdade o que é amor, então, acho que não preciso ficar com alguém que não significa nada para mim. Eu posso esperar por alguém melhor, certo?
  - É, eu acho o mesmo, mas, tipo, a Mô parece se divertir bastante.
  - A Mô não vê as coisas como nós dois vemos. – deu de ombros outra vez e eu concordei com a cabeça. - Você está ansioso para pegar sua carta?
  - E quem não está, além de você? - Ri.
  - Eu acho que me esforcei bastante, e, seja o que for, vou saber fazer valer a pena.
  - Eu gosto da sua confiança, sabia? É uma das coisas que mais admiro em você. - Sorri para ele e voltei a olhar para o cordão onde eu também estava me equilibrando. Harry e eu morávamos perto um do outro, então íamos todos os dias para casa juntos.
  - Olha só – ele parou e pulou do cordão, se abaixando e pegando uma pequena flor no chão. – Essas flores se chamam Angélicas, elas têm um perfume delicioso. Chega mais! – ele me chamou e me aproximei, cheirando as pequenas florezinhas brancas em sua mão.
  - Hum, é ótimo mesmo! – olhei-o.
  - É. Elas nascem antes do final do verão e duram o outono inteiro; vão sumir outra vez em poucas semanas. - Ele olhou-a por mais um tempo e então colocou-a encaixada em minha orelha. Ri e arrumei-a ali, e então continuamos andando.
  - Elas soltam perfume durante a noite e ele dura o dia todo.
  - Você é tão nerd. – zoei, e ele me empurrou. Fomos até minha casa assim, e Harry seguiu reto logo depois que eu entrei.
  Na manhã seguinte, fiz tudo que eu sempre fazia antes de ir para o colégio: acordei com quarenta minutos de antecedência, me arrumei, tomei meu café e na hora de sair encontrei com um Harry ofegante na porta de minha casa.
  - Fazendo uma corridinha matinal? – perguntei ao fechar a porta atrás de mim, saindo em direção à casa de Mô para de lá irmos para o colégio.
  - Você precisa me ajudar, é serio.
  - O que rolou, garoto?
  - Tem uma garota lá no colégio, e ela está meio que me perseguindo.
  - Quê? – olhei-o, confusa. – Como assim, perseguindo? Quer que eu dê um susto nela?
  - Não, não, não é bem assim. Ela meio que me convidou para sair, e fica me mandando bilhetinhos.
  - Ué, e qual é o problema nisso? – ri. – Você está fugindo de garotas e ainda quer que eu te defenda? Desse jeito não vai rolar, viu, Harry? Escolhe em que time quer jogar!
  - Isso é sério, Lis.
  - Ok. Então, qual é o problema? Ela é feia?
  - Não, ela é legal, é até meio bonita, e parece ser gente boa.
  - Então não tem problema nenhum.
  - Eu não quero sair com ela. Então eu... eu disse que não podia, e quando ela perguntou porquê eu falei que tinha uma namorada.
  - Namorada?! – Monica nos encontrou no portão da sua casa no momento em que passávamos por ele. – Você com uma namorada? Desde quando? Eu te vi ontem e você ainda era você! O que você fez com ele, Elizabeth?! – Monica olhou-me, assustada.
  Harry revirou os olhos.
  - Bom dia para você também. Estou contando que uma garota do colégio quer sair comigo, mas como eu não queria inventei que tinha uma namorada.   - Olha, Harry, sei qual é o seu problema. – ela arrumou as alças da bolsa no ombro. – Tenho um amigo que também gosta de garotos, e acho que vocês dois combinam muito! Eu posso marcar um encontro em dupla com ele e você, eu e Chad.
  Soltei uma risada alta.
  - Eu não sou gay! Mas que droga, vocês.
  - Não falei nada. – levantei as mãos e os ombros.
  - Ok, então porque não quer sair com ela? - Harry pareceu meio tenso. Ele demorou um pouco para responder, e coçou a cabeça, desviando os olhos para outro lado.
  - Eu não quero... uma namorada agora, não quero isso faltando algumas semanas para o fim do ensino médio.
  - Tudo bem, isso até que é compreensível, mas um encontro não significa que vocês vão namorar. – Monica falou, e tudo que fiz foi escutar, afinal aquele era sua especialidade e não minha. – Mas tudo bem, você mentiu para a garota. Qual é o problema, então?
  - Ela quis saber quem é minha namorada.
  - E?
  - E – ele bufou, e depois pigarreou e olhou-nos. – E, que eu disse que era você. – ele empurrou meu ombro de leve e olhei para ele confusa. Se ele estava falando com Monica, por que me empurrou?
  Ah... ah! Harry estava falando comigo?
  - Eu? Euzinha? Eu? – apontei para mim mesma. – Sua namorada? Mas por que eu? Por que eu e não ela? – apontei para Monica.
  - Porque ela vive com mil caras, a menina perceberia que é mentira na hora!
  - tudo bem, não é nada demais, ela já saiu do seu pé. Olha lá, Harry, acho que os caras do coral estão de chamando. – Monica falou rápido, e empurrou Harry para perto do grupo do pessoal do coral do colégio, que sempre ficavam reunidos perto do muro da escola. Ele a olhou estranho, mas olhou para o pessoal e foi até lá meio incerto. Assim que Harry se afastou, Monica me puxou pelo colarinho da camiseta e me virou para ela.
  - O que deu em você?! – empurrei suas mãos e alisei minha blusa.
  - Harry está afim de você. - Quase engasguei com minha própria saliva e fiz um som estranho.
  - Não. – falei, com toda a certeza do mundo. – Do que você está falando? Monica, alguém te deu alguma bebida, algo forte, sei lá, você aceitou bala de estranhos hoje?
  - Sem brincadeira, Lis. – ela olhou por cima de meu ombro para onde Harry havia ido e agora batia um papo com os caras do coral. – Ele está afim de você. Eu vi, eu sei dessas coisas. - Eu conhecia Monica bem o suficiente para saber quando ela estava falando a verdade; e ela parecia falar sério mesmo, dessa vez, apesar de ser algo absurdo. Resolvi dar-lhe crédito e olhei por cima do ombro, para o garoto de cabelos cacheados e parado com as mãos nos bolsos, conversando com um garoto com seu habitual sorriso no canto dos lábios. Sempre, sempre, sempre, vi Harry como um amigo; éramos um trio, os três mosqueteiros, éramos amigos. Amigos e nada mais do que isso, e nunca me passou pela cabeça algo desse tipo. Então algo sério desse jeito vindo de Mô me deixou confusa.
  - Por que você acha isso, Monica?
  - Eu vi o jeito que ele olhou para você agorinha mesmo, e não é de hoje, mas só agora me caiu a ficha. Ele te olha de canto o tempo todo, só para ter certeza de cada reação sua a algo que ele diz. Eu sempre pensei que fosse um costume, que ele fizesse isso com todo mundo, mas não. Quando ele falou em dizer que namora com você, eu vi que ele ficou todo alerta sobre sua futura reação àquilo; e ele ficou sem graça. Eu percebo essas coisas, você sabe, Lis, eu tenho uma intuição quando se trata disso. O Harry está sim afim de você!
  - Mas eu... ah, Mô, por favor. – bati o pé no chão. – Para de viagem. Eu e Harry somos amigos, nós sempre fomos, nada mudou entre nós, ele está agindo como sempre agiu.
  - Então talvez ele sempre tenha gostado de você.
  - Para com isso! O Harry não...
  - Ah! – ela falou mais alto, dando uma breve olhada para trás de mim e soube que significava que ele estava voltando. – Eu comprei um esmalte novo cor de vinho que ficaria ótimo com o seu tom de pele! Vou achar, e hoje de noite passo ele em você.
  - Ninguém havia me chamado, mas aquele tal de Louis ali já veio perguntar se eu sabia cantar e se estava interessado em montar uma banda punk. – ele riu. – Digam aí, vocês acham que eu ficaria maneiro todo tatuado?
  - Ia ficar uma delícia – Monica ironizou. – Tenho até um esmalte preto que combina bastante com você também. Podíamos cortar o seu cabelo e te dar umas calças mais apertadas, ficaria legal. - Ele fez careta para ela, e entramos dentro dos muros do colégio rindo.
  Cada um de nós foi para uma sala de aula depois que o sinal tocou; e minha aula de biologia parecia tudo, menos interessante. Depois que Monica colocou aquela ideia absurda em minha cabeça, eu não conseguia tirá-la de lá. Era incabível que Harry estivesse afim de mim, mas, apesar de eu custar a acreditar, uma pontinha de mim estava curiosa para saber. Era um pouco assustador, mas empolgante a ideia de um garoto se interessar por mim, e por isso eu não conseguia parar de pensar nisso.
  Me peguei notando todos os detalhes de Harry no terceiro horário, na aula de química que fazíamos juntos. Eu olhava-o o tempo todo só para ver se ele estava olhando também e procurar alguma pista. Me senti idiota, mas fato é que algumas vezes ele estava olhando também. Espero não ter sido pega no flagra muitas vezes, ou ele saberia que tinha algo diferente; eu só estava agindo estranho, porque estava mesmo curiosa.
  Quando nossa professora falou que teríamos que furar o dedo para pegar uma amostra de nosso próprio sangue, meu estômago revirou na hora. Antes mesmo que eu levantasse minha mão para falar, Harry o fez.
  - Sim, Harry?
  - Hum, a Lis não se dá muito bem com sangue. – ele apontou para mim com a caneta, e depois voltou a morder a ponta da mesma e olhou para a professora de novo.
  - Ah, é só um furinho de nada, não acredito que vá fazer grandes estragos. Mas, caso se sinta mal, você pode me falar, tudo bem, Lis? - Assenti, respirando fundo.
  Ela passou de classe em classe para furar os dedos dos alunos - como estávamos no laboratório e as mesas eram em duplas, é claro que eu estava com ele. Esperei chegar a nossa vez, mas antes mesmo de isso acontecer, vi os garotos da mesa ao lado fazendo babaquices e apertando os próprios dedos para que o sangue escorresse pela mão. Meu estômago revirou de novo e me senti tonta, perdendo a noção de espaço no momento em que dei um passo para trás e a mesa de trás fez um barulho quando a empurrei. Perdi o equilíbrio e tentei me segurar em meu banco no momento em que Harry teve o dedo furado, e fiz mais barulho, chamando a atenção da sala inteira, como eu sempre arranjava um jeito de fazer.
  - Ih, ela vai desmaiar. – ouvi alguém falar, e em seguida Harry me segurou pelos braços, me mantendo de pé. Abri os olhos e olhei para cima, para olhar para ele.
  - Você quer sair?
- Fiz que sim com a cabeça.
  - Ok, você estava certo. Pode tirar ela daqui por favor, Harry? Eu preciso continuar a aula, e ela só precisa de um pouco de ar. - Harry concordou para a professora, e me levou para fora da sala, servindo como um apoio.
  Assim que chegamos ao corredor e parei de sentir o cheiro de sangue, pedi para sentar no chão mesmo ao lado da porta e ele me ajudou, sentando ao meu lado. Abaixei a cabeça e coloquei-a entre os joelhos, respirando fundo.
  - Valeu pela ajuda.
  - Eu não queria ver você vomitar. – brincou. – Você já paga micos demais naturalmente o tempo todo.
  - Não é algo pelo qual eu me orgulho, os desastres parecem me perseguir.
  - Tudo bem – ele riu. – Isso faz de você engraçada. E única.
  Levantei a cabeça, e olhei-o. Ainda com a conversa com Monica rondando em minha cabeça, de repente comecei a pegar um monte de pistas que eu não pegava antes entre nós dois. Talvez isso tudo fosse coisas da minha cabeça, coisas que eu não percebia antes por não ter pensado nos absurdos que Monica disse, mas talvez fosse real.
  - Você me acha única?
  - Bastante – ele concordou, e levantou. – Vou voltar para a aula e quando se sentir melhor você pode entrar, ok? - Concordei com a cabeça, e ele entrou na sala outra vez.
  Aos poucos minha vertigem foi passando, então só precisei de mais alguns minutos sentada no corredor para voltar ao normal. Ao olhar para alguns cartazes presos em um mural na parede bem em minha frente, percebi o cartaz do baile de formatura. As letras destacadas na parte de baixo diziam que as garotas eram quem convidavam, e não os garotos, como de costume, isso fez uma ideia surgir em minha cabeça.
  - Lis? – a porta foi aberta e alguém olhou para mim. – Todo o sangue já foi limpo, você já pode voltar.
  - Obrigada. - Levantei e voltei para meu lugar; e pelo resto da aula os olhares estranhos entre mim e Harry foram mais intensos.

  No sábado de tarde, eu, Mô e Harry sempre fazíamos algo juntos, mas nesse sábado em especial, Monica ficara no colégio para auxiliar o comitê de decoração a decorar o ginásio para o baile, então éramos apenas nós dois. Logo na primeira hora da tarde fui para a floricultura ajudá-lo, para que ele pudesse se livrar do serviço mais cedo, e agora nos encontrávamos de costas um para o outro, cada um cuidando de uma mesa de flores; ele cortando os espinhos e eu espirrando água nas pétalas. Os dois em um silêncio confortável que já era usual entre nós.
  - Hum, Harry? – chamei-o, pegando algumas tulipas brancas com a mão para espirrar a água mais de perto.
  - Sim?
  - Alguém convidou você para o baile?
  - A garota do encontro que eu não fui e mais algumas meninas que são clientes aqui da loja. Por quê? - É claro que Harry fora convidado, que pergunta a minha, ele era lindo, seu jeito quieto chamava a atenção das meninas, e aquele lance das flores era um chamativo a mais. Harry tinha várias pretendentes.
  - Você já sabe com quem vai?
  - Não quero ir com nenhuma delas. - Talvez ele gostasse de alguém e estivesse esperando seu pedido, talvez fosse até a Mô, afinal, quem sabe? A conversa que tive com ela no dia anterior voltou à minha cabeça e virei para ele. Cutuquei seu ombro e ele virou para mim também.
  - Talvez você queira me dar a honra? – sorri e levantei a tulipa em direção ao rosto, para cobrir o leve rubor que tomou conta das minhas bochechas. Harry riu e pegou a flor das minhas mãos.
  - Será um prazer, madame. - Encarei-o por um segundo, e então desviei o olhar.
  - Ótimo, mas e quanto àquela corrida, hum? - Empurrei-o e saí correndo loja afora, ouvindo seus passos atrás de mim.
  Harry e eu corremos até aquele parque da lagoa e cansamos tanto que me atirei no gramado logo que pisei nele. Tentei recuperar o fôlego, enquanto ria e ele se atirou ao meu lado, fazendo o mesmo. Depois de conseguir recuperar o fôlego, Harry parou de rir aos poucos e olhou para cima.
  - Quero te mostrar uma coisa.
  - O que é? – olhei-o, curiosa. Ele levantou e me estendeu a mão para que eu fizesse o mesmo.
  - Vem comigo! - Levantei e o segui até uma rua bem calma e parada, cheia de prédios residenciais. Harry caminhou até o meio da quadra, sentou no cordão e me chamou para fazer o mesmo. Eu o fiz, e ele olhou no relógio e depois para a portaria do prédio do outro lado da rua.
  - Olha lá – ele fez um aceno com a cabeça para a garota que entrava no prédio com seu cachorrinho. Ela entrou, parou no portão e olhou para o chão. Se abaixou e pegou algo, e quando se levantou eu vi o pequeno e delicado buquê em suas mãos. Ela olhou para os lados, procurando alguém, mas não encontrou ninguém. Então, cheirou as flores, pegou o cartão e entrou sorrindo no prédio.
  - Foi você? - Ele, que olhava para a cena com um sorriso no rosto, fez que sim com a cabeça. - Você... tá afim dela? – perguntei, e Harry me olhou.
  - Eu nem conheço ela.
  - Então... - Ele percebeu minha confusão e explicou.
  - Nos fins de semana, muitas flores sobram na loja, e eu acho um desperdício jogá-las fora, então acho um jeito de dar um fim mais útil a elas; eu gosto de juntá-las em buquês e fazer o dia de alguém mais feliz.
  - Ah... mas... não é maldade iludir as pessoas desse jeito?
  - Eu não as iludo, não. – explicou, com toda a paciência do mundo. – Eu escrevo apenas uma mensagem no cartão. “Sorria, alguém te ama” ou “Tenha um ótimo dia”. Sabe, coisas que podem ajudar alguém a ter um dia melhor, fazê-los acreditar que ainda há bondade no mundo.
  - Isso é lindo, Harry. É muito legal da sua parte.
  - Obrigado. – ele sorriu. – A sensação é boa. - Ficamos em silêncio enquanto eu pensava melhor nisso. De repente, Harry era mesmo o melhor cara que eu conheceria na vida. Me aproximei dele e descansei a cabeça em seu ombro, e ele aceitou a aproximação com naturalidade, me segurando em um abraço confortável. A sensação era boa.

Provando um sentimento novo pela primeira vez

  - Mas que droga, pai... – me contorci quando meu pai enfiou a agulha pela décima oitava vez na pele da minha cintura. – Desiste disso, você não sabe costurar!
  - Tudo bem, eu acho que já está bom assim. – meu pai se afastou e me ajudou a descer do banquinho em que me encontrava. Ele puxou e mexeu em meu vestido mais algumas vezes, até que enfim achou bom o suficiente. Sim, como minha mãe fugiu da responsabilidade de ter uma filha, meu pai precisou aprender a fazer os dois papéis, o que significava ajudar a filha com o vestido da festa de formatura também. Virei para o espelho e dei uma boa olhada. E não é que ficou bom mesmo?
  - Está ótimo assim, muito obrigada.
  - Eu disse que ia conseguir, não disse? – ele falou, empurrando os óculos de leitura mais para cima e guardando seus “equipamentos”. É claro que na maquiagem mesmo que ele tentasse não saberia ajudar, ao não ser que eu quisesse aparecer no colégio com tinta de tecido na cara ou algo assim, sei lá. Então Mô já havia providenciado essa parte, passando mais cedo lá em casa e fazendo seu melhor em meu rosto. Depois, ela foi para casa preparar a si mesma para ir com seu namoradinho novo ao baile.
  Depois de pronta, com meu vestido branco com as costas rendadas (que pertencia a Mô também, porque os vestidos que eu tinha eram velhos por só serem usados quando íamos para a fazenda de meu tio), meu pai me forçou a tirar uma foto, afinal, que pai não faria isso? Principalmente o meu, que é o mais coruja do mundo, mas tudo para deixá-lo feliz. Depois, ouvi um discurso sobre precaução, mesmo ele sabendo que eu iria com Harry e conhecendo Harry tão bem quanto conhece Monica. Aí, ele disse que esperava que eu voltasse cedo para casa e graças a Deus a campainha tocou.
  Eu mesma atendi, e atendi a tempo de ver Harry tentar ajeitar a gravata no pescoço. Assim que me viu, ele parou e tratou de sorrir.
  - E aí – falou, parecendo meio sem jeito.
  Gostei do jeito que o cabelo dele ficava quando era todo colocado para cima daquele jeito. Além disso, ele tinha uma pequena rosa na lapela do blazer azul marinho, e segurava um corsage com uma rosa bem delicada na mão. Ofereceu-o a mim e eu estendi minha mão para ele.
  - Eu nunca fiz isso antes, mas... a flor é de verdade. – ele disse, abrindo a pulseira e colocando-a no meu pulso. Corsages tinham basicamente o significado de “ela já tem dono” e gostei disso, apesar de ser apenas uma tradição boba, é claro.
  - Gostei do seu cabelo – comentei quando saímos da porta da minha casa, com um breve tchau a meu pai.
  - Obrigado. Eu também gostei do seu. – ele falou, puxando a gravata outra vez e passando os dedos dentro do colarinho. Sorri. – Me desculpa, não temos uma limusine, mas temos o carro da minha mãe – ele falou.
  - Ah, Harry, tudo bem, que bobagem esse negócio de limusine. Nem esquenta! - Entramos no carro e Anne nos deixou no portão da escola, avisando que viria nos buscar assim que ligássemos.
  E então, a festa começou.
  Monica era minha melhor amiga e nos conhecíamos a mais tempo do que eu conhecia Harry, mas, pensando bem, eu sempre acabava sozinha com Harry, porque ela quase sempre estava com um garoto, e eu odiava ficar de vela. E nesse dia não foi muito diferente. Sentamos todos na mesma mesa, ouvimos todos os professores fazerem discurso, e depois dessa chatisse toda a festa começou. Havia uma banda ao vivo, onde reconheci aquele punk que conversou com Harry e mais três garotos também do colégio. Começaram cantando Summer of 69’ e eu sabia o quanto Harry adorava aquela música, então dançamos juntos e conversando bobagens por um tempo.
  Já fazia alguns dias que eu havia começado a ponderar ver Harry com outros olhos, e agora não conseguia mais parar. Eu começara a notar detalhes que nunca havia visto antes, como o jeito como ele passa os dedos nos lábios fazendo-os ficarem vermelhos em contraste com sua pele branca, como eles são rosados naturalmente, o jeito como seus olhos verdes brilham quando ele está mexendo com flores, por causa do aroma, ou como ele sempre tinha um cheiro delicioso de rosas mesmo nem estando perfumado.
  Eu não gostava de segredos ou situações mal resolvidas, então por mais que aquela situação não estivesse desconfortável e nem nada, eu me sentia cada dia mais inquieta com a vontade de falar para ele sobre essas coisas.
  - Harry... – chamei-o, quando paramos para beber um ponche na mesa do ponche e ele ficou olhando para a pista de dança, encostado na parede.
  No mesmo segundo, seus olhos foram parar em mim.
  - Hum? - Tomei um gole da minha bebida, porque, na verdade, eu não tinha ideia do que falar. Então, antes mesmo de poder pensar, a música mudou e ele soltou seu copo na mesa, se aproximando de mim.
  - Você tem que dançar comigo. - Fiz que sim com a cabeça e mal tive tempo de soltar meu copo também antes de ele me puxar pela mão até a pista.
  A música era calma, então ele envolveu minha cintura e me abracei em seu pescoço. Harry era tão alto, que minha cabeça ficava encostada no meio do seu peito.
  - Você tem um cheiro bom. – eu disse, encostando a cabeça ali.
  - Eu trabalho em uma floricultura. – ele riu.
  - Eu sei – sorri. – Eu só queria que soubesse. - Ele ficou quieto por um segundo, enquanto nos balançava de vagarzinho para os lados.
  - Você tem mãos bonitas. - Ótimo, eu tenho mãos bonitas, nada de um cabelo macio, ou uma pele legal, ou até mesmo um sorriso mais ou menos, eu tenho mãos bonitas. O que diabos isso significava? O que ele fazia olhando para minhas mãos? E por que eu ligava tanto para isso de uma hora para outra?
  Tratei de me acalmar, e dancei o resto da música antes de avisar que ia ao banheiro - Mô ordenou que eu fosse de meia em meia hora me certificar de que o lápis de olho não estava escorregando para a pele debaixo dos meus olhos, então eu achei melhor obedecê-la e fui ao banheiro tratar disso. Fui até lá, limpei a maquiagem borrada com papel toalha e arrumei melhor o vestido.
  Voltei para a festa pegando outros dois ponches para nós podermos beber em algum canto, porque aquilo era muito bom. Procurei por Harry olhando em volta, mas não o achei, então dei uma volta pelo meio da pista. O achei bem rapidamente, enfiando a língua na garganta de Monica, lá no meio de todo mundo.
  Eu não sei o que me deu, mas o ponche em minhas mãos resolveu pular para a roupa da garota ao meu lado, e em questão de segundos saí batendo os pés de lá de dentro e xingando até a vigésima sétima geração de Harry Styles em alto e bom som. A revolta que senti não podia ser explicada. Eu podia até admitir a mim mesma que talvez tivesse criado uma pequena quedinha por Harry nos últimos dias, porque negar seria hipocrisia, mas vê-lo beijar nossa melhor amiga era a coisa mais revoltante que existia.
  Senti vontade de bater nela, como fiz quando ela quebrou meu braço na segunda série. Mas que droga! Monica podia ficar com mil caras, mas Harry? Justo o Harry?! Nosso amigo, aquele do qual ela disse que estava afim de mim? E ela não estava feliz lá com seu namorado do dia? Então por que raios ela foi beijar logo o Harry? E por que ele estava correspondendo?! Ele devia gostar de mim! Pronto, é isso! Harry devia gostar de mim, e não de Monica. Ela era mais bonita, mais feminina, mais “gostável”, mais tudo; ela com certeza era melhor do que eu. Mas eu o conhecia muito melhor; e ele demonstrava sentir alguma coisa às vezes.
  Saí de dentro do ginásio e sentei na ponta da calçada que o cercava, decepcionada demais com o curso que a noite levara. Fiquei bufando algumas vezes com raiva até de mim mesma e resolvi ligar para meu pai. Ele disse que chegava em cinco minutos, apesar de eu ter dito que Anne nos levaria para casa. Esperei até que ele me ligasse avisando que chegou, e então levantei e comecei a andar até o estacionamento lotado de carros.
  - Lis? Você está indo aonde?A festa só está ficando boa agora! – ouvi a voz de Harry atrás de mim e apressei o passo.
  - Não estou me sentindo bem.
  - Você pode esperar eu ligar para minha mãe, pelo menos? – ele levantou o tom de voz e tentou me acompanhar, andando mais rápido.
  - Já chamei meu pai, Harry.
  - Lis, espera aí! – ele correu e segurou meu braço. Virei-me para ele e o encarei. – O que está acontecendo? Eu fiz alguma coisa que você não gostou? A festa estava ótima, achei que estivesse se divertindo; eu estava.
  - Eu vi que você estava. – me afastei um passo dele. – Metendo a boca na Mônica. - Harry entendeu o que havia de errado naquele momento e soltou o ar, se aproximando de novo de mim.
  - Lis, não é isso. Eu só beijei ela...
  - Eu vi. – falei, e ele parou para olhar-me por um tempo, sem dizer nada. – Olha, quer saber? – dei um tapinha no ar, cansada de esperar que ele explicasse qualquer coisa. Não havia explicação, ela era melhor e ponto. – Esquece!
  - Lis, volta! Por favor, Lis. – ouvi sua voz, ainda parada no mesmo lugar, me chamar, enquanto eu voltava a caminhar para o estacionamento. – Mas que droga você, Elizabeth! – gritou quando eu já estava longe demais para voltar.
  Entrei no carro de meu pai com o choro na garganta. Ele foi esperto o suficiente para não fazer perguntas, então só fomos para casa e subi para meu quarto, me trancando lá e colocando meu pijama.

  No outro dia, acordei um pouco menos irritada com tudo aquilo. Nada melhor do que uma boa noite de sono, mas eu ainda estava profundamente desapontada com Harry e comigo mesma, por ter acreditado que aquilo daria em algo. Graças a Deus eu nem cheguei a falar nada para ele, garanto que Harry era apaixonado por Monica há anos.
  Peguei uma xícara de café preto e subi para o telhado, por meio da pequena janelinha no sótão. Fiquei sentada lá, olhando para a rua e para meu bairro e aproveitando de minha paz, silêncio e o meu café amargo, até levar uma pedrada na cabeça.
  - Mas que porra... – passei a mão na testa onde a pedrinha pegara e olhei para baixo, para o chão.
  - Foi mal! – Harry levantou as mãos, fazendo uma careta. – Era para acertar na janela. - Olhei para a janela, a uns dez metros de mim, e estreitei os olhos.
  - Será que você pode descer? Eu tenho que falar com você, é importante. - Ponderei fazer aquilo, mas eu realmente não estava com vontade.
  - Você sabe como subir.
  - Lis...
  - Ou sabe o caminho de casa. – disse, sentando fora de sua linha de visão outra vez e bebendo meu café.
  Ouvi Harry bufar e a porta da frente de minha porta ser aberta. Em dois minutos lá estava ele, se espremendo para passar pela janelinha do sótão. Harry escorregou na telha e quase foi parar lá no chão outra vez, mas sentou ao meu lado sem nenhum arranhão.
  Ficamos quietos por um tempo, mas eu me recusei a falar uma sílaba. Se ele queria, ele que falasse.
  - Olha, Lis, você entendeu errado quando...
  - Gente! Gente! Gente! Ai meu Deus, Gente! Gente! Desçam! Agora! – Mônica veio gritando pela rua até parar no gramado da minha casa pulando e balançando uma folha no ar enlouquecida. – Eu consegui! Minha carta, eu consegui! Ela chegou! Cambridge! Eu vou para Cambridge! - Eu e Harry nos olhamos e levantamos na mesma hora para descer até Monica. Ele saiu primeiro e depois eu passei pela janela e nós descemos as escadas correndo. Harry escancarou a porta e foi correndo para um abraço em Monica, levantando-a do chão com seus braços enormes. Fiquei parada ao lado dos dois, me sentindo uma palhaça, enquanto ele dizia uns “parabéns, baixinha!”, que eram abafados pelo cabelo dela. Depois que se largaram, eu a abracei também.
  - Cambridge, Mô! Isso é ótimo!
  - Eu não estou acreditando! Minha mãe está gritando para a vizinhança toda – ela disse, rindo e recuperando o fôlego com a mão no peito. – Ai, meu Deus.

  Pelo resto do dia, só o que fizemos foi parabenizar Monica e falar em faculdade; e pela primeira vez comecei a me sentir nervosa com isso, eu não queria me separar de meus amigos, mas com certeza não seria aceita em Cambridge.
  Os dias se passaram. Mônica pediu que eu e Harry a ajudássemos a fazer uma última decoração no colégio e nos ocupamos com aquilo. Eu e Harry não tivemos um tempo sozinhos depois daquilo, porque íamos cedo para a escola e saíamos de lá cansados, então mal nos víamos. Como eu era boa em pintura, pintei um enorme buquê de rosas vermelhas na parede do saguão, que era o que nos pediram para enfeitar. Rosas, porque eram nossas flores preferidas, minha e de Mo, e flores, porque... bem, Harry.
  E assim, depois que terminamos e recebemos nossas congratulações, logo a carta de Harry chegou.
  - Eu estou nervoso – ele disse e pude perceber que sua respiração estava acelerada.
  - Anda logo, abre rápido como quem tira um curativo! – Monica falou e me debrucei sobre a mesa com ansiedade. Ele respirou fundo e abriu o envelope, abriu o papel e leu brevemente, depois olhou-nos.
  - Oxford. - Eu e Mo nos olhamos e soltamos um grito.
  - Meu Deus, Oxford, Oxford, Harry, Oxford! Você entrou na Oxford! Isso é maravilhoso! - Nós duas levantamos e pulamos em cima dele para um abraço em grupo. Eu estava tão feliz por meus amigos, mas meu coração estava apertado. Estávamos nos separando. Tudo bem, de Oxford a Cambridge eram apenas duas horas de viagem, mas e se eu fosse parar, sei lá, em Manchester, Liverpool ou algo assim? Era longe! Além disso, eu não conseguiria nada em Cambrigde e muito menos Oxford, eles eram os nerds e não eu.
  O problema era que um mosqueteiro sozinho não completa uma equipe.

Para enfrentar o futuro, a melhor dica é fechar os olhos

  Então, eu estava tomando meu chocolate quente no telhado, olhando o céu quando uma abelha veio pousar bem no meu ombro. Comecei a me debater e quando abri os olhos outra vez estava atirada no gramado em frente à minha casa.   Eu pedi que meu pai não me levasse para o hospital, porque tirando a dor nas costas, na cabeça e no pulso eu estava bem. Mas adiantou? Não, não adiantou. Ao que parece ele pensou que eu estivesse com uma costela quebrada, que podia perfurar meu pulmão e me matar a qualquer momento; era só um mal jeito, mesmo. E assim guardei mais algumas cicatrizes para o primeiro item dessa história toda: aquelas tragédias que me trouxeram até aqui.
  Fato é que nos dias que se passaram depois disso, até meu pulso voltar ao normal, meu pai me deixou praticamente de quarentena em meu quarto; ninguém entra, ninguém sai, nem a maldita abelha. Então, fiquei sem ver meus amigos, só comendo sorvete e pipoca e olhando filmes antigos (porque tenho paixão por qualquer coisa antiga).
  Quando finalmente pude sair, depois de muito incomodar meu pai em uma sexta feira à noite, fui para o lago do parque. Foi a primeira coisa que pensei em fazer, afinal Monica provavelmente estava trocando saliva com alguém na sexta feira à noite.
  Fui até o parque e dei quase uma volta inteira sentindo a brisa gostosa de verão soprar meus cabelos, quando avistei alguém conhecido; os cabelos cacheados eram inconfundíveis, é claro. Ele estava debruçado sobre a ponte olhando para a água, e só percebi o que ele estava realmente fazendo quando cheguei mais perto. Harry estava com um buquê de rosas mistas e uma tesoura de poda, cortando todo o caule das flores e jogando-as na água para que flutuassem em meio aos patos que ali nadavam.
  Parei ao seu lado, e ele me olhou.
  - Oi – disse e ele sorriu para mim.
  - É bom te ver.
  - É bom te ver também. – sorri de volta. Levantei meu pulso. – Meu pai finalmente deixou eu sair.
  - Ah, é ótimo ver que você melhorou.
  - É... - O silencio voltou e fiquei ouvindo o barulho dos patos.
  - O que está fazendo?
  - Ah... sobraram essas flores hoje, e... – ele apontou com o queixo para a água, agora cheia de flores flutuantes com os botões bem abertos, se espalhando por ali, criando uma vista bonita; até romântica. – Acho que será uma bela vista para quem passar aqui amanhã.
  - Você está certo, é uma vista linda, até mesmo de noite.
  - Não se compara com as suas estrelas, aquelas que você gosta de olhar em seu telhado.
  - Gostava. O telhado agora é proibido para mim ao não ser que eu convença meu pai a colocar uma tela lá em cima, ou um trampolim lá embaixo. - Harry riu e eu o acompanhei. Então, voltamos para o silêncio. Decidi que estava ficando tarde, e se eu não falasse tudo o que queria dizer desde o baile logo meu tempo se esgotaria. Acho que ele pensou o mesmo, pois falou meu nome no mesmo momento em que eu falei o seu e nos olhamos.
  - Fala!
  - Não, fala você!
  - Eu falei primeiro.
  - Por isso mesmo.
  - Harry, vou socar você.
  - Tudo bem – ele suspirou. – Eu não gosto da Mo, se é o que você pensa, não, e aquele beijo não significou nada, absolutamente nada. Ela é minha amiga, e só. Assim como...
  - Assim como eu. – falei, um pouco alto demais. Me assustei com como minha voz saiu forte. – Assim como eu sou só sua amiga. Porque... eu não sei o que me fez pensar que talvez eu fosse mais. Porque eu sou...
  - Elizabeth – ele me olhou, chateado. – Cala a boca e me escuta! - Olhei-o, surpresa, mas fiz o que ele disse. - Monica é minha amiga assim como você era, era, no passado, logo que te conheci. Porque depois de algum tempo, eu... você... – ele balançou a cabeça, incapaz de achar as palavras. – você é como uma flor. – ele abaixou a cabeça para a última rosa que segurava na mão. – É linda e delicada, apesar de cobrir isso com algumas camadas de proteção. - Olhei para baixo, acompanhando seus movimentos, e à essa altura meu coração estava batendo em minha garganta.
  Harry segurou o caule com cuidado, para não se cortar com os espinhos, e arrancou-os, um por um.
  - Eu sei tudo ao seu respeito, e você é a única coisa que me chama a atenção. – olhou-me e só o que consegui fazer foi encará-lo também.
  - Mas o beijo...
  - Eu só beijei-a porque a garota do encontro estava me procurando e eu não consegui achar você a tempo. Acredite, eu queria ter achado. - Sorri e olhei para baixo, mas ele levantou meu rosto no mesmo minuto. - Porque sempre foi você que eu quero. – Harry disse e aí ele finalmente se achou no direito de me beijar.
  Até que enfim!
  Meu corpo se arrepiou ao toque dos seus lábios, mas aquilo me pareceu natural. Eu correspondi ao beijo e o frio na minha barriga só fez aumentar, mas o nervosismo passou, porque aquilo parecia a coisa certa a fazer naquele momento. O beijo, eu quero dizer.

  Depois daquela noite, nenhum acontecimento merece uma atenção especial. Harry e eu caminhamos até a minha casa de mãos dadas, em nosso silêncio confortável, fazendo comentários sobre algumas coisas sem importância. Eu me sentia feliz, e sei que ele também. Ele me deixou na porta de casa, com um quase beijo que foi interrompido por meu pai que estava espiando pela janela.
  Pelo resto da noite, como já era de se esperar, eu fiquei pensando naquele beijo e em tudo que poderia mudar a partir de agora, mas não tive medo. Isso é, até receber a visita do carteiro no dia seguinte, bem cedo.
  Não consegui nem sequer chamar meus amigos. Eu só sentei ao lado de meu pai e nós abrimos juntos, com cuidado, espiando para dentro do papel assim que o desdobramos o suficiente. E lá estava a palavra. Não era Oxford, e nem Cambridge. Era London University of Arts, era Londres,e grande capital! Em um segundo, um número infinito de possibilidades para o futuro passou em minha cabeça. Meu futuro, minha profissão, minha felicidade, meus sonhos, o mapa para tudo o que eu viveria de agora em diante estava ali, naquele papel. Era Londres!
  Meu pai me abraçou e parabenizou um milhão de vezes e começou a fazer mais planos do que eu conseguia acompanhar, mas fiquei feliz pela sua felicidade.
  E daí em diante, os dias passaram como borrões. Em algumas semanas, eu estava empacotando minhas coisas, e quando percebi já era hora de entrar no carro e dizer adeus à minha cidade e ir para a universidade; com o maior frio na barriga que eu já sentira na minha vida.
  - Eu vou sentir t-tant-to a falta de voc-cês! – Monica se afogava em lágrimas, abraçando-nos e beijando-nos a cada dois segundos. Harry só conseguia rir dela, enquanto eu tentava desgrudar de seus abraços sufocantes. – Somos os três mosqueteiros, nós não p-podemos nos separar, vocês... vocês têm que me prometer...
  - Ei, garota, calma. – Harry disse, limpando umas lágrimas da bochecha dela. – Escuta só, Londres, Cambridge e Oxford ficam há apenas duas horas de distância. Nós vamos nos ver seguidamente, isso é uma promessa.
  - Tudo bem. Se você quebrar, eu mato você e penduro sua cabeça naquela fachada horrível da floricultura. - Ele ri e eu o acompanho.
  - Ok, mas oi, sou eu que estou indo embora aqui, e não você. – empurro-a de leve, e ela me abraça de novo.
  - Eu sei. Bom, já te abracei e beijei o suficiente. Vou deixar marcado na minha agenda para nos encontrarmos em Londres daqui a duas semanas, exatamente, nós três. Sempre vai ser assim, ok? De duas em duas semanas no máximo. E se você se atrever a não atender o telefone, eu penduro a sua cabeça lá em cima também.
  - Tudo bem, Graxa. – rio e beijo sua bochecha de novo.
  - Ok, agora eu preciso ir. Tenho que terminar de arrumar minhas coisas, porque eu vou amanhã, e não quero te ver entrar nesse carro de jeito nenhum. Beijo. Eu amo você. - Ela acenou e foi se afastando. Acenei de volta, com uma pontinha de dor no coração.
  Eu e Harry nos olhamos, e meu pai entendeu que era hora de um pouquinho de privacidade e foi buscar algumas coisas dentro de casa.
  - então... – ele colocou as mãos no bolso e olhou para o chão. – É isso. – olhou de volta para mim, com um sorrisinho um tanto triste.
  Eu podia ser mais forte do que Monica, mas definitivamente não era mais forte do que Harry. Corri até ele e o abracei com força, cercando meus braços na sua cintura e encostando minha cabeça em seu peito com força, não querendo sair de lá.
  Ele me abraçou também, segurando todo o meu corpo contra o dele com total facilidade, e beijou o topo da minha cabeça. Ficamos assim por um minuto, e então eu me afastei para olhar em seu rosto. Harry se surpreendeu ao ver uma lágrima em meu rosto e a limpou com o polegar; e eu também me surpreendi porque não havia percebido. Limpei meu rosto, meio envergonhada, e ele segurou-o nas mãos e beijou minha testa com carinho.
  - Você não precisa ficar minimamente preocupada. Ouviu a rainha do drama ali, nós vamos nos ver de duas em duas semanas. - Ri em meio ao choro, e concordei com a cabeça.
  - E se...
  - Não. Eu não vou achar ninguém melhor do que você, até porque em todos os anos de amizade isso nunca aconteceu, e não vai ser agora que acontecerá. Pode ter certeza, o meu coração é seu, Lis. - Eu ficava impressionada com o quanto ele conhecia cada vírgula de expressão que eu expunha. Ele sabia até o que eu estava pensando antes de falar, ele me lia como um livro aberto, e minha mente se enchia de arrependimento toda vez que pensava em quanto tempo eu perdi vendo-o apenas como amigo. Mas eu confiava em Harry e se ele dizia que tudo ficaria bem, é porque ficaria.
  - Eu vou sentir muito a sua falta, não vai ser o mesmo sem você.
  - você vai se acostumar, eu sei que vai. – ele disse, tirando algo do bolso de trás da calça, era uma daquelas Gardênias bem pequenas, brancas e com um cheiro maravilhoso. Harry prendeu-a em minha camisa xadrez e colocou uma mecha de meu cabelo atrás da orelha. Beijou a ponta do meu nariz, e depois minha boca, demorando um pouco mais alí. - Gardênias significam agradecimento. Obrigado por ser a melhor pessoa que eu poderia ter como amiga.
  - Cala a boca, isso vai parecer uma despedida. – pedi, com a voz falhando.
  Ele riu e depois de outro beijo rápido, se afastou quando meu pai voltou para guardar a última caixa no porta malas.
  Harry abriu a porta do carona para mim e eu entrei. Ele fechou-a e deu alguns passos para trás, ainda sorrindo para mim, para me tranquilizar.
  Meu pai entrou no carro também e colocou o cinto, e então deu o arranque. Harry me deu tchau, e correspondi, respirando fundo. Lá vamos nós!

  Me instalei em meu quarto, conheci minha roommate, meus professores, minhas aulas, os calouros, os novatos, fui em festa de boas vindas, em festas na fogueira, em festas de comemoração de inicio de aulas, em varias outras festas e por alguns dias eu fiquei tão ocupada que não consegui pensar em quase nada. Falava com meu pai uma vez por dia e conversava com Mô e Harry por mensagem.
  Na segunda semana, Mônica desmarcou porque tinha um teste em uma aula mais avançada do que ela podia participar, mas queria muito entrar. Quando perguntei a Harry se ele viria, ele apenas respondeu:
  “Vou encontrar uma garota x”.
  E eu juro que foi isso, só isso, nem para mentir ele prestou. Ele só falou isso, e não mandou mais nada. Até pensei em perguntar, em tirar satisfação, em demonstrar interesse, brigar, sei lá, qualquer coisa, mas nem consegui pensar no que dizer. Eu me senti estúpida demais.
  Terminei de tomar meu café na cafeteria do campus e fui a passos rápidos para meu quarto, sem cabeça para conversar com ninguém. Cruzei com minha roommate e nós batemos nossos ombros sem querer.
  - Foi mal – falei, já virando para frente outra vez.
  - Ah, Lis – ela chamou e eu olhei. – Tem uma coisa para você lá na porta do nosso quarto.
  - Uma coisa? – olhei-a, confusa. – Que coisa?
  - Ah – ela deu um tapinha no ar e foi se afastando. – Só um buquê de flores e um cartão. - Arregalei os olhos e meu sangue gelou. No mesmo segundo, comecei a correr.
  Fui até meu quarto, e quando cheguei lá eu já estava cansada e ofegante. Olhei pelo corredor ao ver o buquê, mas não havia nada nem ninguém. Então eu me abaixei e peguei-o com cuidado, eram rosas vermelhas, em perfeito estado, e no segundo em que o aroma chegou até mim, era como se eu sentisse o perfume de Harry. Fechei os olhos por um momento, sentindo o cheiro, e puxei o cartão. O abri com o dedo e li a caligrafia que eu já conhecia:
  “Sorria, alguém te ama...
  E esse alguém sou eu.”

  O sorriso nasceu em meus lábios e abri a porta do quarto, entrando nele sem de fato prestar atenção a nada que não fossem as flores.
  - Pensou mesmo que eu não vinha? - Sua voz me assustou um pouco, e ao olhar para minha cama lá estava ele, a Gardênia na lapela do blazer e os cabelos para trás, bem como no dia do baile; lindo, com os olhos verdes quase azuis e o sorriso de canto maravilhosamente iluminador. Corro para abraçá-lo, e ele me abraça também me levantando do chão. Me beija, mas outra voz interrompe o momento:
  - Chega, sem demonstração de afeto assim na minha frente, seus nojentos! - Me afasto de Harry e vejo Mônica sentada na cama de minha colega de quarto, com os braços cruzados.
  - Mô! – corro até ela e a abraço. – Vocês me enganaram! Eu me senti horrível, seus monstros!
  - Era lógico que a gente vinha. Você já viu eu não seguir minha agenda fielmente alguma vez na sua vida? - Ri para ela e Harry se aproximou de nós duas.
  - E você já me viu quebrar alguma promessa?
  - Tudo bem, vocês venceram, mas nunca mais, nunca mais façam isso comigo! – ordeno, sorrindo.
  - Nós sempre vamos estar aqui, Lis. Somos os três mosqueteiros. - E assim, com um abraço em grupo e algumas risadas, me sinto completa. Não importa o que o futuro reserva, porque eu tenho meus amigos. Somos um por todos, e todos por um!

FIM



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