Chame por Cigana



Escrito por Zsadist Xcor
Revisado por Natashia Kitamura

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Capítulo 1

  Se contassem para Rafael Siqueira como estaria sua vida aos vinte e seis anos daria uma estrondosa gargalhada. Acharia que o cenário da previsão seria demasiadamente dramático, como um capítulo digno de dramalhões mexicanos como A Usurpadora, Marimar e O que a Vida me Roubou. Afinal de contas, sua vida estava ótima. Cursava Direito na faculdade dos sonhos localizada no Rio de Janeiro, havia se apaixonado por um dos ex alunos quem havia acabado de passar na prova da OAB, namorava o lindo moreno quem o tratava com amorosidade invejável e sua família caminhava bem. É claro, ainda não havia se assumido socialmente como gay e apresentava o namorado como amigo por sentir medo da reação do pai, mas, num todo, as coisas estavam fluindo.
  Até que seu castelo começou a desmoronar peça por peça num curto espaço de tempo.
  Primeiro, foi o relacionamento. Jamais sentira tamanha dor antes como na tarde quando saiu aos prantos do apartamento do homem. O porteiro até tentou impedi-lo de subir colocando diversos empecilhos como a ausência do morador, mas, infelizmente, Rafael tinha a chave entregada pelo mais velho meses anteriores, então tinha livre acesso ao lugar que passou a conhecer tão bem quanto a sua própria casa – e no conforto do seu quarto imaginava-se morando lá com Kalisto caso se casassem.
  Três meses depois enterrou seu pai no meio de uma chuva torrencial, vítima de uma bala perdida. Precisou acudir a mãe junto dos amigos presentes, quem desmaiara quando a primeira rosa branca foi jogada sobre o caixão antes da terra ser despejada.
  Como se fosse pouco, além de Micaela ser a única responsável por pagar as contas, colocar comida na mesa e sustentar seus dois filhos, Rafael e Mia, a mais nova com apenas sete anos, a mulher sofreu um acidente. Caiu pela janela do terceiro andar enquanto tentava limpá-la. Embora fosse uma antiga secretária da empresa, seu chefe não era um homem bom e se recusava de ressarcir o valor do INSS, já que foi obrigada por ele a realizar a limpeza – mesmo sem nenhum equipamento de segurança.
  Devido a tantos infortúnios e numa tentativa de ajudar com os gastos da casa, Rafael decidiu desistir do curso de Direito e abrir mão das aulas de dança para trabalhar num salão de beleza. Talvez ele não tivesse condições para conseguir o diploma, mas a irmã merecia ter uma boa educação. Mia adorava a escola e seus sorrisos eram os únicos momentos que traziam certa alegria num período tão infeliz na história da família. Não queria tirar a alegria da menina e jamais se perdoaria caso a pequena fosse retirada da escola pelo pagamento não ser efetuado – e foi por isso que trancou a faculdade e iniciou sua busca por emprego.
  Todos aqueles baques, embora não tenha acontecido nada diretamente com ele, já afetavam sua saúde. Manchas roxas surgiam pelo corpo em consequência do estresse, fios do cabelo caíam e perdeu peso, além de ter insônia e alguns sintomas de ansiedade. Havia perdido o brilho interno de outrora e seu semblante, antes leve e animado, agora era apático e introspectivo.
  Foi nesse contexto que caminhava pela rua naquela noite. A irmã descansava em casa na companhia de uma tia, então o rapaz podia usufruir de algumas horas sozinho. A brisa fresca balançava seus cabelos ruivos cujas pontas ainda eram iluminadas. Perambulava pela calçada sem rumo mordiscando o lábio inferior e prendendo o choro pela finalização do relacionamento, pela morte do pai, a desistência do sonho de se formar em Direito, a recuperação gradativa da mãe hospitalizada, a saída das aulas de dança e a falta de perspectiva do futuro. Em resumo? Estava no fundo do poço, sozinho e não tinha nenhuma válvula de escape ou apoio emocional. Inclusive era necessário suprimir suas questões emocionais para não piorar o estado delicado de Micaela.
  Foi quando o som de uma música chamou sua atenção.

  “Estava sozinha caminhando pela rua
  De companhia só tinha a luz da lua
  E de repente uma voz me perguntou
  Por que está tão triste chorando de amor?”

  A junção das vozes envolveu seu coração lhe trazendo uma dose de curiosidade de onde vinha a canção e uma dose de acalento de origem desconhecida para sua alma. Seguiu a melodia até adentrar num recinto simples cujo portão estava aberto. Viu várias pessoas ali. Homens, mulheres e adolescentes. Alguns conversavam de maneira mais discreta com mulheres trajando vestidos longos, vermelhos, negros ou roxos. Outros dialogavam a vozes baixas com homens que fumavam charuto ou que tinham chapéus em suas cabeças e ternos brancos.
  Ao entrar ali tentou manter a cabeça baixa, embora a curiosidade falasse mais alto. Seu objetivo era passar despercebido, então ficou na parte do quintal, escondido entre as folhagens da árvore carregada de mangas. Logo descobriria que não conseguiria manter-se camuflado – mais especificamente exatamente cinquenta segundos depois.
  Uma mulher de pele negra se aproximou dele. Usava um longo vestido de renda vermelha que ia até os tornozelos. Os pés eram descalços. Na boca tinha um cigarro e em uma das mãos segurava uma taça com bebida. A outra destra descansava na cintura e a postura altiva chamava a atenção dos demais.
  - Boa noite, moço.
  Ergueu a cabeça pela voz grave e se deparou com um enorme sorriso da mulher. Apesar de tudo nela demonstrar confiança e força, os olhos transmitiam compaixão, como se enxergasse quanto martírio carregava aquele jovem coração.
  - Não abaixe a cabeça, filho. – retirando o cigarro da boca e o prendendo entre os dedos, prosseguiu secando uma lágrima teimosa no rosto jovial – A mantenha erguida. Sempre.
  - Está difícil. – lutou contra o nó formado na garganta, então a voz soou entrecortada e esganiçada.
  - Eu sei. É nítido. – o avaliou de cima abaixo – Está um trapo, menino. Eu estou melhor que você e olha que estou morta.
  Pela primeira vez em meses foi capaz de rir, mesmo que mais lágrimas descessem.
  Satisfeita pelo efeito causado no ruivo, apagou o cigarro com a palma da mão, o enfiou entre os seios e a estendeu em sua direção.
  - Por que não vem conversar comigo? Desconfio que temos muito a tratar.
  Num pesado suspiro aceitou ser levado para um canto mais discreto onde confabularam discretamente – ou, pelo menos, foi isso o que se obrigou a acreditar, já que Rafael passou trinta minutos chorando enquanto era consolado pela mulher e ouvia palavras de afeto e conforto.

  Quase dois anos depois Rafael estava no mesmo lugar – lugar esse que se tornou seu refúgio e pedido de socorro velado. Não deixou de frequentar e, aos poucos, a vida foi se reestabelecendo. Não era mais o mesmo sofredor de quando chegou, mas também ainda não estava completamente recuperado. Após a sua primeira ida, em menos de quinze dias conseguiu emprego num salão de beleza, onde trabalhava manhã, tarde e noite. Dinheiro não sobrava, mas também não faltava. Sua mãe desenvolveu problemas no joelho e nas pernas que lhe impediram de continuar trabalhando, então o filho tornou-se o provedor da família.
  Sentado numa cadeira conversava com a mulher, quem acendia mais um cigarro.
  - Eu disse que não tinha problema em contar pra sua mãe que gosta é de homem. – soltou a fumaça pelas narinas – Aliás, ela sempre soube que rabo de saia nunca foi interesse seu. – guardou o isqueiro entre os seios.
  - Acho que o que me preocupava era o meu pai. Ele não era tão mente aberta como aparentava. – bebeu um pouco de água da garrafinha de Harry Potter que sempre levava consigo.
  Aquele foi o último presente de Kalisto e se convencia que apenas a carregava por ser fã da saga – podia até ser um motivo bom, porém não era o único.
  - Moço, o seu pai te ama. Nunca vai deixar de amar. Agora, quando isso daqui – deu leves tapinhas com as pontas dos dedos na têmpora de Rafael – é fechado, cheio de dogmas, pecados, erros e regras dá um problema infernal e a pessoa é capaz de ferir quem mais ama. Fique com o melhor dado por ele: a sua vida, os bons ensinamentos e as memórias. Já basta.
  Levou a garrafa aos lábios e despejou o líquido gelado na boca, saciando a sua sede – e novamente recebeu um olhar de esguelha da negra de fartos cabelos crespos onde havia uma rosa vermelha atrás da orelha, como se ela também soubesse que o objeto era carregado de memória afetiva de um passado cuja história foi lindíssima, porém terminou de forma trágica ao ponto do rapaz ainda carregar marcas profundas daquela dor em seu âmago.
  - Desistiu de se enganar? - segurou o cigarro para falar.
  - Como assim?
  - Vai continuar com aquele traste?
  Essa era uma parte que Rafael não gostava muito: quando era interrogado sobre André.
  O homem entrara em sua vida enquanto ainda estava na faculdade e namorava com Kalisto. O até então namorado detestou o jovem simpático quando foram apresentados. A antipatia foi imediata. Odiou mais ainda a forma como teimava em tocar no outro com a ponta dos dedos, às vezes de maneira até imperceptível a olhos menos atentos e a forma como a íris era tomada de desejo quando o encarava. O relacionamento dos sonhos chegou ao fim após um acidente com André Garcia, hoje namorado – e Rafael jamais imaginaria que foi causado pelo atual.
  - Eu gosto dele.
  - Isso não é amor, filho. É carência. Amor você sente por outro, o mesmo perna de calça que te entregou isso daí. – apontou para a garrafinha no colo do ruivo.
  - A fila tem que andar, moça.
  - Desde que não seja um traste como esse que você cismou em manter do seu lado. – retrucou convicta.
  - O André me faz bem. – deu de ombros encarando o chão.
  - Vai ser teimoso assim lá na puta que pariu! – reclamou colocando o cigarro entre os lábios finos – Anda, me dá a sua mão.
  Acatou ao pedido, não que fosse necessariamente um pedido. A mulher de cabelos fartos virou a palma para cima. Ao identificar algo que escolheu não revelar, caiu numa gargalhada estrondosa.
  - Abre bem os ouvidos pro que vou dizer e arranje um jeito da porra da mensagem chegar até a sua cabeça teimosa. – avisou antes de iniciar a leitura de mão – Uma pessoa aqui vai retornar pra sua vida. Logo. Não vejo demora. Escuta... Eu não posso falar muito, mas tenha em mente o seguinte. Saiba escolher o homem certo. Tem um que você enxerga como um lobo em pele de cordeiro. O outro vê como um cordeiro em pele de lobo. Um vai transformar a sua vida pra melhor. O outro vai te levar pro inferno. Não é obrigação minha dizer qual é bom e qual é mal. – o encarou séria – Escolha certo e lide com as consequências, sejam elas boas ou ruins.

  Minutos mais tarde observava o jovem por alguns instantes. Ela tinha informações importantes sobre como seria o retorno desse homem do passado na vida do ruivo. Tinha informações cruciais, que poderiam mudar o rumo dos eventos seguintes. Só havia um problema: não lhe cabia revelar tudo. Isso poderia causar danos sérios, talvez até irreversíveis para os três envolvidos. Uma palavra a mais e talvez o verdadeiro vilão seria taxado de bom moço enquanto o outro, pelo gênio forte, sentimentos feridos graças a uma armação sórdida e o orgulho, meteria os pés pelas mãos ferindo quem mais amava – de novo, é claro.
  Não revelaria para Rafael que aquele quem não revelara a identidade sofria tanto quanto ele pela separação – talvez até mais. O observava de longe, como um pescador encantado pelo canto de uma formosa e irresistível sereia. Porém, em sua mente consciente e pelos eventos traumáticos de anos atrás, mantinha-se afastado e sem mostrar a sua verdadeira face – até porque não admitia demonstrar fraqueza perante quem o jogou no fundo do poço e destroçara seu peito, num abalo emocional que, de tão intenso, chegava a tirar o ar dos seus pulmões. Rafael não teria conhecimento, mas o pobre coitado sairia do hospital no dia seguinte devido ao que viu quando foi busca-lo na faculdade para lhe dar carona, o que era o habitual.

  Passou a noite tomando soro, sentindo sabor amargo na boca e se controlando para não vomitar – tudo isso em estado febril e suando frio. Sua mãe, Lisandra, chegara esbaforida quinze minutos após receber o telefonema do filho enquanto ele dirigia para o hospital com os sintomas. Todavia, antes de adentrar no estabelecimento, abriu o carro do filho para retirar de lá algo peludo, branco e pequeno. Bem pequeno. O colocou na bolsa tomando o devido cuidado para manter o zíper aberto para o ar adentrar e não abafar o espaço.
   Assim que se encontraram sozinhos com o adulto estirado no leito, a senhora baixinha retirou o filhote de gato do interior da bolsa e o pôs no peitoral do filho, atentando-se para ser gentil, já que o animal estava a ponto de dormir.
   - Kalisto, que história é essa de adotar um animal? Você mal está se mantendo em pé, filho. Como vai cuidar de si e dele? - embora a reclamação fosse genuína, gostou da imagem que se formou. A gatinha engatinhou mais acima do peito do moreno e aconchegou-se ali, ronronando antes de deitar a cabecinha no queixo másculo.
   - Na verdade, eu o peguei na rua pensando em alguém. – deslizou os dedos nos pelos macios abrindo um leve sorriso carregado de tristeza e decepção – Mas acho que ele será uma ótima companhia para mim.
   - Se refere ao Rafael?
   - Mãe, por favor. Não volte a mencionar esse nome na minha presença. – lutou para as palavras saírem audíveis enquanto esfregava com os dedos a ponta do nariz.
   - Mas...
   - Não, mãe. Apenas, não.
   Sentiu a ponta de algo úmido de áspero no pescoço. Era a filhote lambendo a região quase como se tentasse acalmá-lo.
   Diziam que animais ajudavam as pessoas a se curar de enfermidades de cunho físico e emocional. Aquela pequena bola de pelos de olhos azuis seria capaz de curar um coração partido? Não saberia, mas a tentativa valia.

  Naquele exato momento André Garcia, em uma de suas viagens esporádicas a trabalho, subia no avião para retornar ao Brasil. Sentado numa poltrona confortável, relaxava após averiguar o celular pela notificação do recebimento do valor combinado pelos seus serviços. De fato, era bom no que fazia. A bela aparência, a educação e o sorriso encantador serviam para manipular as pessoas, além de se gabar pela facilidade de contornar situações sociais complicadas – como quando a jovem que o acompanhava em uma das viagens estava dopada ao seu lado.
  Satisfeito com o dinheiro na conta, apalpou o bolso para averiguar o presente que comprou para o namorado. Uma delicada pulseira de prata. Sim, sem dúvida o ruivo iria gostar. Recostou-se numa tentativa infrutífera de dormir. O fuso-horário mexia com seu organismo e, apesar do pôr do sol de onde o avião decolava, queria dormir algumas horas antes de chegar a Europa.

  Kalisto havia escolhido a tarde de sábado para fazer as compras no mercado. Além dos legumes, das frutas, das verduras e de alguns produtos de limpeza, passou também um sache para gatos no caixa. Aparentemente a bolinha de pelos branca nomeada de Cristal tinha um paladar tão rebuscado quanto o dono, então não aceitava qualquer alimento. E o advogado não negaria determinados luxos no tratamento do animal. Afinal, foi Cristal quem o ajudou a passar pelo período mais melancólico de sua existência – assim, descobriu que animais de estimação eram capazes de auxiliar seres humanos a se curar de doenças, até mesmo de um coração partido.
  Ainda não estava completamente recuperado. Hoje os risos eram genuínos e saía com os amigos ao invés de se isolar no escritório, usando o excesso de trabalho como uma fuga. Quanto mais ocupasse a mente, menos teria tempo para pensar no ex. Logo, o esqueceria sem grandes dificuldades. A lógica era simples. Só havia um erro: coração e cérebro são órgãos que conversam entre si, mas não obrigatoriamente chegavam a um consenso.
  Embora a mente estivesse cada vez mais ocupada, as sensações o acompanhavam para onde quer que fosse. Aquele peso, aquele gosto amargo. Aquela visão mais embaçada e menos colorida da vida se fazia presente constantemente. Nem mesmo as transas eram tão prazerosas como quando ia para a cama com o seu menino, assim como costumava chama-lo devido ao ar de jovialidade pela alegria natural. Elas eram mornas e, às vezes, até sem graça. Não era um homem com apetite sexual alto quando se tratava de relações de uma noite. Seu apetite só aumentava quando se apaixonava – e estava certo de que não tocaria na pele macia e nem beijaria os lábios rosados e carnudos outra vez.
  Quando levava as compras separadas nas sacolas até o carro viu pela visão periférica uma movimentação diferente na entrada do mercado. Tratou de guarda-las na mala e retornou preocupado com o que havia visto instantes antes – uma senhora caída no chão com a filha a acudindo nos braços.
  Abriu espaço em meio às pessoas e se deparou com alguém que pensou jamais voltar a se deparar.
  - Micaela. – arregalou os olhos em assombro e rapidamente tratou de se abaixar ao lado da senhora cujas pálpebras tremiam – O que aconteceu?
  - Não sei. – Mia fungou apertando o corpo da mulher contra o seu – Ela leu uma mensagem no telefone e simplesmente desmaiou. Espera aí. Eu conheço você. Amigo do meu irmão, certo? Kalisto!
  - Isso. – avaliava os sinais vitais de Micaela, quem começava a despertar apesar da palidez – Conhecido bem distante do seu irmão, pra ser sincero.
  - Se formos falar de sinceridade, meu bem, teria chamado o Rafael de ex namorado. Mas isso é assunto pra outra hora. – ironizou.
  - Você tem uma língua bem afiada, menina. Escuta, aqui está bem quente. É melhor levarmos sua mãe pra um ambiente mais fresco.
  - Veio de carro?
  - Sim.
  - Por que estamos perdendo tempo falando, cacete? Anda, levanta e a coloca lá dentro.
  Inicialmente Kalisto não aprovou as falas da jovem. Minutos mais tarde se repreenderia por julgá-la e critica-la numa situação tão desesperadora.
  O advogado segurou a senhora nos braços enquanto Mia agarrava a bolsa da mãe. A garota foi em seu encalço e se certificou que o ar-condicionado do caro carro preto estivesse ligado no máximo e direcionado para a mulher, quem começava a voltar a consciência. O advogado já entrara no veículo e a mais nova continuou em pé ao lado da genitora secando algumas gotículas de suor na testa com um paninho amarelo encontrado na bolsa marrom desbotada.
  - Mi... Mia, filha? - balbuciava buscando o olhar da garota – Onde estamos?
  - No carro do Kalisto. Ele foi quem teve a ideia de te trazer pra cá.
  - Kalisto? – a senhora olhou para o lado e se deparou com o homem quem não via há quatro anos – Ah, querido, desculpa pelo trabalho. – abriu um sorriso cansado – Olha como as coisas são. Estou envelhecendo e dando trabalho extra pra quem me cerca.
  - Não se preocupe. – retribuiu o sorriso aliviado pela doce mulher estar se recuperando – Essas coisas acontecem.
  Mia se acomodou no banco traseiro, aproveitando do ar fresco do ambiente.
  Havia algo de estranho nela – e não era apenas o desmaio. Sempre que se lembrava de Micaela ela tinha um sorriso alegre estampado no rosto, assim como um brilho no olhar característico de quem era afável com as pessoas e de bom coração, além da expressão leve. Ali? Parecia ter envelhecido dez anos num período de quatro anos. O rosto estava bem cansado, como se carregasse um enorme peso. Olheiras fundas preenchiam ao redor das íris castanhas, a pele tornara-se manchada e acinzentada. Talvez estivesse passando por um problema de saúde – e isso trataria de descobrir.
  - Sua filha contou que desmaiou quando leu uma mensagem pelo seu celular. Recebeu uma notícia ruim?
  - Ah, não. Não é nada de demais. – abaixou a cabeça e balançou-a em negativa.
  - A gente saiu de casa sem café da manhã e sem almoço. Não tivemos tempo de comer nada. – explicou Mia – Talvez a pressão dela tenha baixado por causa disso e do calor também.
  A filha, perante o olhar atento e perspicaz do moreno, era verdadeira em sua fala. Sua mãe, não.
  Para o advogado era uma clara mentira contada por Micaela para esconder alguma informação. Devido a profissão aprendeu a detectar sinais inverdades e a ser guiado pela sua intuição – e naquele momento sua intuição berrava que Micaela escondia algo.
  Ao analisa-la de cima abaixo a convicção tornou-se mais forte. Ao oposto de quando costumava visitar a casa de Rafael, suas roupas eram antigas, puídas. Não passara nenhuma maquiagem, embora, antes, para ir na esquina, a vaidosa mulher usava seu lápis preto e seu batom. Não era desleixada com sua aparência e não compreendia o motivo para a mudança tão profunda.
  - Iam comprar algo no mercado?
  - Sim. – respondeu Mia.
  - Micaela, está tudo bem para você caso ela fosse fazer as compras enquanto fica aqui dentro comigo se recuperando?
  - Ah, não, Kalisto. Eu não quero atrapalhar. Certamente tem afazeres durante o dia e...
  - Aos finais de semana não trabalho. Os aproveito ao lado de amigos, familiares, em lazer ou descansando no sossego de casa.
  - Eu vou rapidinho, mãe. Juro que não demoro. – se inclinou no banco para beijar a bochecha cheia.
  - Tudo bem, então. A lista está na minha bolsa, assim como o meu cartão. Pode ir.
  Quando a garota adentrou no mercado, Kalisto começou:
  - Seu desmaio foi um pouco mais grave do que uma simples queda de pressão, certo?
  - Por que acha isso?
  - Sou advogado e trabalho na área há um tempo. Consigo identificar uma desculpa com facilidade.
  A frase foi demais para a pobre senhora, quem desabou ali mesmo. As lágrimas corriam torrenciais enquanto as marcadas mãos tentavam secá-las.
  - As coisas andam difíceis pra vocês? - afagava o pequeno ombro tentando transmitir um pouco de consolo.
  - Sim. Muito. – os negros cabelos lisos na altura dos ombros escondiam a face.
  - O seu marido...
  Não foi necessário terminar a frase para compreender que o homem havia morrido graças a reação dela: encolheu o corpo e enterrou o queixo em seu próprio peito tampando a boca com ambas as mãos para controlar os soluços.
  - Eu sinto muito. – murmurou sentindo a energia ao redor pesar – Qual foi o conteúdo da mensagem recebida?
  - Era o proprietário da minha casa. – Kalisto se esforçou para entender as palavras – Ainda moramos de aluguel, mas estamos há cinco meses com o aluguel atrasado. Não temos dinheiro pra pagar. Venho mentindo pros meus filhos porque não quero sobrecarrega-los com esses problemas. Os dois já sofreram o bastante. Entrou com uma ordem de despejo e deu a próxima semana para nos organizarmos com o intuito de sairmos dali.
  A frase o preocupou mais do que deveria.
  - Não há nada que possam fazer para reverter essa situação?
  - Não. Isso apenas resolveria com o dinheiro e não temos isso.
  - Talvez possa recorrer ao Rafael. Imagino que já esteja trabalhando como advogado e...
  - Ele saiu da faculdade.
  - Como? – franziu o cenho sem esperar pela notícia.
  - Desistiu do curso faltando menos de dois anos para se formar porque me tornei uma completa inútil impossibilitada de andar direito e passando a maior parte do tempo sentada.
  Havia tanta frustração, decepção, raiva e tristeza acompanhando a fala que preferiu não se aprofundar no assunto.
  - Escuta, caso te interesse tenho contatos com professores e os reitores da faculdade. Posso atuar por debaixo dos panos para ele finalizar os estudos.
  - Kalisto, quantas vezes terei de dizer. – soou exausta, como se nos últimos anos sua concentração foi voltada para a sobrevivência dela e da família – Nem dinheiro temos para pagar o aluguel. Como...
  - Isso você deixa comigo. – a interrompeu e elevou a voz para sobrepujar a dela – As aulas retornarão no mês seguinte e adicionaram o curso pro horário noturno. Acho que não vai afetar os horários dele no trabalho. A propósito, passe seu número pro meu celular. Assim que obtiver a resposta aviso pra você. Só não comente nada com o Rafael. É melhor essa informação sobre mim ser ocultada.
  Esse não era o principal objetivo para adicionar o número de Micaela na agenda. Mais tarde naquele mesmo dia iria transferir um valor gordo suficiente para pagar os cinco meses de aluguel atrasados – e os dos próximos três meses também quitados. Não permitiria que a família fosse despejada, independente do que aconteceu entre ele e Rafael no passado.
  Kalisto manteve a conversa de maneira mais amena para Micaela recuperar-se do pranto. Até conseguiu fazê-la rir quando contou uma das histórias no começo da carreira.
  Voltava de carro do escritório quando foi abordado por um homem armado. Quando desceu do veículo com as palmas para cima, o assaltante o reconheceu e retirou uma máscara, revelando não apenas o largo sorriso como também a identidade: era Michael, também conhecido como Maike Doidão da Favela. Guardou a arma para dar um abraço em seu advogado e logo explicou porque estava sem a tornozeleira – de uma maneira que nem Kalisto queria saber, a retirou há três dias e a colocou numa das galinhas que morava em seu quintal.
  - Aí, pode ir, meu patrão. – Michael se despedia dele enquanto Kalisto colocava o cinto – Escuta, essa área aqui eu dou conta com os meus. Pode ir tranquilo que vou avisar pros cria não fazer nada contigo e nem com o seu carro.
  Via a senhora segurar a barriga de tanto rir.
  - Pois é, Micaela. Advogado criminalista passa por isso pelo menos uma vez.
  Mia chegou quinze minutos depois com as compras em três bolsas.
  - Está melhor, mãe. – comentou aliviada e batendo a porta.
  - Bem melhor. Falei que não havia porque se preocupar.
  - Agora são quase três da tarde. – Kalisto avisou após checar o horário pela tela do celular, guardado no bolso dianteiro da calça – Posso leva-las para almoçar. Ainda não comi nada e adoraria ter companhia essa tarde.
  Antes de Micaela sequer abrir a boca para responder, a garota de cabelos negros disse:
  - Claro! Queremos, sim! Se tem uma coisa que quero, quer dizer, queremos é almoçar logo! – a jovem faltava dar pulinhos de alegria sentada no banco.
  A encarando pelo retrovisor, a animação contagiante lembrou um pouco de Rafael.
  - Mia, minha filha... – passou a mão pelo rosto sem se surpreender com a atitude da garota – Pelo menos uma única vez se faça de rogada.
  - É ruim, hein? Estou com fome. Não vejo a hora de almoçar e depois escolher uma sobremesa. Se puder, é claro. – tirou as rasteirinhas e cruzou as pernas magras colocando o cinto.
  - Por favor, perdoe a minha filha. Não quero incomodar.
  - Não vai. Serão bem tratadas na minha companhia hoje.
  Antes de começar a dirigir encarou o retrovisor por cinco segundos. Mia estava na mesma posição de antes e tamborilava ansiosa os dedos nos joelhos com o típico sorriso de criança travessa nos lábios.
  - Igualzinha ao irmão.
  Micaela detectou um misto de tristeza e saudade no comentário dele quando começou a dirigir, mas não questionaria nada.
  O almoço não poderia ser melhor. As levou a um restaurante de sua preferência. Os funcionários não fizeram desfeita e nem torceram os narizes com a entrada das duas no ambiente, já que estavam acompanhadas de Kalisto, quem costumava frequentar o lugar com outros advogados. Comeram salada de legumes, frango, arroz e mais um ou dois pratos, com direito a sobremesa para as duas.
  Mia estava radiante de felicidade e decidiu se fotografar em diferentes pontos do restaurante. Nem mesmo o belo corredor escapou de suas lentes ou alguns elementos, como um botão de rosa vermelha ou um belo lustre dourado.
  As deixou em casa pouco antes do anoitecer.
  - Filha, deixa eu falar uma coisa antes do seu irmão chegar. – destrancou a porta e colocou as compras no chão – Nem uma única palavra sobre hoje para ele. Ouviu bem?
  - Sim, mãe. Só não entendo o motivo. Ele e o Rafa não eram namorados?
  Apesar de Rafael nunca ter admitido na época, era visível para elas que Kalisto era bem mais do que amigos quando conviviam. Era comum o filho passar o final de semana inteiro no apartamento dele e retornar pra casa apenas na tarde de segunda-feira, às vezes já almoçado. Isso sem mencionar a química dos dois. Portanto, longe dos ouvidos do pai e do casal, mãe e filha costumavam chamar Kalisto de cunhado e usar de Kafael para se referir a eles.
  - Eram. Ou, pelo menos, era o que aparentavam.
  Foram para a cozinha enquanto conversavam e começaram a guardar as compras.
  - Foi estranha a forma como se distanciaram. O Rafa simplesmente chegou aqui e não mencionou mais o nome do Kalisto.
  - Por isso mesmo não quero que ele saiba. – começou a guardar os frangos congelados – E nem tente descobrir porque se afastaram. Sei como a senhoria é fofoqueira.
  - Eu? – prolongou a letra “e” com a mão no peito numa entonação dramática e exagerada – Esse rostinho fofo e ingênuo aqui é incapaz de cometer tal atrocidade.
  Após uma avaliação de cima abaixo, Micaela disse:
  - Quem não te conhece te compra, menina.

  Na primeira semana do mês seguinte Rafael estava mais efusivo que o costume e num bom humor admirável. E motivo tinha pra isso.
  Recebeu uma notícia da mãe avisando que um amigo dela conseguiria ingressá-lo na faculdade com uma bolsa de estudos que supriria o valor do deslocamento, da alimentação e qualquer outro gasto oriundo da faculdade – eles só não imaginavam quem era o responsável por essa bolsa de estudos. Então não existia empecilhos para ele retornar aos estudos.
  Na primeira oportunidade correu para conversar com Cacá, o cabelereiro e chefe do salão de onde trabalhava. A reação não poderia ser melhor. Combinaram que o horário dele seria centrado no período do dia.
  Preparou-se para retornar às aulas tirando os cadernos com as anotações da estante. Sempre que tinha um tempo livre o usava para se atualizar nas matérias e alegrou-se por não ter se esquecido por completo do conteúdo. Deu a notícia para os amigos mais próximos numa chamada de vídeo e decidiram sair para comemorar num bar de esquina de onde Bruno morava. Mesmo que só tivesse o suficiente para pagar a sua parte da bandeja de petiscos cujo valor era bem barato, uma água e uma cerveja, nada tiraria seu contentamento e nem sua empolgação.
  E foi nessa boa energia que entrou na sala, com um sorriso mostrando dentes até demais. Não tinha como comprar outras roupas, então usou as que tinha. Um short jeans colado, tênis branco e uma blusa branca estampada. Colocara um delineador discreto e um gloss transparente para realçar a beleza, além de pequenos brincos nas orelhas.
  Talvez aquela roupa não fosse a ideal para o curso, mas se lembrou do que a moça costumava dizer pra ele:
  ‘’Moço, não se deixe abater quando estiver triste ou incomodado com alguma coisa. Se enfeite. Passe maquiagem e vista-se da forma como mais lhe agradar. Quanto mais triste estiver, mais bonito deve estar. Sabe por quê? Ajuda. E não é pra você se enfeitar pra um par de calça ou par de saia, não, apesar de não gostar de mulher. É se pôr bonito pra você porque merece olhar para um espelho e gostar da imagem refletida.”
  Ele estava feliz, sim, mas igualmente inseguro – principalmente após dar a notícia para André.
  O atual namorado fora visita-lo no dia seguinte da sua mãe avisá-lo sobre a possibilidade de retornar para a faculdade. Havia retornado de viagem há três dias e foi recebido por Rafael em um prolongado abraço que demorou a ser retribuído.
  - Rafael, calma. – gentilmente retirou os braços ao redor de si – Assim vai me sufocar.
  - Ai, amor, desculpa. É que estava com saudade. – sentou no sofá num ar ainda feliz.
  - Eu sei. É que você é meio grudento. – deu um beijo no topo da cabeça antes de se acomodar ao lado dele – Só precisa dosar.
  - Ah... Está bem.
  O ruivo não demonstraria que aquele comentário, mesmo sendo pronunciado com suavidade, lhe gerasse incômodo.
  - Trouxe um presente pra você.
  - O quê?
  Retirou um embrulho do bolso e o entregou para o outro. Mais uma vez Rafael disfarçaria bem. A pulseira era até bonita, mas não costumava usar pulseiras e nem peças prateadas.
  - Que lindo, amor! Obrigado! Já sei até onde estrear.
  - Onde? Em algum dos shows? – a voz continha certo desdém que Rafael ignorou.
  - Não, bobinho. No meu primeiro dia de aula.
  - Como? – ergueu uma das sobrancelhas sem compreender.
  Quando explicou animado que retornaria para o curso de Direito, André não pareceu gostar.
  - Tem certeza? Não está meio velho pra isso, não?
  - Que é isso, André? Tenho nem trinta anos. – o repreendeu.
  - Sei lá. Vai que você começa a ficar sem tempo pra mim na sua agenda. Eu também mereço atenção, sabia?
  - Ah, menino manhoso. – deitou a cabeça no ombro – Vai ficar em segundo plano, não. Vou coloca-la no meu primeiro dia de aula para dar sorte.

  Não sabia como conseguiria encaixar seus horários e nem como seria no período de provas, porém o primeiro e mais relevante passo deu: retornar para o seu amado curso.
  Arrependeu-se amargamente de ter recebido aquele presente, principalmente de tê-lo colocado no pulso. Não trouxe sorte nenhuma. Pelo contrário. Trouxe azar. Definitivamente o objeto foi amaldiçoado por alguma bruxa de séculos passados. Idiota foi ele por não ter compreendido os sinais de que a pulseira não lhe traria felicidade. André mencionou seu trabalho artístico, a pulseira era de uma cor que ele não gostava e ele nem usava pulseiras.
  Fez ressurgir das cinzas uma pessoa que deveria pertencer ao seu passado e jamais sair de lá. Aliás, se tivesse sorte, seria levado pro inferno pelo Lúcifer em pessoa enquanto o assistia ser puxado pela manga daquele terno azul marinho comendo uma pipoca e tomando Coca-Cola.
  O lado bom é que ninguém mais prestava atenção nele, então não notaram sua palidez, seu olhar aterrorizado, o tremor nas mãos e nem o corpo enrijecido com a entrada do professor, quem foi direto para a sua mesa.
  - Boa noite. Meu nome é Kalisto Andrade e serei o professor dessa turma.

Capítulo 2

  O dia de Kalisto começou maravilhosamente bem. Ou melhor, num apanhado geral, a semana foi bem promissora. Recebeu a notícia de ganho de causa de dois clientes, e o alto valor já havia caído na conta. Conversara com a mãe e descobriu que o pai voltou a perguntar pelo filho – apesar de o patriarca não aceitá-lo por ser da comunidade gay, não deixou de amar nem de se preocupar com o advogado. Outros clientes o procuraram para serem representados por Kalisto Andrade judicialmente por indicação de profissionais renomados da área de saúde, e havia um show que iria acompanhado pelo amigo Gustavo Leal horas mais tarde, naquela noite de sexta-feira, ao término de sua aula na turma de Direito da faculdade federal. Embora não tivesse o costume de se interessar por aqueles shows em casa de festa, a artista era alguém que sempre quisera presenciar a performance – e certamente sentiria muito orgulho do que veria em cima daquele palco com diversas pessoas a ovacionando.
  Como tinha sido um aluno reconhecido em sua turma e a carreira deslanchava ao ponto de ter seu próprio escritório em tão pouco tempo, um professor com quem ainda tinha contato o indicou para substituir uma professora que havia se aposentado. Aceitou o emprego antes de conversar com Micaela, então imaginou, no máximo, ver Rafael pelos corredores, na biblioteca ou no refeitório. Nada de alarmante. Apenas situações onde se cruzariam e não precisariam conversar nem ter maiores contatos. Para isso, estava pronto.
  Porém, nada o prepararia para quem encontraria ao passar pela porta da sala de aula.
  Rafael Siqueira, seu ex, a quem não via há quatro anos, estava sentado numa das cadeiras da frente, completamente petrificado. Os olhos arregalados, o maxilar travado, as narinas dilatadas e os ombros encolhidos eram sinais claros de que preferia ver o próprio Lúcifer passando pela porta do que Kalisto Andrade.
  A reação, apesar de não muito positiva por ser recheada dos indicativos de que não estava exatamente feliz pelo inesperado reencontro em circunstâncias tão estranhas, serviu para lhe mostrar que o ruivo não era completamente avesso a ele. Não era um qualquer em meio à multidão, uma pessoa dentre as demais que passaria batida e cujo rosto não seria identificado em meio a tantos outros. Pelo contrário. Seria reconhecido – e, no íntimo, claro que mentiria caso lhe indagassem, isso lhe gerou certa ansiedade, porque poderiam ter outros sentimentos colidindo ou ressurgindo no coração do rapaz.
  Enquanto Rafael, que fora um livro aberto, era incapaz de esconder seus sentimentos, o mais velho conseguia disfarçar bem até demais. Entretanto – e torcia para o ruivo não lembrar de tantas características de sua personalidade e comportamento –, quem o conhecia melhor, após uma rápida avaliação, conseguiria perceber que ficara igualmente impactado pelo reencontro graças às mãos trêmulas. Quando estava altamente nervoso ou ansioso, suas mãos começavam a tremer, especialmente quando não existiam meios para extravasar aquela tensão.
  Pena que não era o único motivo para estar tão alterado, mesmo não demonstrando.
  Assim que o viu, percebeu que o tempo apenas lhe favoreceu, realçando a sua beleza e dando ao seu corpo as proporções certas. Não conseguia compreender como isso era possível se, caso sua memória não lhe pregasse uma peça, as medidas corporais eram praticamente as mesmas. Entretanto, de alguma maneira, estava mais atraente. Se antes era capaz de fazer o advogado de um metro e oitenta e cinco gozar em poucos minutos em sua boca, certeza que hoje em dia ficaria duro apenas pelo simples ato de segurar sua mão ou entrelaçar os dedos. Os cabelos estavam em sua cor natural, em pequenas ondas, e as pernas tornaram-se mais torneadas, principalmente quando envoltas num tecido jeans justo. Se as coxas estavam convidativas ao ponto de desejar sentir a textura delas novamente, imagine como seria a...
  Inferno, ainda desejava o homem. Se tivesse oportunidade, o levantaria daquela maldita cadeira para beijá-lo. Arrancaria as roupas, as rasgando com as próprias destras, e o faria seu ali mesmo. O pegaria com gosto e se deliciaria com os gemidos agudos que sairiam daquela boca que tanto desejava beijar há tanto tempo. Espalharia beijos pelo corpo alvo inteiro, desde a testa até a ponta dos pés. O marcaria nos quadris e na bunda com tapas e apertos para impedir que qualquer outro homem se aproximasse, já que perceberia que Rafael já tinha dono. E o mais importante: mergulharia tão fundo nele e tão rápido que esqueceria até o próprio nome, importando-se somente com o prazer dado por Kalisto e na paixão que ainda os consumia.
  Precisou se concentrar na aula e no conteúdo dado. Descobriu que não poderia deixar seus olhos se encontrarem com os de Rafael porque travava. As palavras simplesmente não saíam da boca quando o encarou duas vezes durante o discurso, então achou mais prudente evitar o contato com aquelas íris instigantes – inclusive porque o viu passar a mão nas pálpebras como se secasse lágrimas de maneira disfarçada. O seu coração se apertou ao constatar isso. Apesar de o passado dos dois conter sofrimento e o ruivo ser o responsável por fazê-lo parar no hospital devido a questões emocionais, não gostava de vê-lo triste – e sentiu-se um perfeito exemplo de filho da puta por provocar uma emoção negativa nele.
  Quando terminou a aula, já atrás da sua mesa de professor, falou:
  – Estão liberados. Só uma coisa. Um de vocês entrou nessa turma de última hora. Quero falar com você pra adicionar o seu nome na lista de chamada.
  Demorou-se a guardar seu material para ir até ele. Independentemente de estar atrasado ou não para se encontrar com os amigos devido ao remunerado compromisso agendado há meses, não gostaria de ter uma plateia os observando. Afinal de contas, era o seu primeiro contato com o ex. Muito poderia dar errado ali, e não queria sair prejudicado em um momento tão importante como aquele – e não tinha em mente apenas o retorno para a faculdade como uma questão preocupante.
  Quando a última aluna fechou a porta, se aproximou de Kalisto, que estava sentado na cadeira mexendo no celular.
  – De todos para quem imaginei dar aula, o seu nome jamais se passou pela minha mente. – Deixou o aparelho em cima da mesa para fitá-lo.
  Rafael queria arrancar aquele sorriso cínico desenhado no rosto moreno com as próprias unhas – de preferência com as da sua drag, por serem maiores. Encará-lo sem que os sentimentos emergissem era um desafio. Eram lembranças, sensações, falas, risadas, sons, texturas, sabores... Havia um vasto conteúdo vivido entre ambos no passado para conseguir ser ignorado.
  Por outro lado, não era mais o mesmo Rafael de 22 anos. Aquele tão fragilizado, que mais parecia um trapo por meses e completamente apagado. Não permitiria transparecer o quanto a presença daquele homem o incomodava, então aproveitou os ensinamentos da moça de não abaixar a cabeça. Pôs-se altivo, empinando o nariz e com uma expressão orgulhosa na face.
  – Acredite, estou tão satisfeito quanto você. – Colocou uma das mãos na cintura.
  – E aí? Como anda a sua vida?
  Rafael achou a pergunta tão sem nexo que riu de nervoso.
  – Não podia estar melhor. – É claro que mentiria. – Estou bem, feliz... Até namorando, acredita? – Finalizou com um toque ácido na voz.
  – Jura? – Kalisto ergueu as sobrancelhas, não conseguindo disfarçar como detestou ouvir as palavras. – E quem é o felizardo?
  – O André. Deve se lembrar dele.
  – Ah, lembro muito bem. – Havia certa agressividade nas feições que transpareceram na voz. – O seu amiguinho era tão íntimo seu que preferiram elevar o patamar da relação, né? – Tamborilou os dedos na mesa, deixando o ciúme transparecer.
  Óbvio que já sabia do relacionamento – e tinha verdadeiro repúdio quando se deparava com alguma foto da dupla nas redes sociais. Porém, ouvi-lo contando aquilo com tamanha satisfação lhe embrulhou o estômago.
  – Ele é ótimo. Não sabe como o meu atual me faz bem.
  Fingiu empolgação, soando quase como se o atual fosse sua primeira paixão na vida. Tinha um duro sorriso no rosto ao mentir e mordeu o lábio inferior, parecendo um adolescente cheio de hormônios.
  – E imagino que não demorou nem um pouco para cair nos braços dele, certo, certo? – A voz saiu fria e a expressão era completamente impassível. Não conseguiu esconder a raiva pelas declarações. Afinal, havia limite para tudo – e o moreno estava chegando no seu.
  – O André é bom no que faz. Eu seria um tolo se não aproveitasse, não acha?
  Queria atingi-lo. Depois de tudo o que fez ao brincar com seus sentimentos, não seria justo se Kalisto não sofresse retaliação. O ruivo passou por um inferno sozinho, sem nenhum pingo de coragem para explicar a humilhação que sofreu por causa do ex. A única pessoa que sabia era Bruno, quem conseguiu lhe arrancar a confissão com a ajuda da bebida meses depois.
  Então, sim. Merecia demonstrar estar ótimo e se mostrar dono de si.
  Pelo menos era isso o que ambos tentavam mostrar um pro outro. Na prática? Apenas deixaram clara a mágoa, o ressentimento e que os sentimentos continuavam ainda latentes, apesar de não verbalizarem nada.
  Deveria saber que aquela era a pergunta errada para realizar. Afinal, conhecia o temperamento do ex. Sabia que, desde que não estivessem em público, o mais velho era capaz do inimaginável – e nunca reclamou disso. Em meio a uma multidão? Desde que os demais não presenciassem nada, não havia motivos para se preocupar – aí precisava ser a mente sensata, mas sempre terminava com uma nova história pecaminosa que jamais seus amigos poderiam saber para manter a dignidade intacta. Numa dessas brincadeiras, pensou se era daquela forma como Tarzan e Jane se sentiam quando transavam numa rua deserta, escondidos apenas pela noite, a má iluminação dos postes e as folhagens de uma árvore cuja copa era bem cheia.
  Num rompante, ergueu o corpanzil sem quebrar o contato visual com Rafael, que ergueu a cabeça para continuar a encará-lo. A proximidade era absurda e a tensão entre os homens quase palpável. O aluno queria socá-lo por se tornar ainda mais atraente com as tranças nagô e a barba rala – e bater em si, já que, caso desse vazão aos seus desejos, pularia no colo do ex para terem uma recaída memorável.
  Kalisto se perdeu no verde daqueles olhos que lhe transmitiam tanto amor, tanta devoção e tanta sinceridade no passado. Queria, desejava e talvez precisasse voltar a ser encarado assim pelo ruivo, que era o responsável por levá-lo à loucura quando o provocava e o fazia sentir-se em casa quando o abraçava.
  Ao notar que a raiva do baixinho se dissipava, dando lugar a algo como a saudade – ou talvez fosse a sua mente tentando lhe enganar –, inclinou-se devagar na direção dos lábios carnudos. Parou por alguns instantes, vendo a respiração pesada do outro, como se este se segurasse para não avançar e quebrar aquela mínima distância.
  Para evitar cometer algo de que se arrependeria no futuro, Rafael esforçou-se para dar dois passos para trás sem baixar sua guarda. Era uma ação prudente, já que permanecer daquela maneira começava a mexer com seu coração. Pelo menos era esse o plano.
  Ao dar o primeiro passo, Kalisto o segurou pela cintura do jeito que sabia que o ruivo gostava. A pressão causada pelo braço forte gerava arrepios em sua pele, e a mão usava de um pouco mais de força, como se almejasse tocar a pele macia e firme desde que passou pela porta da sala de aula.
  – Não precisa fugir de mim. – Murmurou com a voz grave e com o ar de luxúria entre eles se intensificando. – Achei que eu já havia deixado isso claro pra você no passado.
  Mentiroso. Kalisto lhe mostrou que deveria e precisava, sim, fugir dele. Fugir pra longe, pra um lugar onde jamais se encontrariam ou sequer se avistariam em nenhuma hipótese. Foi o responsável por incontáveis noites de choro silencioso em seu quarto, abafados e silenciados com a ajuda do travesseiro.
  – Respondendo à sua pergunta, sim. – Concordou após minutos de silêncio, em que se encararam com certa raiva, mágoa e desejos reprimidos. – Seria um tolo. – Levou a boca até a pequena orelha, onde prosseguiu e adorou vê-lo fazer um movimento específico de quando costumava provocá-lo na região com a língua ou o toque dos dedos. – Afinal, se ele te fode bem, é o que vale.
  Rafael estava bem longe de ter orgasmos tão intensos com André como tinha com Kalisto, mas não revelaria isso.
  Kalisto, por outro lado, não imaginava que Rafael não tivesse nada a perder e que estava mais ousado nos últimos anos. O mais novo virou o pescoço minimamente, o suficiente para conseguir roçar os lábios na barba rala. Arriscou-se a tocá-lo com as palmas no peitoral. Não recebendo nenhuma reação negativa, as deslizou lentamente, sentindo-o aumentar mais o aperto e mordiscar o ombro. Parou quando sentiu o cinto de couro.
  – É só isso, professor? Ou você está interessado em outras áreas da minha vida? Não posso demorar, porque tenho um compromisso do qual não posso me atrasar.
  Se refreou de responder um “eu sei”, então disse, afastando-se por completo do toque do menor:
  – Pode ir.
  Sentou de volta na cadeira como se não houvesse acontecido nada ali.
  – Não precisa que eu te dê meu nome?
  – Eu sei de várias coisas sobre você, inclusive o seu nome completo. Deixa que sou capaz de me virar.
  Sem se despedir, Rafael empinou o nariz, deu as costas pro ex e, a passadas firmes, passou pela porta.
  Se antes o advogado endureceu com o diálogo a sós com seu menino, agora, vendo aquela bunda farta marcada pelo jeans, seu pau estava cheio e dolorido dentro da boxer, implorando pela atenção do ex.
  Apesar de o rapaz ter ido embora, não foi isso o que houve. Aproveitou o corredor vazio para observar o moreno do outro lado da porta. Notou como o homem estava perturbado. A expressão alternava entre a mágoa e a raiva. A respiração pesada não o ajudaria a se acalmar e já tinha desatado o nó da gravata numa tentativa de conter a irritação. Por fim, pegou uma caneta sobre a mesa. Num único movimento, se colocando de pé, a arremessou longe, berrando:
  – Inferno!
  Apoiou as mãos na mesa com o corpo inclinado. Só então Rafael foi embora.

  Chegou na casa de Nichole com a sua mala já pronta para o show. Quando ela, Victor e Morgana viram a cara dele logo foi jorrado de perguntas.
  - Gente, escuta, o babado é forte, mas prefiro não falar agora. Juro que conto quando estivermos voltando da casa de show. – abriu a mala de rodinhas já retirando o seu figurino – Quero deixar a energia lá em cima.
  - Mas está tudo bem, Rafa – pranchando os cabelos lisos da franja, Nichole indagou sentando ao lado dele com a maquiagem pela metade.
  - Tirando a vontade de socar a cara de um filho da puta, sim. – apanhou a lace castanha ajeitando os fios e a colocou no braço do sofá com cuidado.
  - Se você quiser, conheço uma galera de Jacutinga e de Belford Roxo que podem dar um jeito nisso. – Morgana falou avaliando-se no espelho e decidindo colocar mais sombra na pálpebra.
  - Seria uma boa ideia. – Rafael riu – Mas não seria inteligente da minha parte, principalmente porque voltei a cursar Direito. Bora melhorar essa vibe porque temos um show da porra dentro de poucas horas. Quero estar mais gostosa do que nunca para arrasarmos naquele palco, suas lindas!
  - Agora, sim, está falando como a princesa que a Disney não tem. – comentou Victor lhe entregando uma dose do vinho que estava tomando do gargalo antes de ir se arrumar.

  Sexta-feira à noite Kalisto gostava de ir para o seu apartamento e usufruir de uma boa noite de sono, já que nos finais de semana poderia acordar mais tarde. Daria comida para Cristal, quem o receberia em casa ronronando e se esfregando em suas pernas. Tomaria um prolongado banho quente para relaxar os músculos. Em seguida vestiria uma samba-canção e passaria um tempo em frente à TV assistindo qualquer programa com a gata em seu colo pedindo carinho. Em seguida? Deitaria em sua confortável cama e despertaria no dia seguinte às onze da manhã. Porém, não estava em seu apartamento e sim numa boate.
  Usava uma regata branca que deixava seus braços musculosos evidenciados. A calça jeans e o tênis branco davam um ar despojado. Com a cerveja em uma mão conversava com Gustavo:
  - O que te levou a quebrar a sua amada rotina de sexta-feira? Está interessado em alguém daqui? – precisava gritar na orelha do amigo para se fazer ouvir – Algum milagre aconteceu pra querer passar a noite fora.
  - Não foi nada de demais. – tomou um gole da cerveja – Só estava meio enjoado de passar mais uma noite de sexta-feira dormindo em casa.
  - Então por que não aproveita e faz valer a pena? Já perdi as contas de quantos caras estão te secando.
  Realmente, várias pessoas ali flertavam com Kalisto, mas ele fingia não ver. Não eram neles que estava interessado.
  - Sabe que prezo pelo conforto quando transo. E aqui não é confortável.
  - Até parece! Várias vezes aproveitou o banheiro dessa boate para transar quando éramos mais novos. Até hoje quero entender a logística de entrar naquele cubículo com outras duas pessoas e todas saírem satisfeitas.
  Era verdade. Kalisto estava longe de ser puritano.
  Ao checar o celular descobriu que a atração da noite já estava perto.
  - Eu não vou demorar aqui. Quando der a minha hora eu vou. – guardou o aparelho inquieto pois ansiava ver a artista quem subiria ao palco.
  A hora seria quando o show da Princess terminasse – e ele não era louco de perder uma única atualização dela nas redes sociais através do perfil fake.

  Quando Princess subiu ao palco com as duas bailarinas, Nichole e Morgana, mais uma vez o pau de Kalisto endureceu tanto que a calça jeans se tornara desconfortável. Ela era linda. Conhecia os feitos de Rafael, mas não quando estava sob sua persona artística: Princess. Ela era ousada, atrevida, sensual e corajosa no palco. Muito. Até demais. Durante as apresentações imaginava se Rafael teria coragem de fazer o que Princess fazia no palco: provocar o público com sua sensualidade e beleza, além de hipnotizar as pessoas ali presentes pelo seu magnetismo natural. A drag rebolava sem pudor e aquela minúscula saia preta era sua perdição. A mão coçava para erguê-la e deixar um forte tapa na robusta bunda, assim como fazia quando estavam sozinhos antigamente. Sem dúvida o tapa a faria arfar e a instigaria a unir os lábios nos seus cravando as unhas na carne firme.
  A drag de Rafael – e sim, ele sabia quem era por debaixo das roupas e da maquiagem – usava um transparente body rendado preto aberto nas costas e de mangas. A minúscula saia preta brilhosa na cintura dava a visão perfeita para a sua bunda, protegida apenas por um fio dental. Um par de coturnos finalizava o look. A lace castanha ornava com a maquiagem. O que Kalisto queria? Pegá-la pelos braços e retirá-la dali.
  Sabia que Rafael performava e não revelava sua identidade, mas não compreendia o motivo disso. Via como vários homens dali encaravam Princess encantados e desejosos por flertes e talvez passarem momentos à sós. O advogado tinha convicção de que não saberiam tocar nela como ele. Nem de como apertar, em qual intensidade mordiscar e nem a velocidade certa para arrancar agudos gemidos. Apenas Kalisto Andrade era habilidoso o suficiente para leva-la ao ápice do prazer vez após vez – e tomava o tempo que fosse necessário para isso se deleitando com cada reação do corpo.
  - Gente – a drag um pouco ofegante fez uma pausa para recuperar o ar tomando um gole de água numa garrafinha de plástico entregue por Morgana, quem saiu do palco em seguida a tampando – Quem aí estiver com o celular ou algo que faça luz, peço para que todos acendam essa luz. E caso estejam com o coração partido assim como eu estava quando escrevi essa canção, tenham a certeza de que vai passar e vocês sairão mais fortes e confiantes. Agora é o momento de extravasar essa emoção para ela não corroer em vocês. A deixem se esvair dos seus poros com cada nota que cantarei. Entreguem essa dor para o povo de rua leva-la para longe e vocês conseguirem acordar amanhã maravilhosamente bem.
  O instrumental de A Tua Voz começou e a voz tomou conta do espaço. Kalisto conseguia ouvir e até mesmo sentir o ressentimento e a amargura na letra da música. Ficou hipnotizado pela letra sem imaginar o que a originou.

  Rafael compôs A Tua Pele semanas após de ter fugido do apartamento de Kalisto. Deus, como sofreu e sentiu falta dos abraços daquele homem. Mais de uma vez ligou de um outro número desconhecido apenas para ouvir a voz dele – e essa foi a inspiração inicial para a criação da música.
  No íntimo queria encontrar um motivo para o que aconteceu. Qualquer explicação do porquê Kalisto achou sensato machucá-lo daquela maneira era válida. Então decidiu fazer algo: criou uma história. A história de uma pessoa cujo relacionamento acabou devido a conflitos era imensamente mais interessante e plausível comparada ao que o futuro cantor vivia, onde sequer havia conflitos. Pelo contrário. Nas raras ocasiões onde discordavam com algo, conversavam. Nunca elevaram a voz. Era literalmente o relacionamento dos sonhos cheio de cumplicidade, amor, parceira, respeito, confiança e paixão. Então... Por qual motivo foi fadado ao fracasso?
  Sem compreender o processo, a sua persona Princess começava a surgir. Enquanto escrevia a letra – hábito criado na tentativa inconsciente de extravasar aqueles sentimentos por não haver nenhuma outra válvula de escape – e cantarolava a música até juntar tudo e transformar elementos isolados em música se imaginava cantando e performando como drag – maquiado, com as roupas e talvez até argolas.
  Era ela quem havia terminado o relacionamento. Ela brigaria todos os dias em consequência de o cara implicar com os seus trejeitos – e Princess manteria a cabeça erguida convicta de sua força e de seu poder pessoal. Mentiria caso fosse perguntada se a vida estava bem e principalmente: Princess suportaria caso existisse outra pessoa já ocupando o seu lugar ao lado dele?

  Gustavo estava ao lado do amigo durante a apresentação – e o outro estava completamente alheio. Só tinha olhos para o palco. Olhos esses que estavam carregados de inúmeras emoções reprimidas. A mão que segurava a cerveja estava trêmula e segurava a garrafa com força além da necessária.
  Após observar atentamente Princess, falou de maneira despretensiosa:
  - Engraçado. Esse rosto não me é estranho.
  - De quem?
  - Dela. – apontou para frente com o queixo.
  - Acha? Nunca a vi.
  - Sim. Ela lembra o Rafael.
  - Acho que não. São bem diferentes.
  - Tem certeza?
  - Gustavo, qual de nós dois transava com ele? É obvio que eu saberia se fosse o meu ex debaixo daquela maquiagem ou não.
  A resposta irritada deixou o amigo desconfiado, principalmente porque o outro não tirava os olhos do palco nem pra conversar com ele.
  - Se está dizendo...
  Suas suspeitas seriam confirmadas quando, minutos mais tarde, Kalisto lhe avisasse que estava indo. Mais especificamente no momento em que o show terminasse.

  - Porra, é sério que tem tanta gente sofrendo por amor aqui? – disse Princess quando terminou a canção – Nem sei quem são eles ou elas, mas tenho certeza de que vão se arrepender amargamente. Olha o tanto de gente bonita nessa boate. – foi ovacionada pelo discurso – Agora, vou finalizar essa noite com uma música da Beyoncé e da Shakira. O que temos a ver com elas? Já nos apaixonamos por um lindo mentiroso. Bora dançar!

  O advogado escolheu um ambiente onde não seria facilmente identificado, um pouco mais distante do palco, onde ainda havia certa escuridão. E foi ali, parado, que observou cada movimento de Princess desde que ela pisou no palco. Até mesmo o olhar tornou-se mais intenso – e algo dentro dele torceu para que o identificasse na multidão. Talvez fosse efeito da bebida, mas adoraria descobrir a reação do ruivo caso descobrisse – de preferência em sua persona.

  Ao final do show Victor passou no bar para comprar água para as meninas. Enquanto fazia seu pedido, ouviu um homem conversar com um amigo:
  - Escuta, minha hora já chegou. Eu já vou.
  - Você só veio para ver esse show, né? – lhe lançou um olhar de esguelha.
  - Só vou ser sincero em virtude dos nossos anos de amizade. Sim.
  - Sabe, eu já disse, mas volto a repetir. A Princess me lembra alguém ou estou neurótico?
  - Definitivamente está neurótico. – balançou a cabeça em negativa em ar de riso.
  - Hum... – o avaliava de cima abaixo, como se não acreditasse na resposta.
  - Que foi, Gusta?
  - Eu o conheço há mais de vinte anos. Algo me diz que há algo de errado nessa história que não está certo, mas relaxa. Ficarei por aqui. Depois a gente se fala.
  Quando o outro se afastou, Victor interpelou o de regata branca:
  - Desculpa, mas foi impossível não ouvir a conversa de vocês. Veio só pra assistir ao show da Princess?
  - Sim. Ela é uma cantora maravilhosa. A acompanho nas redes sociais, mas não imaginava que dominasse o palco com tanta presença. Foi a primeira oportunidade que tive de prestigiá-la.
  - Ela é ótima, sim.
  Um momento de silêncio se passou entre eles e Victor pôde notar que o estranho observava o lugar metros à frente onde Princess estava com as duas amigas. Elas dançavam entre os demais e se divertiam completamente alheias a conversa de Victor, o videomaker da artista, com aquele homem. Além disso identificou a existência de um certo saudosismo no olhar, como se a mente do desconhecido estivesse longe, presa em memórias carregadas de saudade.
  - Você a conhece? – indagou o videomaker.
  - Como? – pestanejou sendo retirado dos devaneios.
  - A Princess. Você a conhece?
  - Não.
  - Por que está com essa cara, então? – apoiou os cotovelos na bancada, virando o corpo na direção do desconhecido.
  - É que ela me faz lembrar de alguém.
  - Alguém do seu passado que foi importante pra você? – o pressionou carregado de curiosidade.
  - Admito, foi alguém importante pra mim.
  - Sem querer me intrometer, qual foi a questão entre vocês? – colocou a mão nos bolsos para pagar as garrafinhas de água dispostas na bancada pelo garçom.
  - Ele era um lindo mentiroso. Esse foi o único problema. – deu um sorriso depressivo – Não é nada de demais.
  Apesar das grandes proporções o outro estava cabisbaixo. A postura continuava ereta, entretanto era como se o brilho interno dele estivesse ligeiramente apagado. E foi graças a áurea carregada de lástima que Victor lhe ofereceu.
  - Se quiser posso leva-lo pra se apresentar e bater uma foto. Vai que seu ânimo melhora? Ela é super receptiva com o público e adora bater fotos. – planejava apenas elevar o ânimo dele. Pena que não surtiu o efeito imaginado.
  Estranhou como o moreno sobressaltou. A ideia pareceu assusta-lo.
  - Ah, não, não precisa. – gesticulou com certo nervosismo – Aliás, foi bom conversar contigo. Quem sabe não nos vemos por aí?
  Sem se despedir se afastou, deixando Victor intrigado com a conversa e até com certa dó.

  Às cinco e meia da manhã os quatro entraram no Uber, todos espremidos na parte detrás do veículo.
  - Viada, por favor, você está me matando de curiosidade até agora. – Nichole falou assim que fecharam a porta – Que merda aconteceu hoje pra chegar na casa da Nic com aquela cara de cú?
  - Cara de cú mal comido, só se for. – comentou Victor.
  - Bem, prepara aí que a história é longa. – retirou um fio da lace da boca – Adivinhem que é o meu professor da faculdade?
  - Ah, não sei... – Nichole tomou um gole da garrafinha de água.
  - Ninguém mais, ninguém menos que o meu ex filho da puta!
  - Quê?! – as três vozes saíram em uníssono e quatro pares de olhos o encararam. Três dos amigos e um do motorista, quem não esperava pela informação.
  - Exatamente o que seus ouvidos ouviram.
  Eles não sabiam bem o que aconteceu entre ele e esse ex. Apenas que o cara foi um tremendo babaca com Rafael e partiu seu coração.
  - Imagino a sua cara quando o viu entrando na sala. – Nichole gargalhou.
  - Eu fiquei pra morrer! Queria que o chão o engolisse ali. Fujo desse cara mais do que o diabo foge da cruz, para ele aparecer na minha vida de novo do nada?! Tipo, quais são as chances dessa merda acontecer?
  - Pri, tome cuidado pra não se envolverem muito. – avisou Morgana – Se ele ainda sente alguma coisa por você, é capaz de se aproximar aos poucos. Ou tentar.
  - Nem fodendo que vou deixar aquela praga ruim chegar perto de mim. Sofri de dar dó por causa dele. – gesticulou certa das palavras proferidas – Não me tornei essa gostosa da porra pra deitar na cama daquele escroto na primeira oportunidade.
  - Amiga, é mais fácil nos mostrar uma foto dele, sabia? Pelo menos para termos um rosto em mente. – Nichole explicou.
  - Segura aí.
  Princess retirou da bolsinha o celular, onde buscou a rede social de Kalisto.
  - Pronto. – entregou para as meninas que se sentaram lado a lado.
  - Gostoso! – soltou a loira.
  - Gato. Pena que não presta. – finalizou a outra.
  - Me dá aí pra eu ver também.
  Com o celular na mão, Victor arregalou os olhos sem comentar nada por alguns segundos enquanto os outros três conversavam. Para ter certeza da imagem, retirou os óculos de marrons hastes quadradas proporcionais ao rosto.
  - Pri... – pronunciou o apelido prolongando a fonética da sílaba.
  - Fala.
  - Tem certeza que é esse cara? – ainda tinha os olhos cravados na tela, passando as fotos do homem.
  - Tenho, ué.
  - Mas assim... Certeza absoluta, mesmo? – pestanejou para ter certeza do que via e voltou a colocar os óculos – Aquele tipo de certeza que é irredutível e que você apostaria dinheiro porque sabe que lucraria com isso?
  - Eu chupava o pau desse homem, Vic! Como não iria saber qual é o rosto dele?
  - Escuta... – passou a mão pela testa – Você não vai surtar, não? É que tenho uma coisa pra te falar.
  - Desembucha logo. – apertou de leve a bochecha do amigo em gesto terno.
  - Se eu te falar que ele estava hoje na casa de show só pra te ver você acredita?
  - Como é?! – pestanejou em sinal de confusão e estranheza.
  - Exato.
  Em questão de segundos resumiu conversa que teve com Kalisto.
  - E amiga, posso jurar que ele não estava muito bem. – finalizou – Sei lá. Parecia estar meio triste, com saudade... Não sei. Eu deveria ter dado um jeito de bater uma foto da cara dele enquanto te observava. Até eu fiquei com dó.
  - Pois que sofra! – respondeu ácida – Eu é que não vou ficar mexida só porque o senhor mentiroso ficou todo tristinho.
  Durante os minutos seguintes Princess não disse mais nada. Os amigos confabulavam entre si enquanto ela, de maneira bem atípica, se manteve calada, com a perna cruzada, um braço sob o peito apoiando o outro pelo cotovelo enquanto movia devagar o dedo anelar e o polegar entre si. De tão concentrada nos próprios pensamentos não ouvia mais os amigos. Avaliava o comportamento de Kalisto e usou como comparação o relato de Victor. Era evidente que o homem estava incomodado em se deparar com Rafael, mesmo após quatro anos. O motivo que o intrigava e o instigava a preencher as lacunas em branco daquela equação permanecia em oculto. As ações dele, desde as mãos trêmulas na sala de aula até a postura tristonha descrita pelo produtor musical e videomaker eram amostras de quem ainda estava abalado. Deus, a dedução em si era quase cômica devido aos eventos de anos atrás.
  Montada, Princess aflorava algumas características de Rafael, dentre elas a ousadia e a coragem. Ela não tinha medo e irradiava poder. Rafael era mais medroso, então se impedia de arriscar-se em algumas coisas e acabava perdendo oportunidades ao longo da vida. Princess, não. Aliado a isso, tanto quanto Rafael ela precisava de respostas. Não gostava de espaços em branco. Era uma necessidade genuína que esses espaços serem preenchidos.
  - Ih, gente... Conheço essa cara. – Nichole comentou enquanto se abanava com o leque após ver a expressão de Princess.
  - Cara de quem vai aprontar. – completou Victor e Morgana.
  E sim.
  Rafael iria aprontar.
  Na faculdade. Pra cima de Kalisto – e usaria um pouco da ousadia de Princess a seu favor.

Capítulo 3

  Quando chegou em casa entrou silenciosamente para não acordar a mãe e nem a irmã, ambas dormindo em seus respectivos quartos. Deixou a sacola com pães comprados na padaria na mesa e rapidamente preparou um café para elas.
  Foi para o seu quarto e fechou a porta. Antes de se desmontar, encarou seu reflexo no espelho do armário e gostou do que viu.
  Princess era linda. Atraente. Forte. Sensual. Ousada. Atrevida. Dona de si. Virtudes essas que Rafael ainda não encontrara em si quando estava como ele mesmo – e era por causa disso que adorava Princess.
  Aproveitou para bater uma foto e mandar para André na esperança de que o homem se acostumasse com a sua imagem de drag.
  Estou gostosa assim, amor?
  O namorado foi o único quem não concordou com a sua persona artística. Era preconceituoso sobre o assunto.
  No começo foi bem difícil para Rafael porque era algo importante e poderia, sim, dar bons frutos e ajuda-lo economicamente, então não desistiria de ao menos tentar. O resultado? Os conflitos com o atual foram vários. André não aceitava ter um namorado Drag Queen. Argumentava que as pessoas iriam rir da montagem, que seria vergonhoso, seria dinheiro jogado fora com maquiagem e figurino... As brigas foram tão feias que, uma vez, empurrou Rafael, quem precisou se segurar numa estante para não cair.
  O celular vibrou quase imediatamente mostrando a chegada da mensagem. Ao lê-la perguntou-se porque ainda buscava a aprovação dele.
  Ridículo.
  Engoliu em seco voltando a sentir-se inseguro, envergonhado, triste, humilhado, desinteressante e sem valor nenhum – sentimentos esses que surgiram juntos pela primeira vez na última vez quando esteve no apartamento de Kalisto e o incentivaram a fugir dali.
  Respirou fundo como maneira de lutar contra as lágrimas. Elas não combinavam com Princess. Apenas lhes dava a permissão de caírem quando não estivesse montada – e assim aconteceu, deitando-se para dormir naquela manhã de domingo.

  O restante daquele mês correu muito bem para Rafael, embora os compromissos tenham sido vários. Com a mudança de rotina graças ao retorno da faculdade aproveitou os intervalos entre um compromisso e outro para estudar. No salão de beleza, enquanto não surgia algum cliente, se dedicava aos estudos fazendo anotações e lendo o conteúdo das aulas anteriores nos cadernos. Não tinha muita diversão – exceto quando assistia às aulas de Kalisto.
  Por vezes foi necessário segurar o riso pelas reações do homem mediante suas provocações. O ruivo sabia que era atraente e lindo – duas características distintas capazes de caminharem juntas. Graças a isso usou seus atributos para provocar o advogado incentivado pelo que Victor lhe contou sobre a conversa com o ex no último show. Rafael não era burro e nem ingênuo. Sabia, sim, que atraía os olhares de Kalisto desde quando se conheceram. Porém, os anos se passaram e não tinha certeza se ainda causava o mesmo impacto sobre o moreno como no passado, então resolveu testar aos poucos.
  Na segunda aula usou um de seus shorts jeans curtinhos que o outro particularmente apreciava. Na época costumava admirá-lo em pura volúpia quando os trajava, então a escolha pela peça não foi acidental.
  Teve suas dúvidas sanadas ali, logo na entrada de Kalisto para lecionar. O olhar demorou-se em suas pernas cruzadas – pernas essas que, embora não soubesse, fizeram a mão do professor coçar para agarrar com firmeza – e por um momento o homem pareceu esquecer de como usar as cordas vocais, principalmente quando os olhares dos dois se encontraram. Havia uma expressão específica feita por Rafael capaz de intrigar o mais velho. Era uma linha tênue entre a safadeza transmitida pelo seu magnetismo natural e o olhar lascivo e a inocência nos traços faciais. Aquilo era capaz de enlouquece-lo – e o aluno sabia como atiça-lo.
  Oportunidades não faltaram de inflamar o desejo do outro.
  Uma vez aproveitou que a roupa justa deixava um volume bem interessante entre suas pernas. Quando Kalisto entrou e o encontrou ali sentado na primeira cadeira com as pernas entreabertas teve a bela visão dele lambendo aos lábios sempre que encarava a região – e isso aconteceu várias vezes durante a aula.
  Na outra vez deixou cair propositalmente um pouco de líquido na sua fina blusa nude enquanto bebia água de sua garrafinha de Harry Potter. O tecido imediatamente colou em seu peitoral, mostrando as novas curvas e sua pele, já que a região molhada ficou transparente. Pôde jurar identificar uma frase como “filho da puta gostoso” pela leitura labial enquanto ele mesmo se direcionava para detrás da mesa, de onde não saiu até o final da aula. Rafael demorou a juntar seus pertences para ser o último a sair da sala e confirmou suas suspeitas antes de ir para o corredor. Mesmo sentado foi impossível não identificar o generoso volume naquela calça – o único lado negativo de ser bem-dotado era não poder esconder quando estava excitado.
  Por fim, teve a certeza de que o enlouqueceria quando aproveitou uma conveniência que parecia ter lhe sido entregue pelo Universo. Sua caneta caíra e parara bem embaixo de sua carteira. Agachou-se no chão para pegá-la. Num movimento rápido encostou por um instante o peitoral no piso e esticou o braço para apanhá-la, ficando de quatro – uma das posições que Kalisto mais gostava na cama por ter a visão completa de sua bunda. Durante aqueles segundos estranhou o fato de não ouvir a voz rouca do homem. Ao sentar-se novamente segurou a risada ao se deparar com um Kalisto de queixo caído e olhar vago para onde Rafael havia se agachado.
  - Perdão... Sobre o que eu estava falando?
  O ruivo tampou a boca com as mãos para não mostrar o sorriso.

  Numa sexta-feira, como de costume, o rapaz chegou no período da tarde na faculdade, às cinco da tarde. Especificamente nas sextas-feiras, ao ser liberado do salão, ia direto para a instituição de ensino. Aproveitava o tempo para estudar o conteúdo do curso na sala que, naquele horário, sempre estava vazia. Porém se encaminhou primeiro ao banheiro para melhorar a sua aparência, já que estava na rua desde às sete e meia da manhã trabalhando.

  Kalisto estava estressado. Bastante. Entretanto, não havia ocorrido nada de ruim em sua semana. O seu stress era consigo. Não era possível que seu corpo o traía tão facilmente. Não era algo que pudesse ignorar. Deveria demonstrar para Rafael que a sua presença não o afetava. Infelizmente, para o seu próprio desgosto, não era esse o caso.
  Se fosse seguir os seus desejos o trancaria consigo naquela sala na última aula, arrancaria as roupas com as grandes mãos, o chuparia como nunca antes e se enterraria tão fundo dentro daquele corpo que seu antigo menino jamais se esqueceria dele devido aos gritos de prazer que sabia ser capaz, sim, de ser o responsável. Isso no decorrer da noite até Rafael, já completamente mole, o abraçaria ofegante lhe acariciando as costas e distribuindo beijos por onde os lábios alcançassem.
  Poderia fazer isso? Sim – principalmente porque, se o rapaz era capaz de provoca-lo conscientemente, era um sinal claro de que o corpo dele ainda se lembrava do mais velho e lhe despertava reações quando ambos estavam no mesmo espaço.
  Queria fazer isso? Absurdamente – até porque nunca passou tanto tempo de pau duro no decorrer de um mês graças a alguém.
  Deveria fazer isso? Jamais – não depois de parar no hospital há quatro anos devido ao forte abalo emocional causado por Rafael, apesar do ruivo não ter noção desse detalhe.
  Ainda havia solenidade em sua índole – embora o tesão estivesse sobrepujando-a ao ponto de perguntar-se se ela era tão importante assim na vida de uma pessoa.
  E era justamente com o objetivo de relaxar que se fechou numa cabine do banheiro para fumar – hábito adquirido há anos e que só era exercido em momentos de forte stress que foi intensificado no dia seguinte ao sair do hospital na fatídica noite. Aproveitou os instantes sozinho para relaxar, mas não duraria muito tempo o sossego. Quando ia sair ouviu uma voz bem conhecida. Conhecida até demais para o seu gosto.
  Rafael acabara de entrar no banheiro cantarolando uma lenta música latina.
  Kalisto sucumbiu à vontade de observá-lo num contexto onde o outro agia normalmente sem a presença dele, então abriu a porta menos de cinco centímetros. Havia colocado a mochila na bancada de mármore. De fones de ouvido lavava o rosto. No mínimo estava bonito usando um short larguinho, tênis branco, regada com pedras e o casaco branco. Pela primeira vez teve a oportunidade de admirá-lo e deixar transparecer o afeto que ainda carregava no coração pelo cantor. As feições tornaram-se mais suaves e um leve sorriso desenhou o rosto. Até mesmo a respiração se tranquilizou, ficando mais serena.
  A letra da música saía de sua boca de uma maneira lindíssima. Após lavar o rosto começou a dançar sem notar da plateia composta por uma única pessoa, o corpo respondendo aos anos de aulas de dança de balé e jazz. Se arriscava em piruetas atittude e coupe, além de realizar cambré em diversas finalizações. Explorava o espaço se deixando levar pela melodia. Uma característica de sua personalidade que se estendia para a dança era a expressividade – e o rapaz a usava naturalmente a seu favor quando dançava.
  Satisfeito e mordendo o lábio inferior, parou numa pirueta atittude na meia ponta com os braços em allongé antes de puxar uma quarta posição para se dirigir a pia e terminar o seu trabalho.
  Para a sua surpresa, enquanto passava um discreto brilho labial após fazer um delineado nas pálpebras, o aluno disse:
  - Sabe uma das minhas melhores qualidades? Sou bem intuitivo. Não faço idéia de quem seja, mas sei bem que não tira os olhos de mim.
  E sim, Kalisto esqueceu dessa pequena característica – e se amaldiçoou por isso.
  - Vou te dar duas opções. – pegou o rímel e começou a aplica-lo nos cílios – Ou você mantem a dignidade e se revela ou serei obrigado a abrir cada uma das cabines até te achar.
  O advogado reprimiu um xingamento. Ainda havia esperança dele não passar por aquilo – embora, conhecendo Rafael, sabia que sua dignidade seria jogada no lixo em poucos segundos.
  - Bem, já que escolheu o caminho mais difícil...
  Para o seu azar o ouviu abrir a porta de todas as cabines. Quando estava se aproximando da sua, respirou fundo e saiu mantendo o pingo de dignidade que ainda restava.
  - Não lembro quando se tornou tão ousado e convencido assim. – o moreno caminhou até ficar de frente para o outro.
  - Isso foi bem recente, querido. Gostou? – indagou o acompanhando pelo reflexo.
  - Caso esteja se referindo ao seu comportamento durante as aulas. – encostou as costas na parede a três metros – Nem um pouco.
  - Algum problema? Não lembro de ter feito nada de errado. – mais uma vez aquele contraste entre a safadeza e a inocência estava presente.
  - Por favor – olhou para o lado desdenhando da mentira –, até parece que você se comportaria daquela forma sem motivo nenhum.
  - Em primeiro lugar, não estou te provocando. Em segundo, a culpa não é minha se você ainda fica de pau duro na minha presença.
  O advogado soltou uma risada irônica.
  - Você não tem mais esse efeito sobre mim, Rafael.
  - Não? – se virando pra ele, ergueu as sobrancelhas o desafiando numa expressão bem cínica.
  - Há muito tempo. – soou orgulhoso.
  Em passos lentos o ruivo caminhou até o advogado quebrando a distância e sem quebrar o contato visual. Estendeu as mãos e o segurou pelo pescoço sentindo o calor da pele.
  - Então quer dizer que não repara em mim quando entra na sala?
  Durante o murmúrio, engoliu em seco, perdido por instantes naquela coloração verde dos globos.
  - Nem um pouco. – olhou para o espelho para sustentar a mentira e não ser denunciado pela fisionomia.
  Suavemente o menor o segurou pelo queixo e virou a cabeça até se encararem.
  - Não gostou nem de como o meu short marcava a minha bunda? – o segurou pelos pulsos e colocou as ásperas mãos em sua cintura por debaixo da regata lambendo os lábios.
  - Eu nem me importei com isso. – não se deu conta de que pressionara ainda mais as destras naquela fina cintura demonstrando a dissimulação nas palavras.
  - É, mesmo? – murmurou adorando ver as pálpebras dele se abaixarem, sinal inconsciente de que estava excitado – Se tudo isso que está me falando é verdade, então por que está me segurando com tanta firmeza nesse estado? – deslizou as palmas pelo terno até encontrar o pau entumecido.
  - Porque geralmente essa é a reação que as putas causam nas pessoas. – rebateu com raiva se afastando.
  Compreendeu de imediato que tudo foi um joguinho sujo para testá-lo e seu corpo lhe entregou.
  Por sua vez, o ruivo jogou a cabeça para trás soltando uma sonora gargalhada.
  - Puta. Mil vezes puta, meu amor, tanto na cama quanto fora dela. – respondeu fechando um punho e o descansando na cintura – Pra mim isso é elogio e você sabe há um bom tempo. – terminou estalando os dedos para enfatizar.
  Para a sua surpresa Kalisto havia chegado ao seu limite com a provocação. Rapidamente o mais velho o segurou e, num único movimento, o colocou sentado na bancada de mármore, não hesitando em se acomodar entre as pernas dele. O ruivo não imaginava aquela reação, então, sua expressão, que antes era divertida, transformou-se de súbito. Tornou-se intensa, com o cenho franzido, o queixo caído, os olhos levemente arregalados e as mãos repousadas nos ombros do advogado por instinto. Devido à pouca distância conseguia sentir a respiração contra a pele que logo se arrepiou.
  Apesar das mágoas e de todos os sentimentos reprimidos e carregados de ressentimentos, era como no passado, quando estavam sozinhos e podiam se entregarem ao amor e ao prazer. A tensão entre ambos era palpável e Rafael não se agarrava a ele apenas para se apoiar, mas sim porque queria aquela proximidade dos corpos. Ansiava por ela há tempo demais. Era a presença do ex que almejava, assim como os toques. Kalisto sabia aonde, como e com qual intensidade investir nas carícias para deixa-lo ofegante e fazê-lo gozar. Ele se esforçava, se aprimorava e se deleitava com o resultado – um Rafael quase sem voz, sem controle algum dos músculos e das articulações que lhe agarrava implorando por mais antes de inverterem as posições para o menor deixa-lo tão enlouquecido quanto.
  Pestanejou confuso quando o moreno abaixou o fino casaco branco pelos braços, deixando-o ainda mais exposto. Kalisto descansou a testa no vão entre o ombro e o pescoço e relaxou num forte e prolongado suspiro, permitindo-se receber ali as carícias de Rafael com a ponta dos dedos – dedos esses que envolviam sua nuca e adentravam sem pressa por dentro da gola da camisa. Puxou o ar com força, sentindo o cheiro característico da carne alva.
  Com as respirações intensas e os corações batendo forte, não pronunciou palavra alguma enquanto descia as palmas pela lateral do corpo menor até encontrar a lombar, onde, sem aviso, segurou e a puxou contra si.
  O ruivo arfou fechando os olhos quando as ereções se chocaram. O advogado aproveitou para distribuir beijos pelo pescoço se deixando levar pelo momento, o que gerou no outro os arquejos inesperados, além de fazê-lo cravar as unhas em sua nuca. Não compreenderia como e se repreenderia naquela madrugada, mas encontrou o lóbulo da pequena orelha e a envolveu com os seus lábios, passando a língua de uma maneira que sabia que deixaria o menor se contorcendo em seu abraço – e foi o resultado.
  Precisou crispar os lábios e, dando-se conta de que não seria suficiente, pressionou a boca contra o ombro do homem enquanto o agarrava fervorosamente com os dedos para abafar os gemidos. O mais jovem se remexia, de vez em quando jogando a cabeça para trás e buscando aproximar ainda mais o quadril do ex com as pernas para aliviar a pressão do pau pulsante. A epiderme toda se arrepiava devido ao prazer. Arrepio, esse, que apenas serviu de incentivo para Kalisto, quem lhe castigava o pescoço com a língua.
  Os dois não produziam uma única palavra com medo do momento se quebrar devido às questões mal resolvidas. Ali eram duas pessoas desesperadamente desejosas uma da outra, com tesão reprimido que, após quatro anos, se deparam com a oportunidade perfeita para começar a se esvair – inclusive porque com outras pessoas não sentiam nem um terço do prazer de quando estavam juntos.
  E aquele era só o começo.
  Deveria imaginar que Kalisto não aguentaria aulas seguidas sem nenhuma reação ao seu comportamento e presença. Kalisto Andrade tinha uma libido absurdamente alta – e o cantor não passava longe. Além disso não era adepto a apenas observar de longe sem poder tocar. Não via a menor graça. Isso tudo aliado ao temperamento mais forte? Era óbvio que reagiria de alguma maneira. Rafael só não imaginava que fosse acontecer tão cedo.
  Finalizou mordiscando a região.
  Ainda abraçado com o mais novo cujo corpo ainda tinha os músculos contraídos, constatou com a voz grave:
  - Pelo visto o seu corpo ainda reage ao meu, meu menino.
  Frisou o final da frase com um quê de audácia e sedução porque sabia como aquilo o atingiria – e o gemido agudo confirmou a convicção. Era o único quem chamava Rafael daquela maneira, principalmente quando estavam sem roupas – e isso não mudaria.
  O ruivo responderia caso a mente não estivesse anuviada pelo tesão e caso as suas mãos não tivessem entrado em contato com uma fina corrente.
  Ofegante pelo recente prazer recebido, abriu rapidamente os dois primeiros botões do colarinho e pôde jurar que o coração errou uma batida ao ver o pingente dourado em formato de R.
  Num fio de voz e totalmente consciente de suas ações agora, indagou, distanciando-se o suficiente para fita-lo:
  - Por que você ainda tem isso, Kalisto?
  Se dando conta de que foi descoberto, o advogado se afastou, fechando novamente a camisa para esconder o pingente que carregava consigo há quatro anos, desde que o encontrou no chão em frente a porta do seu quarto.
  - Rafa... – esfregou os olhos com os dedos visivelmente abalado.
  - Por que você carrega isso contigo? – a pergunta foi mais urgente enquanto descia da bancada.
  Não tinha o direito de carregar aquele pingente, principalmente na presença do rapaz. Isso o confundiu completamente. Imaginava que o mais velho havia jogado fora pois era a prova da presença do até então namorado em sua casa naquela tarde.
  O ruivo ganhou um colar em seu aniversário com o pingente da letra K, quando já namoravam. Amara o presente e costumava usá-lo sempre que saía. Quando completaram um ano de namoro, Kalisto recebeu um colar parecido, porém no pingente tinha a letra R. Para eles os presentes eram símbolos concretos de seu relacionamento. Portanto, foi um choque para o menor se deparar com aquele pingente escondido sob o terno do ex.
  - Kalisto, me responde...
  - Eu não sei! – explodiu – Está satisfeito agora? Eu não sei.
  Ao encará-lo se deparou com Rafael carregado de um misto de tristeza e raiva, bem diferente do que estava cantando animado minutos antes e logo em seguida o seduzindo. E a imagem lhe destroçou o coração. A face estava rosada e lágrimas começavam a se formar. Cruzara os braços como se tentasse se proteger – e essa foi a parte que mais lhe desestruturou. O advogado nunca encostaria nele para agredir e ambos carregavam plena certeza disso. Entretanto, essa proteção era voltada para o âmbito emocional, não físico – e o moreno não havia se dado conta.
  - Ah, sabe. Sabe, sim. Você só não quer falar porque é um covarde de merda. Não tem o direito de carregar isso contigo e sabe muito bem disso, Kalisto.
  - Ah, faz favor! O único covarde aqui é você! Não se faça de santo porque você não é. – rebateu já nervoso.
  - Não fui eu que joguei um relacionamento maravilhoso no ralo, meu bem. A culpa foi sua. – terminou apontando para ele com o dedo indicador.
  - Mais uma vez, não se faça de santo porque você não é. – a amargura na voz era notável, assim como o tremor nas mãos, um sinal claro para quem o conhecia de que reprimia as emoções ao ponto delas o deixarem trêmulo.
  - Se você insiste em não me explicar porque está me falando isso, eu que não vou pressionar.
  - Você sabe bem as suas ações, inclusive tudo o que culminou no nosso término. Já passou da idade de culpar a todos ao redor ao invés de se responsabilizar pelas consequências dos próprios atos.
  Frustrado, o ruivo enterrou os dedos nos cabelos. Respirou fundo de olhos fechados numa tentativa vã de se acalmar. Os abriu e, em profunda decepção, respondeu numa voz de indiferença:
  - Eu já fiz merda nessa vida, mas de longe a pior delas foi ter me envolvido contigo. Não volte a desenterrar assuntos do passado se não tem a mínima capacidade de assumir os seus erros.
  Pegou a mochila e saiu do banheiro.
  Só quando Kalisto não ouviu mais os passos do ex pôde extravasar. Com a mão fechada em punho, socou a parede frustrado e dolorido pela frase direcionada a ele.
  - Inferno. – a socou novamente, com a testa encostada nela e o outro braço apoiando o corpo – Por que eu te reencontrei, meu menino?
  Atormentado, virou de costas e deslizou até sentar no chão com as costas apoiadas na parede. Apanhou o maço de cigarro no bolso da calça, o abriu e retirou um, colocando-o entre os lábios. Achou o isqueiro no bolso do terno e o usou para acende-lo.
  Ao todo precisou de meia hora ali e cinco cigarros para se acalmar até as mãos pararem de tremer.

  Tentava se concentrar no conteúdo do caderno sozinho na sala de aula, mas seu cérebro não captava nenhuma sílaba sequer. A discussão com o ex o consumiu, o deixando confuso e revoltado. Tentava compreender as acusações sem concluir nada. Tinha a plena certeza de que a sua postura foi a mais correta possível quando estavam juntos anos atrás. O tratava bem, o respeitava, era sincero, funcionavam bem na cama, não escondia nada... Bem, pra ser franco havia apenas uma única coisa que omitira de Kalisto, mas apenas para não gerar brigas ou desentendimentos desnecessários entre ele e André, quem passava por grandes problemas na época.
  Foi com essas reflexões perpassando a mente do ruivo que Kalisto abriu a porta. De tão distraído não percebeu o barulho. Apenas ergueu a cabeça quando ouviu:
  - Arrume suas coisas e vá pra casa.
  - Como?
  - A chuva. – apontou para a janela com o queixo – A faculdade havia recebido ontem alerta vermelho devido à chuva intensa prevista pra hoje, mas ignorou. Estamos tentando esvaziar a faculdade para ninguém correr risco nas horas seguintes e pedindo para os estudantes espalharem a notícia nos grupos de Whatsapp.
  Quando o ruivo olhou para a janela se deparou com fortes nuvens escuras. Naquele horário, cinco e vinte da tarde, não era normal e nem comum estar escuro daquela maneira e nem ventando tanto.
  - Merda! – rapidamente guardou seus pertences.
  - Precisa de carona? Se quiser eu...
  - Não! – o interrompeu num rompante, soando mais enfurecido do que esperava – Eu chamo um Uber enquanto espero no ponto de ônibus. Um dos dois terá de passar.
  - Tem certeza que...
  - Me deixa em paz. – se encaminhou para a saída com a mochila nas costas – Você já fez o suficiente por hoje.
  O moreno o viu se distanciar pelo corredor até sua imagem desaparecer descendo as escadas.

  O plano de esperar o Uber no ponto de ônibus a dois quarteirões de distância da instituição de ensino superior era bem prático. Só não imaginava de a chuva cair torrencial no meio do caminho com direito a trovoadas, relâmpagos e um vento capaz de derrubar árvores de tão violento.
  Abrigou-se embaixo da marquise do ponto – como se adiantasse de algo. A chuva de vento o molhava ao ponto de ficar ensopado. Numa tentativa inútil colocou a mochila na frente para mexer no celular e chamar um Uber. Para seu azar nenhum motorista aceitava a corrida há quase vinte minutos e a preocupação começava a crescer. A rua estava deserta, escura, poucos carros passavam e a chuva intensa tendia a prosseguir por algumas horas. Pra piorar a rua começava a alagar, então a água estava chegando até a calçada onde ele estava.
  Um carro preto parou onde o rapaz estava e a porta dianteira do banco do passageiro foi aberta.
  - Entra. – Kalisto gritou com as mãos no volante.
  Não se arriscaria de deixar o mais novo na chuva daquele jeito, então o procurou pelos pontos de ônibus que conhecia até encontra-lo.
  - Não preciso de ajuda.
  - Como é? – realmente achou que seus ouvidos o enganaram quando ouviu a escolha de palavras do ruivo.
  - Não se preocupe comigo. Eu sei me virar. – passou as mãos no rosto afastando um pouco a água.
  - Não é possível.
  Desceu do carro zangado e o alcançou molhando-se rapidamente.
  - Não vai demorar pra essa rua encher pelo menos um metro. – avisou sentindo os pés umedecerem.
  - Que bom porque não ficarei completamente submerso. – agarrava-se a mochila contra o peito para proteger o celular de pifar por molhar. Não teria dinheiro para comprar outro caso isso acontecesse.
  - Está recusando a minha ajuda por orgulho?
  - Estou recusando a sua ajuda porque você é um idiota filho da puta. – gritou.
  - Estou me fodendo pra sua opinião sobre mim.
  - Caguei pra isso.
  - Garoto teimoso! Eu não vou te deixar pegar a porra de uma pneumonia e morrer. Não sairei daqui sem você e me recuso a não passar as próximas horas abrigado num lugar seco e quente, então trate de entrar no caralho desse carro ou te enfio nele.
  - Você não faria isso. – zombou num meio sorriso de desprezo.
  - Duvida?
  Quando o mais novo sentiu uma mão em suas costas e a outra na parte detrás dos joelhos, berrou.
  - Está bem, cacete! Eu vou contigo. Satisfeito?
  A contragosto adentrou no veículo fazendo questão de molhar o interior o máximo que podia antes de Kalisto se acomodar ao seu lado e voltar a dirigir. Secou as palmas no estofado do banco e, com a mochila no colo, colocou o celular no ouvido pra ouvir a mensagem de áudio enviada pela irmã há poucos minutos.
  - Que merda. – sussurrou.
  - Qual o problema?
  - A minha rua está alagada.
  - Entrou água na sua casa? – a pergunta saiu carregada de aflição.
  - Não. O proprietário fez uma obra há anos pra levantar a o terreno, então não há perigo. Pode me deixar em qualquer lugar que vou ficar bem.
  - Quantas vezes preciso repetir? Nem fodendo vou te deixar debaixo dessa chuva, muito menos sozinho.
  - Pra onde vai me levar então, carai?
  - Não é óbvio?
  - Não porque não tenho nenhum Baralho Cigano comigo para abrir as cartas e descobrir.
  - Você vai comigo pra minha casa.
  - Puta que o pariu. – reclamou.

  O apartamento de Kalisto no último andar continuava da mesma forma. O ambiente amplo, claro, limpo, organizado e com os móveis bem distribuídos para se caminhar livremente pelo espaço não mudara em nada. Logo, Rafael não teve nenhuma dificuldade em se localizar.
  O moreno trancou a porta com uma sensação um tanto quanto nostálgica. Haviam tantas lembranças dos dois ali que por um momento o ar chegou a faltar nos pulmões, sendo necessário puxá-lo com força. Foi até seu quarto e trouxe uma toalha para enrolar o hóspede trêmulo de frio. O envolveu com ela antes de apanhar a mochila.
  - Anda, tira o tênis e vai tomar um banho quente antes de mim.
  A caminho da cozinha, perguntou retirando o paletó:
  - Está com fome?
  - Sim.
  Quando o menor chegou à cozinha o viu tirar duas panelas e uma refratária da geladeira e depositá-las sobre a mesa. Sua mochila estava em cima de uma das cadeiras, assim como o paletó de e a sua gravata. Acendeu o fogo para pôr uma delas para ferver.
  - O que ainda está fazendo aí parado? – de costas para o menor o mais velho abria a porta de um armário para pegar uma pequena refratária redonda, onde começou a despejar com a ajuda de uma colher o arroz que estava dentro da outra panela vermelha – Vai pro banho pra se esquentar.
  - Eu só tenho essa roupa.
  - Sabe onde é meu quarto. Pode escolher qualquer peça confortável. – colocou a refratária redonda com o arroz no micro-ondas e o ligou.
  - Eu não acho que isso seja necessário.
  O ex se virou e falou soando completamente honesto e cordial:
  - Não estamos na faculdade e nem na sala de aula. Aqui não é uma relação de professor e aluno. Se considere um convidado meu. Além disso, eu te conheço. Não vai fazer nada de errado no meu apartamento. Pode ir no meu armário buscar uma roupa enquanto preparo a comida pra gente.
  Sem alternativa caminhou até o quarto cuja porta estava fechada. Quando a mão pousou na maçaneta foi incapaz de empurrá-la para baixo. Já esteve naquele exato lugar antes. Da última vez sentiu tanta dor emocional que o ar lhe faltou quando conseguiu distinguir a origem dos sons e teve as piores sensações da sua vida. Sentiu a garganta se fechar e se distanciou dali, retornando para a cozinha, claramente atordoado e com os ombros encolhidos.
  - Kalisto, pega pra mim, por favor?
  A aguda voz causou estranheza no homem, quem logo percebeu que havia algo de errado.
  - Aconteceu alguma coisa? – franziu o cenho apreensivo sem compreender a situação.
  - Não. Nada. – abaixou a cabeça com marcas de expressão oriundas da aflição no rosto – Eu só... – ansioso, balançou a cabeça em negativa antes de erguê-la – Só pega pra mim. Por favor.
  Após um momento de silêncio onde constatou o quão abalado Rafael estava, foi para o seu quarto e retornou com um short perto puído e uma camiseta cinza.
  - Obrigado.
  Ao vê-lo se dirigir para o banheiro, falou:
  - Tem material aqui pra você preparar uma sobremesa quando eu tomar banho, se quiser.
  A frase o fez parar e virar-se para ele, quem o encarava.
  - Kalisto, aí já é demais. Não posso mexer nas suas coisas assim.
  - A gente transou incontáveis vezes em cada cômodo desse lugar, isso sem contar os móveis como essa mesa, uma dessas cadeiras, o sofá, o chão da varanda em duas madrugadas e essas paredes. Fazer uma sobremesa que eu sei que você gosta é o menor dos problemas, não acha?

  Quando saiu do banheiro Kalisto há havia separado dois pratos, seus respectivos talheres e dois copos de vidro sobre a mesa. A cheirosa comida do dia anterior fez Rafael salivar e aumentar ainda mais a fome. O homem, quem estava sentado numa das cadeiras mexendo no celular, ergueu a cabeça para encará-lo, abrindo um largo sorriso imediatamente. A imagem do rapaz lhe aqueceu o coração e sentiu quase como quando estavam juntos. A cena era a mesma. Sua camisa virou um vestido no ruivo, indo até a metade das coxas.
  - Escuta, não deu pra colocar o short. – se aproximou entregando a peça – Ficou grande demais em mim.
  - O tempo pode ter passado, mas você continua o mesmo baixinho.
  Não esperava soar tão carinhoso, então o pegou desprevenido. O mais novo abriu um sorriso tímido e o olhar tornou-se meigo.
  - Os baixinhos são sempre as melhores companhias. – comentou divertido.
  - Disso eu sei. – levantou com sua muda de roupa no ombro – Pode ficar à vontade pra preparar a sobremesa. – se encaminhou pro banheiro.
  - Prefere qual doce?
  - Me surpreenda.
  - Escuta, onde coloco minhas roupas pra secar?
  - Por sorte a minha geladeira é das antigas. Têm umas grades nela. Pode colocar ali pra secar. Ou, caso prefira, deixa em cima de uma dessas cadeiras.
  Quando Rafael ouviu o barulho do chuveiro foi se aventurar pra descobrir qual material teria para preparar a sobremesa após colocar suas vestes atrás da geladeira. Decidiu preparar uma palha italiana. Naquele momento ignorou de maneira consciente de que aquela era a sobremesa favorita do homem e que a cozinhava em ocasiões especiais como aniversário ou para comemorarem algo no passado.
  Antes de iniciar o preparo pegou seu celular e a bateria móvel devidamente secos. Os conectou e colocou músicas para ouvir enquanto cozinhava.
  Quando saiu do banheiro vestindo apenas uma folgada calça de algodão e chinelos, se deparou com a imagem de um Rafael alegre cantando enquanto cozinhava. A visão lhe contentou porque a sugestão para o preparo da sobremesa não foi sem motivos.
  Sabia que cozinhar doces melhorava o humor de Rafael, além de ser algo que lhe agradava.
  Em outra época chegaria por detrás arrastando os chinelos para não o assustar e o abraçaria por trás, depositando um beijo no ombro ou no pescoço. Rafael o pediria manhoso para não distraí-lo enquanto cozinhava, mas ambos já sabiam que isso não iria acontecer. O maior o provocaria de vez em quando no processo até finalizar o preparo da sobremesa. Só então ou Rafael o puxaria para si pelo braço para beijar lascivamente ou Kalisto o puxaria pela cintura para beijá-lo enquanto as mãos deslizariam pela bunda arrebitada.
  Porém, assim como as estações do ano passam, Kalisto sabia que as coisas entre eles jamais retornariam a ser como antes. Aquela época de risos leves, sorrisos bobos, piadinhas internas, carícias, gemidos intensos, confiança e companheirismo mútuos havia passado, restando apenas as saudosas lembranças de um tempo leve e bem colorido na vida dos dois.
  Num silencioso suspiro resignado, foi colocar seu terno na máquina e retornou para a cozinha.
  - Qual é o quitute da vez? – foi até a geladeira e retirou uma garrafa de água.
  - Palha italiana. – respondeu sorrindo.
  - Ai, adoro! – derramou a água no copo e pôs a garrafa na geladeira – Tem tempo que não como isso.
  - Vai comer hoje! – misturava o brigadeiro no biscoito maisena já quebrado na panela – Isso aqui vai ficar divino.
  Antes que pudesse responder depois de beber a sua água, um miado desviou a atenção do ruivo. Virou para a origem do som e se deparou com um gato branco o encarando com seus olhos azuis. Sendo apaixonado por animais como era, foi impossível não abrir um enorme sorriso e se abaixar quando viu o animal. Por sua vez, o felino se aproximou e aceitou ronronando o carinho embaixo da mandíbula.
  - Ai, meu deusu! Que criança linda. Qual o nome dele?
  - Ela. É fêmea. Acho que gostou de você. – comentou com um ar de riso a vendo esfregar a cabeça na barriga de Rafael, quem havia sentado no chão.
  - A pegou há muito tempo? É muito lindinha e mansa.
  - À primeira vista parece um amorzinho, mas vai demorar pra dar comida quando está com fome pra ver a merda. Vira no Jiraya e só sossega depois de comer. – se esquivou de responder a pergunta.
  - Igualzinha a você, né? – o fitou.
  - Igualzinha a nós dois. – reforçou – Até hoje não esqueço daquela tarde quando você passou o dia inteiro com a cara emburrada. Até eu descobrir que era fome e comprar um lanche já tinham se passado quase três horas.
  A lembrança fez o rapaz rir pela primeira vez na presença de Kalisto, sinal de que começava a relaxar.
  - E eu quebrando a cabeça pra descobrir o que eu havia feito de errado. – terminou observando a interação dos dois.
  - Em minha defesa ninguém fica bem com fome. Nem pra transar dá certo. – respondeu de bom humor com a gata nos braços.
  - Isso tenho que concordar.
  - Vem cá, e qual é o nome dessa criança?
  - Cristal, mas não atende por esse nome.
  - Por quê?
  - Quando a peguei na rua a chamava por outro nome. Quando decidi trocar ela não atendia.
  - E por qual motivo iria mudar o nome da gata, gente?
  A pergunta era simples, o total oposto da resposta. Poderia mentir sem problemas. Porém, sabe-se lá o motivo, e talvez tivesse a ver com a leve fragrância de um perfume doce que sentiu, optou por contar a verdade.
  Portanto, encarou o chão antes de replicar:
  - Inicialmente eu a chamava de Kiara.
  O a pronúncia do nome fez o menor fita-lo assombrado. O breve momento de silêncio entre ambos se passou e o único som presente era o da chuva e do ronronar da gata.
  Há quatro anos Rafael havia comentado que seria bom para Kalisto ter um animal de estimação para lhe fazer companhia por morar sozinho. De vez em quando insistia no assunto porque o achava solitário vivendo sem ninguém naquele apartamento. Comentou que, caso fosse adotar, o nome Nala ou Kiara combinaria com um animal, principalmente se fosse um gato devido a uma de suas animações favoritas, O Rei Leão.
  - E... Quando foi que a pegou? – murmurou pestanejando.
  Tudo que o advogado fez foi manter o contato visual por alguns segundos num pesado silêncio antes de falar.
  Rafael jamais imaginaria o quão igualmente complicada era a resposta para o questionamento. Não havia chegado ao seu conhecimento o que o ex vira dentro do carro às nove da noite a caminho de busca-lo na faculdade – e nem que o homem fora hospitalizado.
  Essa parte em especial decidiu manter oculta porque, além de ser humilhante, não demonstraria essa fraqueza perante o ruivo, quem o encarava claramente confuso e carregado de expectativa.
  Portanto apenas andou até ele e estendeu-lhe a mão num convite silencioso para se levantar.
  - Vem, vamos comer. Se não terei de esquentar o arroz e o strogonoffe de novo e estou cheio de fome.
  Aceitando a esquiva no sanar de sua dúvida, segurou a destra passados quase dez segundos onde ponderou se seria prudente ou não. Por fim, lembrou que estava de volta ao apartamento do moreno e com nada além de uma camisa para cobrir a nudez. Não seria um pecado mortal ou uma idiotice total caso aceitasse aquele gesto.
  Assim que se tocaram descobriu que seria uma tolice, sim.
  Deu-se conta de quanto tempo não recebia na pele o toque daquele homem. A vontade de abraça-lo como antes foi forte, principalmente de beijá-lo. Atinou que pior do que lidar com um término era conviver tão perto do ex quando ainda o amava. Essa, sim, era uma verdadeira tortura – principalmente num contexto onde os obrigava a interagir.
  A união das mãos, de fato, foi bonita. Por encarar de relance a imagem delas juntas não conseguiu evitar o suspiro ao se pôr de pé, parando bem próximo do outro. Talvez próximo até demais. Menos de cinco centímetros os separavam e nenhum quebrou o contato visual e nem o físico.
  Não souberam quem iniciou a movimentação, porém, aos poucos, numa lentidão carregada de expectativas de ambos os lados, hesitantes e com os corações palpitando, as pontas dos dedos se entrelaçaram. Kalisto só percebeu o que estava acontecendo quando sentiu a outra mão do menor pousar timidamente em sua cintura, o que lhe gerou um impulso para se afastar quando ouviu um mio da gatinha, quem os observava sentada.
  - É melhor eu dar comida pra ela primeiro. – anunciou num murmúrio – Do contrário dentro de dez minutos estará berrando. – foi até o armário, de onde tirou um sachê que logo despertou o interesse de Kiara, cujo miado foi mais empolgado dessa vez – Pode ir se servindo, se quiser.
  Rafael dissimulou a insatisfação puxando uma conversa leve e sorrindo. O mais velho despejava o sachê pra gata no pote dela enquanto o outro colocava uma quantidade comida no prato.
  - O cheiro disso está ótimo! – a boca salivava.
  - Puxei a mão boa da minha mãe na cozinha. – buscou seu prato para se servir.
  - Ai, nem fala. A comida da tia é ótima. – passou a colher do arroz pra ele, lado a lado – Não esqueço de uma lasanha maravilhosa que ela fez quando a conheci. Estava divina!
  Kalisto replicou, mas não prestou atenção nas palavras. Subitamente a ação de colocar o almoço trouxe à tona alguns comentários de André.
  “Daqui a pouco engorda e fica feio. Aí, sim, você vai ver que ninguém além de mim vai te querer comendo desse jeito.”
  O mais velho notou a sombra de algo que não soube identificar perpassando pelas feições do ex quando o próprio recuou com a segunda colher ainda cheia de estrogonofe para a panela.
  Antes de irem para a sala com seus pratos com estrogonofe, arroz, salada de legumes bem temperada e suas respectivas canecas de refrigerante, Kalisto interpelou vendo a quantidade de comida que o outro pôs para si enquanto o menor guardava a panela com palha italiana na geladeira:
  - Você almoçou hoje?
  - Não.
  - Está fazendo alguma dieta?
  - Também não. Por quê?
  - Nenhum adulto saudável que conheço come só isso.
  Sem aviso, o ex pegou seu prato e adicionou uma grande colherada do conteúdo das panelas e da refratária.
  - Agora, sim. O prato que o pisciano merece. – o entregou – Aqui não precisa se fazer de rogado, não.
  - É que tenho medo de engordar e ficar feio. Sei lá. – deu de ombros aparentando um misto de vergonha e melancolia.
  - E quem foi o filho da puta que te falou tamanha imbecilidade? Isso nunca foi um problema pra você.
  - Ninguém em especial.
  Tudo nele demonstrava o contrário. O olhar voltado para o chão, os ombros caídos e a voz embargada evidenciavam a insegurança e até mesmo a baixa autoestima desenvolvida há algum tempo. Apesar de não compreender a situação, Kalisto deixou seu prato na mesa e pegou o de Rafael, colocando-o ao lado do seu.
  - Escute-me bem. – parou em sua frente e ergueu o queixo com o indicador para fita-lo, demorando-se um segundo a mais para detectar os detalhes daquela bela face, inclusive as pequenas sardas discretas no nariz e embaixo dos olhos – Eu não sei quem é o filho da puta que está te enchendo de inseguranças dessa maneira, mas tenho certeza que merece manda-lo para o quinto dos infernos. Você merece bem mais do que isso.
  O sorriso dado por Rafael em agradecimento pelas palavras iluminou seu rosto. Sem pensar, encostou por um momento a testa no peitoral do mais velho, quem aproveitou o breve instante para lhe afagar a nuca. Aos poucos o contato transformou-se num abraço, onde um acolheu ao outro e Rafael sentiu-se amado novamente – sensação bem distinta de quando os braços de André o envolviam – assim que o ex enlaçou sua cintura e o puxou suavemente até os corpos encostarem. Em resposta, o cantor pousou as palmas no peito do homem.
  Não iriam revelar esse fato, porém, naquele abraço, sentiam-se em casa – amados e protegidos. Rafael não tinha constrangimento pela sua aparência e nem por quem era e Kalisto sentia-se impregnado de amor novamente.
  Aproveitou para beijar os cabelos lisos antes de inclinar-se em sua orelha para sussurrar:
  - Queria ser estraga prazeres, não, mas essa comida vai esfriar.
  A frase lhe arrancou uma audível gargalhada.
  - É a segunda vez que me fala isso em questão de minutos.
  - Estou com fome. – reclamou com ar de riso enquanto pegavam seus pratos – Aí, falou pra sua mãe onde estava?
  - Sim. – se dirigiram para a sala – Avisei pra minha irmã que estou na casa de um amigo quem mora mais perto da faculdade.
  - Não está de tudo errado. Me apresentou pra sua família como amigo seu, mesmo.
  - Só não citei nomes.
  - Por motivos óbvios. – sentaram no sofá.
  Usaram uma almofada no colo para apoiar o prato e os braços do sofá para descansarem as canecas, deixando um vão entre eles. O moreno alcançou atrás de seu corpo o controle da TV, a qual ligou e conectou direto a Netflix.
  - Quando a chuva abaixar eu volto pra casa.
  - Tudo bem. – o entregou para Rafael, quem selecionava Naruto para assistirem – Vem cá, como anda a sua vida? – tomou um gole do refrigerante.
  - Ah, está bem. – respondeu distraído encarando a abertura do anime – Eu e o André...
  - Hã, hã. – largou a caneca no braço do sofá – Reformulando a pergunta. Como está a sua vida, seu namoradinho a parte.
  O hóspede rolou os olhos antes de responder.
  Em suma, o almoço foi estranhamente agradável. Se inteiraram de como estava a vida de cada um, com exceção da área afetiva.
  Contou que era advogado criminalista e sua história com Mike Doidão da Favela, quem precisou defender cinco vezes, e algumas das histórias que vivenciou, como o episódio em que levaram seu celular no assalto, porém o mesmo surgiu misteriosamente em seu escritório três horas depois com o bilhete:

  Perdoa aí, meu cumpadi. Os cria estão tudo novo na área. Ainda não sabem quem é protegido e fechamento meu. Eu lá quero que fodam com o meu advogado? Se não fui em cana foi por tua causa, rapá. Qualquer problema é só entrar em contato comigo que damos um jeito de aliviar aí pro teu lado.

  Quem fora o responsável pelo roubo e pela entrega? Jamais saberia. Entretanto, apenas por arrancar risos do mais novo havia valido a pena.
  O ruivo contou como era o trabalho no salão e em como Cacá o ajudou. Não deixou de notar a mudança de expressão de Kalisto quando citou o cabelereiro. Quando o nome surgiu fechou a cara enciumado.
  Não revelou as situações trágicas pelas quais passou, como a morte do pai, o acidente de Micaela, as dificuldades financeiras e nem as crises de ansiedade. Optou por manter aquele momento mais leve, concentrando-se em temas mais engraçados e divertidos. Seus últimos quatro anos não haviam sido assim, mas continham histórias alegres e suaves com Victor, Nichole e Morgana – trio responsável pelo seu recomeço e que lhe salvou do fundo do poço.
  Era visível que a chuva não iria parar. Pelas notícias recebidas nos aplicativos várias áreas alagaram e Rafael obrigou a mãe a enviar um vídeo para assegurar de que a casa estava intacta e sem uma gota sequer de água no interior.
  Kalisto conseguiu disfarçar o contentamento. Quando Rafael lhe contou sobre o que acontecia, o homem falou com um discreto sorriso que poderia, sim, dormir ali. Portanto, foram para a cozinha, onde lavaram suas respectivas louças em meio a brincadeiras onde o mais velho implicava com ele, o levando até a dar uma leve mordida no braço por ser chamado de poodle pela animação alheia e também da baixa estatura.
  Por fim, por ambos serem amantes de filmes de terror, assistiram Olhos Famintos e Invocação do Mal no decorrer da noite com as luzes apagadas e lanchando pão de queijo esquentado no forno, refrigerante e palha italiana. Inicialmente começaram os filmes cada um numa ponta do sofá. No decorrer dos filmes eles se aproximaram sem notar até que toda a lateral do corpo estava em contato.
  - Jeepers Creepers. Where’d you get those peepers?
  Cantarolava o advogado quando Olhos Famintos terminou.
  - Essa música assusta. – ralhou Rafael batendo nele com a almofada.
  - Esse filme não tem nada de demais, poodle. – levou uma colherada da palha italiana a boca.
  - Não tem porque era mais velho quando o assistiu. O vi com uns oito anos. Essa porra assusta, viu? – com as pernas cruzadas e a almofada apoiando a tigela onde, agora, apenas restava alguns milhos não estourados que Kalisto ainda comia, deitara a cabeça no ombro do homem.
  - E a Micaela te deixava assistir terror nessa época?
  - Na verdade, não. Eu via escondido. – descansou a nuca no sofá, o encarando enquanto conversavam – Ela só descobria quando eu pedia pra dormir com ela porque o cagaço era maior que o sono.
  - E não mudou muito, né? Você continua sentindo medo depois.
  - É um prazer culposo! Que posso fazer?
  - Não se preocupe porque te protejo. Não vou deixar nenhum Creeper te assombrar hoje, não.
  Embora a frase fosse para soar divertida, não foi o caso. Pelo contrário. Foi quase uma promessa, como se Kalisto quisesse que Rafael soubesse que, consigo, ele ainda estava, sim, protegido, e não havia temores.
  - Ah, tá! Até parece.
  - Duvida, então, por exemplo, que eu fique te fazendo companhia até dormir?
  - É claro. – mastigava o doce – Gente, isso ficou muito bom. Mas relaxa. Precisa, não.
  - Certeza? – indagou cheio de incerteza.
  - Sim.
  - Tudo bem, então. Posso levar as coisas ou terminou de comer?
  - Pode levar.
  Foi para a cozinha, onde lavou a louça e guardou a sobremesa. Ao retornar o encontrou encolhido no sofá com as pernas cruzadas imerso ao começo de Invocação do Mal. Sentou ao seu lado silenciosamente.
  - Rafael, você pode...
  Sequer chegou ao final da frase. Pelo ruivo não reparar na sua chegada, sobressaltou com as mãos na boca. O susto arrancou risos audíveis de Kalisto, principalmente quando o baixinho respondeu:
  - Tudo bem, aceito a sua companhia até eu adormecer.
  E foi o que aconteceu. Enquanto Rafael se banhava para dormir quase duas da manhã, Kalisto arrumou o sofá cama para ele se acomodar. Trouxe de seu quarto dois travesseiros baixos, uma colcha e um cobertor.
  Quando Kalisto em seguida saiu do banho com um short folgado e uma regata da mesma cor, encontrou-o acomodado com a camisa branca e coberto com a colcha mexendo no celular.
  Havia bastante espaço para ambos pelo móvel ser um sofá cama de três lugares onde, agora, se ajeitavam em pleno conforto.
  - Já vai dormir? – sentou ao lado dele.
  - Sim. Vou acordar cedo porque tenho umas coisas pra fazer.
  - Onze da manhã é cedo pra você? – indagou com ar de riso.
  - Num feriado de sábado é. Amanhã o salão estará fechado, então quero dormir um pouco mais. Eu não gosto de acordar cedo. – coçou o olho antes de colocar o celular carregado sob o travesseiro, já se deitando – Isso é prova de amizade, sabia? Preciso adiantar alguns compromissos antes de encontrar uma amiga nesse final de semana.
  - Vindo de você, tenho que concordar. Acordar cedo é uma prova de amizade. – ironizou.
  Recebeu uma careta mostrando a língua como resposta antes de um “boa noite” educado.
  Longos minutos passaram sem Kalisto sair dali. Foi tomado cada vez mais pela vontade de permanecer ao lado do rapaz, quem, virado de costas para ele, dormia – aparentemente. A respiração calma e prolongada o enganava.
  Aos poucos o moreno deitou procurando balançar o menos possível o sofá cama. Não queria acordá-lo porque desejava usufruir nem que fosse o gostinho de como as coisas eram entre eles no passado: simples e amorosas. Adoraria adormecer abraçado aquele seu menino com o tronco encostado em suas costas e um dos braços o envolvendo na cintura. A proximidade seria tamanha que conseguiria beijar seu ombro carinhosamente antes de entregarem-se ao sono profundo sem amarras, jogos ou máscaras. Ali seriam somente eles – dois homens apaixonados e conscientes de suas emoções cujos sentimentos sabiam serem mútuos, o que lhes dava segurança para se entregarem à relação.
  Para a surpresa de Kalisto, o ruivo ainda não dormira – e descobriu isso quando ele virou para si de olhos abertos, ficando frente a frente na mesma posição.
  Rafael não conseguira dormir por sentir o carregado olhar de Kalisto sobre si. Numa decisão impensada e deixando-se levar pelas circunstâncias, optou por lhe mostrar que estava acordado.
  Nos primeiros minutos apenas permaneceram daquele jeito, calados e mirando um ao outro. Havia tanta tensão ali, tanta coisa a ser falada que o ar se tornou denso, onde estavam em sua própria bolha. Qualquer gesto não calculado, qualquer palavra ou som poderia quebrar a conexão de sentimentos, então tudo aconteceu vagarosamente e carregado de hesitação.
  Quem fez o primeiro movimento foi Kalisto por não compreender porque havia tanto receio nas feições de Rafael. Deslizou a ponta dos dedos milímetro por milímetro até roçar de forma quase imperceptível nos pelos do braço encolhido. Por não receber nenhuma recusa e por Rafael se aproximar um pouco mais, manteve a mão ali, acariciando a região.
  Em seguida foi o ruivo quem deu prosseguimento. Quando mexeu a mão de maneira que pudessem entrelaçar os dedos como inúmeras vezes no passado, identificou que algo no interior de Kalisto amoleceu. Uma barreira posta há bastante tempo entre eles caiu, permitindo que o toque chegasse ao seu coração igualmente ferido e desconfiado.
  Apenas aquele singelo ato foi suficiente para deixar mais novo duro. Entre eles havia algo além do físico desde que se conheceram. Era como se as energias combinassem e tudo se configurasse para manterem tamanha conexão ainda viva. Apesar da distância e da falta de contato ela teimava em existir entre os dois homens – talvez até mais intensa do que antes.
  O contato de Kalisto tornou-se mais íntimo à medida que escorreu a mão pelo corpo do outro até, com o braço sobre a lateral do tronco, encontrar os cabelos e afaga-los. Rafael fechou os olhos com um pequeno sorriso, aproveitando a carícia. Kalisto precisou refrear a vontade de beijar com fervor os lábios entreabertos. Quando as pálpebras foram erguidas o olhar era mais intenso, carregado de igual paixão.
  Por sua vez, o mais novo descansou a palma em seu rosto acariciando o a bochecha num terno afeto.
  Morosamente o moreno desceu a mão e, de vez em quando, a pausava em alguma região para acariciar. Nuca, meio das costas, lateral do tronco, lombar. Todas essas zonas eram afagadas timidamente, embora o notasse relaxado. Por fim, alcançou a lombar, onde a puxou para si até os corpos colarem. A princípio era apenas para o mais velho depositar um beijo na testa do outro, mas mudou de planos ao sentir algo bem duro em seu abdômen e ouvir o arquejo de Rafael quando a ereção foi pressionada em contato com a barriga definida de Kalisto.
  Com o rapaz em seus braços beijou-lhe castamente a testa antes de deslizar a coberta da cintura alheia – e não houve resistência. A nudez foi revelada em consequência da camiseta que havia subido graças aos movimentos de ambos.
  O moreno o empurrou pra deitar de barriga pra cima quase sem exercer força alguma. O fez uma vez como confirmação se era o que Rafael desejava – e a resposta veio de imediato.
  O outro acatou ao pedido e amou a sensação de quando o ex descansou a cabeça em seu peito, deslizando as pequenas mãos nas largas costas. O homem, em consequência, aproveitou para roçar os lábios no local até aquele simples gesto transformar-se em beijos que foram descendo pela carne firme. Não deixava de segurá-lo e, num anseio não verbalizado, a respiração do mais novo transformou-se, ficando mais intensa pelo o que viria a acontecer.
  Chegando ao destino não o apanhou e nem o abocanhou de imediato. Pelo contrário. Foi lento. Sem nenhuma pressa. Uma tortura deliciosa e enlouquecedora.
  Kalisto, primeiro, concentrou-se na glande rosada. Umedeceu os lábios antes passar a ponta da língua ali, saboreando a textura. Em resposta foi segurado pelos cabelos e adorou ouvir o agudo gemido. Assim permaneceu durante um tempo até Rafael, se contorcendo no sofá, suplicou por mais – súplica essa acatada prontamente.
  Para o seu contentamento, o mais velho desceu pelo pau com beijos leves e lentos enquanto massageava as bolas com as mãos. Chegando na base, subiu o lambendo na pressão correta que o fez arrepiar. Repetiu três vezes o processo antes de se concentrar no saco, colocando um após o outro na boca, acariciando-os com a macia língua.
  Era um amante nato. Gostava de explorar as zonas erógenas com devoção – e, às vezes, quando estavam cercados de uma áurea mais intensa, uma certa brutalidade. Portanto, para ele e quem quer que compartilhasse a cama, era uma experiência memorável, onde jamais sossegaria antes de deixar a outra pessoa de pernas bambas e com orgasmos pujantes.
  É de se imaginar, então, o quanto Rafael gemeu quando, finalmente, o outro o colocou por inteiro na boca e iniciou o movimento de vai e vem com a ajuda da mão e acariciando a glande com a língua em círculos incessantemente. O rapaz agarrava-se ao travesseiro gemendo e arquejando audivelmente, sem se importar se estava sendo ouvido ou não. A entrega era forte, um momento que não seria ignorado pelos dois, mas sim, aproveitado. Foi tempo demais separados – tempo esse que não obtiveram o demasiado prazer de quando estavam juntos com outras pessoas.
  O apartamento se enchia pelos sons produzidos por eles, entregues um ao outro.
  Por alguns instantes tentava manter os olhos abertos para assistir ao outro no oral, quem parecia não chupar alguém com tão afinco há anos.
  - Ai... – gemeu manhoso quando Kalisto, com ajuda da saliva, umedeceu o anelar, introduzindo nele e massageou seu ponto escondido.
  Foi questão de segundos derramar-se em sua garganta.
  O moreno o degustou e manteve-se por alguns instantes ainda no oral, cessando os movimentos aos poucos.
  Com a respiração pesada o sentiu subir em si, parando a centímetros de sua boca. Ambos respiravam ofegantes e com os corações batendo forte. Quando os olhares se encontraram havia um pequeno sorriso no rosto de Rafael, agora, pela primeira vez, deixando o medo em segundo plano. Prestes a quebrar a distância para beijá-lo se recordou de uma frase escutada há anos.
  - Jamais volte para aquilo que te destruiu.
  - Desculpa, meu menino, mas não posso.
  Num movimento brusco o moreno levantou do sofá, deu as costas e entrou em seu quarto batendo a porta numa expressão dura.
  A dor da rejeição tomou cada célula do seu corpo. Parado no mesmo lugar tentava compreender o que havia acontecido lutando contra as lágrimas formadas. Não as permitiu rolar secando o rosto numa expressão de incompreensão e dor antes de se deitar.
  Porém, ele não passaria aquela noite sozinho.
  Ouviu o miado antes do leve peso extra.
  A gata, quase como enviada, aninhou-se ao seu lado.
  - Boa menina. – murmurou com a voz embargada.
  Como consolo, o felino lambeu a ponta de seu nariz.

  Devido aos últimos acontecimentos Rafael não conseguiu dormir de tão abalado e teve a gata como companhia por vontade dela. Quando não se deitava ao seu lado, deitava em sua barriga e não recusava os carinhos no pelo.
  Um pouco antes das seis da manhã ouviu do quarto de Kalisto:
  - Gustavo, eu não podia responder antes porque estou com visita. Não, não é ninguém importante. Foi só uma caridade que fiz. Todo mundo tem que fazer uma boa ação de vez em quando, né? Depois a gente se fala porque não tive muito tempo pra dormir essa noite. Quase cometi um puta erro, mas isso é história pra outra hora. Só passando pra avisar que estou bem porque acabei de ver a sua mensagem.
  Aquilo já era demais para suportar. Ainda não era um exemplo de amor-próprio e nem de autoestima, mas não se submeteria a manter contato com Kalisto depois daquilo.
  Silenciosamente e o mais rápido que pôde trocou de roupa. Antes de sair tirou uma folha de seu caderno e escreveu algo nela, o deixando sobre o sofá antes de ir embora.

  Kalisto teve uma noite terrível. Os sentimentos estavam tão intensos e a ansiedade tão forte que sequer conseguiu dormir.
  Esperou dar nove da manhã antes de sair do quarto.
  - Rafael? – chamou procurando pelo rapaz.
  Encontrou um pedaço de papel no sofá. O apanhou e leu o que estava escrito.

  Da próxima vez não precisa fazer caridade.

  - Droga. – murmurou dando-se conta de que o rapaz havia escutado o áudio enviado para Gustavo.
  Aparentemente Kalisto não foi o único decepcionado. Zangada, a gata chegou até ele e, com uma pata dianteira, desferiu vários golpes em seu pé descalço.
  - Ai, Kiara, isso dói! – reclamou tentando se afastar dela.
  Quando achou que foi suficiente e lhe deixando alguns arranhões de presente, ela apenas miou temperamental para se afastar – foi quando, novamente, Kalisto sentiu o cheiro.
  - Quem é que passou perfume aqui, cacete?!

Capítulo 4

  Rafael chegou em casa chateado. Não permitiu que as lágrimas escorressem pelas palavras escutadas. Já chorou até demais pelo homem no decorrer daqueles anos. Era questão de amor próprio não desperdiçar seu tempo com melancolia e nem lembranças de um passado infrutífero que de nada lhe serviu além de alimenta-lo de ilusões.
  Ignorou as mensagens enviadas pelo moreno – se surpreendeu que o ex ainda tinha seu número de telefone. Supunha ter excluído seu contato – ou, no mínimo, vasculhou a Internet até encontrar uma maneira de contatá-lo. Na quinta ligação e na décima mensagem ignoradas o bloqueou na rede social – não sem antes admirar a foto de perfil, onde estava de sem camisa observando o pôr do Sol na varanda do apartamento.
  Aproveitou a companhia da irmã e da mãe durante a tarde sábado. Apesar do cansaço corporal e da lentidão para elaborar pensamentos devido a permanecer mais de 24 horas sem dormir, preparou um pavê de abacaxi para o dia seguinte, já que Débora convidou alguns amigos para uma resenha em sua casa, num prédio de cinco andares.
  Passou a tarde assistindo animações como Irmão Urso, Viva, a Vida é uma Festa, A Bela e a Fera, Pocahontas e O Rei Leão com a até a noite, o que lhe ajudou a sentir-se melhor depois dos últimos acontecimentos.
  Assim que acordou após dormir por dez horas, se apressou para se arrumar, pois André o buscaria dentro de uma hora e meia para irem junto com Luana, amiga de Débora e Rafael.
  Quando chegaram se encontraram e conversaram com os demais. Todos se conheciam e interagiam como os colegas que eram.
  Como era de se esperar, André dissimulou bem quem realmente era na presença dos convidados de Débora. Seu sorriso fácil, a beleza padrão e a simpatia escondiam sua personalidade ao ponto de Rafael testemunhar a mudança de comportamento a caminho da casa da amiga para busca-la. A sós, o namorado aproveitava para soltar uma crítica ou outra acerca do outro disfarçada de piada, quem começava a desanimar durante a viagem. Por sorte a mulher era uma tagarela, cheia de piadas e histórias carregadas de humor, então ergueu o ânimo dele sem notar.
  Conversava com Luana quando o último convidado adentrou. Quando a amiga viu quem era quase cuspiu a caipirinha. Exalando preocupação e choque falou após vasculhar o ambiente para certificando-se que André ainda estava no banheiro:
  - Amigo, a gente pode ir embora se quiser, tá?
  - Ué, menina. – terminava de tomar sua latinha de cerveja segurando o riso pela expressão feminina – Qual o problema?
  - Não vai acreditar quem chegou.
  - Quem? – por estar de costas para a porta não viu a cena.
  - Kalisto, aquele seu ex.
  - É piada isso, né? – as feições foram tomadas por total desespero – Por favor, me fala que é uma brincadeira sua.
  - Eu lá vou brincar com uma merda dessa, Smurfette? – ralhou.
  Num pesado suspiro avisou:
  - Amiga, eu aguento. Acho. – engoliu em seco – Até porque não é a primeira vez que me deparo com ele.
  - Oi? – ergueu as sobrancelhas.
  - O cara é meu professor. – sussurrou entredentes.
  - Puta merda! – xingou alto o bastante para outras pessoas a encararem – Como isso é possível?
  - Juro explicar pra te colocar a par da situação, mas não agora por causa do André. Escuta, vou precisar da sua ajuda. Promete, por favor, que não vai sair do meu lado. Caso eu segure a sua mão e a aperte encare como o sinal claro para irmos embora.
  - Relaxa. Não vou deixa-lo. Não vou ser a única ao seu lado, não. O André também não vai desgrudar. – a última frase saiu com um ponta de irritação – Infelizmente.
  E assim a mulher realmente fez.

  Kalisto não esperava encontrar Rafael. Na verdade, nem imaginava que Débora e ele fossem amigos.
  Era amigo de infância da mulher. Apesar das personalidades serem completamente opostas, mantiveram uma boa relação no decorrer dos anos. Ele era lógico e racional, desde a fase de escola. Pisciana nata, Débora era voltada para questões mais etéreas. Tinha sua cartomante de confiança, entendia de signos, tinha uma capacidade de intuição admirável e não era difícil ler uma pessoa em minúcias. Além de, é claro, descobrir uma informação ou outra relevantes em sonho, sendo confirmado num período de semanas.Foi ela quem esteve ao lado do advogado para enfrentar a família paterna quando assumiu-se gay, já que seus parentes eram evangélicos ou católicos.
  Kalisto tinha redes sociais, mas era completamente low profile. Não postava nada acerca de sua vida íntima, nem de Rafael. Não queria mantê-lo escondido, entretanto, reconhecia como seus familiares paternos podiam ser cruéis. Não permitiria jamais que o rapaz sofresse algum ataque, independentemente da gravidade. Até porque o relacionamento deles era pra ser leve e agradável, não o oposto.
  Portanto, foi uma surpresa se deparar com aquele seu menino, quem estava acompanhado por Luana e André.
  O três demonstraram o descontentamento pela sua chegada. Rafael o ignorava ao ponto de sequer olha-lo. André o encarava zangado e marcava território sem se afastar de Rafael. Luana usava de deboche e, quando passou por ele uma vez a caminho para o banheiro, sussurrou:
  - O dia tinha tudo para ser bom. Pena que a chegada de uns e outros estragou isso.
  A adulta de vinte e cinco anos não sabia o que aconteceu entre eles. Por outro lado, para afetar ao amigo após quatro anos, considerava ser grave.
  Kalisto se enturmou com as pessoas rapidamente. Já conversava com vários dos convidados, então não era como se fosse um estranho. Com sua regata vermelha, calça branca e tênis da mesma cor era uma figura agradável na visão dos outros.
  Tentou aproximar-se de Rafael algumas vezes sem sucesso. Ou o rapaz se distanciava quando percebia a intenção ou era puxado pela amiga em outra direção. Frustrado não teve outra alternativa além de posicionar-se no ambiente de maneira a ficar de frente para o ex ao conversar com os convidados. Aproveitou para observar mais atentamente o comportamento de André com o menor. O homem não fez nada de errado, pelo menos à primeira vista. Era cordial e respeitoso – exceto por um único instante.
  As pessoas estavam ocupadas ou distraídas, então não viram nada. Rafael argumentava algo com o namorado sem chegar a uma conclusão num canto discreto da varanda. Quando ia se afastar o atual segurou a pequena mão a esmagando com a sua e o puxou com brutalidade para retornar ao seu lado. Inclinou para sussurrar no ouvido sem soltá-lo. Usou de força excessiva, aumentando o aperto até a ponta dos dedos do ruivo avermelharem. Era notório como se esforçava para não demonstrar a dor.
  - Está tudo bem? – Débora indagou ao ver como o semblante do advogado foi tomado pela ira.
  - Sim. Não é nada.
  Queria e podia interferir, porém não deveria. Além de provavelmente causar problemas futuros, Rafael não iria gostar da intromissão, além da possibilidade de sair como o errado da história ou de se formar um mal-entendido. Por isso foi para a cozinha à procura de Luana. A encontrou separando salgadinhos em um copo de plástico e pavê de abacaxi em um pratinho.
  - O Rafael está te procurando. – anunciou próximo a ela.
  - Avisa que já estou indo. – distraída comia um pastel.
  - Você não está entendendo. – a contornou parando em sua frente com voz séria – Ou você vai até seu amigo agora ou em meio minuto alguém sairá desfigurado numa maca.
  Não conseguiu identificar o que havia de errado para soar tão agressivo. A frase não foi proferida como se fosse direcionada a ela. Fora o término Rafael não reclamava nada em relação ao ex e nem relatou situações abusivas.
  - Se eu me intrometer vai dar merda. Anda, garota. Agora!
  Como era de se imaginar, imediatamente a mulher se juntou ao casal e, sem ter a consciência, impediu que o amigo sofresse maiores agressões.
  As palavras de Kalisto reforçaram a hipótese de que havia algo de errado com o ruivo. Assim como outros amigos de Rafael, Luana não gostava do namorado dele. Apenas o suportavam por não haver outra alternativa. Não lhes agradava pelo fato de haver certo nível de hostilidade, como se não hesitasse em usar da força física para subjuga-lo com o intuito de alcançar seus objetivos, fossem quais fossem. Em sua concepção, o moreno teve a mesma leitura do relacionamento dos dois e provavelmente presenciara algo. Afinal, não lhe transmitiria a mensagem à toa.
  Com o olhar mais atento acerca da conduta do rapaz, percebeu que ele não usava a mão esquerda e tentava mantê-la sempre baixa – algo, no mínimo, estranho, pois naturalmente gesticulava bastante para se expressar.
  Desconfiada, lhe enviou uma mensagem pelo celular:
  - Qual o problema com a sua mão?
  A resposta veio rapidamente.
  - Nada, não. Só a bati aqui no parapeito. Aí está meio dolorida.
  Notou o quanto Kalisto acompanhou André com o olhar quando se afastou para buscar água. As narinas infladas, as pálpebras arregaladas e semicerradas e a postura rígida eram sinais claros que algo no namorado de Rafael o incomodava. Tinha plena certeza que se controlava para não avançar contra André tamanha a raiva – e isso apenas salientava a ideia de que talvez tenha presenciado uma cena, no mínimo, bem descortês e desagradável.

  Às quatro e meia da tarde André foi embora sozinho por, segundo o próprio, ter compromissos que exigiam sua atenção. O namorado aprendeu da pior maneira que não era para lhe questionar algumas coisas, então aceitou a saída com um voluptuoso beijo bem em frente a Kalisto, quem achou o momento bem propício para encarar o chão.
  Minutos antes da retirada de André teve a visão de Débora passando com uns incensos pelo apartamento em cada cômodo, principalmente na varanda onde o trio estava. Durante o processo cantarolava uma canção onde a letra dizia “quem for bom bota pra dentro e quem não for deixa lá fora”. Não demorou para o namorado do amigo passar pela porta para não retornar nunca mais.
  Assim que o Uber estava chegando e André se retirou, Rafael correu para o banheiro. Trancado lá retirou do bolso da calça verde um par de brincos discretos, lápis preto, rímel, delineador e o gloss. Poderia levar sua maquiagem numa das bolsas, porém não queria discussão. O outro não gostava quando usava produtos considerados femininos pela sociedade, então, quando saíam juntos, carregava a maquiagem nos bolsos por precaução para caso o namorado ir embora mais cedo caso surgisse a oportunidade de se embelezar – e aquele era o caso.
  Enquanto se maquiava ouviu os primeiros trechos de Thinking of You da Katy Perry. Amaldiçoou quem teve a brilhante ideia de escolher uma música cuja letra era sobre manter-se num relacionamento com a segunda opção enquanto continuava completamente apaixonado pelo ex, quem era o exemplo de homem ideal para se ter um namoro – não apenas pela forma como o anterior tratava a pessoa, mas também pelo intenso amor mútuo que os unia.
  - Pra que colocar um troço triste da porra como esse justamente hoje? – resmungou finalizando o gloss.
  Deu uma risada irônica de como as coisas estavam acontecendo. Lembrou da previsão da moça ao realizar a quiromancia. Torcia para que ela não estivesse se referindo a Kalisto, principalmente porque não era de seu desejo reencontra-lo – e, para a sua infelicidade, não era isso o que estava ocorrendo há cerca de um mês.
  Saindo de lá cantou em voz alta a música, dando o dedo do meio com os braços erguidos:
  - Não sei quem foi o filho da puta quem escolheu essa porra para tocar, mas aqui está o meu agradecimento. 'Cause when I'm with him I am thinking of you.
  Parou ao lado de Luana incapaz de controlar suas emoções. Os últimos acontecimentos mexeram em demasia consigo, então tudo o que queria naquele momento era ir pra casa e não precisar ver o rosto de Kalisto pela visão periférica. Até pensou em segurar a mão da amiga e apertá-la, porém a mulher foi mais rápida.
  O notando cabisbaixo, começou a cantar a música de uma maneira extremamente cômica. Fazia caretas exageradas, tornando a interpretação da letra dramática em algo hilário pelas suas ações. Pegou uma rosa branca artificial na mesa ao lado e puxou o cantor para seus braços simulando um tango desajeitado. No trecho “you’re like an Indian summer in the middle os winter like a hard candy with a surprise center” retirou o caule da boca fazendo com a mão gestos que, em sua concepção, traduziam o significado da letra. Ao final do trecho orgulhou-se de lhe arrancar uma risada genuína pela encenação lembrar utilizando um boquete com a mão e a língua.
  O vendo alegrando-se novamente continuou a brincadeira até que, em função disso, se juntou a ela. Por fim, ambos encenavam como se fossem duas pessoas apaixonadas, colocando as destras sobre o coração teatralmente, as usando para tampar a boca, dentre outros dos mais diversos gestos possíveis, exagerando bastante na expressão facial e corporal. Em alguns momentos não aguentavam e começavam a rir das palhaçadas, tornando o ar de ambos carregado de companheirismo e cumplicidade, principalmente quando a amiga improvisou e usou a rosa branca como se fosse um microfone.
  Quando chegou ao trecho “now, now the lesson's learned I touched it, I was burned” o ruivo não teve vergonha alguma ao cantá-lo encarando Kalisto, quem, parado atrás de Luana, o observava impassível à parte do conteúdo da conversa de quem o cercava por não desviar a atenção do objeto de sua ansiedade e infortúnios, onde, por detrás do sofrimento, escondia o amor. Voltou para a amiga, quem desafinava tentando controlar o riso.
  Por fim, terminaram abraçados e com as gargantas doendo.
  - Obrigado. De verdade! – murmurou ainda envolvido pelos braços femininos.
  - Pode contar comigo sempre, minha Smurfette. – beijou a bochecha o erguendo momentaneamente do chão.
  Rafael foi para a cozinha em seguida para lanchar rapidamente. Comia alguns salgadinhos bebericando o refrigerante num copo de plástico enquanto mexia no celular distraído enviando uma mensagem. Uma voz o mostrou que não estava sozinho.
  - Já passou da hora de conversarmos, não acha?
  Detestou o fato de os fones de ouvido estarem em casa.
  Kalisto Descobriu que não seria tão fácil falar com o outro quando o rapaz não se moveu um centímetro se quer, agindo como se ele não estivesse ali.
  - Alô. Estou falando contigo. – o pressionou.
  Não obteve nenhum êxito além de irrita-lo ao ponto de as narinas inflarem e lutar contra a vontade de tacar uma faca nele.
  - É sério que vai continuar nessa postural infantil?
  O ruivo apenas separou um pouco do pavê num prato de plástico e se encaminhou para a saída da cozinha, mas foi impedido. Kalisto estendeu o braço ao lado para bloquear a passagem, o antebraço envolvendo a cintura do outro.
  - Por que não respondeu minhas mensagens? Rafael, eu não vou chegar perto de você, não vou tocá-lo e nem fazer nada contigo que não aprove. Apenas quero conversar, como antes. A minha companhia foi tão ruim assim quando esteve na minha casa pela última vez? Juro, não farei nada condenável. Apenas preciso dialogar. Mais nada.
  Havia certa súplica na voz difícil de ignorar.
  Os segundos se passaram e o ar entre eles tornou-se denso. A vontade de Rafael era de deixar-se levar pelo impulso de agredi-lo, mas tinha plena consciência de que isso não resolveria nada – pelo menos na situação deles. As coisas precisavam ser expressas por meio de palavras, não ações. Por outro lado, seria necessário deixar-se ser guiado pelas emoções, abrindo-se para permitir-se ser acessado pelo homem quem lhe destruíra o coração. Era por esse motivo que não consentiria jamais em dialogar sobre o tema. Da última vez que se abrira para Kalisto, quem era de sua confiança na época quando estavam juntos, foi de longe o pior erro já cometido por colocar-se numa posição de vulnerabilidade. Enquanto não há nada de errado no relacionamento, não há problema. O obstáculo era quando poderia ser ferido emocionalmente – e esse foi o caso. E não voltaria a cometer tal erro.
  Em virtude dos sentimentos reprimidos a remota ideia do mais novo ter uma concepção ruim sobre si o constrangia. Logo, ansiava por resolver o mal-entendido – esse em particular, não o anterior, que era crucial e de extrema relevância.
  - Por favor, querido. – o advogado sussurrou movimentando os dedos contra a pele firme.
  A sutil carícia com os dedos na lateral da fina cintura foi capaz de fazê-lo erguer os ombros e perpassar a sombra de algo similar a martírio pela doce face que logo se dissipou, tornando-se novamente fria.
  Não gostou do presunçoso sorriso dado por Rafael em seguida, quem ainda não o fitava olhando para frente e longe de suas íris escuras.
  - Sabe o engraçado? É a primeira vez que nos encontramos após esses anos e em questão de semanas errou comigo ao ponto de precisar se desculpar, no mínimo, duas vezes. Isso sem mencionar quando tentou me insultar quando estávamos no banheiro e aquele diálogo maravilhoso ao fim da sua aula. Sabe qual o problema disso? No decorrer do tempo desculpas costumam não valer de nada por tornarem-se corriqueiras e vazias.
  Pela primeira vez o encarou. Não havia expressão em seu rosto impassível com o queixo erguido. Era notável como as palavras o atingiram, até porque o leve afago cessou.
  - Simplesmente não tenho nada a tratar contigo. – finalizou ríspido – Agora, faça o favor de soltar.
  Franziu o cenho desaprovando a resposta.
  Num sussurro carregado de ar o avisou aproximando bem os rostos:
  - Eu não estou te segurando. Apenas bloqueando a sua passagem. Você sai daqui quando bem entender.
  Com a resposta, empurrou rudemente o braço para passar.

  Ao cair da noite o grupo começou a jogar “eu nunca”. Foi um momento divertido, carregado de risos leves e histórias picantes das mais diversas. Teoricamente era para o humor de Rafael estar melhor, entretanto não era o caso.
  Lucas explicitamente flertava com Kalisto. O ruivo perdera a conta de quantas vezes o viu passar a mão em seu peito ou descansa-la em seu ombro numa intimidade até então inexistente. O advogado não se esquivava das investidas, mas também não as incentivava. Mantinha uma postura neutra apenas por teimosia, já que Rafael não baixava a guarda para dialogarem e lhe dar espaço para explicar o que aconteceu na madrugada de sábado – exceto a parte de quando estavam deitados no sofá, é claro.
  O rapaz concluiu que o ex não se importava consigo. Caso tivesse o menor respeito ou consideração jamais deixaria Lucas esfregar-se em si, independente de conhecer os sentimentos alheios ou não. Afinal, coração é terra onde ninguém pisa. Era impossível ter a plena certeza de se ainda o amava ou não – e apenas a possibilidade de feri-lo deveria ser capaz de impedir Kalisto dar prosseguimento ao flerte descarado.
  Quando chegou sua vez, para alfinetá-lo, Rafael disse, ouvindo os primeiros acordes da música Estranho Jeito de Amar:
  - Eu nunca fiz ciúme para um ex.
  A maioria bebeu a sua respectiva bebida, inclusive Kalisto.
  Para o moreno era óbvio como André era o parceiro incorreto para Rafael. Era visível o quanto o rapaz ficava tenso na presença do atual. Assim que o outro foi embora, passou sua maquiagem, colocou um par de brincos, conversou com as pessoas falando alto de vez em quando como de costume e dançou rebolando, inclusive até o chão ao som de É o Tchan e funks antigos. Já suspeitava que o relacionamento não era dos melhores desde o princípio pela má impressão que tinha do homem quando o conheceu. Apenas não imaginava que isso se estendia a agressão física.
  Foram todas essas contestações que o dissuadiram a proferir as seguintes palavras:
  - Nunca deixei de ser quem sou para me enquadrar num relacionamento onde cheguei a aceitar agressões do namorado.
  A contragosto Rafael bebericou do vinho recebendo um olhar de esguelha do moreno, de Débora e de Luana.
  O ruivo sentia raiva. Raiva pelo ciúme que o corroía. Raiva por Kalisto não se afastar de Lucas. Raiva por Kalisto permitir a insistência do outro. Raiva por André preferir ir embora ao invés de permanecer ao seu lado, assim como qualquer namorado afável e amoroso faria. Raiva de si por ainda carregar sentimentos pelo ex, o responsável por destruir sua autoestima e amor-próprio, o fazendo questionar sobre a sua importância na vida de quem o cercava e se as pessoas realmente o apreciavam ou se apenas o suportavam.
  Entrou numa paranoia onde, por medo e trauma, mantinha seus futuros possíveis interesses amorosos ou sexuais longe de seu círculo social. Não gostava da ideia se se esconder ou esconder outras pessoas, mas obrigou-se a fazê-lo pelo receio oriundo das inseguranças e baixa autoestima. Não confiava mais em si e nem nos demais. Só naquele momento dava os primeiros passos para voltar a se abrir e interagir como antes – conquistas alcançadas graças a moça de vestido vermelho e Princess.
  Portanto, prosseguiu em alfinetá-lo:
  - Eu nunca feri de maneira covarde a pessoa quem eu dizia amar.
  Rolou os olhos com certo deboche ao vê-lo ingerir um generoso gole da cerveja.
  Débora era uma mulher intuitiva, então não demorou a notar que havia algo acontecendo entre esses dois desde a chegada do amigo de infância. De propósito falou quando chegou na sua vez:
  - Eu nunca tive sentimentos guardados pelo meu ex.
  Compreendeu totalmente a situação quando ambos tomaram suas bebidas.
  Rafael aguardou o copo esvaziar para segurar a mão de Luana e a apertar de leve.
  - Bem, meu povo... Eu sei que a partida é dolorosa, mas temos que ir. – avisou a loira pondo-se de pé – Amanhã eu e o Rafa acordaremos cedo.
  Se despediram dos colegas rapidamente. De propósito Kalisto se colocou ao lado da porta, por onde o ex passou sem sequer desviar o olhar. Desejava pelo menos um “tchau” murmurado seco ou que apenas o fitasse. Por não receber nenhum dos dois, foi movido pelo impulso quando em questão de instantes ultrapassou a porta num rompante.

  - Amigo, já estou pedindo o Uber aqui. – avisou enquanto passavam pelo corredor do prédio.
  Teria respondido caso não fosse segurado pelo ombro por outra pessoa.
  - Rafael, precisamos conversar sobre ontem. Querendo ou não teremos essa conversa.
  Kalisto anunciou urgente.
  A insistência já o havia tirado a paciência, então não optou pela serenidade ao confrontá-lo.
  - Sobre o que exatamente quer conversar? – se desvencilhou do toque lutando para não perder a cabeça e estrangulá-lo – O quanto sou burro? O boquete que recebi no meio da madrugada no seu apartamento? A sua maneira maravilhosa de se referir a mim a sabe-se lá Deus com quem? Ou o quanto adorou aquele filho da puta do Lucas se esfregando em você na minha presença?
  O advogado nunca o vira tão zangado e dono de si. As palavras o obrigaram a cambalear para trás quase tropeçando nos próprios pés, principalmente pela forma como lhe atingiram no íntimo.
  Apesar da baixa estatura o cantor aparentava ocupar mais espaço que o usual e não tinha mais problemas em se envolver em conflitos como no passado.
  - Esse último não foi nada que você já não tenha feito, Rafael. – acusou retomando a sua postura altiva.
  Emoções antigas que imaginava já estarem enterradas começaram a vir para a superfície como o limo surge quando a água é agitada. Era incômodo, desgastante e tinha vontade de bater em algo até extravasar tudo aquilo.
  - Mais uma vez essa história, cacete?
  - E eu não tenho nada com o Lucas. Aquilo não foi nada...
  Ele e Rafael terminaram há quatro anos, mas, mesmo assim, sentiu-se na obrigação de avisa-lo isso.
  A explicação foi interrompida:
  - Ah, não? – com as mãos simulou a forma como o outro acariciava Kalisto, falando em tom de escárnio – Isso aqui não significa nada, não? Me poupe! Já estava vendo a hora de se trancarem na porra de algum quarto ou irem para o motel barato mais próximo.
  - E você também estava bem à vontade com o seu namoradinho, né?
  - Eu estou namorando, Kalisto. Nem fiz nada hoje com o André, diferente do que aceitou do Luscas. Pelo amor de Deus, não precisavam ser tão explícitos. Estavam cercados de gente.
  - Isso nunca foi um problema pra você. – deu de ombros – Aliás, estou solteiro. Não tenho porque me preocupar com isso.
  - E eu estou comprometido. Não tem motivos para reclamar se eu beijo o meu namorado ou não.
  Luana, quem mantinha-se alternando o olhar entre o celular e os dois, surgiu atrás do ruivo e indagou para o amigo:
  - Prefere que eu te tire daqui enquanto o Uber não chega ou prefere discutir?
  - Hoje quero ver é sangue.
  - Continuem aí, então. – deu três tapinhas no ombro – Qualquer coisa é só me chamar. – parou a uma distância de dois metros.
  Kalisto quebrou a distância o encarando.
  - E você é bem feliz com o seu namoradinho, né?
  Usava a palavra como se fosse um xingamento com cara de nojo.
  - Claro. Ele é maravilhoso comigo.
  - Conta outra. O desgraçado não te respeita, Rafael, e ainda é violento.
  Para o descontentamento do ruivo a amiga ouviu bem as palavras.
  - Do que ele está falando, Rafa?
  - Foi por isso que a chamei quando estava na cozinha. – revelou o moreno sem desviar o olhar – Já que eu não poderia intervir, você, pelo menos com sua presença, evitaria disso se repetir, enquanto estivessem aqui. Não dá pra eu controlar quando os dois estão sozinhos e sabe-se lá Deus se o filho da puta já bateu nele ou não.
  O mais novo deu mais um passo para frente e o confrontou, numa voz ressentida e lutando contra o nó na garganta:
  - Você fez muito pior comigo no passado. – o tom era baixo e acusatório – Não sabe nem um terço do que aguentei sozinho por sua culpa durante a nossa separação e acha plausível querer tirar satisfação comigo sobre meu relacionamento? Eu deveria saber que você não mudou em nada quando não se desculpou assim que os alunos saíram daquela sala na sua primeira aula. Isso só demonstra que nunca se importou de verdade comigo e o errado fui eu por permitir a sua entrada na minha vida, mesmo após me abrir contigo sobre meus maiores medos.
  As palavras o fizeram baixar as pálpebras devido ao tanto de ressentimento no rosto de seu menino. Pela primeira vez, na frente do ex, transpareceu o sofrimento que ainda carregava consigo. Fosse pra onde fosse estava ali, mesmo que mascarado de raiva. Aliás, por detrás da ira sentida por Kalisto, existia a mágoa. A fúria servia para esconder a profunda tristeza, responsável pela sua estadia no hospital há quatro anos. Porém, finalmente voltando a ter contato e certo nível de convivência com o rapaz, era impossível ignorar tais emoções, mesmo lutando contas elas e usando dos mais diversos artifícios e ferramentas para elas não atingi-lo.
  Ao erguer as pálpebras haviam lágrimas, desconcertando completamente o ruivo. Embora soubesse que tinha razão, sim, em cada palavra dita, não gostava de vê-lo em qualquer estado de martírio que fosse, independentemente dele merecer ou não.
  Kalisto não era de chorar facilmente. Pelo contrário. Para chegar ao ponto da tristeza ser elevada demais culminando em entrar numa guerra contra o pranto era porque as palavras o machucaram. Bastante.
  E Rafael tinha consciência disso.
  - Foi tudo consequência dos seus atos, querido. – a voz saíra embargada e entrecortada, lutando no íntimo para compreender as palavras – Eu não seria o único a sofrer com a mesma dor nessa história. – segurou-lhe o rosto com as mãos, a face a centímetros do dele e as íris escuras, carregadas de emoções ainda não totalmente elaboradas – E me recuso a me desculpar por isso.
  Revelou numa voz sem emoção.
  O silêncio entre eles foi quebrado pela mulher, quem avisou:
  - Rafa, vem. Faltam dois minutos pro motorista chegar.
  O amigo a acompanhou, deixando o advogado atordoado. Foi necessário para o homem alguns instantes no corredor para se recuperar antes de retornar para a resenha.

  Kalisto não pediu para tocar Thinking of You sem propósito. Seu intuito era observar qual seria a reação de Rafael ao ouvir a letra para tirar dúvidas das quais o rapaz jamais lhe responderia caso fosse questionado – ou, no mínimo, mentiria.
  Desde a primeira aula na faculdade o ex demonstrava deseja-lo, não necessariamente amá-lo. As provocações enquanto lecionava, a cena do banheiro e em seu apartamento eram exemplos perfeitos disso. Não conseguia distinguir se existia algo além da volúpia. Devido aos próprios sentimentos sua mente poderia lhe pregar uma peça onde enxergaria situações que queria que fossem reais, mas não necessariamente elas o seriam. Portanto, achou de melhor tom instiga-lo – e isso seria fácil até demais.
  O conhecia bastante, então sabia como mexer com o cantor. Além da escolha propícia da música, permitiu a aproximação de Lucas, quem não lhe despertou excitação em grau algum – e fez questão de estar no campo de visão do ex a todo o momento. Foi o suficiente para fazê-lo ter uma crise de ciúme no corredor. O estranhamento foi devido ao fato de ter sido fácil demais para reagir. Imaginou que fosse porque atingiu o seu limite. Não imaginou a existência de mais nenhuma hipótese cuja consequência foi gerada pelo ato de vingança elaborado e executado por Kalisto anos atrás.
  Queria ver se despertava algum sentimento motivado pela presença dele no mesmo ambiente e a letra da canção cuja letra poderia facilmente se encaixar na situação deles.
  Kalisto era o homem exato para se ter um relacionamento longo e saudável. Não desrespeitava a pessoa, não ultrapassava os limites e sequer abria espaço para dúvidas em relação a qualquer coisa, principalmente à sua fidelidade. Rafael sempre teve acesso ao seu celular e às senhas de suas redes sociais, mesmo sendo low profile. Prezava pelo prazer do cantor, além de funcionarem maravilhosamente bem na cama e dialogarem sobre os mais diversos assuntos. Sempre tiveram espaço para se abrirem devido a segurança emocional mútua. Quando não acontecia por ser um tema difícil de ser tratado – assim como quando conversaram sobre o medo do ruivo de rejeição – respeitava e lhe oferecia as únicas coisas capazes de diminuírem a aflição: compreensão, acolhimento, atenção e carinho.
  Era óbvio que com André o relacionamento não era dessa maneira. O homem impunha sua vontade e, caso não fosse persuasivo, optava pela subjugação, onde, através da força física, obrigava-o a ceder perante suas vontades. E isso deixou Kalisto perigosamente perto de cometer a loucura de se atracar com o homem, acarretando uma briga de proporções preocupantes caso fosse levado pelos impulsos.
  E foi perdido nesses pensamentos que Débora o encontrou apoiado no parapeito da varanda pelos antebraços, alheio aos acontecimentos e às pessoas.
  De tão absorto ao redor não a viu se posicionando ao seu lado.
  - Deixa adivinhar. Esse Rafael é aquele Rafael com quem namorou e têm assuntos bem mau-resolvidos, né?
  Débora não conhecera e nem vira nenhuma foto de Rafael na época quando namoravam, então imaginava que era o ex de seu amigo.
  - Ficou tão óbvio assim?
  - Pra mim, sim. Matei a xarada quando falei sobre os sentimentos guardados pelo ex.
  Em falso tom de reclamação, constatou:
  - Mas você também não deixa passar nada, menina.
  - Escuta, me desculpa. Se eu soubesse que o Rafael era aquele Rafael eu não...
  - Deb, relaxa. – fez um movimento com a mão como se não desse importância – Águas passadas.
  - Certeza?
  O prolongado silêncio respondeu a indagação.
  Aproveitou a momentânea brisa noturna refrescar a pele admirando o céu estrelado e iluminado por uma magnífica Lua Cheia.
  - Por que não conversam? – sussurrou, mesmo sozinhos naquela sacada.
  - Ele nem me deixa chegar perto. Tentei várias vezes hoje e nada, principalmente com a presença da Luana e aquele filho da puta do namoradinho dele.
  - A Lua obviamente protegia o amigo. O André... Bem, é o André.
  Detectou o desconforto na pronúncia do nome.
  - Tem algo conta o cara? – pela primeira vez virou a cabeça na direção dela.
  - Não gosto dele. Na verdade, ninguém gosta. Me passa uma sensação estranha. – esticou o braço e apoiou a mão no parapeito de mármore.
  - O Rafael sempre fala bem do relacionamento dos dois.
  - É mais fácil eu dar o meu cú sem lubrificante na encruzilhada daqui na esquina em plena segunda-feira ao meio dia pro primeiro Kid Bengala que passar se isso for verdade.
  Débora era a pessoa capaz de dizer as coisas mais absurdas numa conversa séria – e isso sempre arrancava risadas do advogado.
  - Ele tenta se convencer de que o relacionamento é promissor. É bem diferente de o ser, de fato. – concluiu contente por notar o semblante do outro mais leve.
  - Então o que faço pra conversar com o Rafael?
  - Comece admitindo os seus erros. – afastou os cabelos do rosto com a outra palma – É claro que um ainda mexe com o outro. A conexão entre vocês deve ser forte pra continuarem envolvidos depois de quatro anos. Devem ser almas gêmeas ou chamas gêmeas.
  - Na verdade, não foi erro. Foi um mal-entendido. – focou o assunto nesse tópico numa tentativa de se desvencilhar de qualquer coisa acerca dos seus sentimentos – Falei uma merda pro Gustavo e o Rafael acabou escutando.
  - Vamos fingir que foi só isso. Vai aos poucos, como se fosse uma escala, até chegarem ao tópico principal.
  - Deb, eu contei a história só pra você, o Gustavo, o Lobato e o Miguel por um único motivo. Tratar do assunto uma única vez pra nunca mais. É doloroso até hoje de lembrar.
  - Sei. Concordo e até dou razão. Entretanto... Mais cedo ou mais tarde o tema virá à tona. Duvido que vocês tenham se reencontrado aqui sem motivos.
  - Amiga, eu dou aula pra ele na faculdade, tivemos uns momentos bem intensos e o abriguei no meu apartamento quando choveu pela última vez. Dormiu lá naquela noite. Isso tudo no decorrer desse mês.
  - Volto a repetir, há uma razão pra esse reencontro. Não há dúvidas. Tente conversar com o Rafa aos poucos lembrando de admitir os seus erros. No momento certo irão abordar o motivo pra sua vingança idiota.
  - Não foi...
  - Você errou em não explorar a situação mais a fundo. – pontuou – Não era pra colocar os pés pelas mãos. Se for pra acontecer, as coisas se configurarão para o que eu falei rolar. Até lá? Nada que incensos, um banho de canela ou de arruda, álcool e a companhia de uma adorável doidinha conhecida como a maluca do Baralho Cigano e duendes, vulgo euzinha, não dêem jeito.

Capítulo 5

  No final da tarde de segunda-feira Rafael caminhava pelo corredor vazio da faculdade quando uma mão tampou sua boca e um braço envolveu sua cintura. Imediatamente começou a se debater, sem dar-se conta de que a outra pessoa não exercia força alguma.
  O corpo atrás de si era alto, firme, grande e forte o suficiente para arrastá-lo sem dificuldades para uma sala, a qual fechou com um leve chute antes de se apoiar na parede.
  - Shi, calma, querido. Sou eu. Está tudo bem. – a voz de Kalisto sussurrou rente a orelha onde a barba rala roçava.
  Deixou a mão deslizar aos poucos até encontrar-se com a outra e segurá-lo pela cintura, o prendendo ali em contato com o próprio corpo.
  - Que merda é essa, Kalisto – precisou se controlar para não gritar. Afinal, não seria bom caso fossem pegos daquele jeito dentro da sala.
  - Foi o único jeito que encontrei de conversarmos. Assim não vai fugir de mim. Foi mal.
  - Não tenho nada a tratar contigo, seu idiota. – vociferou indignado com a ação insensata.
  - Ah, tem, sim. E não adianta tentar escapar dessa vez.
  - Vai se foder.
  - Adoraria foder, na verdade, mas as minhas últimas transas foram uma merda. – ironizou.
  - Me solta, cacete. – sem sucesso fazia força para se afastar.
  - Não. – repetiu decidido.
  - É o que vamos ver.
  Para alguém tão baixo e com proporções pequenas a força física aplicada nos movimentos foi surpreendente. O cantor se debatia com certa violência, ao ponto se jogar o corpo para trás e as pernas agitarem-se no ar. Mais de uma vez o moreno recuou alguns passos e precisou esforçar-se para finca-los no chão.
  - Desde quando você é forte assim? – reclamou o advogado lutando para mantê-lo no lugar sem machucá-lo – Preciso voltar a frequentar a academia pra caso isso se repita eu estar em melhor forma para contê-lo.
  Isso era verdade. A pele sob o terno azul marinho começava a suar.
  - Isso não é força, é ódio, seu desgraçado de merda. – esmurrava as grandes mãos com os punhos – Porra, me larga, filho da puta!
  Sem alternativa, o maior o virou com dificuldade e o segurou num abraço apertado, incapacitando sua movimentação. Com as mãos espalmadas no peitoral tentava empurrá-lo, mas tudo o que conseguiu foi que Kalisto o pressionasse ainda mais contra si ao ponto de não conseguir esticar os braços.
  A posição não era desconfortável e nem dolorida. Era bem agradável na verdade, porém jamais admitiria naquele momento de raiva. Quando transavam o advogado costumava apertá-lo num abraço bem similar àquele, onde sentiria a carne trêmula do ruivo enquanto ele gozaria lhe arranhando os ombros ou as costas. Em consequência, seu pequeno corpo recordava daquele gesto, o primeiro indício de que iria acalmar-se. Graças ao abraço intenso sua recusa se tornou cada vez menos intensa, até chegar o momento quando, já entregue, buscava somente normalizar a respiração.
  - Kalisto, é sério. – o encarou carregado de raiva reprimida – Ou me solta ou vou começar a berrar até alguém vir me ajudar,
  - Vai, mesmo, me prejudicar, bebê?
  Era um blefe. Ambos sabiam a resposta. Enquanto o amasse ou se importasse com o advogado o rapaz de nenhum modo o prejudicaria. Entretanto, os tempos eram outros e o ruivo havia mudado bastante. Portanto, sim, o maior temia a réplica e estava pronto para lidar com as consequências caso fossem descobertos ali por causa do outro.
  O ex desviou o olhar dizendo:
  - Fala logo o que quer e me deixa em paz.
  O suspiro de alívio foi longo.
  - Me desculpa.
  - Pelo que, exatamente? Refresca a minha memória porque a lista é grande. – não poderia soar mais debochado.
  Um meio sorriso desenhou vagarosamente os lábios do ex.
  - Cínico. – soltou quase como um elogio, num tom onde claramente não desaprovava a provocação – Me desculpe pelo áudio que me ouviu enviando pro Gustavo. Achei que estivesse dormindo.
  - Pois achou errado. – disparou irritado – Eu não preciso da sua... – a diminuição do apertou permitiu estalar os dedos como se tentasse lembrar da palavra correta – Como disse, mesmo? Caridade. Não preciso ser o seu objeto de boa ação, não.
  - Ok, fui meio babaca nessa parte.
  - Meio? – ergueu as sobrancelhas sarcástico – Meio é o meu cú. Foi um completo idiota filho da puta, isso, sim, seu escroto arrombado.
  - Em minha defesa, o Gustavo desconfia que eu esteja escondendo algo. Apenas quis soar de maneira que não aguçasse a curiosidade dele, assim como você fez com a sua mãe.
  - Assim como eu fiz o caralho! Não o desmereci quando deixei minha família avisada que estaria bem naquela noite e abrigado.
  - Eu sei. – o notando mais tranquilo afrouxou o aperto mais e logo sentiu falta daquela união em virtude dos troncos pressionados – Por isso o meu pedido de desculpas. Aceita?
  - E quanto ao Lucas? – semicerrou os olhos, ainda não completamente convencido.
  - Mais uma vez, me desculpa também por isso.
  - Vai me deixar ciente do porquê daquilo? Foi pra me atingir, né?
  Quebrou o contato visual encarando acima dos cabelos ruivos.
  - De certa forma, sim, mas não da maneira ruim para entristece-lo ou enciumá-lo como está pensando. Talvez um dia eu lhe conte as minhas motivações. Por enquanto, não. – voltou a fita-lo – Me desculpa?
  - Não sei. Vamos ver. – rebateu desviando o olhar – Ainda estou zangado contigo e com razão.
  Projetando o lábio inferior pra frente, o rapaz formava um biquinho sem sequer notar enrugando o queixo pequeno. Naqueles instantes calados onde Kalisto piscou devagar, o moreno observou os traços os quais denunciavam o seu estado de espírito – raivoso, embora apreciasse o contato corporal e talvez até aprovasse pela maneira como não se distanciou. Focando a atenção nos lábios delineados, a mão coçou para contorna-los com o polegar – e precisou se controlar para não ceder aos impulsos.
  Em suspiro pesaroso, Rafael se voltou ao homem. Por ver o tímido sorriso alheio surgindo em virtude de novamente estarem tão próximos e por assimilar o quanto o outro havia se fortalecido durante aquele tempo separados em admiração pelo progresso do rapaz, o menor o xingou:
  - Babaca escroto.
  Dessa maneira, sem nenhum aviso ou despedida, se desvencilhou dele lhe dando as costas e se encaminhando para a porta com passos ágeis. Quando abaixou a maçaneta, ouviu:
  - Poodle gostoso.
  Saiu da sala de costas eretas sem demonstrar o quão saudoso estava de ser apertado daquela maneira pelo homem e crispando os lábios para Kalisto não vê-lo sorrir pelo elogio.

  O decorrer da semana correu como o usual – cheia de aulas, trabalho e estudo nas horas vagas. Micaela e Mia constantemente o lembravam de se alimentar e, por fim, mais de uma vez levaram lanches ou até mesmo café da manhã no fim de semana quando estava em casa cheio de anotações e livros ao seu redor.
  Mal havia tempo para se distrair ou descansar. Para evitar do ritmo abalar sua saúde assim como já aconteceu após a separação, se obrigava a relaxar conversando pelo Whatsapp com os amigos ou se distraindo vendo vídeos de conteúdos que não fossem do curso.
  Por já estar marcado, quinta-feira às sete da noite foi para a casa do namorado para aproveitarem um tempo juntos. Desde o retorno da viagem de André oriunda do trabalho não tiveram oportunidades de ficarem juntos. No máximo se falavam pelo celular por troca de mensagens, então aproveitou o feriado para encontra-lo quando finalizasse os estudos na parte da tarde.
  Estranhou por se deparar com o portão encostado. Não costumava ser descuidado dessa maneira com a segurança da casa, então entrou sem problemas. Atravessou o quintal e, ao passar pela porta, sentiu o coração acelerar pelo choque da cena.
  Alheios à sua presença, sentado confortavelmente no sofá era chupado por um loiro musculoso e definido, ajoelhado em sua frente, com a cabeça relaxada caída para trás e os olhos fechados. Rafael o sabia porque estava apenas de boxer azul marinho enquanto o namorado ainda usava a calça jeans com o peito e o pé desnudos.
  - Que merda é essa?!
  O grito raivoso os assustou.
  O desconhecido chegou a cair de bunda no chão devido ao impulso de erguer o tronco para ficar ereto. Compreendeu a situação por ver o ruivo parado do lado da porta em puro estado de agonia.
  - Filho da puta. – ergueu-se do piso gelado e foi apanhar as roupas.
  - O que você acha que é, Rafael? – o namorado puxava o zíper da calça, iniciando a conversa como se não tratasse de uma traição.
  - Você vai me explicar essa merda, meu bem, porque não sou eu o errado nessa história.
  Estava visivelmente abalado – não necessariamente pelo motivo mais óbvio. A face transbordava agonia e os olhos enchiam de lágrimas, se esforçando para não chorar. As mãos trêmulas, os ombros encolhidos e o misto de uma série de emoções como raiva, desespero, ansiedade, tristeza, desamparo e desamor passavam pelo rosto angelical que em nada combinava com elas, assim como já aconteceu, entretanto de uma maneira menos dolorosa.
  - Eu só busquei na rua o que não encontro contigo na cama. – André deu de ombros.
  - Hey! – o estranho rugiu zangado – Não fale assim com ele e nem se refira a mim como um putinho de esquina qualquer.
  André apenas rolou os olhos em total descaso.
  Já vestido avisou para o baixinho quando passou ao lado dele:
  - Cara, desculpa. O perguntei se era casado ou namorava, mas me disse que estava solteiro. Deixou o portão aberto?
  De braços cruzados Rafael parecia uma criança assustada cujo pirulito havia sido arrancado da boca.
  - Eu vou deixá-los sozinho pra conversarem. Sério, mais uma vez, desculpa. – completou quando o menor acenou um “sim” para a pergunta.
  Ao ouvir o portão sendo batido, André levantou.
  - Posso saber por que veio na minha casa sem avisar?
  - Caso não se lembre, havíamos combinado de eu dormir aqui essa noite. – mordeu o lábio inferior segurando o pranto.
  - Podia ao menos chegar mais tarde.
  - Você não vai jogar a merda da culpa pra cima de mim, não.
  - É sua, sim! – gritou sobressaltando o outro, quem se encolheu ainda mais – É porque chegou aqui num horário que não foi o combinado. Não fiz nada do que não combinamos quando começamos a sair e você aceitou, sim, um relacionamento aberto.
  - Relacionamento aberto com regras. – se impôs com voz firme – Nada além de beijos seriam permitidos e nem traríamos alguém pras nossas casas. O que vi hoje foi bem diferente do nosso acordo.
  - A culpa não é minha você não sabe foder direito.
  - Como é? – incrédulo, desacreditava na própria capacidade auditiva.
  - Olha pra você, garoto. – apontou para ele num gesto carregado de desdenho – Quem vai sentir tesão por... Isso? É um viadinho que vive desmunhecando. Olha as suas roupas, essa maquiagem... É ridículo. Eu gosto é de homem de verdade como o que acabou de sair daqui, não disso aí que é. Caso soubesse se vestir direito e falar sem parecer mulher assim como cansei de instruir, isso não teria acontecido.
  As palavras lhe atingiram no íntimo, tocando em profundas inseguranças e dores antigas. Já se sentiu assim antes – menos, indigno de receber amor, humilhado, desinteressante, desamparado. Porém, dessa vez, havia a presença de algo a mais. A vergonha de si.
  Rafael nunca foi um rapaz com comportamentos ditados pela sociedade. Sempre teve uma essência mais feminina – essência essa que não era aceita e nem respeitada pelo pai. Portanto, passou por situações desagradáveis de preconceito, inclusive dentro de casa com a figura paterna. Foi obrigado a não assistir determinados desenhos e nem a brincar com bonecas como desejava pelo genitor desaprovar – e isso ainda reverberava nele.
  - Idiota.
  Assim que o maior ouviu a frase, quebrou a distância em poucos passos.
  Primeiro veio o som estalado.
  Em seguida a ardência do lado esquerdo.
  Só compreendeu o que lhe aconteceu quando a área começou a latejar de dor.
  - Você me bateu? – pestanejava ainda confuso e anestesiado pelo choque.
  - Você... Você me faz fazer coisas que não quero! – falava rápido, soando agressivo e perturbado enquanto gesticulava – Eu não queria, mas te ouvi me xingando. Sabe que não gosto de ser chamado desse jeito. Precisava me chamar de idiota sem necessidade?
  Ainda torpe e aceitando a sua responsabilidade pelos erros cometidos com o namorado – na cabeça de Rafael, é claro – apenas deu as costas e foi embora sentindo o odor de fumaça.

  Os dois não sabiam, mas estavam sendo observados por um homem. Homem esse quem usava um terno branco cuja camisa era do mesmo tom da faixa do chapéu vermelho sangue de malandro carioca. Fumava seu cigarro assistindo toda a cena sem interferir.
  Quando o viu sofrendo a agressão, soltou a fumaça pela boca antes de ser o responsável de guiar o rapaz até onde poderia receber ajuda – ou melhor, quem. Não sem antes gravar bem o rosto de André, assim como o nome.
  - Pode demorar um pouco, mas o filho da puta vai descobrir que com protegido meu ninguém rela a mão. – pensou antes de acompanhar o cantor enquanto cantarolava.

“Malandro, se na minha cara der
Pode fazer testamento
Se despedir dessa mulher
Se tiver filhos deixa uma recordação
Cara que mamãe beijou vagabundo nenhum põe a mão”

  Perambulou pela rua. Não corria risco porque sua consciência o lembrava de passar por caminhos conhecidos, iluminados e movimentados. Quando chegou na areia da praia, retirou os tênis e aproveitou para sentar-se e usufruir de um tempo sozinho.
  Não poderia retornar para casa. Sua mãe e a irmão logo descobririam sobre a agressão na face que estava tomando uma cor arroxeada na região do queixo e da bochecha. Isso as preocuparia e ele não saberia qual mentira contar para justificar. Não queria envolve-las nisso. Esse era um assunto entre ele e o namorado. Namorados brigavam e Ivo sempre teve um temperamento complicado. Não havia sido nada além de uma briga entre namorados e ele, Rafael, deveria ter se certificado sobre o combinado, confirmando tudo antes. Do contrário, nada daquilo aconteceria e os dois compartilhariam juntos de um momento bom.
  Certo?
  Pelo menos era isso o que contentava de se convencer.
  Após cerca de duas horas lá, às dez e meia, se deu conta de onde estava. Olhou para trás e viu um belo prédio. Se certificou que as luzes de um determinado apartamento estivessem acesas antes de se levantar limpando o short e ir naquela direção.
  Quando passou pelas portas, Márcio, o simpático porteiro quem sempre ficava na catraca feita para a passagem de quem não morava lá quando os moradores aceitavam visitas, abriu um largo sorriso ao vê-lo.
  - Rafael, menino! Quando tempo! Como você está?
  - Oi. – parou na frente dele passando as costas da mão no nariz – O Kalisto está aí?
  - Não tenho certeza. Irei averiguar aqui. – apanhou o telefone para ligar para o advogado. Encarou o outro novamente o avaliando mais minuciosamente – Está tudo bem, filho? Precisa de alguma coisa?
  - Ah, não, nada, obrigado. Eu só estou com alergia. – esfregou os olhos – Essa mudança de tempo ataca minha bronquite. – forçou uma tosse seca.
  - Certo.
  Ao receber a autorização sem sequer ser indagado pelo nome do visitante, o pediu para passar pela catraca.
  Saiu do elevador vazio no oitavo andar. Caminhou pelo corredor deserto até encontrar a porta certa. Ao batê-la, foi atendido por uma mulher de pele bronzeada. Seria considerada bonita caso não transmitisse tamanha arrogância.
  - É... O Kalisto está? – a voz saiu trêmula colocando as mãos nos bolsos traseiros do jeans.
  O avaliou de cima abaixo com desprezo.
  - Você é o quem? Uma das bichinhas nojentas que meu irmão pega? Pensei que ele tivesse um gosto melhor.
  Se recebesse um tapa doeria menos. Quando ouviu as palavras simplesmente fechou os olhos as suportando sem alternativa melhor.
  - Alexandra, a comida já chegou?
  A voz do moreno ao fundo lhe chamou a atenção.
  Definitivamente foi uma péssima ideia ir até ali. O ex estava com visita e seria, no mínimo, imprudente envolve-lo naquela situação que não lhe dizia respeito.
  Sem alternativas, foi embora rapidamente e escolheu descer pelas escadas para não correr o risco de Kalisto vê-lo.

  Alexandra não era uma das suas irmãs mais amorosas.
  Mantinha-se num casamento fracassado por ser o certo de acordo com o seu pastor, quem costumava carregar a Bíblia debaixo do braço para usar versículos bem inconvenientes para reforçar suas ideias arcaicas. O pastor não se importava caso a mulher estivesse infeliz, se o marido a traía ou se sofria violência doméstica, sexual, psicológica ou patrimonial. O importante era fazer o certo perante a visão divina – mesmo que, para isso, sua integridade física corresse risco.
  Assim como toda a família paterna, era evangélica e não aceitava que o irmão fosse gay. Gostava dele e se orgulhava das conquistas materiais, mas não o aceitava por completo.
  Quando desceu para acompanha-la até a saída com a bermuda de algodão, chinelos e regata puída, Márcio o chamou quando a mulher passou pela porta de saída.
  - Kalisto, o Rafael conseguiu falar contigo? Quem atendeu ao meu telefonema foi a moça quem acompanhou até aqui, então não sei se ela lhe avisou.
  - O Rafael esteve aqui? – confuso juntou as sobrancelhas – Aquele quem trouxe pra abrigar devido a última chuva e frequentava o meu apartamento há uns anos?
  - Sim. Saiu cerca de uma hora antes da sua irmã.
  - Foi ele quem subiu naquela hora, então. – murmurou para si – Alexandra havia dito que era engano, então, a resposta pra sua pergunta é não. Ele estava bem?
  - Olha... – lentamente pôs as mãos nos bolsos na calça – Disse que sim, mas eu diria que mentiu. Não parecia estar nem um pouco bem. Sei lá. Parecia bem fragilizado, pra ser franco.
  - Tudo bem, então. Valeu, Márcio.
  O advogado subiu e assim quem adentrou na casa pegou o celular para ligar para o ex pelo seu número de trabalho, já que claramente estava bloqueado pelo número profissional, além de existir uma possibilidade enorme do ruivo ignorá-lo ou bloqueá-lo novamente caso soubesse quem o ligava. Como não teve resposta, separou alguns documentos, dinheiro e saiu novamente, indo para a garagem em busca do seu carro.

  Rafael chegou em casa quase meia-noite. Foi o melhor horário para passar pelo quintal e o sabia porque a sua mãe e a irmã já estariam dormindo. As cachorras estavam soltas pelo quintal, então foi recebido por lambidas alegres.
  O abalo era tamanho que nem mesmo o recebimento alegre dos animais lhe despertou a vontade de sorrir, mesmo que o gesto fosse mínimo.
  Foi bem silencioso no interior. Tomou banho, vestiu um conjunto de short e regata coloridos e se acomodou na cama. O que queria era dormir para não se sentir daquela maneira. Facilmente atingiria seu objetivo caso o celular não parasse de tocar no chão ao lado da cama enquanto carregava.
  Irritado pela vibração, atendeu a ligação.

  Kalisto não era uma pessoa católica assim como a mãe e nem religioso como a sua família, mas estava numa situação, no mínimo, desesperadora e irônica. Então, pela primeira vez na vida, pedia a Deus, Oxalá, Buda, Krishna, Hécate, Zeus, o Universo, o Panteão do Olimpo e todas as outras divindades cujas existências já ouvira falar na vida.
  Desesperadora porque, caso fosse pego, seria inevitavelmente preso.
  Irônica porque era um advogado bem-sucedido quem começou há menos de dois meses lecionar numa faculdade renomada, então não tinha o perfil para ter passagem pela polícia – e caso isso acontecesse seu amigo delegado riria muito quando contasse a história envolvendo suas ações insensatas e talvez até idiotas.
  Rafael não atendia nenhum dos seus telefonemas, então num ato desesperado, pulou a parede de dois metros de altura. Nunca agradeceu tanto pelos seus 1.85 de altura, seus braços longos, a força adquirida nos anos de academia apesar de precisar voltar a frequentá-la e pela rua estar deserta. Quando desceu do outro lado viu ao longe três cachorras caminhando pelo quintal. Ao vê-lo pensou por um momento se as mordidas de vira-latas de porte pequeno e médio fariam tanto estrago.
  Por sorte, ao chegarem mais perto latindo, pararam de correr e demonstrarem agressividade. Em gestos desconfiados, começavam a farejar os pés e as pernas dele. Não demorou para guincharem felizes balançando os rabos freneticamente, pularem e o lamberem amorosas.
  - Ainda bem que se lembram de mim. – soltou o ar que só então percebeu prender pelo medo. Com o celular na mão continuou tentando ligar tentando dar atenção às três cachorras simultaneamente – Do contrário eu sairia daqui mancando e faltando uma perna.

  - Quem é, cacete? – Rafael atendeu irritado se jogando na cama.
  - Sou eu, Rafael.
  - Kalisto? – de tão surpreso sentou-se.
  - É. O Márcio me avisou que esteve lá no meu prédio me procurando.
  - Por que...
  - Abre primeiro pra mim. Daqui a pouco essas cachorras vão me derrubar. Não param de pular em mim.
  - Abrir o quê?
  - A porta da sua casa.
  - Como é?
  - Estou no seu quintal, carai! – caso não tivesse de fazer silêncio para não ser descoberto pelas outras duas moradoras, teria gritado.
  Demorou uns instantes para a mensagem ser processada pelo cérebro. Assim que compreendeu a urgência, correu o mais rápido que poderia se situar nos cômodos escuros para colocar o homem para dentro de casa, quem, por fim, acabou em seu quarto.
  - O que está fazendo aqui? – sussurrou batendo a porta.
  - Não é óbvio? Quero saber porque foi me procurar.
  - Não, não foi nada. – respondeu usando a escuridão ao seu favor para esconder a marca na face – Foi só uma ideia impensada.
  - Tem certeza? O Márcio não é de mentir.
  - Já disse que estou bem!
  A hostilidade apenas serviu para reforçar para o outro a ideia de que havia algo de errado. O momento de silêncio seguiu entre eles quando Rafael deu-se conta disso.
  - Se for pra te acalmar, fingirei acreditar. Tudo bem?
  -Tá.
  Trocou o peso de um pé pro outro apenas podendo ver a silhueta do ruivo na sua frente. A luz da Lua entrava pela janela, porém se mantinha longe da luminosidade. Detectando esse fato, pendeu a cabeça pro lado com o cenho franzido.
  - Por que não deixa eu te ver?
  Para isso seria necessário atravessar o quarto e passar pela iluminação – e isso não o faria.
  - Não quero correr o risco de perder o sono. – mentiu.
  - Ok. Então se está tudo bem, eu posso ir.
  Arregalou os olhos resolvendo uma equação mental. As três cachorras eram mansas, mas bem agitadas, alegres e principalmente: adoravam fugir pra rua.
  Já perdeu as contas de quantas vezes saiu correndo pelo portão afora atrás delas. Uma vez passou pela humilhação de correr por quase meia hora atrás da cachorra caramelo na companhia da irmã até conseguirem voltar com ela pra casa no colo de Mia.
  - É melhor, não. Do contrário corro o risco delas fugirem, o que é de praxe, e virarmos a noite correndo atrás das três.
  - Então faço o quê?
  - Você dorme aqui e sai às cinco e meia. Vamos torcer pra que elas estejam dormindo.
  A solução não era das melhores, porém Rafael estava cansado e não tinha forças para discutir ou elaborar planos para fuga. Só queria que aquela noite terminasse logo e pudesse se entregar ao sono profundo para esquecer os últimos acontecimentos.
  Sem alternativa melhor e aceitando a enrascada onde se enfiou, Kalisto esvaziou os bolsos e colocou o conteúdo na mesa de cabeceira enquanto Rafael ligava o ar-condicionado e voltava a se deitar. Ouviu o trinco da porta antes do outro retirar a bermuda e acomodar-se ao seu lado na cama pequena para ambos apenas de boxer cinza e a regata. Depositou o celular sob o travesseiro, já programado para tocar dentro de poucas horas. Ficou de costas para o moreno com o corpo encolhido.
  Infelizmente, a presença de Kalisto agravava a situação. A complexidade de sentimentos foi tamanha que não conseguiu segurar as lágrimas. Em questão de minutos elas começaram a descer sem cessar contra a sua vontade, sendo secadas pela fronha do travesseiro. Conseguiria facilmente chorar sem barulho – até porque já o fez inúmeras vezes. Porém, os soluços o denunciaram.
  No primeiro mais velho apenas o olhou estranhando o som. Porém, a partir do segundo, compreendeu o pranto.
  Apesar do afastamento de anos, o rapaz ainda era seu ponto fraco. Era incapaz do sofrimento dele não o afetar. Queria até demais, entretanto não conseguiria ficar parado enquanto o ruivo chorava sem tomar nenhuma atitude para ou atenuar a dor ou, no mínimo, trazer conforto para que a carga emocional se abrandasse.
  O ouvindo, Kalisto, de barriga pra cima, pôs a destra no pequeno ombro, onde o puxou suavemente. Rafael sabia que entre eles havia um contrato silencioso onde um jamais obrigaria o outro a fazer algo que não quisesse. Tinha a opção de resistir e manter-se naquela posição. Contudo, estava cansado demais e numa aflição intensa igualmente grande. Em consequência, aceitou o cuidado que lhe seria entregue sem reclamações.
  O virou até acomodá-lo em seu peitoral. Sentiu as lágrimas molharem sua roupa sem se importar. Roçou os lábios nos cabelos num gesto carinhoso com os dedos acariciando de leve as costas pequenas.
  - Sabe que, geralmente, não adianta mentir pra mim, né?
  O peteleco no peito lhe arrancou uma risada anasalada.
  - Doeu.
  Recebeu leves batidinhas e afagos rápidos onde foi atingido.
  - Quer conversar?
  Rafael acenou um não com a cabeça agarrando-se a regata.
  - Quer ficar sozinho?
  Mais uma vez recebeu uma negativa.
  - Quer a presença da sua mãe ou a sua irmã?
  Mordeu o lábio mexendo a cabeça de um lado pro outro freneticamente.
  - Quer ou prefere a minha? – havia temor nas palavras por não saber a resposta.
  Demorou um pouco, mas o ruivo acenou um tímido “sim”, como se o custasse a admitir ou não quisesse revelar a verdade. O ouviu dar um suspiro e foi acariciado no rosto, justamente onde foi atingido por André. Devido a dor soltou um grunhido abafado que não passou desapercebido por Kalisto, embora ainda não compreendesse o motivo para a reação. Portanto, preferiu afagar os cabelos num cafuné reconfortante.
  - Pode chorar o quanto quiser, bebê. Está seguro comigo. Sempre.
  E assim, escondidos na escuridão do quarto, envolvidos um pelos braços do outro, Rafael banhou a sua regata com as lágrimas. Não recebeu reclamações, repreendas e nem perguntas. Apenas o que mais lhe era necessário num momento tão delicado: um carinhoso acolhimento. Adormeceram juntos pela primeira vez depois de quatro anos separados sem afastar os corpos.

Capítulo 6

  Kalisto acordou pelo toque do celular às cinco e meia da manhã. Descobriu terem, em algum momento durante a noite, se acomodado um de frente para o outro completamente relaxados e abraçados. O lado direito de Rafael escondia a marca pela região estar em contato com o travesseiro.
  Num movimento acelerado desativou o despertador. Antes de se desvencilhar do toque do ruivo com cuidado suficiente para não desperta-lo, o comtemplou dormindo profundamente. Mesmo adormecido havia certa aflição nos traços. E isso o preocupou.
  - O que houve contigo, hein? – pensou.
  Deu um beijo leve na testa e se levantou para colocar a roupa.
  Com seus respectivos pertences e vestido, não fez barulho para sair de lá porque encontrou a chave da casa sob uma mesa. Iria para o quintal, trancaria a porta e abriria a janela da sala para jogar a chave sobre o sofá. Pularia o muro para a rua e buscaria seu carro estacionado na calçada.
  Pelo menos foi o planejado.
  Não imaginava que ao atravessar a sala uma garota de doze anos se encaminharia para o banheiro. O quarto da menina ficava ao lado da sala, então passar pelo cômodo era imprescindível.
  De imediato foi descoberto.
  Mia cambaleava sonolenta coçando o olho. Ao vê-lo parado a encarando meio empalidecido, arregalou os olhos e puxou o ar assustada pronta para berrar. A cena de um estranho em sua casa seria assustadora, mas, naquele caso, era cômica. O moreno demonstrava pavor da menina quem ainda sequer batia no seu peito em questão de altura, menor que o irmão
  - Grita, não! Grita, não! – suplicou sussurrando e mostrando as palmas das mãos rentes às orelhas – Pelo amor de Deus, não grita.
  A face da filha mais nova de Micaela tornou-se confusa, já completamente desperta.
  - Calma aí. Eu conheço você. É o ex namo, quero dizer, o amigo do meu irmão. – com os dois primeiros dedos gesticulou aspas no ar na palavra “amigo”.
  - Isso!
  - E o que está fazendo aqui em casa nesse horário?
  - Olha... Pra ser sincero nem eu tenho direito a resposta pra essa pergunta.
  - Por acaso vocês voltaram? – coçou a cabeça atordoada, entendendo a situação menos ainda.
  - Menina, o sol ainda nem nasceu. É muita pergunta difícil pra ser respondida num horário desse. – bocejou – Acordei tem nem dez minutos e estou com as costas doloridas.
  - Eu sei. A cama do meu irmão é bem pequena pra vocês dois.
  - É verdade.
  Só então deu-se conta da informação. A face de Kalisto ficou lívida e a da menina transformou-se num sorriso diabólico, com as engrenagens do cérebro funcionando rápido demais.
  - Não conta pra ninguém que estive por aqui, ok?
  Pediu desesperado para encerrar o assunto. Não conseguiria ler a mente alheia, porém, pela sua postura com um toque de deboche e um meio sorriso orgulhoso boa coisa não era – além de sobrar facilmente para ele.
  - Conto nada, não.
  Numa falsa expressão de inocência que deu calafrios ao moreno, Mia lhe deu um tchau.
  - Ótimo! Boa noite!
  Antes de virar a maçaneta a voz feminina o impediu:
  - A menos que...
  Virou-se com um frio na barriga.
  - A menos que o que? – falou num fio de voz tão rápido que pulou uma sílaba ou outra.
  - Você me dê algo que eu queira.
  - E seria?
  - Bem... Sou nova e estou começando a minha vida agora. Tem algumas coisas que eu gostaria de ter, como um batom ou uma blusa legal. Você é adulto e adultos só saem de casa com dinheiro. O que você acha de uns cinquenta reais? – estendeu a palma – Pode passar.
  O queixo do homem caiu. Piscou uma. Duas. Três vezes até a fala do ser humano em sua frente com menos da metade do seu tamanho e certamente um terço de seu peso.
  - É suborno do que estamos falando aqui?
  - Não. Apenas encontrei uma maneira prática e rápida de adquirir um batom e talvez uns brincos às suas custas. – sorriu largamente – Ou um presente pra uma pessoa em especial, mas essa é outra história.
  - Eu me recuso a fazer isso. Não vou dar dinheiro pra você em troca do seu silêncio.
  - Se prefere assim. – deu de ombros. Inclinou a cabeça levemente para o lado – Mã...
  - Ok! – a interrompeu, quem se calou de imediato.
  Colocou as mãos no bolso direito, de onde retirou a carteira.
  - Não acredito que estou sendo chantageado por uma criança. – resmungou a abrindo.
  - Criança, não. Pré-adolescente digna de respeito – o corrigiu.
  - Pronto. – estendeu duas notas de vinte.
  - É só isso? Assim insulta a minha inteligência.
  - É tudo o que tenho.
  - Mã.
  Dessa vez a voz soou mais alta.
  - Deus, quando esse pesadelo vai acabar? – choramingou dando-se por vencido.
  - Quando você deixar de ser mão de vaca e me der mais dinheiro. Parece até minha vozinha, que Deus a tenha. Ou o capeta. Não sei dizer pra onde ela foi, não. Talvez esteja até num limbo por ser impedida de entrar tanto no céu quanto no inferno.
  - Menina! – não conteve a risada – Isso lá é jeito de se referir a sua avó?
  - Diz isso porque não conheceu a véia. Anda, chega de conversa mole. Passa logo esse dinheiro. Quanto mais tempo parado na sala, maiores chances de ser descoberto, menos tempo de sono eu tenho e menor a possibilidade de comprar umas coisinhas pra mim. – balançou os dedos para enfatizar.
  - Pronto. – estendeu mais uma nota de cinquenta – Satisfeita?
  - Muito! – a apanhou agradecida – Tenha certeza que será muito bem recompensado por ajudar uma pobre pré-adolescente a adquirir umas boas comprinhas. Deus há de me abençoar a encontrar umas promoções legais.
  - Mas foi por meio de chantagem!
  - O Todo Poderoso sabe que tenho meus motivos. Vamos, se apresse para sair.
  O ajudou a sair dali segurando as três cachorras que tentaram alcança-lo para brincar.

  Durante a aula de sexta-feira Kalisto observara Rafael atentamente. O rapaz parecia um pouco melhor comparado a noite anterior. Quando entrou na sala o viu conversando com os colegas de classe. À primeira vista estava apenas um pouco mais quieto. Entretanto, existia certa áurea de melancolia que o cercava. Quem não o conhecia há tantos anos jamais a notaria. Kalisto não era uma dessas pessoas e não demorou para notar a farsa.
  Rafael tinha sardas no nariz e na região inferior perto dos olhos. Elas não estavam visíveis graças a uma camada de maquiagem. Estranhou a mudança de seu comportamento base, pois nunca usara nada para esconde-las no passado e nem no decorrer daquele mês quando se depararam na faculdade. Além disso, quando encostava na parte do queixo e da bochecha produzia duas reações corporais: ou contraía os ombros ou fazia uma careta de dor.
  Todos esses fatores asseguram-no ainda mais a existência de outro motivo para passar a base.
  Ao término da aula lhe enviou rapidamente uma mensagem o avisando que gostaria de falar com ele assim que os demais alunos tivessem saído. Quando o ruivo lançou um olhar indagador de esguelha mexendo no celular foi o sinal do recebimento do texto.
  - Olha, eu não posso demorar. – encaminhou-se para a mesa do professor, onde o outro o aguardava sentado na cadeira – O que foi? – de braços cruzados e com a mochila nas costas parou em frente a Kalisto assim que a sala esvaziou.
  - Nada. Queria saber como está depois da noite passada. Acordou melhor? – levantou descansando as palmas na mesa, o único objeto que os separava.
  - Sim. Bastante.
  Semicerrou os olhos numa expressão firme onde claramente não aceitara a mentira.
  - Ok, não tanto quanto gostaria. – optou pela franqueza dando-se por vencido.
  - Agora estamos falando o mesmo idioma. – sorriu em aprovação pela escolha de contar a verdade – Precisa de ajuda em alguma coisa? Conselho, desabafar... Sei lá.
  - Não, tudo bem. Consigo resolver sozinho. Mais alguma pergunta?
  - Sim. Para ser franco, seria uma um pedido.
  - Qual?
  Contornou a mesa sem cortar o contato visual. Com ambas as mãos descruzou os braços dele e, pela blusa, o puxou para si. O abraçou, certificando-se que o lado direito do menor tocasse no tecido escuro de seu terno sem pressionar a área.
  Automaticamente retribuiu o abraço, relaxando nos braços do outro e o envolvendo pela cintura. Permaneceram assim por alguns instantes antes de se separarem e Kalisto conseguir a última peça para completar o quebra-cabeça.
  Não foi sem motivo que o abraçou.
  No terno ficou uma parte da maquiagem, revelando a marca arroxeada no rosto alvo. As pálpebras arregaladas do ruivo junto com a mancha no lado onde encostou o rosto no peito do advogado foram os sinais para fitar o paletó, vendo resquícios de maquiagem
  - O nome. – pediu numa voz fria – Me passa o nome que eu resolvo esse assunto.
  - Isso não foi nada. – alarmado tampou o machucado com uma das mãos – Eu só fui desastrado.
  - Quer mentir pra mim? Melhor do que ninguém conheço uma clara marca de violência, inclusive as reações das pessoas. Sei bem o que aconteceu e não adianta mentir.
  Era verdade. Na infância uma de suas tias casou com um homem quem não demorou a agredi-la. Em várias memórias ela estava com diferentes lesões frutos da violência doméstica espalhadas pela pele.
  - Eu juro que não foi nada de demais.
  O silêncio desconfortável pesou entre eles. Com o quadril encostado na mesa, o advogado sequer piscava. Os olhos transmitiam ódio genuíno, a voz era gélida e a expressão dura.
  - Foi seu namoradinho quem te deixou esse presente?
  A pergunta o fez fechar os olhos e crispar os lábios. Ao abri-los não conseguiu encara-lo, voltando a visão para o lado.
  - Eu gostava mais do seu rosto como era antes. – quebrou a distância entre eles. Com as costas do dedo indicador acariciou o arroxeado. A gentileza era tamanha que Rafael não sentiu dor porque mal chegou a ser tocado – Não é pra deixar abusarem de você assim, meu menino. – pela primeira vez a voz demonstrou compaixão.
  - Foi só uma vez. Não vai repetir.
  A frase o fez deslizar os dedos pelo braço e segurá-lo pelo pulso, onde afagou a pele. O suor presente na região lhe mostrou o quanto a agressão o impactou e buscava controlar as reações para não evidenciar isso.
  - Quem bate uma vez só para quando termina em morte.
  - Ele me prometeu que nunca mais encostaria em mim assim.
  E era verdade. Tivera uma conversa com André sobre o ocorrido. O namorado lhe prometeu que não voltaria a acontecer, além de presenteá-lo com um ursinho de pelúcia e passarem algumas horas juntos num grau de amorosidade atípica.
  - Você é gentil demais, mas não é ingênuo ao ponto de beirar a burrice. Pelo menos revide.
  - Eu não gosto de violência.
  - Mas serve pra ser feito de saco de pancadas?
  A pergunta retórica o pegou desprevenido. Encolheu-se em virtude do peso das palavras, pestanejando para afastar as lágrimas.
  - Eu tenho um compromisso agora e não posso me atrasar.
  De fato, porém não era devido ao compromisso que estava indo embora, mas sim porque queria fugir daquele confronto.
  Inicialmente se afastou, entretanto Kalisto não o soltou. Aguardou até ambos os braços estivessem esticados e o corpo de Rafael voltado para a saída para, então, puxá-lo para si. As costas encostaram no tronco do moreno, quem descansou as mãos na cintura fina. Pressionou os dedos suavemente como um lembrete para si de que haviam limites entre eles os quais não deveriam ultrapassar – e em nada tinham a ver com a relação aluno x professor, mas sim englobavam o âmbito emocional.
  Abaixou até alcançar a pequena orelha, onde mordiscou o lóbulo e o sugou, vendo o corpo de Rafael reagir. Soltou o ar pela boca, o hálito quente entrando em contato com a pele desnuda do pescoço branco.
  - Você é doce demais para ficar com um cara como o seu namoradinho. – sussurrou em sua orelha – Ele não é adequado pra você.
  Repousou a cabeça nas vestes alheias de olhos fechados, apreciando o toque mais do que deveria.
  - Quem, então, serviria para mim?
  - Alguém que... – um braço circulou a cintura e o outro subiu pelo abdômen até encontrar o rosto, onde acarinhou – Seja bom pra você. – deixou os lábios roçarem na orelha, provocando arrepios nele por antecipação – Carinhoso. – chupou o lóbulo, arrancando um gemido do ruivo, quem o segurou na nuca o incentivando – Te ame como merece. – ao esfregar a ponta da úmida língua no pescoço, Rafael, em resposta, mordeu o lábio inferior numa tentativa de impedir um segundo gemido de escapulir – E te coma tão gostoso ao ponto de deixar as suas pernas bambas e não conseguir pensar em mais nada além de simplesmente sentir todo o prazer proporcionado.
  - Eu já tive um homem assim ao meu lado. – resfolegou.
  - É? E o que aconteceu?
  Rafael distanciou o rosto o suficiente para fita-lo.
  - Não valeu de nada além de me magoar. E não sabe como me odeio por ter entregado meu coração pra um filho da puta. Não é, Kalisto?
  Kalisto sabia sobre o que e quem Rafael falava – até porque carregava consigo a prova em seu pescoço no formato de pingente com a letra R.
  A única prova que denunciava a ida do ruivo em seu apartamento era o pingente, do qual passou a carregar consigo desde então junto com o seu próprio.
  O motivo? Nem ele tinha a resposta para essa resposta. Por outro lado, não conseguia jogá-lo fora.
  O rapaz engoliu em seco se afastando para longe dele.
  Antes de alcançar a porta a voz do ex o parou:
  - Amanhã aquela boate The Home vai abrir. Ainda tem ingressos à venda e eles são baratos. A inteira está por trinta reais. Por que não chama uns amigos pra irem? Pelo menos assim vai conseguir se distrair e levantar seu ânimo. Eu vou, mas não hesite em me ignorar se preferir. Pode até fingir que não me conhece. Só não deixe de sair pra se distrair. Seu bem-estar é mais importante que a minha presença por lá.
  Atravessou a porta com as costas eretas ponderando sobre a proposta.

  Rafael estava em seu refúgio no terreiro, cercado por pessoas com quem não demorou a fazer amizade pelo tempo que frequentava o congá. A brisa balançava as mechas de quem tinha cabelo longo e algumas pessoas dançavam.
  Ao longe um homem o encarava sério metros à frente. Trajando roupas clássicas da figura do malandro carioca, fumava o observando antes de cantar para ir embora.

  “Vou descendo o morro dizendo um velho ditado
  É melhor andar sozinho do que mal acompanhado
  Esse é irmão desse
  É um conselho que eu te dou
  Não confie em qualquer um
  Que qualquer um é falador
  O mato tem dois olhos
  A parede dois ouvidos
  A pior da traição é quando vem de um amigo
  Eu vou-me embora pra cidade do além
  Vou-me embora dessa casa sem dever nada a ninguém
  Eu vou-me embora, mas prometo aqui voltar
  Só não volto nessa casa se a dona não deixar”

  Sem perceber, a moça se posicionou ao seu lado fumando.
  - Demorou hoje, filho. Posso saber por quê? – soltou a fumaça pelas narinas.
  - Uma pessoa quis tratar de um assunto comigo. Nada de demais.
  - Assim como está tratando de esconder esse machucado na sua fuça? – soou bem irritada.
  Inconformado, abaixou a cabeça com um sorriso triste.
  - Não consigo esconder nada de você, né?
  - Já era tempo de saber que não. Fez nada a respeito?
  - Pra que? Não adiantaria de nada. – deu de ombros.
  - Como não? Da última vez que um perna de calça levantou o braço pra mim, antes de me atingir, peguei uma faca e rasguei o braço de fora a fora. Antes ele ter o braço cortado do que eu com um olho roxo.
  - Matou ele?!
  - Não! Só não permiti que me machucasse. Na mesma hora o expulsei da minha casa e queimei todas as roupas do infeliz junto com os pertences. Dei as costas sem pestanejar. Sabe por que?
  Acenou um não.
  - Porque amor, meu filho, não bate. Não fere a carne. E principalmente. Eu me amava tanto, mas tanto, que jamais permiti ser destratada por homem nenhum. No dia que você se amar assim, moço, não vai deixar te encostarem pra ferir, não. Pra safadeza, sim. E se não for das boas joga fora também porque ninguém merece ser mal fodido.
  Riu pela fala desbocada.
  - Eu não tenho essa força, não. – mexia nas unhas sem fita-la. Carregava vergonha no íntimo pelo ocorrido.
  - Vai adquirir. Aliás, eu iria resolver esse assunto pra você, mas alguém falou comigo primeiro. Não tirarei o gosto dele, até porque sabe o que faz. Esse traste quem insiste em se manter do lado há de pagar caro pelo o que fez com vocês.
  - Vocês? – franziu o cenho virando-se para a robusta mulher negra de fartos cabelos crespos.
  - Não foi só uma pessoa quem ele desgraçou, não, mas isso é história pra outra hora. O que tanto proseou para demorar pra chegar aqui?
  - Ah, uma pessoa descobriu o que aconteceu. Aí me chamou pra sair numa tentativa de me distrair. Não sei se vou, não.
  - Só um jumento não aceitaria.
  - Moça! – ultrajado, virou pra ela.
  - É verdade! Até porque esse, sim, parece se preocupar contigo, ao contrário do outro que lhe dá bordoada.
  - O André não foi sempre assim. No começo era muito bom. Passava por várias dificuldades, mas nunca descontou em mim. Pelo contrário. É só uma fase.
  A entidade gargalhou audivelmente antes de cantarolar.
  - Sou fingida porque um homem acabou com a minha vida.
  Deu um trago no cigarro antes de indagar:
  - Quer que um par de calça acabe com a sua vida?
  - Não.
  - Então saiba diferenciar quem gosta de você de verdade pelas ações. Palavra não serve pra merda nenhuma além de iludir. Atitude, sim, é importante. Do contrário, nem a gente poderá te ajudar quando se foder por escolher o filho da puta errado para estar do seu lado. A gente pode ajudar, sim, mas não fazemos milagres.

  Na noite seguinte estava na boate com um grupo de amigos.
  Seguiu o conselho de Kalisto, então estava naquele momento num dos pequenos palcos de pole dance na lateral do segundo andar da boate lotada. Dançava de forma bem sensual arriscando alguns movimentos na barra aprendido com uma amiga há alguns anos. Rebolava sem pudor ao ponto de ficar de quatro ali ignorando os olhares lascivos – exceto um em particular.
  O advogado o observava em meio à multidão encostado na bancada onde pedira uma tequila. A tomava admirando o homem quem usava um colete preto desabotoado com os braços de fora, um short preto colado bem curto e coturno também preto. Esperava se esconder entre as pessoas para não ser descoberto enquanto o encarava desejoso.
  O viu chegar com um grupo há cerca de uma hora, porém não se aproximou. Optou por manter distância para não contrariá-lo e nem trazer problemas, embora Débora estivesse em sua companhia. Adoraria contar os avanços para amiga, entretanto aquele não era o melhor cenário para a conversa. Portanto, manteve-se no anonimato, apenas acompanhando a vida do rapaz a distância – assim como vinha fazendo nos últimos quatro anos através de páginas fakes nas redes sociais.
  Quando Rafael se pôs ao seu lado para comprar água com o barman, o moreno virou o rosto. Iria se afastar, porém a voz do ruivo o impediu.
  - Segui seu conselho. Não pensei que fosse fugir de mim quando eu me aproximasse. – gritou para ser ouvido. De frente para a multidão, apoiou o cotovelo na bancada.
  - Não estou fugindo. Só achei que não iria me querer por perto.
  - Pelo amor de Deus. Estamos num local público. Não tem porque me evitar.
  - De certa forma tenho, sim. Seu namoradinho veio junto e você já teve problemas suficientes antes de ontem. Sabe que a ideia inicial era você vir sem ele, né?
  - A gente namora. É difícil não me acompanhar pra algum lugar. Não pude evitar.
  - E onde está esse anjo de candura? – não disfarçou o tom ácido ao se referir a André.
  - Sabe que o nome dele é André, né? – pela primeira vez se virou para o ex.
  - E o que o cú tem a ver com as calças?
  - Por que nunca o chama pelo nome?
  - Porque é isso o que ele é: seu namoradinho. Eu não gostava dele antes. Não é agora que serei simpático com o filho da puta, principalmente pela forma como te trata.
  - E isso te interessa? – soava curioso ao invés de contrariado.
  - Se você me der o nome completo, sim.
  - Como assim?
  - Porque se ele te bater de novo será a última vez que seu namoradinho terá mãos.
  A frase arrancou uma estrondosa gargalhada do ruivo.
  - Está assistindo muito Game of Thrones.
  - Khaleesi nunca esteve errada.
  A água lhe foi entregue. Antes de toma-la, falou num tom leve:
  - Agora entramos num consenso.
  Brindaram sorrindo.
  - Hum. – engoliu o líquido – Perguntando pelo André, ele está ali com aquele cara.
  Kalisto arregalou os olhos em choque. O homem claramente flertava com um outro enquanto dançavam de forma bem sugestiva. Fitou o ex assombrado, quem apenas se hidratava sem se importar com a cena metros à frente.
  - Pensei que fosse fiel a você. Não está incomodado?
  - Estamos numa relação aberta. – coçou o ombro.
  - Pelo que me lembro não era algo que você curtia. Quando mudou de ideia assim?
  - Quando aprendi que não se pode ter tudo nessa vida, nem mesmo amor ou fidelidade total.
  - Chumbo trocado não dói.
  Antes de Rafael abrir a boca para contestar a frase, Luana o segurou pelo braço lhe chamando a atenção:
  - Amigo, escuta... – então viu com quem conversava – Ai, que merda! – exclamou numa careta desgostosa – Agora entendi porque o André está possesso.
  - É um prazer vê-la também, Luana. – ergueu a cerveja para cumprimentá-la.
  - Se eu dissesse o mesmo, querido, estaria mentindo. – o avaliou de cima abaixo com cara de nojo antes de se dirigir ao ruivo – Escuta, o André está vindo pra cá puto da vida e desconfio que tenha cheirado uma coisinha meio diferente. Não está puro de tudo, não.
  Mau sinal. Geralmente o namorado se tornava bastante instável quando se drogava e, dependendo do caso, meio agressivo.
  - Kalisto, por tudo que é mais sagrado, não o provoque e nem o conteste. – pediu Rafael com o cenho franzido quando viu quem vinha atrás do moreno.
  Num movimento brusco o atual o segurou pelo ombro e virou. A força foi tamanha que o moreno precisou controlar o tronco para não se desequilibrar.
  - Está tentando voltar com ele, é?
  Visivelmente o namorado de Rafael estava alterado. Pupilas dilatas, olhar vago, um leve tremor e veias saltando no pescoço confirmava isso.
  - Não vai adiantar, não, sabe por quê? – o agarrou pela nuca o puxando para si para sussurrar em seu ouvido – Essa cadelinha agora é minha. Você lembra bem de quando nos encontrou naquela noite, né? Adorei ver a sua cara de idiota dentro do carro. Quem ri por último, amigo, ri melhor. E já tem quatro anos que gargalho da sua cara, porque, segundo você eu jamais seria alguém. Agora, olha pra mim. Além de ter o meu dinheiro estou com o seu macho.
  Em outra ocasião Kalisto com certeza revidaria. Não apenas por trazer dos recônditos da sua mente uma memória especialmente dolorosa, mas também por agredir o ruivo no dia anterior, quem estava ao seu lado numa expressão de medo genuína junto a amiga.
  Caso não corresse o risco de prejudicar Rafael, sem dúvidas partiria para a agressão física, onde desferiria golpes certeiros no oponente, quem, em desvantagem pelo uso da droga, seria facilmente desfigurado caso não interferissem. Despejaria nele a raiva de Rafael sofrer nas mãos do atual, a frustração pela incapacidade de fazer algo mais significativo para defende-lo e também sentimentos que surgiram graças a ativação da memória citada por André.
  Por Rafael, não por si. Para não piorar a situação do namorado de André, o advogado reuniu toda a sua força interna e autocontrole para proferir as seguintes palavras:
  - Está certo. Você é um alguém e eu um merdinha.
  O homem se afastou batendo no peito com os punhos antes de segurar a mão do namorado e sumir entre a multidão.
  Com as mãos trêmulas, virou para o barman e pediu:
  - Eu pago o preço que for, mas me traz qualquer coisa que tiver aí sem álcool e com uma quantidade excessivamente extra de maracujá.
  - Está estressado hoje, é? – pela primeira vez Luana não se dirigia a ele com raiva, deboche ou desprezo.
  - Com o namoradinho do seu amigo tem como não se estressar? – virou a cabeça para ela, quem refletia a mesma posição: os cotovelos descansados na bancada do barman e o tronco inclinado para frente.
  - Impossível. Aliás, queria conversar contigo.
  - Sobre?
  - O que me falou no prédio da Débora sobre o André. É verdade?
  - O Rafael te contou o motivo de não mexer direito a mão quando você chegou?
  - Disse que bateu em algum lugar.
  - Eu garanto que a história não foi essa.
  - Foi qual, então?
  - Eu queria falar, porém, caso o faça, facilmente Rafael vai discutir comigo. Vou me emputecer, talvez responder uma coisa ou outra com razão, ele vai querer voar no meu pescoço por não ter argumentos para debater comigo e voltaremos à estaca zero, onde mais uma vez pedirei desculpa. Então, acredite, prefiro ficar de fora nessa merda. Ou melhor, é mais sensato da minha parte me manter de fora pra não piorar a situação pro lado do Rafael. Do contrário sairei como o errado depois de espancar o desgraçado. Tudo o que peço é para não deixa-lo sozinho quando o namoradinho estiver por perto. – a encarou de esguelha quando a bebida com polpa extra de maracujá foi colocada na bancada para si – O que ainda está fazendo aqui?
  - Ah, é.
  Riu da imagem da mulher correndo para achar os dois quando começou a tomar sua bebida.

  Débora voltava do banheiro quando, sem querer, esbarrou em um homem quem destoava um pouco dos demais devido ao seu terno.
  - Ah, desculpa. – afastou os cabelos do rosto.
  - Perdão. – o forte sotaque italiano era impossível de esconder.
  - Precisa de ajuda?
  Não conteve em perguntar já que o desconhecido parecia aborrecido.
  - Não, obrigado. Só não estou acostumado com essas festas.
  - Por que veio, então?
  - Vim com um amigo. – confessou – Terminou o relacionamento há umas semanas e está mal. Aceitei acompanha-lo pra cá e nem gay sou. O Daniel deve estar por aí transando com alguém ou a caminho de um motel.
  - Que droga. Por que não fica comigo e um grupo de amigos? O Uber está bem caro de qualquer forma.
  - Aceito. Até porque só vou embora ao amanhecer.
  - Me acompanha, então. A propósito, sou Débora.
  - Ricardo.
  Conhecer a mulher de ar jovial e traços delicados trouxe uma curiosa tranquilidade para o albino de cabelos lisos, assim como o desvelo de querer conhecer mais sobre ela. Portanto, foi de bom grado em sua companhia até encontrar o grupo.
  Foi muito bem recebido e passou um tempo bastante agradável com eles. Riu, conversou, dançou e se divertiu – sem se afastar do lado de Débora. Os pequenos toques mútuos demonstravam que um tinha essa curiosidade acerca do outro, principalmente por não se afastarem ao sentirem-se confortáveis com aquele contato.
  Sentiu-se bem com os ali presentes – com exceção de um em particular.
  Não aprovou a postura de André e de imediato notou que o rosto não lhe era desconhecido. Vasculhava a memória tentando se lembrar onde o havia visto. Demorou um pouco para alcançar seu objetivo, mas só serviu para ter um comportamento mais protetor em relação a Débora. Evitava do homem se aproximar dela, sempre usando do próprio corpo para bloquear a passagem ou evitar de se esbarrarem. Suas lembranças não eram positivas. Na verdade, eram carregadas de um desconfortável incômodo, como se algo lhe avisasse que havia algo de errado apesar de não ter provas para comprovar a sua intuição.
  Foi um alívio quando André foi embora. Protetoramente descansou as palmas nos ombros da mulher, quem, aprovando a sutileza do gesto, recostou os cabelos no peitoral.

  Às três e meia da manhã Débora chamou Rafael, quem estava entretido dançando com Victor, Morgana, Nichole e Luana.
  - Você viu que o Kalisto está aqui? – o albino continuava ao seu lado.
  - Sim, eu já sabia. – meio alto graças ao efeito do álcool, acabou falando mais do que deveria.
  - Como assim?
  - Foi ele quem me aconselhou ontem a chama-los. Eu precisava me distrair hoje.
  - Algum motivo em especial para isso?
  - Estou bêbado ao ponto de ser uma boca de sacola, mas ainda não suficiente para revelar meus segredos. – terminava sua cerveja paga por Victor.
  - Bem, aproveitando que o André já foi, por que não o chamamos para se juntar a nós?
  - Talvez por motivos óbvios?
  - Quais?
  - Coração partido, lembranças, dores e a leve possibilidade de eu terminar aos prantos pela bebedeira, sendo acudido por vocês. Acredite, sou terrível quando o assunto é ex e sentimentos guardados pelo filho da puta.
  - André não é lá grandes merdas e você o suporta, mesmo ninguém gostando do seu namorado. Por que dessa vez não mantem do seu lado alguém que realmente aparenta gostar de você, só pra variar?
  - Credo, garota! Falou com a Pomba-Gira, por acaso?! Vaca! – olhou ao redor assustado – Vaca é ela. – apontou para a amiga – A senhora, não. É uma querida maravilhosa. – assegurou para ninguém em particular – Me deixou sem argumentos, Débora. Ok. Vai lá você. Me recuso a fazer esse convite. Ainda tenho um pouco de dignidade intacta apesar de estar bêbado.

  Kalisto logo se entrosou com o grupo quando foi trazido pela amiga em questão de segundos. Inicialmente contestou achando que não seria uma boa ideia. A mulher, por outro lado, sabia ser bem persuasiva quando necessário – e ela sequer recorreu aos argumentos bem elaborados. O advogado se considerava um imbecil desprovido de um pingo de inteligência ou sensatez quando o assunto era o ex, então Débora precisou de apenas quinze segundos de conversa antes de conduzi-lo até os demais.
  Se divertiram bastante nas horas seguintes. Com a saída de André e a chegada de Kalisto o ambiente tornou-se mais harmônico, já que um trazia peso pela sua instabilidade e o outro carregava uma postura mais coesa e equilibrada – e foi graças a isso que não tirava os olhos de Rafael.
  Não revelaria que recorria à bebida para permanecer naquele estranho contexto onde o ex fora incluído – apesar da ideia ter partido do moreno. O álcool bebericado o mantinha alegre e longe de sentimentos ruins como a tristeza. Experimentava uma sensação de animação, liberdade e desinibição. Logo, não demorou para as barreiras da consciência caírem e começar a tratar o advogado como realmente queria – conversava, ria, brincava e até mesmo o provocava dançando. Com as mãos apoiadas no joelho esfregava a bunda num rebolado lascivo em seu quadril. Demorou cinco segundos para sentir o pau endurecer. Não se importou em encaixá-lo perfeitamente para prosseguir com os movimentos explícitos.
  O ruivo tentava em vão tomar mais álcool. Era sempre impedido pelo ex, quem lhe estendia uma garrafa de água.
  - Se hidrata que é melhor. – avisava colocando a garrafinha em sua frente.
  - Eu só aceito porque você não me sacanearia. – sorria antes de toma-la.
  - Aí, deixa ele beber. Você não é dono do Rafa, não. – reclamou Luana, a única quem não aprovou a presença de Kalisto.
  - O estou protegendo de si. Da última vez que se embebedou há uns anos conheci um dos meus futuros clientes antes da hora.
  - Que cliente, cacete?
  - Mike Doidão.
  - O Mike! – o ruivo abriu os braços – Tem notícias dele? Muito gente fina.
  - Finíssima! – ironizou.
  - Só pelo nome já sei que a história é boa. – a mulher disse – Depois conta isso daí com mais detalhes.
  Apesar da clara desavença por parte dela, a amiga aprovou a maneira como Kalisto interagia e cuidava de Rafael – jamais o admitiria em voz alta, é claro. Mesmo para ir ao banheiro o acompanhou, o segurando pela cintura ou pelos ombros num gesto carregado de proteção. Todos perceberam isso, principalmente Débora.
  Em dois momentos distintos Rafael conversava com outros homens com quem flertava. Quando os estranhos tentaram afastar-se com o cantor, de imediato Kalisto interferiu, os impedindo. Retornavam rapidamente segurando o ruivo pelas mãos.
  - Hey. Deixa o Rafa curtir. – Victor tomava sua cerveja.
  - Se fosse a Nichole ou a Morgana sendo levadas bêbadas por um desconhecido você iria permitir? – indagou vendo Rafael voltar a dançar com as meninas e Ricardo.
  - Não.
  - Por quê?
  - Porque estariam bêbadas e em vulnerabilidade.
  - Por que com o seu amigo a lógica seria outra?
  - Ok, agora te dou razão.
  - Eu não estou cortando o barato dele. Apenas evitando que se ferre ou faça algo que vá se arrepender amanhã.
  O encarou por uns segundos antes de indagar:
  - Se lembra de mim, né? Nos vemos na apresentação da Princess.
  - Sim.
  - Naquela noite contou que ela te lembrava alguém do seu passado. Essa pessoa misteriosa seria o Rafa?
  Se calou por quase sessenta segundos completos enquanto o outro aguardava a resposta pacientemente. Por fim, deu um meio sorriso e um peteleco de leve na garrafinha de vidro.
  - Por que não termina sua bebida antes dela esquentar?
  Se juntou a Débora e Ricardo deixando Victor rindo, já que o questionamento foi uma clara resposta.

  Às seis e cinquenta da manhã estavam acomodados numa das mesas do bar do outro lado da calçada da boate. Improvisaram um café da manhã comprando alguns itens numa padaria grande da esquina. Pelo estabelecimento estar fechado, juntaram as mesas para poderem comer. Havia bolo, pães, mortadela, queijo, manteiga, café, chocolate quente, biscoitos, pudim e salgadinhos variados.
  - Kalisto, conta aí essa história que comentou comigo lá dentro. – pediu Luana antes de colocar um pedaço de bolo de chocolate na boca.
  - Então... Foi basicamente o dia quando conheci o Mike Doidão por causa do Rafael aqui. – apontou para o outro com o queixo.
  - Ah, o Mike! – o ruivo, quem, acomodado numa cadeira ao lado do ex, cochilava com a testa apoiada na mesa, subitamente levantou a cabeça ao ouvir o nome – Sabe se ele ainda vai dar alguma festa como aquela?
  - Acredite, ele ainda faz essas festas.
  - Pede pra te avisar quando tiver a próxima pra irmos.
  - Ah, não. – balançava a mão freneticamente – A gente não vai de novo em nenhuma das festas dele, não. – o tom de desespero arrancou risadas audíveis dos outros.
  - Amigo, explica isso daí logo. – pediu Débora tomando chocolate.
  - A história é a seguinte. Uma vez fui numa balada como a de hoje com esse pingo de gente...
  - Meu me-ni-no. – corrigiu-o com o dedo erguido separando a palavra em sílabas – Fala direito. Só você pode me chamar assim e adoro quando pronuncia essas palavras com tanto carinho.
  Os amigos se entreolharam devido a frase pela intimidade que demonstravam.
  - Ok, meu menino. Satisfeito? – o fitou.
  - Bastante. – passava manteiga no pão com uma colher de plástico – Pode continuar.
  - Lá na balada me afastei só pra ir ao banheiro. Quando voltei esse menino já tinha tomado de um tudo e estava acompanhando um cara pra sair da balada. Perguntei pra onde iriam e falou que iria com aquele doido pra uma outra festa. Tentei convence-lo a não fazer isso e nada de mudar de ideia. Resultado? A festa era na porra de uma favela.
  - Pensem numa festa do caralho. – o ruivo mordeu o pão – Dancei pra porra.
  - E você foi? – indagou Ricardo segurando o riso.
  - Tive que ir! Como ia deixa-lo sozinho? – apontou para o ex.
  - E o que rolou por lá? – Nichole cortava um pedaço do queijo.
  - Conhecemos previamente um cliente meu chamado Mike Doidão da Favela. – Morgana quase cuspiu o chocolate quente de tanto rir – Naquela noite o amigo de vocês virou um grande amigo dos traficantes.
  - Pêra lá! Traficantes, não. – protestou o ruivo – Eu não me associo com bandido.
  - Os malucos estavam com fuzil!
  - Ah, é. Mas foi só aquela vez. E eram muito gente boa. – defendeu-se – Quem iria imaginar que foram pro mau caminho?
  - Pra melhorar trocou ideia com uma galinha e quase fez ménage com duas garotas.
  - Mas o Rafa é gay, gente! – Morgana ria de ficar vermelha.
  - Ele achou que fossem dois homens.
  - Só fui perceber quando elas abriram as calças e vi buceta ao invés de pau. – explicou o rapaz colocando a perna sobre a coxa do advogado, quem pousou a mão para acariciar com afeto.
  - Tem coisa errada aí. Bebida é capaz de tirar a inibição da pessoa. Não conheço caso onde faz alucinar. – Nichole avisou confusa.
  - É porque depois de uma hora que chegamos ele sumiu. Quando o encontrei estava sentado numa escada com um dos traficantes. Os dois conversavam com uma GALINHA!
  - Ah, a penosa. – Rafael falava com certo saudosismo – Ela me entendeu perfeitamente. Não era uma galinha cis. Era trans. Por isso entendeu direitinho o meu problema com o meu pai.
  - Como é? – Débora erguia os braços acima da cabeça para melhorar do engasgo.
  - Deb, desista de entender. – Kalisto ria – Eu cheguei num ponto naquela noite onde só aceitava e era vida que seguia. Adivinhem porque chegou ao ponto de chorar abraçado com uma galinha enquanto desabafava com ela.
  - Ah, não. – Luana arregalou os olhos com a suspeita – Não é o que estou pensando, é?
  - Caso esteja se referindo a brownie de maconha, então está certa. – confessou o moreno.
  - Eu estava com fome. – Rafael encostou a cabeça no ombro do ex achando a posição confortável. Fechou os olhos ao receber um afago nos cabeça.
  - E quem te deu o brownie com maconha? – Ricardo terminava de comer um bolo
  - A boa alma que foi aquele menino quem conversou com a Cremilda comigo porque comentei que estava com fome. – contou completamente relaxado. Puxou o ar para sentir o perfume amadeirado do moreno.
  - Cremilda? – Victor murmurou – Quem é essa?
  - A penosa. – esclareceu Kalisto.
  - E onde o ménage entra nisso? – quis saber o amigo.
  - Foi depois de me oferecerem a danadita. – explicou pronunciando a última palavra com sotaque latino
  - Danadita? – Nichole colocava mortadela no pão.
  - Maconha. Achei que as garotas fossem o Kalisto. – contou Rafael sem sair da posição com voz sonolenta – Quando vi dois Kalistos pensei que tivesse ganhado na loteria. Se transar só com um é bom, imagina como seria com dois? Está maluco. Fode bem pra porra.
  Todos caíram em estrondosas gargalhadas quando viram uma senhorinha quem passava se benzer por ouvir a frase e caminhar mais rápido com a bengala.
  Aproveitando o momento de descontração, Kalisto roçou os lábios nas ondas macias e lhe sussurrou no ouvido:
  - Vamos, querido. Come alguma coisa.
  - É que estou com sono. – se aconchegou ainda mais nele pondo o braço na sua cintura.
  - Eu sei, mas não se alimenta há horas. Come primeiro.
  Num suspiro Rafael abriu os olhos sentindo as pálpebras pesarem devido ao cansaço. Acariciou a barba rala com a ponta dos dedos antes de murmurar o fitando com ar de meiguice:
  - Você continua bonzinho comigo. Senti saudade disso.
  - Eu sei.
  Beijou a bochecha de Rafael com ternura antes do rapaz se esforçar para sentar-se ereto e terminar seu café da manhã. O rapaz não bebera tanto para ter enjoos quando despertasse. No máximo dor de cabeça e foi graças a isso o incentivo do outro para ingerir algum alimento.
  O cuidado de Kalisto com Rafael não passou desapercebido pelos ali presentes. Era implícito como ambos funcionavam em sintonia e interagiam bem. O moreno não se afastava do toque de Rafael, quem estava completamente relaxado e confortável com o outro. Além disso, o advogado, em atitudes tão naturais quanto respirar, de vez em quando o beijava carinhosamente nos ombros, o rosto ou na mão, afagava as mechas ruivas, roçava o nariz na pele firme ou o acarinhava de alguma maneira.
  Ao terminarem de comer, cada um juntou suas coisas para ir embora. Combinou com Victor que iria com Rafael, quem seria deixado primeiro em casa por causa da embriaguez.
  Antes de chamarem o Uber, o advogado foi até a padaria com a amiga, onde comprou uns pães de sal, pães de queijo, mortadela, um bolo de chocolate e outro de banana.
  - Se o Rafael perguntar, conte que foi ele quem comprou. – lhe entregou as sacolas.
  - E se ele não tiver dinheiro pra isso?
  - Fala, então, que foi você. Só me deixa de fora disso.
  Era óbvio que decidira fazer aquelas compras por um impulso. Transferia o peso de uma perna para outra e com uma postura incerta. Sabia que não deveria cruzar a linha com Rafael, que o que ambos tiveram morreu no passado sem a possibilidade de retorno. Porém, haviam sentimentos ali. Sentimentos os quais achou estarem cuidadosamente adormecidos até reencontrar com o ex e eles emergirem a superfície ao ponto de quase transbordarem. Entretanto, como resultado de uma série de infelizes circunstâncias, porque jamais negaria auxílio ao ruivo, estava aos poucos voltando a ter contato com quem prometeu a si não voltar a contatar.
  Após um momento o encarando numa expressão passível, perguntou com a voz suave:
  - Por que insiste em esconder que ainda... – não completou a frase.
  - O amo?
  - Sim. Por quê?
  - Não é tudo que ele precisa saber. Não vai adiantar em nada.
  Débora sabia o quanto Rafael precisava de apoio – principalmente do seu amigo. A dificuldade financeira, as tragédias e os problemas emocionais consequentes eram sinais do quanto o rapaz necessitava desse amor que Kalisto ainda carregava e com certeza traria certo alívio pela carga do que vinha acontecendo.
  Quando o conheceu Micaela estava internada, então o viu ter crises de ansiedade, desistir da faculdade, desistir da dança e apenas se preocupar em arranjar um emprego para arcar com os gastos da casa sem existir uma válvula de escape para o peso que carregava sozinho nas costas se esvair. Viu quando passou um mês longe das redes sociais porque, devido ao estresse, abrira ferida no rosto. O viu ter crises de ansiedade longe da família e até escondido para não preocupar a mãe. O viu ir para o hospital por não conseguir dormir direito durante trinta dias de tanto tossir por desenvolver sinusite por questões emocionais.
  Quando o conheceu viu o seu brilho interno completamente apagado, principalmente ao lado de André, quem tratava de subjuga-lo.
  A melhora era. O bastante para terminar o relacionamento? Não. O bastante para conseguir se divertir um pouco, parar de adoecer por causa do nervosismo, se impor e dormir com mais tranquilidade? Sim.
  Deu um sorriso triste e afagou o ombro do amigo.
  - Esteve longe por muito tempo, amigo.

  - Amigo, espera.
  Débora o gritou correndo para alcança-lo antes de entrar no carro.
  - Esqueceu suas compras. – o entregou as sacolas.
  - Isso né meu, não. Não comprei nada agora de manhã.
  A porta traseira estava aberta. Victor, Nichole, Morgana e o motorista apenas o aguardavam para irem.
  - Leva pra você.
  - Por quê?
  - É presente de uma pessoa quem gosta muito de ti.
  - Valeu, aí! Agradeça a essa boa alma por mim.
  O viu entrar no carro e ir embora.
  Ricardo, antes de aguardar Débora ir embora, certificou-se de pedir o número de telefone dela, quem prontamente lhe passou.

  A irmã de Rafael era tão noturna quanto ele. Portanto, aos finais de semana, costumava virar a noite acordada sem grandes dificuldades. Por outro lado, Micaela acordava bastante cedo, geralmente antes das oito da manhã.
  Então, enquanto uma ia se descansar às sete e meia, a mãe estava começando a coar o café.
  E foi por causa disso que ambas o encontraram passando pela porta de casa.
  - Bom dia! – as cumprimentou zonzo.
  - A noite foi boa? – de camisola, a irmã implicou o acompanhando.
  - Uma das melhores da minha vida. – a fala era meio embolada.
  Sentou na mesa da cozinha e a mãe logo tratou de separar remédio para a dor de cabeça numa caixa sobre a geladeira.
  - Que sacolas são essas? – quis saber a mais velha encontrando o remédio correto antes de colocar a caixa de volta ao lugar.
  - Sacolas? – murmurou com os olhos semicerrados as buscando na mesa – Não tem nenhuma aqui, não.
  - Na sua mão, Rafa. – avisou Mia.
  Ao erguer o braço, exclamou por ver as sacolas com os alimentos.
  - Ah, é! Uma boa alma caridosa comprou isso pro nosso café da manhã. – as colocou na mesa.
  - É muita coisa, filho! – Micaela logo tratou de retirar a comida delas e depositá-las na mesa – Quem comprou isso?
  - Já falei. Uma alma caridosa. Sei não. – respondeu fazendo um biquinho. Em seguida deitou a cabeça na madeira.
  - Ok. Vamos começar pelo método mais fácil. Quem estava por lá? – a garota sentou na cadeira em frente de pernas cruzadas.
  - Lua. Victor. Nichole. Morgana. Débora. André.
  - Esse daí que não comprou. – recebeu um tapa na nuca da mãe – Ai! Sabe que ele não compraria nada pra gente.
  - Ricardo.
  - Quem é esse? – Micaela jamais ouvira o nome.
  - Conhecido da Deb. Tem um sotaque sulista. – apoiou o queixo na mesa de olhos fechados.
  - Que Deb? – Mia começava a ficar perdida com as informações.
  - A Débora. É que um amigo dela chegou antes da gente. Aí o filho da puta o chama assim por serem amigos de infância. Pro meu azar, é claro.
  - E seria pro seu azar porque... – a mãe o incentivou.
  - É ninguém mais, ninguém menos que o Kalisto. Aquele desgraçado conseguiu ficar mais gostoso depois desse tempo. Isso é injusto. Meu pobre coraçãozinho sofrido não vai aguentar por muito mais tempo.
  - O Kalisto estava lá? Se falaram?
  As duas compartilhavam de um sorriso largo.
  - Sim e sim. Até contou porque prometeu não me deixar beber além da conta.
  - E seria por qual motivo?
  Sem conseguir focar o olhar levantou a cabeça minimamente, gesticulando e apontando pra elas:
  - Estão espertinhas demais pro meu gosto. As melhores histórias são as que não devemos contar pra família. Por sorte não estou bêbado ao ponto de contar como conversei com uma galinha e vi chuva de M&M, então, se me derem licença, preciso tomar um banho pra dormir.
  Quando já estava devidamente longe, Mia sussurrou:
  - Maconha.
  - Entendeu alguma coisa dessa conversa além de descobrir facilmente o motivo das alucinações do seu irmão por causa do M&M? – a frase soava bizarra até pra ela, quem despejava café numa xícara.
  - Nada. Será que ele voltou a ter contato com o Kalisto?
  - É uma suspeita. – bebericou o líquido – Existe a possibilidade porque o Kalisto está trabalhando na faculdade do seu irmão.
  - Será que teremos Kafael de volta? – soou esperançosa.
  Longe dos ouvidos do irmão e do pai, era assim que as duas costumava chama-los.
  - Eu não faço ideia.
  - Eu torço pra que sim. O André não é legal, não. O cara não compra nem um picolé pra mim. O Kalisto chegava aqui sempre com algum lanche e, quando o Rafa passava os finais de semana na casa dele, vinha com uns potinhos com algo preparado por eles.
  - Menina, mas você é estelionatária. – Micaela ria.
  - Sou o anjinho de candura quem você ama.
  Foi dar um beijo estalado na bochecha da mãe para se descansar.

CONTINUA...



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