Brasileiríssima

Escrito por Gaby Mdrs | Revisada por Ponci

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Capítulo Único

  A porta do carro foi fechada com força. Uma força bem maior que a necessária. Era possível ver de longe o brilho da irritação nos olhos claros daquela garota. Ela não queria estar ali, aquele lugar era a última opção em sua mente para qualquer coisa, especialmente férias. Contudo, contrariando seus antigos planos, era ali que passaria as férias de inverno. No Brasil, um país tropical, algo que abominava; na Paraíba, um estado que não lhe agradava em nada, apesar de ser seu lugar de origem; em Cabedelo, uma cidade tipicamente praiana, muito visitada pelos turistas que vinham ao estado, pois era quase que uma extensão da capital, João Pessoa.
  Onde , que odiava praia, sol e calor, fora se meter?
  Inspirando aquele ar carregado de umidade marítima, em seu suspiro desgostoso, ela olhou para a casa de dois andares a sua frente, enquanto lamentava que não estivesse em Aspen naquele momento; na viagem que planejara durante meses com suas amigas da Inglaterra.
  Todos os seus colegas de classe ficaram com inveja ao saber que elas iriam para outro continente esquiar, enquanto eles teriam de se contentar com algum passeio familiar pela Inglaterra mesmo.
  Estava tudo pronto e organizado para sua partida quando, no último minuto, sua mãe inventara que ela não poderia ir para um país onde não conhecia ninguém, e cancelara a viagem. Esta decisão fora muito estranha e repentina, pois em nenhum momento ela fizera objeção à viagem. Não engolindo aquela desculpa esfarrapada, exigiu saber o que estava acontecendo, o que a fizera mudar de ideia.
  Sua mãe, no entanto, continuou a desconversar, e, algumas horas depois, apareceu com uma passagem para o Brasil, onde a garota deveria passar as férias com a família. Férias de inverno em um país que estava no verão! Isso era um absurdo, principalmente porque o verão era a única estação do ano que não gostava.
  – Todos estão com saudades de você – foi o argumento usado pela mais velha, dando o assunto por encerrado, apesar de a filha ter tentado discutir.
   não voltava ao Brasil desde que se mudara com os pais para a Europa, quando ainda era muito pequena. E, mesmo falando português, porque a mãe insistia em se comunicar dentro de casa usando o idioma nativo, ela não sentia conexão com o país. Não se sentia brasileira.
  – Será que você poderia melhorar essa cara? – Perguntou sua tia Carla, ao abrir o portão e virar-se para encará-la.
   não pronunciara uma palavra desde que a tia fora buscá-la no aeroporto. Não sentia vontade. Aquela era sua maneira de manifestar o quanto estava aborrecida em ter de passar duas semanas ali.
  – Acho pouco provável – respondeu a garota, com forte sotaque. Ninguém acreditaria que era brasileira.
  – Pelo menos, tente – a mulher insistiu, enquanto a sobrinha a acompanhava para dentro de casa.
  – Acho que não consigo – retrucou.
  – Neste caso, leve você mesma a sua mala. – Tia Carla lhe entregou a mala de rodinhas e seguiu caminhando, destrancando a porta e entrando na sala.
   balançou a cabeça e puxou a mala atrás de si. Estava prevendo que aquelas férias seriam uma porcaria. Pois, o que mais aquela cidade poderia lhe oferecer?
  – Ih, chegou a priminha estrangeira! – Disse um garoto esparramado no sofá da sala, de modo debochado. A televisão ligada transmitia algum programa que parecia não ter conteúdo algum. Combinava com aquele garoto. Ela já não gostara dele.
  – Tenha modos, ! – Tia Carla ralhou com o filho e virou-se com um olhar de desculpas para . – Desculpe o jeito que meu filho falou, . Ele anda um pouco rebelde.
  Como se a garota se importasse com isso. Ela só queria poder se trancar em seu quarto e contar os dias para dar o fora dali.
  Contendo a vontade de revirar os olhos, disse apenas: – Tudo bem – e sorriu forçado. Entretanto, imediatamente acrescentou – Só quero saber em que quarto vou ficar, para poder arrumar minhas coisas.
  – Ah, claro – sua tia ficou um pouco rubra, mas logo se recompôs. – Pode subir e deixar suas coisas no segundo quarto. Você ficará mais confortável lá.
  Assentindo, puxou a mala e começou a subir a escada, degrau a degrau, com aquele peso tendo que ser levantado a cada segundo. Era mais difícil do que ela supôs. Desgastante. Quando chegou ao último degrau já respirava com mais dificuldade.
  Assim que entrou no quarto, se permitiu cair na cama, sem se importar com mais nada. Arrumaria suas coisas depois, antes precisava descansar.

***

  Passava um pouco do meio dia, estava na sacada, lendo em uma das confortáveis cadeiras que lá havia, quando um barulho lhe chamou a atenção para a casa vizinha. Deixando seu exemplar de Orgulho e Preconceito de lado, ela aproximou-se da grade de proteção e espiou.
  Sentiu o rosto corar com o que viu e afastou-se um pouco, de modo que a parede escondesse sua presença de quem estava lá embaixo.
  Era um garoto, que parecia ser um pouco mais velho que ela. Um garoto muito bonito, vestindo apenas um short preto de tactel enquanto tomava banho no chuveiro externo de casa. ficara um pouco envergonhada à princípio, por estar espionando-o, mas logo a vergonha foi substituída por fascinação pelo belo corpo à mostra. Aquele garoto devia malhar, pois tinha um peitoral definido, que ficava ainda mais bonito com as gotículas de água brilhando sobre ele com aquele sol forte.
  – O almoço tá na mesa! – teve um sobressalto ao ouvir aquele grito, e sua reação deve ter sido maior que o imaginado, já que o rapaz ergueu os olhos e a flagrou observando-o.
   tratou de sair dali o mais rápido que pôde, e não chegou a ver que o garoto havia sorrido.
  Entrando na sala de estar do andar de cima, viu seu primo já começando a descer a escada. Ela devia ter imaginado que ele seria o causador de sua primeira vergonha naquele lugar, dado o modo como a recepcionara mais cedo.
  – Mamãe falou para você se apressar, senão a comida esfria e ela não vai esquentar para você – ele disse por sobre o ombro.
  – Já estou indo – a garota disse, a contragosto.
  Voltou à sacada para pegar seu livro e o guardou na mala. Olhou-se rapidamente no espelho e desceu. Todos já estavam sentados à mesa. O marido de sua tia, Fábio, ocupava uma cabeceira, o primo idiota, a outra, e sua tia estava sentada em uma das duas cadeiras do lado direito, ao lado do marido. preferiu sentar-se em frente a tia, mas assim que viu o que estava servido no prato, fez uma careta.
  – O que é isso? – Perguntou, cutucando, enojada, um pedaço retorcido de carne.
  – Feijoada – tia Carla respondeu.
   não gostava daquele tipo de comida, que misturava tantas coisas, e que não lhe parecia agradável.
  – Ah, tá bom. Não temos isso lá em Manchester. – Ela sorriu, sem graça. – Mas parece ser muito bom – mentiu e forçou-se a começar a comer.
  Engolir aquela gororoba foi praticamente impossível, e, quando terminou, estava nauseada.
  – Filho, por que não leva sua prima para passear na praia? – Sugeriu Fábio, algum tempo depois de terem terminado de comer. e estavam tirando a louça da mesa, enquanto tia Carla e o marido decidiam quem lavaria a louça e quem a secaria naquele dia.
   gemeu internamente. Além de estar enjoada, após comer algo que não queria, apenas para não fazer desfeita, ainda teria de ir a um local que detestava com aquele garoto chato? Era muito azar para um mesmo dia.
  – Pai... – tentou protestar, no entanto, o olhar de Fábio não deixava discussões; ele teria de ir.
  – Você vai adorar, – sua tia disse, de costas, com as mãos enfiadas na pia. Ao que parecia a decisão já havia sido tomada sobre o pequeno dilema doméstico.
  – Claro. – A garota deu um sorriso amarelo. – Estou louca para conhecer o mar, de pertinho – tentou parecer animada.
notou a animação falsa, e tinha certeza de que os pais também, por isso não entendia o porquê de forçá-los a fazer isso. Ele não gostava daquela prima, a menina era uma chata, mimada e cheia de frescuras, do jeito que imaginara quando ouvira sua mãe dizer que a filha de sua tia Helena viria passar as férias com eles. não se lembrava com muita clareza da tia, só o que sabia sobre ela é que havia ido há mais de dez anos para a Europa com o marido, primeiro para a Itália, em seguida para a Inglaterra; e que ficara viúva pouco tempo antes de mudar-se novamente. Sobre a prima, ele só sabia o que tinha visto até agora, e isto não era nem um pouco favorável em sua opinião sobre ela.
  O modo como a garota olhara para a feijoada, toda enojada, como se aquilo fosse comida para os porcos, o irritou na mesma proporção em que fez com que quase caísse na gargalhada. Ela fazia com que se sentisse em constante contradição, e só estava em sua casa há algumas horas. Como ele suportaria ter que aturá-la por duas semanas?
  – Vamos sair em meia hora, vá pôr seu biquíni, você não vai querer perder a oportunidade de entrar no mar, não é? – Indo contra tudo que sentia de ruim pela prima, resolveu ser cortês, pois não queria ser reclamado outra vez pela mãe.
  Ela pareceu desconcertada por um momento, mas foi muito rápido. Tão rápido que se ele perguntou se não teria imaginado aquela expressão.
  – Bem, é que eu não tenho um biquíni.
  – Como assim, não tem um biquíni? – realmente ficara confuso com aquela afirmação. – Você veio passar as férias no litoral, roupa de banho é um item obrigatório na bagagem.
  Esse comentário parecera acender algo na garota, pois seus olhos faiscaram e ela fechou as mãos em punhos ao lado do corpo.
  – , filho, a viagem para o Brasil foi de última hora. A não deve ter trazido muita coisa para o nosso clima, ela estava indo para os Estados Unidos – sua mãe respondeu pela menina. – Vocês podem caminhar pela calçada hoje, que tal? Eu vou pegar algumas coisas lá na loja, então não precisa se preocupar com isso, tudo bem, sobrinha?
  – Claro, tia.
  Olhando para , toda sem jeito com aquela situação, teve uma ideia. Algo que o faria divertir-se muito, e que deixaria a prima ainda mais desconfortável.
  – Eu já sei pra onde vamos, não precisa se preocupar por não ter roupa de banho.

***

  – Ainda vai demorar muito para chegarmos? – perguntou, impaciente. Eles já estavam na estrada há quase uma hora. Que praia mais longe era essa? Sua tia dissera que havia uma praia linda há poucos minutos da casa deles. Mas se isto era o que ela considerava perto, a garota pensava que as definições que elas tinham sobre tempo e espaço eram muito diferentes.
  – Estamos quase chegando – respondeu, sem tirar os olhos da estrada. – Você vai adorar esta praia, é perfeita para quem não gosta de usar trajes de banho. Aqui você vai poder ser você mesma – disse todo enigmático.
   não dava a mínima para o que quer que fosse aquilo que o primo estava falando. Preferia ter ido para um lugar mais próximo, onde olharia as pessoas expondo suas peles ao risco de adquirir câncer de pele e diria que queria ir para casa. Mas não, tinha que dificultar ainda mais as coisas para ela.
  Após mais alguns minutos, o carro finalmente foi estacionado e eles desceram. tentava o controlar o sorriso, que insistia em querer brotar em seu rosto, enquanto olhava ao redor, absorvendo a beleza do lugar (não que ela fosse admitir a alguém que achara a praia bonita).
  Eles começaram a caminhar na areia, as ondas do mar batendo em seus pés. O lugar era cercado por muita mata e paredões de falésias. No entanto, não parecia tão grande quanto ela esperava. Parecia mais uma prainha, o que foi decepcionante. Depois de mais alguns passos, pegou sua mão. não gostou da atitude e tentou soltar-se dele, mas o primo não permitiu.
  – Será que dá para você soltar minha mão? – Perguntou, irritada.
  – Desculpe, prima, mas temos que parecer um casal. Não é permitida a entrada de pessoas sozinhas nessa praia, apenas casais – o garoto mentiu. Mulheres podiam entrar sozinhas, ele sabia, apenas os homens não. E, claro, menores de idade só acompanhados dos pais. Não que eles fossem realmente entrar. A estrangeirinha jamais aceitaria, nem se pudesse. teve de se esforçar muito para segurar o riso. Quando a prima soubesse que tipo de praia era aquela teria uma reação inesquecível, ele tinha certeza.
  Que tipo de praia seria essa? – Pensou a garota, confusa e levemente temerosa, enquanto continuava a andar de mãos dadas com o primo. Entretanto, sua dúvida logo foi sanada. Assim que chegaram perto de uns quiosques, que vendiam algum tipo de bugiganga que os turistas compram como souvenir, ela avistou a infame placa.

BEM VINDO
À PRAIA NATURISTA DE TAMBABA

WELCOME TO TAMBABA’S NUDIST BEACH

  – Como você ousa me trazer aqui?! – gritou, sem se importar que estava fazendo uma cena diante das pessoas que estavam por perto.
   finalmente deu vazão ao que riso que vinha contendo, quase se dobrando para frente, de tanto rir.
  – Você precisava ter visto a sua cara! – Comentou, entre risos. – Pena que eu não tirei uma foto!
  – Isso não vai ficar assim, ! Pode esperar que vai ter volta. E tia Carla certamente vai colocar você de castigo, porque, assim que chegarmos em casa, eu contarei a ela. – disse, por cima do ombro, ao começar a caminhar de volta para o lugar onde havia estacionado o carro.
  – Ela não pode me colocar de castigo, eu tenho dezoito anos, sou maior de idade! – Ele revidou, seguindo-a.
  – Aposto que pode, você não é dono do seu nariz ainda – a garota retrucou. Sentia tanta raiva naquele momento, mas tanta, que achou que fosse começar a expelir lava, de tanta fúria. Uma praia de nudismo! De nudismo! não conseguia nem colocar a cabeça em torno disso. Como as pessoas gostariam de se expor assim, em um nível tão pessoal? Era demais para ela entender. Ela, que tinha problemas em pensar que precisava sair de biquíni enquanto estivesse ali, jamais teria coragem para tamanha exposição. não era ousada a este nível, por isso estava usando um short marrom de tecido leve e uma blusinha regata, junto com um par de chinelos (calçado que parecia ser quase obrigatório no litoral).
  – Foi só uma brincadeira, sua chata. Essa primeira parte da praia não é de nudismo, podemos ficar aqui. – Ah, mas ela não ficaria mais nem um segundo naquele lugar. Queria chegar logo na casa da tia, para contar tudo, e vê-la dando uma grande bronca no filho. E que o deixasse sem internet. Não havia nada pior para os jovens do que ficar sem internet. Era o castigo perfeito.
  – Quero voltar para casa. – ditou, como era acostumada a fazer. Ela sempre tivera suas vontades atendidas. Seus pais faziam questão de dar-lhe tudo o que pedia. E mesmo após seu pai ter morrido, cerca de dois anos atrás, sua mãe não deixara de atender seus pedidos. Quer dizer, exceto este último. O cancelamento da viagem para os Estados Unidos fora a primeira (e esperava que última) vez que Helena Silva, mãe da garota, deixara de fazer a vontade da filha.
  – Tudo bem, estressadinha – revirou os olhos, antes de destravar o carro.
  Ainda fervendo de raiva, entrou e afivelou o cinto de segurança. Abaixando-se, pegou sua bolsa no chão do carro e começou a procurar o celular. Precisava ligar para a mãe. Diria que essa viagem fora uma loucura. Ela aceitava até ficar em casa até as aulas recomeçarem, mas não ficaria naquele lugar mais nenhum dia. Não mesmo. Ela procurou, procurou, remexendo em suas coisas, no entanto, o aparelho não parecia estar ali.
  Desesperando-se – pois tinha certeza de tê-lo colocado na bolsa antes de viajar –, ela virou todo o conteúdo da bolsa em seu colo.
  – Ficou maluca, menina? – olhou espantado para a bagunça que prima fizera.
  – Cale a boca, idiota! – Ela gritou. – Acho que perdi meu celular – falou, lamuriosa.
  – Bem feito – comentou ele, com um sorriso. – Quem sabe assim você abaixa sua crista.
  – Piss off! – Bradou em inglês. Estava tão irritada que xingara na língua que costumava falar. – Só não tire o olho da estrada, e nos leve para casa.

***

  – Não, não se preocupe. Tudo está bem até agora. – Carla falou, em voz baixa. Não queria que ninguém da casa a ouvisse. – Já disse que eles não vão encontrá-la aqui, Lena, e, que se isso acontecer, estaremos preparados.
  Nesse momento, e estavam entrando em casa e escutaram um trechinho da conversa da mulher. Mas não entenderam o que ela quis dizer.
  – Tá falando com quem, mãe? – O garoto perguntou, antes mesmo de ter terminado de atravessar a porta. A mulher deu um pulo do sofá, ao ouvir o questionamento do filho, deixando até mesmo o celular cair em cima do tapete que recobria o chão.
  – Nossa, que susto, ! – Ela colocou uma das mãos no peito. – Quase me mata do coração.
  – Desculpa – ele teve a decência de parecer envergonhado. – Não foi minha intenção.
  – Mas foi o que aconteceu. Quantas vezes eu já disse para não entrar em casa gritando? – Falou em tom repreensor. Pegando o celular, viu que a ligação havia sido encerrada. – Agora sua tia desligou. Satisfeito? Eu estava falando com a mãe da , e você sabe como essas ligações internacionais são instáveis.
  – Des...
  – Você já falou isso antes. Não precisa falar de novo – ela o interrompeu. – Só tente não fazer mais, ok?
  – Tá bem – ele resmungou.
  – O que a minha mãe falou, tia Carla? – perguntou, passando por seu primo e indo ficar próxima da tia. – Ela já está com saudades de mim e vai me mandar voltar?
  – Claro que ela está com saudades, que mãe não estaria? – A mulher forçou-se a sorrir, para encobrir a tensão que a dominava. – Mas quer que você aproveite suas férias. Falando nisso, como foi o passeio? Gostou da praia?
  Ah, aquele era o momento perfeito. , finalmente, iria ter seu castigo.
  – Não, tia, eu não gostei. Seu filho fez uma brincadeira de muito mau gosto comigo.
  – O que ele fez dessa vez? – Questionou, estreitando os olhos na direção do filho.
  – Me levou a uma praia de nudismo! – reclamou.
  – O quê?! – Carla ergueu-se do sofá. – te levou para Tambaba?!

***

  O dia seguinte passou lentamente para ; parecia mais uma eternidade. Sem celular, sem internet (pois nem morta usaria o computador de , para acessar as redes sociais), ela estava praticamente incomunicável. Além de estar entediada. Só o que lhe restava fazer era ler. Mas nem isso parecia ter o mesmo encanto de antes. Não quando ela não tinha as outras coisas das quais gostava.
  Essas férias estavam sendo terríveis mesmo. A garota tivera razão ao pensar que seriam as piores férias de sua vida. Porque estavam sendo mesmo. A única coisa boa até aquele momento fora ver o primo de castigo. Sem internet e vídeo game até começarem as aulas, dissera sua tia, para alegria e deleite de . Quem sabe assim ele aprendia a não fazer mais brincadeiras de mau gosto.
  Já era um horário avançado da noite, todos dormiam, menos ela, por isso a casa estava silenciosa. não conseguira dormir. Deitara na cama de casal em seu quarto e ficara encarando o teto, esperando que o sono aparecesse. Talvez ainda estivesse sob o efeito do jet lag, quem sabe? O que não dava era para ficar ali, daquele jeito. Resolveu descer e beber e um copo d’água.
  Ela estava descendo às escadas quando ouviu um barulho na maçaneta da porta. Segurando o corrimão fortemente com uma mão, com a outra procurou o interruptor de luz que ficava por ali.
  As duas figuras ficaram olhando uma para a outra, sem nada dizer, um pouco incrédulos, quando a luz acendeu.
   quase conseguira. Quase. Faltou tão pouco para ele conseguir sair!
  – Aonde você estava pensando em ir a essa hora? – Ela questionou, após sair do estupor momentâneo. Ficara com tanto medo de ser algum marginal entrando na casa! sabia que a cidade era conhecida pelos assaltos e assassinatos.
  – Eu ia sair – ele respondeu, a contragosto.
  – Posso saber para onde?
  – Não é da sua conta!
  – Ah, é da minha conta, sim – a garota retrucou. – Você ia sair escondido. Eu posso gritar e acordar todo mundo, aí sua mãe vai ficar sabendo o que você ia fazer! – Ameaçou.
  – Tudo bem – suspirou. – Eu estava indo para uma festa.
  Festa? se animou instantaneamente. Ela adorava festas! Finalmente algo de bom.
  – Que festa? Quero ir também!
  – Ah, mas não vai mesmo! – Ele disse, com raiva. – Já me meti em problemas demais por sua causa.
  – A culpa foi sua. Você quem inventou de me levar para aquela praia! – o acusou.
  – De certa forma. – Ele deu de ombros. – Mas eu estou indo com alguns amigos e não sei se tem vaga para você.
  – Deixe de enrolar. Se você quiser me levar, dá um jeito. E como foi que você combinou alguma coisa com seus amigos se não estava podendo usar a internet?
  – Eu não podia usar o computador, estrangeirinha. Mamãe não falou nada sobre usar o celular – ele deu um sorriso de lobo.
  – Que seja! – Ela revirou os olhos. – Se você vai sair, eu também vou. Não aguento mais ficar dentro de casa. Vou só trocar de roupa e já volto!
  – Mas...
  – Me espere aí, . Senão eu conto para tia Carla que você saiu de casa escondido – e subiu novamente a escada, sem se preocupar em olhar para trás. Ela sabia que ela a esperaria.

***

  – Você tem mesmo muita sorte – comentou, ao passarem pela segurança do local. – Como conseguiu fazer eles acreditarem que era maior de idade?
   deu um sorrisinho. Ter uma carteira de identidade falsa vinha bem a calhar. Mas ela não iria revelar seu segredo ao primo; não lhe daria nenhuma informação que ele pudesse usar contra ela depois. E queria poder ir e vir livremente em Manchester, sem se preocupar se sua mãe autorizaria sua ida, ou não. Por isso fizera uma carteira de identidade falsa junto às amigas.
  – Eu pareço ser mais velha – ela deu de ombros. – Além do mais, eles nem olham direito para a identidade.
   tomou cuidado, enquanto andava, para não pisar nas poças de lama que haviam se formado na areia da praia. Chovera no dia anterior, e também esta manhã, deixando tudo encharcado. A rua que a tia morava tinha sido pior, ela admitia. O lugar não era calçado, e a chuva o empoçara, formando o que parecia ser quase uma lagoa. Fora um horror atravessar a rua, sem se sujar, até chegar no carro dos amigos de , que estava estacionado no começo da rua.
  E, como o primo dissera, era mesmo sortuda. Não só conseguira passar pela segurança, como também ganhara a entrada para o Fest Verão – a festa que estavam indo. Um dos amigos de adoecera e não poderia mais ir, mas como já tinha comprado o ingresso, não queria perdê-lo. A ideia inicial era vendê-lo, mas conseguira ganhá-lo jogando seu charme para os amigos do primo. Agora sim, essa havia sido a melhor parte daquela viagem.
  Passada a tenda eletrônica, eles caminharam em direção ao palco principal, onde uma banda que ela não sabia o nome estava tocando (Iriam tocar naquela noite Jorge & Mateus, Gabriel Diniz, Oito7Nove4 e Dorgival Dantas. Mas ela não tinha de quem estava se apresentando no momento). Conforme iam andando, a multidão se tornava maior, e a locomoção, mais difícil. Conversar era impossível, a não ser que quisesse ficar muito próxima de , coisa que não queria, por isso preferia manter-se calada. Ela também já não podia mais evitar as poças, e os pés de sua calça jeans skinny deveriam estar imundos. Paciência!
  Quando eles estavam no meio da arena, os olhos da garota encontram o garoto da casa ao lado; aquele que ela tão desavergonhadamente ficara observando. Mesmo que estivessem rodeados de pessoas, eles conseguiram fixar os olhos um no outro. sentiu um rebuliço na barriga.
  – ? – Seu braço foi puxado. – ?! – A voz de conseguiu se sobressair acima da barulheira.
  – Oi? – Ela virou-se para encará-lo.
  – Você parou de repente – ele abaixou-se para falar. – Quer ficar perto do trio?
  A garota balançou a cabeça, negando. Ainda tentou encontrar o garoto no meio daquele mar de corpos, mas não conseguiu mais.
  Eles mal deram alguns passos antes de pararem abruptamente. Aquilo que ouviram certamente não era...
  E o som inconfundível de tiro foi ouvido novamente.
  As pessoas que estavam mais perto de onde foi feito o disparo começaram a gritar e correr, chamando a atenção das outras. Logo a arena estava um alvoroço só.
   puxou o braço da prima e eles também começaram a correr em direção à saída de emergência mais próxima. Sorte que não haviam ido muito longe ainda. Enquanto esperavam para passar por uma saída que havia entre duas lanchonetes mais um disparo foi ouvido.
  Quando, enfim, estavam fora do lugar começaram a acenar para que algum táxi parasse. estava um pouco sem fôlego, e apoiava as mãos nos joelhos. Que noite louca fora aquela?

***

Primeiro dia do Fest Verão é marcado por tiroteio

  O início desta segunda-feira, dia 4, foi bastante agitado para as pessoas que estavam no Fest Verão 2016. A madrugada do primeiro dia do evento, que está em sua décima primeira edição, foi marcada por um tiroteio, ainda sem explicação, uma vez que nada foi roubado do local. Pessoas que estavam próximas ao lugar onde os tiros começaram disseram não terem conseguido ver o (s) autor (es) dos disparos no meio da multidão; os tiros pareciam vir de algum dos camarotes.
  A polícia está investigando o caso, e pretende ouvir mais testemunhas.
  O ocorrido deixou 2 mortos e 10 feridos. É uma tristeza saber que não se pode aproveitar um evento com tranquilidade.

   afastou o jornal, sentindo um mal-estar. Ela estivera nessa festa. Podia estar ferida agora, ou pior, morta. O sermão que sua tia dera quando a viu saindo do táxi com o primo foi merecido. E o castigo, também. O que eles estavam pensando ao sair sozinhos e escondidos de casa? – Foi a primeira coisa que ela gritou após fechar a porta da frente, isolando-os dos perigos que haviam lá fora. E a mulher estava certa, fora um ato impensado. Eles queriam apenas se divertir. Mas, e se o pior tivesse acontecido? não queria nem pensar nessa possibilidade.
  – Tia Carla, posso perguntar uma coisa? – A garota indagou em voz baixa. Estava se sentindo culpada pela preocupação que havia infligido à tia. No final das contas, os pais de haviam acordado pouco tempo depois de eles terem saído de casa, e ficaram muito apreensivos ao não conseguirem falar com o garoto pelo celular. Sem nenhum tipo de comunicação, eles ficaram sentados na sala, se perguntando onde eles poderiam estar. Quando o táxi parara em frente à casa, Fábio foi o primeiro a aparecer, mas foi quando tia Carla saiu de casa que as coisas começaram a desandar para os dois jovens. Principalmente depois de terem dito onde estavam e o que havia acontecido lá.
  – Pode, claro – a mulher respondeu, ainda olhando para seu café. Como se houvesse algo de muito interessante no líquido preto. No entanto, sabia que isto era apenas para não ter de encará-la. Ela decepcionara a tia.
  – Minha mãe mencionou alguma coisa sobre o porquê de ter cancelado minha viagem para os Estados Unidos? – Aquela ainda era uma pergunta que rondava constantemente sua mente. queria saber a verdade, pois estava na cara que a explicação fajuta que lhe dera não era o verdadeiro motivo.
  – Ela me disse a mesma coisa que falou para você, – a garota deixou os ombros caírem em desânimo ao ver a tia se levantar e dar-lhe as costas para lavar a louça na pia. – Por que está me perguntando isso?
  – Porque eu não acho que esse seja o verdadeiro motivo por trás dessa mudança no destino das minhas férias.
  – Que besteira é essa, menina? – Carla lutou para não parecer transtornada. – É claro que esse é o verdadeiro motivo. Por que sua mãe mentiria para você? Que pergunta mais tola. – Ela balançou a cabeça. – Termine de comer essa torrada e venha me ajudar, secando a louça.
  – Estou indo – falou, com desânimo.
  Ajudar nas tarefas de casa era parte de seu castigo. A outra, era só poder sair na companhia da tia. Em resumo, as férias, que já não eram boas, estavam arruinadas. , porém, parecera ficar com a parte pior. Agora ele teria que ir trabalhar com pai, como estagiário (um nome bonito para a verdadeira função, que era ser um faz-tudo dentro da empresa), mas sem remuneração. estava quase com pena do primo. Quase. Ela ainda se ressentia pelo episódio da praia de nudismo.
  – Depois que terminarmos, vamos até o Hiper. Preciso comprar algumas coisas que estão faltando.
  – Ok – a garota respondeu.

***

   estava parada ao lado do carro, esperando a tia terminar de conversar com uma conhecida, que vira na saída do supermercado, quando sentiu uma sensação estranha de estar sendo observada. Os pelinhos em sua nuca arrepiaram, e ela virou-se, mas não havia nada suspeito. Apenas um homem de terno preto e óculos escuros que estava terminando de guardar suas compras no porta-malas do carro.
  Carla parou a frase que estava dizendo e arregalou os olhos. Não podia ser. Não ali. Recompondo-se rapidamente, despediu-se de Amélia, vendedora de uma loja de roupas onde comprava, e seguiu para o carro. Destravou as portas e jogou as compras na parte traseira. Precisava sair rápido daquele estacionamento. Ela podia estar imaginando coisas, ficando paranoica, mas iria ligar para Helena. Tinha que saber se eles haviam descoberto a localização de .
  – Tudo bem, tia? – perguntou, ao ver o nervosismo aparente da outra.
  – Tudo sim, . É que acabei de lembrar que deixei uma panela no fogo. A esta altura já deve ter queimado a comida! – Deu uma risada nervosa e manobrou o carro para fora do estacionamento.
   sabia claramente que a tia estava mentindo. Ela havia deixado o fogão desligado, a garota tinha certeza. Então, por que estaria encobrindo a verdadeira razão para sua apreensão? Havia algo errado, tinha certeza. Só não sabia o que era.

***

  – Tem algo de errado com a sua mãe – disse , ao entrar no quarto de . O garoto deu um pulo da cama, largando o livro que estava lendo.
  – Que susto, garota! – Ele reclamou, sentando-se.
  Ela fechou a porta atrás de si e sentou-se na cadeira da mesa do computador.
  – O que você quer dizer com “tem algo errado com minha mãe”? – Questionou.
   contou o episódio daquela manhã e como ela vinha agindo estranho durante o restante do dia. Ela estava se sentindo sufocada, a tia não saía de perto dela um só instante.
  – Filho, você viu a...? – Tia Carla colocou a cabeça na porta do quarto do quarto, mas interrompeu-se ao ver que a sobrinha estava lá. – Ah, você está aí. Precisamos conversar, . Acabei de falar com sua mãe, há algo que você precisa saber.
  Será que havia acontecido algo com a mãe dela? ergueu-se de supetão da cadeira, quase a derrubando.
  – Aconteceu algo com minha mãe?
  – Não, sua mãe está bem, – a mulher entrou no quarto e fechou a porta, trancando-a. Sentando-se ao lado do filho, deu um suspiro. – Quem está correndo perigo é você.
  – Perigo? Perigo, por quê? – A garota estava confusa. – Se isso é por causa da festa...
  – Não, , isto não tem nada a ver com a festa. Quer dizer, pode ser até que esteja relacionado, mas não tenho provas. O fato é que você estava certa, havia outra razão para sua mãe te mandar para cá, mas terminou não dando em nada, já que eles estão aqui.
  Aquela fala enigmática estava deixando a cabeça de mais embaralhada do que estava antes.
  – Eles? De quem está falando?
  – Sim, mãe, que papo estranho é esse? – também se meteu na conversa.
  Carla passou as mãos no rosto, tentando criar coragem. Ela precisava dizer, Helena estava beirando a histeria no telefone, e pedira, inclusive, que mandasse a filha de volta para a Inglaterra. No entanto, ela não achou prudente. Era melhor enviar a menina para outra cidade, de carro, do que arriscar pegar um voo. E, claro, precisavam envolver a polícia. Já passava da hora de a polícia entrar nesta história, não poderia viver uma vida de fugitiva para sempre.
  – É uma história complicada, , mas tem a ver com o seu pai e o período em que vocês viveram na Itália.
  – Tia Carla... – a menina começou a dizer algo, mas a mulher ergueu a mão, pedindo que esperasse ela terminar.
  – Você sabe como seu pai morreu, ?
  Que tipo de pergunta era essa? É claro que ela sabia isso. Por que sua tia queria tocar nesse assunto? E o que o pai dela tinha a ver com tudo isso?
  – Tia Carla, eu prefiro não falar sobre isso. Dói demais ainda.
  – Desculpa, , mas eu preciso – Carla fechou os olhos por um momento, depois tornou a abri-los. – O que te disseram foi que seu pai sofreu um acidente de carro, não é? Mas nunca falaram que seu pai estava sendo perseguido. Ele devia dinheiro para um homem importante, um homem que fazia parte da máfia. E quando não teve dinheiro para saldar a dívida, ordenaram que o matasse.
  Que história louca! E bizarra! Máfia italiana? olhava sem palavras para a tia. Talvez tivesse superestimado o comportamento estranho de mais cedo, porque criar uma história assim e querer que os outros acreditassem não era normal; era loucura, pura e simplesmente.
  – Mamãe – engoliu em seco –, talvez devêssemos cancelar a Netflix, você anda assistindo muita ficção.
  – Eu não estou inventando isso! – Exaltou-se e se levantou da cama, passando a andar de um lado para o outro do quarto. – Sua mãe é quem devia estar te contando isso, não eu! Mas não há escolha, eles te acharam aqui e estamos correndo contra o tempo. – Virando-se para encarar a sobrinha, ela continuou: – , sua mãe sabia sobre a dívida, pois seu pai não teve outra alternativa a não ser contar, quando viu que não conseguiria pagar. Ele sabia que iriam querer matá-lo, por isso fugiu, ou pelo menos tentou, e pediu que sua fizesse o mesmo com você. – Aquilo era demais. balançou a cabeça, descrente diante de tanta maluquice. – Me diga, , onde você e Helena estavam quando receberam a notícia da morte do Roberto?
  Ela estava tentando usar o que sabia para fazê-la crer naquela história estapafúrdia! Só porque estava em San Gimignano, uma comuna italiana da região da Toscana, passeando, isto não queria dizer que o que sua tia Carla estava falando era verdade. Seu pai, o homem mais correto que conhecera, jamais deveria dinheiro para um mafioso.
  – Se tudo isto é verdade, como você diz, tia Carla, então por que papai devia dinheiro aos mafiosos? – também ficou de pé. – O que o fez contrair uma dívida tão grande, que ele teve de recorrer a isto?
  – Jogo – a mulher fez uma careta. – Seu pai se envolveu com jogos de azar no clube desse... desse mafioso – ela mal conseguia pronunciar a palavra. – Quando foi ficando sem dinheiro, recebeu uma proposta de empréstimo, o que é comum nesses lugares.
  – Okay, considerando que isto fosse verdade, e não apenas um delírio seu, por que eu estaria em perigo? E por que eles viriam até aqui atrás de mim? Isso aconteceu há dois anos, e eu não tenho nada a ver com essa história!
  – , você não entende como a máfia funciona. Eles não queriam apenas o seu pai morto. A dívida acumulada era tão alta que a família toda deveria pagar, por não ter sido quitada. Por isso sua mãe se mudou para a Inglaterra com você. E é também por isso que veio passar as férias aqui. De alguma forma, eles descobriram que você iria para Aspen, e pretendiam te pegar no aeroporto. Sua mãe tem uma amiga que trabalha no clube que seu pai costumava jogar, foi ela quem avisou que alguns “homens de preto” estavam indo para o Colorado, especificamente, para Aspen. Agora, faz sentido para você a mudança drástica de planos? É por esta razão, também, que você está sem celular. Sua mãe ficou com medo de que pudessem rastreá-la até aqui e o jogou fora. Assim como fez com o dela. Lena comprou celulares descartáveis para conversarmos. Após cada telefonema, ela joga o aparelho fora.
  Isso era demais. Era demais para assimilar.
  – Cansei de ouvir tanta loucura! – Gritou, se encaminhando para a porta. – Você precisa se tratar, tia Carla. – E saiu correndo do quarto.
  Ela abriu a porta e saiu em disparada pelo pequeno jardim. Passando pelo portão, esbarrou algo sólido. Ao erguer os olhos, deu de cara com o vizinho gato. Que azar ela tinha!
  – Desculpe – falou, em tom quase inaudível. Estava tão, mas tão envergonha!
  – Tudo bem – o garoto sorriu, mostrando lindas covinhas. – Parece que você estava fugindo de alguma coisa. Aconteceu algo? Meu nome é Ricardo, a propósito.
  Passou uma mão pelo cabelo, meio sem jeito.
  – Sou a , e eu meio que briguei com minha tia.
  – Silva! – Ouviu-se a voz da tia dela vindo de casa, e a garota fez uma careta.
  – É melhor eu entrar. Tchau, Ricardo. E desculpa, mais uma vez.

***

  No dia seguinte, a tensão era perceptível entre tia e sobrinha. A garota havia subido e se trancado em seu quarto na noite anterior, depois de ter entrado em casa, e ignorara a todos no café da manhã. No entanto, como não queria ficar trancafiada em casa, como uma prisioneira, resolvera abrir a boca horas mais tarde para dizer que queria ir ao shopping. Sua Tia Carla, é claro, foi contra, mas quando ameaçou sair escondida e pegar um ônibus, mesmo sem conhecer nada na cidade, acabou concordando em levá-la.
  E lá estavam elas, no Manaíra Shopping, caminhando por entre as lojas, algumas sacolas de compras nos braços. Carla constantemente olhava por cima do ombro, com medo de que estivessem sendo seguida. balançava a cabeça, em desgosto, quando percebia.
  Mas, então, a garota sentiu uma mudança repentina no ar. Não foi algo que conseguisse explicar em palavras, ela apenas sabia, e sua tia pareceu sentir também. Um homem de terno preto vinha na direção delas, e mais dois estavam atrás dele. Parecia uma cena saída de filme.
  – Aqui, guarde isso num bolso da calça – Sua tia lhe entregou o celular dela, e a garota fez como lhe foi dito. – Agora corra, ! – A mulher comandou, tirando uma pistola de dentro da bolsa. Será que ela tinha ao menos uma licença para usar isso? – E não olha para trás.
  Não foi preciso mais nenhum incentivo. começou a correr no meio do shopping, ganhando olhares de estranheza das pessoas que estavam lá. Agora a história que ouvira na noite passada fazia sentido. Depois de ver o modo como o andar daqueles homens estava determinado em sua direção (e o quanto eles pareciam ser mesmo da máfia), ela entendia que era tudo verdade, por mais estranho e louco que pudesse ser.
  Com o coração acelerado e a respiração falha, ela chegou à escada volante. Já havia colocado uma boa distância entre si e os “homens de preto”, e achava que pudesse se acalmar um pouco, por isso olhou para trás. E esse foi seu erro.
  Eles ainda estavam atrás dela. Correndo em seus ternos pretos, o que seria cômico se ela não soubesse a gravidade da situação. Sua tia devia ter sido desarmada, pois a arma não estava mais em suas mãos, e ela tentava deter um deles, puxando-o para fora do caminho, mas não foi forte o suficiente e acabou sendo empurrada, caindo no chão.
   voltou a correr, o coração apertado por deixar a tia daquele jeito, e pulou alguns degraus da escada, até estar no térreo. De repente, ouviu-se um tiro. Um dos homens de preto chegara a escada e começara a atirar em sua direção. Nesse momento, o pânico foi geral, pessoas correndo e gritando, com medo. A garota continuou a correr, abaixada, até chegar ao lado de fora. Ela tinha de sair dali. Mas como? Lágrimas embaçaram sua visão. Isso tinha que ser um pesadelo. Um dos mais realistas que já tivera.
  Com muita dificuldade, conseguiu chegar à rua, no entanto, não demorou para avistar os homens vindo em sua direção. Eles haviam se espalhado, e um estava muito próximo do local onde ela estava. Droga! Sem nem pensar, ela disparou na direção de um ônibus que estava parado no ponto e entrou, espremendo-se junto as outras pessoas. não tinha a menor ideia de para onde aquele ônibus estava indo, só sabia que era sua única salvação naquele momento.
  Pegando o dinheiro que tinha no bolso, ela rezou para que tivesse dinheiro suficiente para voltar para casa.

***

  Ela teve de sair do ônibus em algum momento. Após rodar por várias ruas e ficar mais perdida que surdo em bingo, teve que descer em uma rua totalmente desconhecida para ela, pois o cobrador notara que ela estava há muito tempo lá dentro, sem descer em nenhuma das paradas – que foram todas da rota daquele ônibus, infelizmente. E o pior é que a garota não tinha mais dinheiro para outra passagem. Não ter dois reais e setenta centavos era uma vergonha! Só sairia de casa munida de dinheiro escondido dentro da meia e até do sutiã, a partir de agora. Nunca se sabia em que situação iria se meter!
  Começando a andar sem rumo, pois ficar parada assim era pedir por problemas, a garota começou a debater como arrumaria um modo de ir para a casa da tia. No entanto, suas divagações foram interrompidas por um clarão repentino, que ofuscou sua visão, parando o fluxo interminável de pensamentos. Faróis. Um carro estava vindo em sua direção. Não era possível que a tivessem encontrado, droga! Agindo no piloto automático, ela começou a correr.
  Mas a corrida foi em vão, pois o carro era mais rápido que ela e logo foi puxada para o interior do veículo. Ela se debateu, tentando se libertar, porém não conseguiu. O aperto do homem no banco de trás, com ela, era muito forte. Os outros dois na frente nem viraram em sua direção.
  – Você sabe por que estamos perseguindo você, garota? – O homem que a segurava perguntou. – Sabe por que nos demos tanto trabalho atrás de uma simples garota? – não ia pronunciar nada. Se ia mesmo morrer, preferia não ter nenhum tipo de diálogo com seus assassinos. Além dos mais, ela também estava bolando um jeito de sair daquele carro, viva. – É mais do que apenas uma dívida, porque sei que lhe falaram sobre isso, não negue! – Um tapa foi dado em sua bochecha esquerda. Doeu, e lágrimas se formaram em seus olhos. – Seu pai matou um dos nossos antes de tentar fugir, por isso você e sua mãe também serão mortas. Só sossegaremos quando vingarmos a morte de nosso Sottocapo!Sottocapo? Que diabos era isso? – Mas claro que não tem ciência do que é isso, não é? – Ele riu. – Dio mio, só de ver sua cara assustada agora valeu a pena toda essa viagem. Sottocapo é o nosso subchefe.
   não queria saber sobre a hierarquia deles. Por que aquele cara continuava falando? Por que ainda não a matara, se esta era a missão deles ali?
  – Não se preocupe, não queremos deixar evidências da morte aqui. Temos um lugar preparado para te apagar, capisce?
  Será que ele estava lendo sua mente, ou suas expressões eram muito fáceis de ler? Ela iria ficar com a segunda, era a mais plausível.
  Alguns segundos se passaram, em silêncio, os pensamentos da garota a mil, quando luzes azuis e vermelhas puderam ser vistas. Polícia! Ainda havia esperança! O carro devia estar perseguindo o que ela estava com os mafiosos, pois ela sentiu o aumento de velocidade no veículo, e o homem que estava no lado do passageiro baixou sua janela e começou a disparar contra o carro que vinha atrás.
  – Cazzo! – O que estava dirigindo xingou, em sua língua nativa. viu que mais dois carros de polícia estavam vindo na direção em que estavam indo. Eles estavam cercados. A garota aproveitou que o homem que a segurava se distraiu com o aparecimento da polícia e o mordeu no braço, com força, libertando-se dele. Sem demora abriu a porta e se jogou na rua, bolando alguns metros. Disparos foram ouvidos, dos dois lados, algum deles deve ter sido feito em sua direção, pois sentiu uma ardência e logo depois mais nada, a escuridão recaiu sobre ela.

***

  Vinte e dois dias. Silva estava no Brasil há vinte e dois dias, graças aos ferimentos que ganhara ao jogar-se de um carro em movimento e pelo tiro que levara. Por sorte, a bala que fora disparada em sua direção a atingira apenas de raspão na perna, não causando lesões sérias. Ela ficara dois dias no hospital, em observação, pois também havia batido a cabeça no chão, e fora isto que causara seu desmaio. Mas, como o próprio primo dissera na noite do Fest Verão, era sortuda, e ela não apresentou nenhum sintoma preocupante, e fora liberada para se recuperar em casa.
  Quanto aos mafiosos? Bem, um deles foi morto no confronto com a polícia naquela noite, e os outros dois foram presos e mantidos na Superintendência Regional Polícia Federal até serem enviados de volta para a Itália, onde se esperava prender os outros membros. adorara a Interpol!
  Sua mãe viera para a Brasil assim que fora informada do que acontecera, chegando quando a garota ainda estava no hospital. Ela se desculpara milhares de vezes por tê-la envolvido nisso. Como se a culpa fosse dela! ainda estava muito decepcionada com o pai. Saber a verdade manchou a imagem que tinha dele, o que a magoou muito.
  Assim que voltou para a casa da tia, pediu desculpas pelo modo como se comportara com ela na noite em que lhe contara a verdade sobre o que estava acontecendo, e também agradeceu por ter colocado o celular em seu bolso, já que foi através do rastreador dele que a polícia conseguiu sua localização para armar a emboscada e salvá-la. devia sua vida a tia, ela sabia disso. Se as coisas tivessem acontecido de modo diferente, ela podia estar morta agora.

***

  – Nem acredito que você quis vir para a praia por iniciativa própria! – comentou, ao sentar-se em uma das cadeiras embaixo do guarda-sol.
  Esticando as pernas e mexendo os dedos contra a areia úmida da praia, sentiu uma sensação de paz envolvê-la. Ela estava viva, segura, e sua mãe também. Ela só tinha o que agradecer. Então, que melhor forma do que prestigiando um dos paraísos na terra, que Deus deixou para seus filhos? não iria se prender mais a convenções, a medos idiotas; iria aproveitar a vida, apreciando cada momento, pois nunca se sabia o que poderia acontecer. Ela estivera muito próxima da morte, e podia afirmar isso. A que chegara ali não existia mais. Em seu lugar havia uma garota melhor, e ela estava grata que esta viagem tivesse proporcionado isso, mesmo com tudo que ocorrera.
  – Por que não, ? – Questionou, colocando os óculos de sol sobre a cabeça. – Eu não sou mais aquela garota cheia de frescuras que chegou aqui.
  – Também, depois de tudo o que aconteceu, me espantaria se fosse.
  – Besta – ela deu um tapa em seu ombro.
  – Ouch – ele resmungou, rindo. – Também não precisa partir para a violência, menina!
  – Então pare de fazer seus comentários idiotas. – Suspirando, ela encarou as pessoas se divertindo, contemplando o quanto estivera errada quando não dera o devido valor à praia. – Nem acredito que vou embora amanhã.
  – Então não vá – pediu ele. – Fique. Você e tia Helena estão se dando tão bem na cidade, por que não voltar a morar aqui? Você quase não tem mais sotaque!
   sorriu, a ideia realmente a agradava. Quem diria?
  – Vou conversar com a mamãe, talvez ela reconsidere. Mas você sabe que, mesmo que eu vá mesmo amanhã, virei aqui nas férias, certo? Em todas, prometo! Vou até praticar com mais afinco o português, para perder o sotaque totalmente.
  – Que bom que finalmente aceitou que é brasileira!
  – É claro que aceitei. Eu sou brasileira. Aliás, brasileiríssima! – Levantando-se da cadeira, desamarrou a canga que estava em sua cintura. Sim, Silva, a garota que não gostava de mostrar o corpo, estava usando um biquíni – um biquíni lindo, azul marinho, que destacava o tom claro de sua pele. – Agora vamos, quero entrar na água!
  – Como quiser, priminha – riu, quando ela o empurrou, de brincadeira. Ele adorava irritar aquela menina. Essas férias, com certeza, foram muito interessantes. As mais loucas da vida dele, e tinha pela convicção que da dela também. Mas algo de bom havia surgido de tudo isso: a amizade entre eles.
  Os dois correram para o mar, sob o sol forte de verão, ainda rindo. sabia que adoraria poder morar ali, mas, se não fosse o caso, ela voltaria em todas as oportunidades que tivesse. Além de ter se apaixonado pela cidade, a garota gostaria de ver como as coisas progrediriam com Ricardo. Ele fora tão atencioso durante a recuperação dela! Visitava-a todos os dias, levava bombons e chocolates, e tinha muita coisa em comum com a garota, como a paixão por filmes de comédia.
  Ah, sim, realmente descobrira como era bom ser brasileira, brasileiríssima!

Fim!



Comentários da autora


  Nota da autora: Olá! Obrigada por ter lido a história até aqui, não imagina o quanto isso me deixa feliz. Espero que tenha gostado. Tentei dar o melhor de mim! Esta história inicialmente foi postada no desafio #40 graus do projeto TDKAU.