Belle Époque

Escrito por Bruh Fernandes | Revisado por Virginia

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  “Amor é dado de graça,
  é semeado no vento,
  na cachoeira, no eclipse.
  Amor foge a dicionários
  e a regulamentos vários.”
  Carlos Drummond de Andrade

  Belle Époque. A tranquilidade antecedendo a explosão de uma guerra. Sorrisos forçados encobrindo a injustiça e submissão. O sofrimento ignorado. A mulher como não mais que um objeto, como em séculos anteriores.
  Mas estamos no século XXI. As mulheres já queimaram sutiãs, condenaram culpados à morte, mandaram na casa até mesmo financeiramente. Quão foi a minha surpresa ao ver, uma das famílias mais influentes do país, com seus rostos nas revistas e comentários apoiando acordos visionários, envolvida em algo tão antigo. E sujo.
  E, abaixo disso tudo, com toda a pressão sobre si, estava uma mulher. Seu corpo lhe dava aparência de frágil, sua cabeça baixa de submissa e seu olhar choroso me fazia ter certeza de que ela estava pedindo socorro.

***

  O jornal em minhas mãos detinha uma foto de uma família feliz, em sua mansão. A família Vieena, que possuía um império no comércio de indústria e produção, tanto na Itália, onde tudo começara, como em países subdesenvolvidos e mesmo pobres, com suas transnacionais. A imagem tinha duas mulheres, mãe e filha, e três homens, pai, filho e marido da caçula. Todos sorrindo, com ternos e vestidos sofisticados.
  Sua casa não ficava de fora no quesito beleza. Era majestosa, toda a parede revestida a ouro, como o jornalista fizera questão de ressaltar. E lá estava eu, de frente para esse castelo, esperando meu amigo. Como eu vim parar aqui? Eu conheci o filho do Sr.Vieena durante a faculdade de direito, em Oxford. Ficamos grandes amigos e, entre as palavras “modelos de sobra procurando diversão”, ele me convenceu a visitá-lo nas minhas férias no escritório.
  - ! – saudei, assim que o vi.
  Não mudara muito desde a última vez. Só o cabelo preto que estava maior, alcançando o ombro. E, claro, o fato de ele estar mais alto, o que sempre acontecia. Parecia que ele não parava de crescer.
  - , cara, quanto tempo! – me abraçou, batendo em minhas costas. Em seguida chamou o empregado e lhe fez carregar minha mala, mesmo eu dizendo que não precisava. – Vou te levar até seu quarto e deixar você descansar. Está tarde e o café é cedo por aqui.

***

  - , faz um favor, vá até o fim desse corredor e bata na porta à direita, avisando que o café da manhã saiu? – pediu, atrapalhado com a quantidade de papéis em seu escritório. – Papai precisa conversar com o quanto antes.
  Eu assenti, meio sem saber o que fazer. Eu sabia quem era , pelas notícias, mas não o conhecia. Aliás, não conhecera ainda nenhum familiar de . Era certo eu bater em sua porta, uma hora dessas, lhe incomodando? Fui até lá antes que a coragem esvaísse. Respirei profundamente, esperando que o homem abrisse a porta.
  Mas, surpreendendo-me, fora uma mulher que abrira. Ela estava com uma camisola bege colada ao corpo, curta a ponto de eu me perder por uns instantes em suas coxas. Ela me encarou assustada, um tanto surpreendida.
  - Quem é você?
  - , prazer. Amigo do – estendi a mão. – Você deve ser , irmã dele.
  Ela assentiu, com um pequeno sorriso e apertou minha mão. Olhando para o seu braço eu notei uma marca roxa.
  - Machucou-se? – perguntei, apontando-lhe.
  Ela escondeu o braço na mesma hora e abaixou a cabeça, concordando comigo.
  - Algum problema?
  Um cara alto, que eu logo identifiquei como o , apareceu do lado de , segurando-a pela cintura.
  - Aliás, quem é você?
  - Sou amigo do , . – estendi minha mão. Ele assentiu, mas ignorou meu aperto.
  - E que merda você estava falando com a minha mulher?
  Eu olhei para . O jeito como agora estava encolhida, ao lado do marido, e como olhava para o chão.
  - pediu que eu passasse aqui para avisar sobre o café. O Sr. Vieena quer conversar com você.
  - Agradecido. - exclamou, antes de puxar a mulher para trás e fechar a porta na minha cara.
  Um amor de pessoa esse , pelo que eu pude sentir. Encontrei descendo as escadas e corri até ele. Fui devidamente apresentado ao patriarca da família e nos sentamos à mesa. Estranho, só os homens estavam presentes.
  - Onde estão as mulheres dessa casa? Sabe, é realmente ruim a essa hora da manhã só olhar caras feias como as de vocês. - brinquei.
  Eles não corresponderam. me chutou por baixo da mesa e eu o olhei sem entender.
  - Elas não estão se sentindo bem. - Sr. Vieena, vulgo Alexander, respondeu.
  - Sua mulher me parecia muito bem, . - contrapus, olhando para o homem com um sorriso.
  Eu sei, sou atrevido. Mas eu falava pros meus amigos que as namoradas deles eram gostosas e levava almofadas na cara. Era maior que eu. E maior que aquela mini camisola de .
  - Gostei da camisola. - acrescentei, rindo.
  Ele fechou a cara na hora. Parou de comer e seu pescoço endureceu. Olhou para mim com uma cara de fúria e rosnou uma resposta.
  - Fale mais uma vez de minha mulher, olhe mais uma vez pra ela, e você é um homem morto.
  Levantou em um rompante, desaparecendo tão rápido quanto um furacão.
  Eu olhei para Alexander, que não estava nem aí, e depois para , que desviou o olhar. Qual é o problema dessa família, velho?
  Sentindo-me culpado pela reação exagerada de , eu decidi ir atrás dele pedindo desculpas. É, eu sou um amor.
  Sai da sala de jantar e fui até a sala principal. Encontrei-o lá, olhando para as escadas. Eu acompanhei o olhar dele e encontrei sua mulher. Agora, ela estava vestida com um mole preto largo e seus cabelos presos num coque desleixado. Trazia nas mãos o paletó do marido e sua pasta.
  Ela andou até e colocou a vestimenta no mesmo. Entregou-lhe a pasta e lhe desejou bom trabalho. Ele a ignorou. E saiu.
  Eu observei toda a cena do corredor e nenhum dos dois havia me visto.
  Eu a olhei subindo as escadas de volta. E então percebi o quão estranha ela estava andando. Com a mão do lado direito do corpo, perto do abdômen, e curvando-se para frente e para a lateral, se apoiando no corrimão.
  - Está tudo bem?
  Perguntei, preocupado com o que via. Talvez o pai dele estivesse certo ao dizer que ela não se sentia bem. Ela se assustou e virou a cabeça para trás, ajeitando o corpo ao me ver.
  - Es... está. Só estou cansada. - sorriu levemente, virando para as escadas de novo.
  Eu a olhei terminar os degraus e desaparecer pelo segundo andar. Tinha algo muito estranho ali.

***

  Eu comia sozinho na mesa da sala. desculpara-se por não se juntar a mim, disse que houvera uma emergência na empresa, mesmo que ele anteriormente tivesse enfatizado que tiraria umas férias.
  Porque Sra. Vieena e não estavam ali, eu não sei. Soava estranho. Porque as mulheres não apareciam em nenhuma das refeições?
  Mas o que Sr. Vieena disse, fazia sentido. Quer dizer, TPM, né? As mulheres que convivem geralmente ficam menstruadas juntas e as duas da família podiam sofrer com muitas dores. O que, convenhamos, batia até com a postura de mais cedo.
  Mas porque simplesmente eu não acreditava nisso?

  Sem saber o que fazer, eu resolvi dar uma volta na cidade. Disquei o número de , perguntando os melhores lugares para se visitar.
  - Vou chamar o motorista, ele te levará aos pontos turísticos. – informou ele.
  - , eu queria mais que isso! Queria ir aonde o povo italiano vai. Você não pode mesmo sair daí?
  - Desculpe, , não vai dar. Mas prometo que hoje à noite eu te levo a uma boate exclusiva. – a voz dele saiu maliciosa.
  - Estou no tédio agora, cara. - bufei - Ei, vou chamar a sua irmã pra me levar. – eu e minha mente brilhante, tendo ideias brilhantes.
  - Não faz isso, . – ele falou, seriamente.
  - Por quê? – inquiri, confuso.
  - Só não faça. - e desligou o telefone.

***

  Como, desde criança, mamãe disse que "porque não" nunca é resposta, eu decidi ignorar meu amigo. Fui até o quarto de e bati em sua porta.
  - Pode entrar. - sua voz saiu fraca.
  Eu entrei cauteloso e quando ela me viu, engoliu em seco. Estava deitada na cama, embaixo das cobertas.
  - Você está bem? – tentei iniciar uma conversa.
  - Igualzinha há três horas, quando você me perguntou a mesma coisa.
  - Outch. - coloquei a mão no coração, fingindo estar magoado.
  - Me desculpa. – pediu, dando um sorriso de lado. - Mas, enfim, o que você quer?
  - Quero que você seja minha guia nessa cidade. Sabe como é, eu sou turista, você é conterrânea. – sorri.
  - Não posso, desculpe. Peça para o Andrew, ele te leva. – indicou o motorista.
  - Hm... Ok. Obrigado. – meu era decepcionado.

***

  Eu havia desistido de sair para um tour. Conhecer a cidade não é a mesma coisa se não se tem ninguém ao lado. Então, depois de ler um pouco de um livro sobre direitos penais, eu decidi relaxar um pouco e usar a piscina. Quando o disse, a casa é sua, eu realmente levei a sério.
  Coloquei uma sunga qualquer e uma bermuda a cobrindo. De chinelos, desci as escalas e andei até os fundos da casa.
  O jardim em volta era bastante colorido. A piscina era quase olímpica, com diferentes profundidades. E dentro dela, havia uma nadadora nata.
  E eu digo isso com todo o meu conhecimento de cinco anos de natação. Tudo bem que eu nunca fui profissional, nem participei de uma competição, mas um nadador conhece outro de longe.
  E aquilo era um talento. Todos seus gestos eram rápidos e precisos. O esforço evidente.
  A mulher parou na borda, sentou-se nela e tirou a toca do cabelo, deixando que os mesmos caíssem por suas costas. Aquele cabelo, aquelas coxas, eu conhecia... Ah, claro, . Sou cego de longe. Aliás, eu estava me tornando um espião, de tanto ficar no vão das portas e observar aquela gente.
  Ela usava um maiô preto comportado, que logo foi coberto por uma toalha amarela. Ela se secara rapidamente e estendera a toalha sobre uma espreguiçadeira, deitando ali. Eu olhei todo seu corpo. , sei que irmã de amigo é homem, mas pela sua irmã eu virava gay fácil!

***

  Sem nada melhor pra fazer depois de um banho, resolvi checar meus e-mails pelo meu celular. E a caixa de entrada estava cheia e a bateria vazia, maravilha.
  Eu precisava dar uma olhada naqueles e-mails, os dos meus assistentes, pelo menos. Um advogado nunca tira férias de verdade. Só que, bom, no meio da minha empolgação, eu me esqueci de colocar o carregador na mala.
  Depois de um momento de desespero, eu corri até o quarto de . Era a única presente na casa que eu conhecia no momento e que podia me ajudar a achar um carregador para o meu celular.
  Eu bati várias vezes e a chamei outras, juro, antes de abrir a porta. Mas o quarto estava vazio. Ainda perguntei se ela estava no banheiro, mas não ouvi uma resposta.
  Perguntei a um dos empregados se ele sabia onde ela estava. Ele fez uma careta, que logo se desfez.
  - Ela está na área da piscina, senhor.
  Andei até lá, encontrando-a deitada no mesmo lugar que a vi, horas atrás. Nossa, será que ela estava tão cansada que cairia num sono pesado mesmo?
  Dormir ali no sereno não era bom, ainda mais se ela já não passara o dia bem. Aproximei-me lentamente. Passei um dos meus braços por baixo de seu pescoço e outro nas suas pernas. A puxei para cima com calma, temendo que ela acordasse e eu a assustasse.
  Firmei-a em meus braços e visto que ela ainda estava adormecida, comecei a andar de volta para a casa. Cheguei em seu quarto e a coloquei em sua cama, com cuidado. Tirei meus braços e me afastei um pouco. Perdi-me a observando.
  Ela era realmente linda. Mais do que um corpo bonito, ela tinha traços bonitos. E o jeito que dormia, tão sereno, era acolhedor. Eu queria poder deitar ao seu lado e abraçá-la, para então dormimos em conchinha.
  Alguém limpou a garganta atrás de mim e eu pulei de susto. Deus pai, se fosse o , eu estava ferrado! Ele pede para que eu fique longe de e eu a assisto dormir! Isso torcendo para o fato de que ele não saiba que eu a trouxe em meu colo.

  Virei, torcendo para que não fosse meu último minuto. E então vi . Suspirei aliviado, rindo contente.
  - Porra, que susto, cara!
  - Que merda você está fazendo aqui, ? - inquiriu irritado.
  - Ah, você sabe como eu sou gentil. - brinquei, rindo. - Sua irmã estava dormindo lá fora e eu decidi trazê-la para o quarto.
  - Você ficou maluco? Pegue-a de volta. - ordenou - Não, deixa que eu a levo. Siga-me.

  Minha cara de confusão era nítida. Eu estava tentando achar o problema no que eu havia feito, mas não o encontrava. Durante o caminho, perguntei ao o porquê daquilo tudo. Ele esperou despejar a irmã no mesmo lugar, de onde eu havia tirado minutos atrás.
  Fazendo o caminho de volta, ele começou:
  - , você não pode se meter nas coisas da minha família assim.
  - Me meter? Eu quis ajudar!
  - Você está aqui há um dia, não sabe como são as coisas por aqui. Elas são diferentes. E cara, pelo seu bem, porque sou seu amigo, fique o mais longe possível dessas pessoas. – nós já subimos as escadas.
  - , eles são sua família! – afirmei, contrariado.
  - É, infelizmente. Você acha que eu estou no meio disso tudo por quê? Todas as famílias tem erros no currículo.
  - Erros? , fala que merda tá acontecendo! O que deixar sua irmã na piscina tem a ver com tudo isso? – ele parou já na porta do quarto e virou pra mim.
  - O que você precisa saber é que aquilo é rotina. Ela dorme todo dia ali, depois de nadar. E então o vai lá quando chega do trabalho, a leva no colo até o quarto e a faz feliz. É, desse jeito mesmo. – fez uma careta.
  - E pra que essa rotina?
  - , não tente entender, só aceite. Foi o que eu fiz. Minha irmã fica mais feliz assim e isso pra mim é suficiente.

***

  No dia seguinte, só os homens estavam na mesa, novamente, ando café. Não houvera justificativas hoje sobre a falta das mulheres, eu ao menos não perguntei.
  Depois de todo o dia de ontem, das coisas loucas que eu soube, não vê-las no café já não era algo tão surpreendente. Em algum momento durante minhas lembranças de na piscina, quando cai no sono, e meus sonhos, eu simplesmente entendi.
  Entendi que tinha alguma coisa muito errada naquela família.
  Porque eu ainda não conhecera a matriarca? Porque ficava sempre tão escondida e quando nos encontrávamos - e na maioria das vezes foi porque eu a procurava - ela dava um jeito de fugir, rapidamente?
  Porque elas não podiam simplesmente descer e ar café com seus maridos? Porque tinha aquela rotina estranha e sórdida só para fazer amor com o marido? Se ela fosse minha esposa, podia se vestir até mesmo com um hábito que eu ainda queria tê-la.
  Uau, soou meio sádico. Meio nojento. Não que ela fosse freira, nem nada do tipo... A questão é que eu ficaria com ela até ela se cansar de mim.
  Quer dizer, provavelmente ela tinha mais camisolas daquela no armário, né? Então eu provavelmente perderia a hora do café todos os dias.
  E... Aquela marca roxa em seu braço. Não parecia um machucado, era estranho pela posição. Mas o que seria?
   fora o único que ficara depois do café. Nós fomos para a academia, dentro da mansão mesmo, e começamos a conversar sobre a boate ontem.
  - Nossa, , e ela era gostosa, cara. Seus peitos... - falava sobre a garota que pegara. Uma das, aliás.
  - Sem detalhes, cara, sem detalhes. - Abaixei a cabeça, a balançando negativamente. - O que nos caracteriza homens são as conversas sobre a noite anterior não passarem de "boa?" e uma resposta mesclando entre o sim e o não.
  - Porra, , você é um porre! - exclamou - Mas eu ainda te amo. – riu.
  - , o que eu acabei de dizer? Disfarça a viadagem, por favor. – brinquei. - Aliás, falando em viadagem, quando você vai casar, hein, ?
  - Infelizmente, tá mais perto do que você imagina. – ele bufou - Eu estou noivo.
  Paralisei na esteira, o que me fez escorregar nela e quase cair com a cara no chão.
  - Por acaso é daquela mulher de ontem? Cara, pedidos de bêbados não são levados a sério...
  - Não. - ele falava sério - Tem cinco meses já. – exibiu uma careta.   - Puta que pariu, você está esperando o que pra me contar? Voltar da lua de mel?
  - Não enche o saco, . – reclamou, emburrado.
  - Eu vou encher sim! – refutei - Como você não me falou nada sobre isso? Quem é essa mulher que roubou seu coração?
  - Não tem mulher nenhuma que roubou meu coração.
  - Não... , você é gay? Tipo, de verdade? Ah, man, me desculpa pelas zoações, é só brincadeira, sem preconceito...
  - Cala a porra da boca, . – soltou uma risada. - Eu não sou gay. Só que eu não estou apaixonado pela minha noiva. É tudo um contrato feito pelo meu pai.
  - E eu acho que você não gosta muito disso... Ela é baranga ou o que?
  Ele riu, levemente.
  - Não, ela é bonita. Só, sei lá, não tem nada a ver comigo - deu de ombros - E é tudo por dinheiro.
  Assenti. Quando ele disse que as coisas na família dele eram diferentes, ele realmente estava falando sério. Lembrei-me de uma reportagem que dizia que com o casamento da caçula Vieena com o dono de império , a família acumularia uma riqueza incontável.
  - Ei, , o casamento da sua irmã também foi arranjado? – inquiri, ligando os pontos.
  - Sim. Na verdade, é um pouco mais complicado. – eu o olhei esperando continuação, ele desviou o olhar. - Ela é noiva dele desde os 10 anos de idade.
  Arregalei meus olhos, surpreso. Com 10 anos eu nem sabia o que era beijar na boca, só pensava em jogar bola. Estar presa a uma pessoa desde criança? Sentia-me sem ar ao pensar isso com 28 anos!
  - Claro que ela só se casou com a maioridade, mas ela já era prometida há ele anos antes. – ele suspirou.
  - Meu Deus, isso é meio aterrorizante. Como ela reagiu? Ela aceitou de bom grado?
  - Ela foi criada pra isso, pra... - deixou sua voz se perder.
  - Foi criada para aceitar o que ele quer, fazer o que ele manda? - concluí.
  - Eu não devia estar falando isso - deixou o peso que levantava de lado e passou a toalha pelo rosto. - Você tem que ficar longe disso tudo.
  - É meio difícil ficar longe sem saber o que é esse "tudo". – respondi. Já estava farto de estar me escondendo coisas.
  - Só fique longe da minha irmã, ok? – pediu, olhando pra mim.
  - , com todo o respeito, eu não vou fazer isso. – revelei - Ela me olha de um jeito... - suspirei, sorrindo debilmente - um jeito que eu não posso simplesmente ignorar.

***

  Depois de minha última frase, digamos que não ficou de todo alegre, então ele resolveu me ignorar, sumindo da minha frente. Quando eu saí da academia, depois de ar um banho, eu resolvi procurá-lo e o empregado disse que ele havia saído para trabalhar.
  Obrigada querido amigo que me prometeu um passeio pela cidade hoje à tarde e fugiu de mim minutos depois.
  E, se ele achava que trabalhando iria ajudar a resolver o pseudo problema da minha aproximação com sua irmã, ele estava completamente enganado. Lá estava eu, totalmente desimpedido a ver e falar com . Mas como eu estava morto de fome, eu resolvi fazer qualquer coisa só depois do almoço.
  Só que, eu não sei se vocês já perceberam, mas eu sou um cara extremamente inteligente, com brilhantes ideias.
  Eu fui até sua porta, mas ninguém me respondera. Será que ela estaria na piscina novamente? Eu estava com preguiça de ir lá, reconheço. Fui até o empregado - os empregados ainda vão salvar o mundo, galera - e perguntei onde ela estava. Ele engoliu em seco e respirou profundamente antes de responder que não a havia visto.
  - Você vai me fazer procurar por todos os 50 cômodos dessa casa? – inquiri ao homem.
  - Na verdade, são 72. – ele consertou, sorridente.
  - O que?
  - São 72 cômodos. – reafirmou.
  - Ah, que interessante. Com certeza escreverei isso na minha bibliografia. - forcei um sorriso irônico - Agora, por favor, dá pra me dizer onde ela está? Eu sei que você sabe! - mentira, eu não sabia. Mas, eu tinha que blefar, certo?
  - Ela está na cozinha, mas sugiro que o senhor não vá até lá.
  - Ok. Sugestão anotada. – apontei para minha cabeça - Agora eu vou até a cozinha, sim? Licença.
  Eu tive que refazer meus passos umas três vezes até ver a placa em cima de uma ampla porta, indicando que era ali que eu tentava chegar.
  Entrei, procurando com o olhar. E lá estava ela, sentada no balcão, almoçando.
  Então era ali que ela fazia as refeições, na cozinha? Mas por quê?
  - É aqui que você se esconde, mulher gato?
  Ela pulou da cadeira de susto e me olhou. Sorri, ela desviou o olhar.
  - Sabe... Mulher gato porque ela usa aquela máscara, e ninguém sabe quem ela é, na verdade... – tentei me explicar.
  - Eu entendi. - ela respondeu, simplesmente, cortando minha atrapalhada justificativa.
  - Você gosta de super heróis? - inquiri, não me contendo.
  - Quem não gosta? A pergunta certa seria qual o meu super-herói preferido.
  Eu sorri. Aproximei-me dela e estendi a mão.
  - Prazer, Batman.
  Ela riu e apertou a mão.
  - Não vale, eu gosto do Batman! - reclamou, ela.
  - Então você pode ser a mulher gato mesmo. – murmurei.
  Sim, eu pensei na tensão sexual que sempre houve entre os dois super-heróis. Culpado.
  - A que tem um affair com o Batman? - Assenti. - E o Robin, como fica?
  Eu ri, me sentando do lado dela. Pedi à cozinheira meu prato e voltei a olhar pra ela.
  - Porque você come aqui?
  Ela abaixou a cabeça, brincando com a comida do prato.
  - Eu... Faço companhia às cozinheiras. – se justificou, o que não me convenceu.
  - E ontem? Eu fiquei sem companhia lá na sala de jantar. – argumentei.
  - Sinto muito
.   - Almoça comigo lá amanhã, então? – pedi.
  - Não posso, desculpe. - bufei. Ela não podia fazer nada?
  - Você não quer ou realmente não pode? – perguntei.
  - Eu... - engoliu em seco - Não quero.
  Afastou o prato de si e pulou do banco, saindo de lá o mais rápido possível.

***

  Depois do fora de , só restou-me terminar de comer.
  Passado umas poucas horas, eu resolvi ir à piscina. Sim, eu me lembrei de que era rotina da mulher nadar todas as tardes antes de adormecer esperando o marido. Aliás, a ideia de vê-la com traje de banho que me animou a ir até lá.
  Dessa vez, eu entrei na piscina sem pudor, atrapalhando o nado dela. Ela ergueu-se e me olhou surpresa.
  - Então, natação? Já sei como você mantém esse corpo. - comentei, sorridente.
   deu alguns passos pra trás, chegando à borda da piscina. Eu tive quase certeza que ela reprimiu um sorriso que surgira em sua boca.
  - Eu já... Já acabei por aqui.
  Eu já iria argumentar, mas seu gesto me fez perder a fala. De frente para mim, ela se apoiou na borda e subiu nela, sem dificuldade.
  Eu pude ver todo o seu corpo. Dessa vez ela estava com um biquíni verde.
  Fiquei alguns segundos, como um idiota, olhando para suas coxas enquanto ela andava, mas levantando meu olhar sua barriga me chamou atenção.
  Não a barriga em si, mas o que havia nela. Uma marca enroxada que ia do seu umbigo até quase a parte de cima do biquíni.
  Instantaneamente, eu pensei no dia anterior, ela subindo as escadas pendendo para um lado. O mesmo lado da marca.
  - O que foi isso na sua barriga? - perguntei alto, para que ela me escutasse de longe.
  Ela virou pra mim assustada, cobrindo-se com a toalha mais próxima. Tarde demais, .
  - Nada.
  - Uma marca roxa enorme agora não significa absolutamente nada?
  - Foi um bo, eu levei um bo. - respondeu ela rapidamente, tropeçando nas palavras.
  Eu sabia que ela estava mentindo. Não sei como cheguei a essa conclusão, eu só sabia que não fora um bo.
  Nem nada inofensivo do tipo.
  - Quando?
  - Ontem - ela suspirou antes de responder.
  - Aonde?
  - Na... - limpou a garganta. Olhava tudo a redor, menos pra mim - quina da cama.
  Aquela era uma técnica. Está desconfiado que algo seja uma mentira? Comece a perguntar coisas básicas, podem ser as cinco perguntinhas da narrativa, que a gente aprende no primário. Como, quando, porque, quem, o que?
  - , comece a contar a verdade.
  Ela engoliu em seco, finalmente me olhando, seu olhar arregalado. Meneou a cabeça negativamente repetida vezes e então falou, em acuado.
  - Eu... Não tenho que contar nada a você - cuspiu, correndo dali.
  , , em menos de seis horas você já fugiu de mim duas vezes.
  E quanto mais você fizer isso, mais eu vou atrás de você. Até você implorar pra eu ficar.

***

  Eu juro que quando eu entrei na biblioteca gigante daquela mansão, era só pra ler um livro.
   já havia me dito que tinha mais de cinco mil livros a disposição e eu sou um cara que curto um bom livro, ainda mais quando o não sai do trabalho nem para jantar comigo.
  Ok, pareço realmente uma mulher casada falando isso, mas ninguém me leva em um passeio decente, e a casa é boa demais, então eu me aproveito.
  Enfim, quando eu empurrei aquela porta gigante, estava me decidindo entre Cândido e o Guardador de rebanhos, mas ela estava lá.
  Sentada em uma poltrona, com um livro qualquer fechado, e pernas estendidas, estava . Os olhos repletos de lágrimas, os soluços ecoando nas altas paredes.
  Fui até ela silenciosamente, para que ela não me visse. Peguei o livro em seu colo e, ignorando o choro copioso, comecei uma conversa intelectual:
  - Crime e castigo, é? Bom livro. Fez-me pensar duas vezes antes de matar meu cachorro.
  Ela levantou a cabeça e abismada pelas minhas palavras até esqueceu-se de secar seu rosto.
  - O que? Eu estava brincando, ! - ri. - Eu nunca tive cachorro, mas se tivesse eu não teria nem sequer pensado em matar.
  Ela assentiu, voltando a olhar para a capa do livro.
  - Eu desisti no meio. Minha vida já é dramática demais sem ajuda de um livro.
  - Own. Você está, tipo, conversando comigo? - abri a boca, fingindo surpresa - Não está me dando respostas monossilábicas, nem obrigadas, está falando de verdade comigo! - exclamei, sorrindo. - Ou eu estou sonhando?
  Ela me olhou sonsa, mas riu.
  Senti ali uma proximidade maior. A oportunidade de esclarecer tudo.
  - Porque você estava chorando? - inquiri cauteloso.
  Ela sorriu forçado e abaixou a cabeça, limpando o rosto. É nessa hora que ela sai correndo, certo?
  Errado.
  - As coisas estão difíceis.
  - Eu posso ajudar. - respondi, tentando lhe passar confiança.
  - Sei que pode, mas eu não quero ajuda. - sorriu complacente.
  - Tem a ver com sua família? A ver com as coisas que seu irmão diz que ele tem que simplesmente aceitar?
  - Definitivamente, sim.
  Sentei numa poltrona ao seu lado, suspirando.
  Olhei para ela e sorri brevemente.
  - Posso te perguntar uma coisa?
  - Você está pedindo permissão? Depois de tantas perguntas? - ela perguntou, indignada.
  - Bom, é. - ri - É um pouco delicado, talvez eu ultrapasse um limite, sabe.
  - Acredite, você já ultrapassou um.
  - Bem, tudo bem. - olhei em seus olhos, respirando profundamente antes de ar coragem e perguntar: Você ama seu marido?
   me olhou, suspirou, passou os olhos por toda a biblioteca e finalmente voltou a mim.
  - Não.
  Sua resposta me surpreendeu. Quer dizer, não o fato dela não o amá-lo, há muitos casos desses por aí, mas o jeito que ela respondeu, sem fugir, sem rodear. Fora uma resposta clara, que clareou, inclusive, uma ideia em minha mente. Eu ficara aliviado e eu sabia por quê. Eu estava gostando dela.
  Assenti com a cabeça.
  - Vou abusar de sua hospitalidade, . - falei - Mais uma pergunta capciosa?
  Ela deu de ombros.
  As marcas roxas, eu tinha que perguntá-la. Uma possibilidade martelava em minha cabeça desde que vira o último roxo em sua barriga. Era meio irreal, eu nunca havia visto aquilo, mas não havia outra explicação!
  - A marca em seu braço que eu vi ontem, a marca na barriga de hoje... Seu marido - suspirei, passando a mão pelos cabelos - seu marido te agrediu?
   me olhou fixamente por uns instantes e então fechou os olhos fortemente. E começou a chorar. Eu levantei e a abracei, acolhendo-a em meus braços.
  - , o que ele faz com você?
  - Ele... me bate. Me bate se eu faço coisas erradas.
  - Que tipo de coisas erradas?
  - Ontem ele me bateu por atender a porta quando você bateu. - ela levou uma das mãos para a barriga, soltando um suspiro de dor.
  - Você está machucada por minha causa? - minha voz saiu por um fio.
  Ela não respondeu, não precisava. Levei minha mão até a sua, a envolvendo.
  Olhei para ela, que me encarava.
  Eu pude sentir, nos nossos poucos centímetros de distância, sua respiração pesada. Seu peito subindo e descendo. Sua boca levemente aberta. Seus olhos chorosos, sua boca calorosa. Seus olhos, sua boca. Sua boca.
  Encostei meus lábios nos dela, meio indeciso se aquilo era a coisa certa a se fazer. Eu gostava dela, mas será que ela gostava de mim?
  Ela deixou que minha língua invadisse sua boca. Eu a apertei para mais perto de mim. Sua mão foi até meu pescoço.
  Nada parecia mais certo do que beijá-la. E foi isso que eu fiz.

***

  Ela engoliu em seco quando nos afastamos. Abaixou a cabeça, envergonhada.
  - Erro. - foi a única coisa que ela pronunciou.
  - O que? - inquiri, não entendendo. Admito, ainda estava meio perdido, voltando à realidade depois de segundos no paraíso.
  - O beijo. Não deveria ter acontecido. - explicou, evitando me olhar nos olhos.
  - Na verdade, tinha que ter acontecido antes. - comentei, sorrindo atrevido.
  - Você não entende, ... - murmurou ela, e eu a interrompi:
  - O seu casamento forçado, as agressões que você sofre? Realmente, eu não entendo. - bufei em resposta.
  Ela assentiu, mordendo o lábio inferior.
  - Eu vou - alongou-se para pegar o livro jogado na poltrona - sair daqui.
  - Fugir de novo? - cuspi, não acreditando que ela faria aquilo novamente - Quer saber, , talvez você mereça isso tudo.
  Ela, que já tentava passar por mim para sair, parou e me encarou.
  - Como? - balbuciou ela.
  - Talvez você mereça viver um casamento ruim, com uma pessoa agressiva que você nem ao menos ama.
  - Porque exatamente? Por eu tentar ser fiel ao meu marido, apesar de tudo?
  - Não, por aceitar isso tudo! - brandeei em resposta - , será que você não vê? Estamos no século XXI, mulheres tiram a blusa pra protestar na rua e você abaixa a cabeça para as humilhações.
  - É minha família! - ela gritou, os olhos dela já enchendo d' água.
  Ótimo, . Faça uma garota chorar. Porque a melhor coisa dessa vida é ver uma garota chorando, principalmente se você gostar dela e ela estiver chorando por suas palavras!
  Eu me arrependi pelas minhas palavras no segundo seguinte, mas o que está feito, está feito. Eu precisava continuar até o fim. Mesmo que, no fim, ela nunca mais queira me ver. Pelo menos eu vou poder falar que tentei.
  - Desculpe-me, então, mas sua família é uma merda! Uma merda que não merece uma garota como você os ajudando!
  Que tipo de família faria uma filha ser maltratada e infeliz?
  - Eu sei que eles não são exatamente as melhores pessoas do mundo, mas eu ainda os amo.
  Eu soltei uma breve risada.
  - Os livros podem falar que o amor ultrapassa tudo, mas é mentira. Você precisa resgatar o mínimo de dignidade.
  Ela respirou fundo, concordando com a cabeça.
  - O problema, , é que diferente de você, eu sempre me preocupei com os outros, e não só com o meu próprio umbigo. - exclamou raivosa.

***

  Depois da fatídica discussão, eu decidi dormir sem jantar. Só pensar em olhar na cara daquela família me dava ânsia de vomito.
  No dia seguinte, eu fui obrigado por a ar café, o que fiz em 5 minutos, me retirando rapidamente antes que palavras acusatórias e nadas gentis entaladas em minha garganta saíssem.
  Enquanto eu mexia na internet, só conseguia pensar em . Sei que havia falado todas as palavras pra ela, que provavelmente a magoaram, além de deixá-la extremamente brava, mas eu não conseguia parar de sorrir quando sua imagem vinha em minha cabeça.
  Posso ter sido um chato com ela, irritante, até mesmo grosseiro, mas a alertei, mostrei-a como estava sendo idiota dispondo-se a tudo isso.
  Decidi ir até seu quarto vê-la. Mesmo que isso resultasse em mais brigas. Eu precisava vê-la.
  - Entre - foi o que ela exclamou quando bati a porta.
  Cauteloso, esperei almofadas em minha direção ou pelo menos xingamentos, mas o silêncio dominou o ambiente.
  - Licença - pedi, entrando no quarto.
  Ela me olhou e eu vi como ela estava pálida.
  - Você está bem?
  - Ele me bateu. De novo.
  - Aonde? - me aproximei da cama onde ela estava deitada.
  - Meu braço - levantou o esquerdo - estou sentindo tanta dor. Acho que talvez tenha quebrado.
  A olhei, sorrindo terno. Encostei-me ao seu braço levemente, vendo uma marca roxa perto dos ombros.
  - Dói muito?
  - , eu já ei três comprimidos, não adiantaram. É como se estivesse arrancando meu braço, sem pudor.
  - Eu vou te levar ao médico. - informei, já passando meus braços por baixo do corpo dela, como no dia que a trouxe pro quarto depois da piscina.
  Eu achei que ela protestaria, mas ela somente assentiu, agradecendo. Juntei meu corpo ao dela, beijando-lhe o topo da cabeça e prometendo que ia ficar tudo bem.

***

  Eles lhe deram um remédio para passar a dor, bem forte, enquanto esperava o resultado dos exames. E quando eu digo que ele – o remédio - era extremamente forte, eu falo sério. Tanto que ela sorria como uma idiota e falava coisas desconexas.
  Aproximei-me dela, para segurar o braço machucado para que ela não fizesse besteiras. Sem dor e no mundo da lua, sabe-se lá o que restaria dele. , de repente, passou a mão em meu pescoço e inspirou profundamente.
  - Você é cheiroso. - exclamou, inocentemente. - E gostoso - ela deslizou a mão por meu tórax.

  - Bom saber - sorri enquanto ela ria. - , da próxima vez que você falar isso, você não vai estar drogada.
  - Posso estar drogada, mas ainda tenho olhos. E narizes. - acrescentou, rindo. - Opa, só um nariz. - tateou ele para confirmar.
  - Só um nariz. - concordei - Um nariz de batata. - dei um peteleco nela.
  - De batata? Será que dá pra comer? - inquiriu.
  Eu soltei uma gargalhada.
  - Se você deixar, eu posso tentar. - sugeri, entrando na brincadeira.

***

  Uma hora depois, os médicos deram a sentença, havia deslocado o ombro, além de ter ganhado um grande hemaa, o que gerou um bombardeio de perguntas direcionadas a mim.
  Ela inventou uma desculpa qualquer, levando tudo aquilo como descuido e eu me apressei a dizer ao médico, que vislumbrava uma cara não satisfeita, que eu não era namorado nem marido dela, infelizmente.
  E, sim, eu fiz questão de falar o infelizmente.
  O Doutor saiu para providenciar a tipoia de imobilização. sorriu pra mim, um sorriso abobalhado e me chamou para perto dela.
  - , me desculpe por antes.
  Ela estava melhor, mas não totalmente sóbria, e sua voz saia afetada.
  - Eu não devia ter te esnobado depois do beijo. - ela fez biquinho, e eu me segurei pra não rir - Ah, droga de remédio. - exclamou, soltando uma risada. - Mas, obrigada. Obrigada por mesmo depois daquele fora, você ser insistente em me ver e me trazer pra cá. - apontou para mim, mexendo o dedo como se este fosse um boneco.
  - Não fiz mais do que minha obrigação.
  Ela estendeu o braço bom, me chamando para mais perto. Dei dois passos, e ela encostou sua mão em meu peito. E sorriu atrevida.
  - Não era sua obrigação, zito - murmurou em resposta. Envolveu o tecido da camisa em sua mão e, com força, me puxou para si. E riu - Mas eu quero muito que se torne uma. Eu quero você cuidando de mim.

***

  Claro que depois daquelas palavras, eu a beijei. Dane-se que o remédio ainda estivesse em suas veias e que sua boca estivesse seca, encostei meus lábios no dela, com um sorriso no rosto.
  De repente, ouço um pigarro.
  , por instinto, mordeu meu lábio inferior, o que me fez gemer de dor. Finalmente olho pra trás e vejo com um olhar pesado sobre nós.
  - Amigo querido! - soltei exagerado, tentando minimizar a situação.
  - Puta que pariu, , puta que pariu! - ele xinga, gritando. “Também te amo, fofo”, quis responder, mas fiquei com medo de que a fúria de seu olhar passasse pra suas mãos... e pés.
  - O que foi que eu te disse logo depois de você chegar aqui? – inquiriu ele.
  - Hm... a casa é sua? - perguntei, incerto.
  - Não, foi sobre ficar longe da minha irmã. - suspirou - Mas essa frase que você citou também serve. A casa é sua. A minha irmã não.
  Nossa, como ele é engraçadinho.
  - Só pra constar, você não deixou isso explícito nos termos do contrato... - brinquei e foi a vez da dar um tapa nas minhas costas.
  - Caralho, , seu filho da puta! - brandeou ele - Se descobre, e ele com certeza vai descobrir, você morre! Ele falou muito sério quando disse que te mataria, se não ficasse longe dela!
  - , isso não vai acontecer. - alertou , fazendo o irmão finalmente prestar atenção nela e em seu braço machucado.
  - Ele fez isso com você? - inquiriu, afetado. Aproximou-se da irmã e tocou o roxo com cuidado. Ela estremeceu.
  - Sim, meu querido marido - refutou ela, cheia de escárnio - Desloquei.
  Ele assentiu calmamente e me olhou, respirando profundamente.
  - Obrigado, cara.
  - Disponha. - dei de ombros.
  - Gosto de você cuidando da minha irmã. Acho legal que a tenha encontrado um cara finalmente bom pra ela. Mas eu falo sério, . Quando o ameaçou, não foi mera brincadeira. Ele vai te matar. E sabe-se lá o que fará com a minha irmã.
  - Essa é a minha deixa. - falou, nos fazendo olhar pra ela. - Eu e vamos fugir.

***

  Fugir? De que filme de alienígenas ela tinha tirado isso? Por acaso ela achava que eu era realmente o Batman, o super herói que a salvaria do mal? Eu engasguei com suas palavras, colocando a mão no peito enquanto tentava entendê-las.
  Não que eu não quisesse tirá-la dali, dos braços daquele criminoso, e cuidar dela, mas não era tão simples. Eu tinha um trabalho fixo, pessoas que contavam comigo, minha família! Eu não podia simplesmente abandonar tudo e ficar sapeando pelas cidades mais pitorescas do mundo!
  - , que tipo de ideia maluca é essa? - perguntou, retirando as palavras de minha boca. O que facilitou muito pra mim, porque se eu falasse, ela não ficaria muito feliz.
  - O do tipo que vai acontecer, irmãozinho. – escarnou.
  - Claro, com o poder da invisibilidade e a nave espacial esperando por vocês. - contrapôs ele.
  - , faça o favor de colocar na cabeça do seu amigo que minha ideia é maravilhosa. - me pediu, com um olhar carinhoso.
  Você pode ser linda, fofa e meu instinto de macho alfa pode querer muito te proteger, além do fato de eu gostar muito da sua pessoa, mas nem com esses olhinhos de Gato de Botas eu vou ceder.
  - Ele está certo, . É loucura. E eu não quero fugir. – revelei cauteloso.
  - Ótimo. - sussurrou ela, engolindo em seco, visivelmente decepcionada. - Então você não deve me querer também. E eu não quero mais te ver aqui.
  Meneei com a cabeça, recebendo o baque de suas palavras. Era assim que nossa história terminava?
  - Você vai deixar seu marido continuar a te bater? - cuspi as palavras.
  - Eu acho que você não se importa muito com isso. - respondeu descrente.
  Eu a olhei nos fundos dos olhos.
  - Você está jogando comigo?
  - Talvez.
  Soltei uma risada, enquanto seu rosto continuava impassível. Será que ela estava jogando mesmo? Fazendo com que eu me sentisse culpado se ela continuasse sua vida? Como se eu a tivesse rejeitado e, por isso, ela continuasse sofrendo? Meu Deus se fosse mesmo aquilo, ela fazia tão bem!
  Eu encarava seu braço machucado, me lembrava das marcas anteriores que já vira e das imagens na biblioteca, desde o choro ao beijo.
  - Eu só preciso te fazer uma pergunta. - avisei, vendo-a assentir - Você está apaixonada por mim?
  - Você vai fugir comigo? - perguntou em resposta.
  - Responda a minha primeiro.
  - Vamos responder juntos. Tudo bem? - sugeriu ela.
  Olhamos um para o outro.
  - No três respondemos. Realmente. - afirmei.
  - Um.
  - Dois.
  - Três.
  - Sim - respondemos em uníssono.
  Acabei com o espaço entre nós a abraçando.
  - Eu sempre ganho em um jogo. – acrescentou ela, me fazendo sorrir.
  Não precisa me dizer, eu sei que estou ficando maluco.

***

   Interferiu em nossos planos por alguns minutos, exclamando com veemência que éramos loucos, que morreriam todos, citou até uma Terceira Guerra Mundial. Exagerado é seu sobrenome do meio.
  A clemência em seus olhos pedia ajuda ao, segundo ele, pouco que restava da minha sanidade. Só que, veja bem, eu estava decidido a enfrentar aquela aventura. Sei que , no fim, estava certo usando sua racionalidade, mas às vezes precisamos deixar de lado a razão e seguir somente o coração.
  E se meu coração estava se entregando a uma mulher enclausurada em uma vida ruim, na esperança de uma fuga heroica, eu a seguiria. Sem arrependimento algum.
  A olhei, sorrindo enquanto nossas mãos se uniam. Os cintos estavam em nossas cinturas, protegendo-nos do possível baque durante o pouso do avião nas terras francesas.
  Quando o meu amigo e irmão de viu que a gastança de saliva era inútil, resolveu nos ajudar. Depois das nossas malas feitas, já na despedida, ele disse que estava feliz, que nós formávamos um ótimo casal. Abraçou-nos e revelou que queria ter a mesma coragem da irmã, ao sair daquela horrível família.
  Agora, em frente à lendária Torre Eiffel, o lugar dos casais apaixonados, do romantismo, da felicidade, eu a beijei. A beijei repleto de vontade, relembrando como fora pela primeira vez e acalentando ainda mais a vontade de repetir aquilo pra sempre. Diante de estar ao seu lado, ando-a pelos braços, fugir não era mais um problema, era a solução.

***

“Olá .
É um prazer escrever isto pra você. Aliás, enquanto você está aí lendo isso, eu estou a milhares de quilômetros de distância, o que torna ainda tudo melhor.
Se você ainda não percebeu, porque, convenhamos, às vezes você é bem burrinho, eu fugi.
Fugi com um cara que em dias me deixou ser amada, enquanto você por anos só fez o ódio crescer em mim.
Um cara por quem nutri uma paixão avassaladora, um grande futuro amor, que está sendo construído a cada momento.
E por você, com quem infelizmente vivi anos de minha juventude, eu só consigo sentir raiva. Desprezo. Rancor.
Eu queria entender o porquê. O porquê de você me bater. Dessa forma você se sentia o dono de uma propriedade, ou um capitalista repreendendo o seu trabalhador?
Voce se sentia mais seguro quanto a minha redenção, ou minha fidelidade?

Ou era só para me fazer sentir inferior, mal amada, infeliz, cada vez mais distante de você?
Porque, de alguma maneira, você conseguiu englobar as duas coisas. Eu nunca saberei sua resposta, mas espero que você ao menos detenha um minuto de sua mesquinha vida quanto a isso.
Ah, deixe eu lhe dizer uma coisa importante. Eu não sou sua propriedade e você não é meu dono. E, alguma hora, pode ser daqui a dois minutos, ou passado quarenta anos, mas eu vou me vingar de você. De cada arranhão que você me deu.
Com ódio, .”

  - A morte de alguém semeará essa nova guerra. – sorriu, presunçoso.

Fim



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