Beauty Scars
Escrito por Melissa Lima | Revisada por Isabelle Castro
Os olhos da garota se fixavam em três pontos diferentes de seu quarto: sua imagem semi nua refletida no espelho, na balança ao pé do objeto e na fita métrica em cima da cama. mordeu o lábio com o olhar vacilante, temendo os números que veria a seguir. Odiava esses números. Aliás, odiava se pesar e tirar suas medidas, pois não gostava de se apegar em números. Ela tinha total consciência de que eles não definiriam quem a garota era, mas mesmo assim, odiava a imagem que via refletida no espelho.
não era a típica garota magra. Também não era gorda. Tinha um corpo mediano, com poucas curvas. Não era a mulher gostosa que taxavam toda a brasileira, com uma bunda enorme e seios definidos. Aliás, desses dois ela tinha de menos. Virou-se de lado e levantou a barra da calcinha, vendo pela milionésima vez as estrias, já brancas e algumas ainda vermelhas, que faziam-na suspirar em desapontamento. Tinha algumas também nos seios. Elas eram as marcas da difícil e pré-adolescência e adolescência que acabou tendo.
A garota nasceu magra, com um pouco acima de dois quilos. Mas no começo da infância, começou a engordar e sua mãe, metódica e preocupada, levou a mais nova ao médico. Os exames não apontaram nada fora do normal, mas a médica avisou a mais velha que o problema de era, na verdade, o metabolismo lento, fruto de uma genética que a garota amaldiçoava desde aquela época. A profissional só pediu para que a mãe cuidasse da alimentação da criança que tudo se resolveria conforme os anos passassem, mas que seria difícil e muito doloroso para . A outra concordou sem nem pensar duas vezes e no dia seguinte, colocou a filha numa dieta.
Mama said "you're a pretty girl"
— Você é uma garota bonita, . — Sua mãe lhe dizia enquanto penteava seu cabelo. — Mas precisa emagrecer um pouco, pra ficar mais ainda. Entende? — Ela olhou reto em direção a parede lilás do quarto da filha. — O mundo é realmente cruel. Eu não me importaria em te deixar crescer fora do padrão de beleza, mas você sofreria. — Disse com os olhos marejados. — Assim como eu.
tinha apenas seis anos na época. Não tinha entendido muito bem o que a mãe queria lhe dizer com as palavras "mas você sofreria" caso ela fosse do jeito que fosse. Era muito pura pra compreender esse tipo de coisa. Apenas deu de ombros e continuou em silêncio, ouvindo seu estômago roncar.
— O que temos para o jantar? — A criança perguntou após um tempo, olhando para cima.
— Arroz, salada e frango.
— De novo? — A mais nova fez uma careta.
— De novo, sim. Faz pouco tempo que você está nessa dieta e perdeu pouco peso. Precisa só mais um pouco.
— Eu não acho que precise. Olha, eu estou ótima. — levantou a blusa e mostrou a barriga para sua mãe, que riu com o gesto.
— Você não entende. Não agora pelo menos.
What's in your head, it doesn't matter
continuou crescendo. Quando ela ficou no peso ideal para sua idade, dez anos, sua mãe relaxou um pouco a mão e deixou-a comer besteira nos finais de semana. No ano seguinte ela já estava cinco quilos acima do peso e sua mãe, preocupadíssima. Entrou com uma dieta rigorosa novamente, o que fez odiar. Já beirava os doze anos quando menstruou pela primeira vez e decidiu burlar algumas regras que sua criadora lhe impôs. Na escola, a garota comia doce escondida. Tinha descoberto uma paixão por chocolate, que se antecedeu às provas de matemática, matéria que ela estava indo mal ultimamente.
No mês seguinte, já viu no seu corpo as marcas da ansiedade dos tabletes comido escondido.
Não se pesou, mas sabia que tinha engordado um pouco mais. Quando saiu do banho naquela noite, pode ver claramente algumas marcar um pouco largas e vermelhas na lateral do seu corpo.
Teve vergonha de ir procurar sua mãe. Sabia que isso tinha a ver com o fato de ter engordado, mas não sabia o que era. Esperou a madrugada chegar e todos estarem dormindo, até entrar no computador e procurar o que aquilo poderia ser.
Estrias.
Resultado de um efeito sanfona que a garota não conseguia sair.
Até então, não havia se incomodado com o fato de estar acima do peso. Mas foi quando a sexta série chegou que ela pode ver o preconceito começar a aparecer.
Ela havia mudado de escola naquele ano. Sua família mudou para outro bairro, impossibilitando de continuar a frequentar o mesmo colégio. Se a pré-adolescência já estava mudando seus hormônios, entrar no meio do período escolar numa escola nova, não ajudou em absolutamente nada.
Assim que pisou na sala de aula, já recebeu olhares de todos. Alguns desviaram segundos depois. Mas outros — Ou devo dizer "outras"? — soltaram risadinhas por entre os dentes e começaram a cochichar com o colega mais próximo, ainda com o olhar fixo na nova aluna.
não ligava muito pra opinião alheia. Sentir-se desconfortável não era algo novo pra ela, mas geralmente isso acontecia em piscinas, praias, ou em qualquer lugar que ela precisasse ficar apenas semi nua. Mas naquela sala de aula ela estava uniformizada, coberta. Ignorou a sensação e procurou uma carteira vaga para sentar.
Naquele mesmo dia ela se apaixonou pela primeira vez.
Seu nome era Felipe. O típico garoto galinha, mesmo que tivesse só treze anos. crescia em meio a alunos que eram bastante precoces em relação a isso. E em relação a corpo também.
Alguns meses depois, ela descobriu o porque da risada naquele primeiro dia de aula.
Brush your hair, fix your teeth
What you wear is all that matter
se desenvolvia no seu próprio tempo. Com as dietas que sua mãe lhe impôs nos passado, tendo efeitos bons e ruins, ela acabou desenvolvendo um corpo normal. Com doze anos, tinha o corpo de uma garota de doze anos. Praticamente ainda uma criança.
E as risadas foram exatamente por isso.
A garota tinha apenas uma única amiga na escola: . E foi ela mesmo que contou. Depois da notícia, começou a reparar nas outras garotas da escola e, bem triste, se convenceu que o que lhe disse era verdade.
As garotas do colégio onde ela estudavam não pareciam ter doze anos.
daria quinze, talvez até dezoito pra algumas, e desacreditaria se alguém lhe dissesse que algumas outras tinha a sua idade, caso elas não estudassem consigo.
Corpos curvilíneos, rostos maquiados, a maioria ficando aqui e ali com um garoto ou outro. Aliás, garotos. Os olhos deles passavam por cada parte do corpo de cada menina bonita que tinha na escola. Inclusive de . era linda, se encaixava nas meninas-que-não-tem-cara-nem-corpo-de-doze-anos, então, claro, por andar com ela, reparava que a melhor amiga recebia olhares dos rapazes. E, parando pra pensar, não lembrava de ter sido olhada daquele jeito antes.
Just another stage
Pageant the pain away
This time, I'm gonna take de crown
Without falling down, down, down
Um dia, tinha um trabalho para apresentar, que era uma peça de teatro. Estava na sétima série e sua professora de Arte acabou colocando ela e em grupos separados, fazendo a garota cooperar com pessoas que não conversava.
Apresentou normal, recebeu alguns aplausos.
Na saída, estava com cara de tacho. Conhecia bem a melhor amiga pra saber que ela tinha informações desagradáveis.
— Enquanto você estava no palco, — ela disse. — alguns meninos e algumas meninas... — Hesitou.
— O quê? — perguntou nervosa, sentindo as mãos suarem.
— Bom, algumas pessoas estavam cantando a música do Bob Esponja pra você.
Por poucos segundos, ficou desorientada. Bob Esponja? O que isso tinha a ver? Mas logo a resposta veio: Bob Esponja não tinha curvas.
A garota bufou, fingindo que aquilo não tinha te machucado, mas havia. E muito.
Depois desse acontecimento, faltou três dias seguidos na escola. Saía de casa no horário em que ia e voltava no horário em que geralmente voltava, mas nesses três dias, enganou seus pais e ficou vagando por várias ruas com o pensamento longe. Com o pensamento no que lhe dissera, com as risadas dos outros apontando pra ela, com o garoto que ela gostava desde o ano passado tirando sarro dela.
Foi a partir desse momento que deixou de se aceitar. Deixou de ser quem ela era pra tentar ser alguém mais parecida com as pessoas que a julgavam.
E foi nesse momento em que desenvolveu bulimia.
Pretty hurts
Shine the light on whatever's worse
Perfection is a disease of a nation
Aos quatorze anos, ela já estava há meio ano nessa vida de comer e vomitar. Sentia os efeitos em si: Fraqueza, pressão baixa, mal estar, queda de cabelo. Mas também sentiu que emagreceu com isso, e foi com a imagem de ser um pouco mais magra e curvilínea que continuou nessa vida por mais dois anos.
O que não impediu de piadas continuarem.
Apelidos serem dados.
E chorar toda a noite por não se sentir perfeita.
Até que aos dezesseis, ela desmaiou na porta da escola.
Pretty hurts, pretty hurts
Ela já tinha perdido a conta de quantas vezes já tinha ouvido a frase "seu rosto é tão bonito, se você fosse um pouco mais magra...". O quê? Se fosse um pouco mais magra ela poderia ser modelo? Ter um namorado?
não havia comido nada naquele dia quando foi pra aula. Passou o dia todo daquele jeito. Seu estômago roncava alto e já tinha lhe dado bronca o suficiente por ela não ter comido nada (fora as broncas diárias por causa da bulimia). Quando as duas saíram pelo portão do colégio naquele dia, aconteceu muito rápido. A garota percebeu seu estômago embrulhado e a visão escureceu de repente. Não estava mais acordada quando tocou o chão.
Foi só então que seus pais souberam que era bulêmica.
Não que sua mãe não desconfiasse. Mas achava que a filha não seria capaz de ser, já que ela sempre amou comer. Depois do acontecido, porém, a mais velha garantiu que sua filha não voltasse aos velhos hábitos. Mas ela nunca soube, de fato, o porquê de ter desenvolvido bulimia.
Pretty hurts
Shine the light on whatever's worse
Tryna fix something
But you can't fix what you can't see
não foi uma garota precoce.
Além de seu corpo não ter tido o desenvolvimento rápido como o das garotas que ela estudava, ela teve seu primeiro beijo aos quinze.
Aos dezoito ainda é virgem.
E olhando sua imagem no espelho, consegue entender totalmente o porquê.
Algumas gorduras sobrando na barriga. Estrias em seu corpo.
Que tipo de cara iria querer namorá-la ou levá-la pra cama?
Pegou pensando em toda essa história. Do Bob Esponja à semana passada, quando encontrou na rua um dos garotos que zombava dela e ele, em tom irônico, disse que ela não havia emagrecido quase nada.
Que covardia, pensou.
Não era justo.
Não era justo cobrar curvas de uma garota de treze anos.
Não era justo cobrar um quadril largo e seios definidos de uma garota de quatorze anos.
Não era justo cobrar várias ficadas de uma garota de quinze anos.
Não é justo. Nunca vai ser justo.
se pegou soluçando e colocou as mãos no rosto pra esconder. Sentou no chão, só de calcinha e sutiã e deixou que todas as mágoas desse passado tão recente que ainda a atormentava tomasse conta de seu corpo. Não seria a primeira vez, afinal. Aproximou os joelhos do corpo e se agarrou, começando a se ninar, indo pra frente e pra trás.
Ainda doía.
Odiava sentir-se gorda. Sabia que não era, mas também sabia que não era magra. Também não se encaixava na categoria gostosa. Ela não era definida. Mas sentia-se enorme, como uma baleia, quando, nessa pré-adolescência e adolescência, olhavam estranho pra ela. Só porque ela não era curvilínea suficiente, porque não era magra o suficiente, só porque não tinha tanta bunda e tanto peito, não o suficiente.
Com o rosto afundado nos joelhos, ainda conseguia enxergar alguns cortes na coxa que ainda estavam por cicatrizar.
Cortes que foram feitos durante dois anos inteiros, pelo mesmo motivo, pelo mesmo problema.
Porque não era justo cobrar de uma garota de doze anos ser gostosa.
Não era justo debochar de uma garota de treze anos por estar um pouco acima do peso.
Não era justo dizer pra uma garota de quatorze anos que se ela não emagrecesse, ela não conseguiria namorar, casar e nem ter filhos.
Todo esse pensamento fez com que virasse uma mulher insegura. Que achava que não seria amada, que não casaria, como sempre quis.
O problema é que a garota cresceu vendo esses filmes teenagers dos anos 2000, onde tudo era fácil. Onde a mocinha podia se estranha, mas, mesmo assim, sempre tinha um galã que faria de tudo para conquistá-la. Fora os livros que lia, que a iludiam totalmente. Ter um romance intenso e eterno como aqueles que era retratado, daquele que o cara faz tudo pra ver a moça feliz, era o que ela sempre quis pra si.
It's the soul that needs a surgery
E começou a se cortar assim que parou com a bulimia. Preferiu machucar as pernas, já que estava sempre de calça. Era mais fácil de esconder.
Mas quando viu, dois anos depois, só faltou bater na melhor amiga.
Apesar dos pesares, ter do lado fez continuar ali. Fez continuar viva.
Suicídio já tinha passado na cabeça dela, sim.
Mas a melhor amiga, deixá-la. Era dolorido demais. Deixar sua mãe seria dolorido demais. Então colocou a sua dor no bolso e continuou vivendo. Por elas.
Blond hair, flat chest
TV says "bigger is better"
South beach, Sugar free
Vogue says "Thinner is better"
ainda não achava nada disso justo.
Toda essa dor, toda essa angústia, todo essa tristeza, a fez ser uma adolescente fechada e uma mulher insegura. Na época, toda a dor que ela guardou não chegava perto da dor que ela sentia agora.
Alguém ter cantado a música do Bob Esponja para ela a fez crescer e sentir-se desvalorizada, desmerecedora da atenção masculina. Feriu seu orgulho feminino.
Alguém ter dito que ela deveria emagrecer pra ficar mais bonita, a fez crescer e sentir-se feia, estranha.
Alguém ter dito que ela era diferente por, aos quatorze anos, ainda não ser gostosa, a fez crescer e se sentir uma adulta num corpo de uma criança.
A fez crescer diminuída.
Não a fez crescer.
Just another stage
Pageant the pain away
This time, I'm gonna take de crown
Without falling down, down, down
— A beleza dói. — Ela dizia por entre os soluços. — A beleza dói. Chegar na beleza dói. A beleza dói. — Ela repetia chorando ainda mais. — A beleza dói demais.
Pretty hurts
Shine the light on whatever's worse
Perfection is a disease of a nation
estava cansada, estava muito cansada de tudo isso, de toda essa história. Cansada desse passado, dessa vida que estava levando. Do medo do número da balança, ou o da fita métrica. Estava cansada de se olhar no espelho todos os dias e achar uma imperfeição diferente. Uma estria nova, na barriga ou no seio, uma espinha diferente.
Pretty hurts, pretty hurts
estava cansada de tentar ser algo que não era. Tentar seguir padrões nos quais ela não se encaixava. Cansada de tentar "ser perfeita". Ser magra, mas gostosa, bonita, bronzeada e com um sorriso brilhante.
Ela não era assim, não seria assim.
— Por que eu ainda tento? — Ela chorava. — Por que eu continuo? Eu nunca vou ser assim. Nunca vou.
Pretty hurts
Shine the light on whatever's worse
Tryna fix something
But you can't fix what you can't see
A garota não sabe o que aconteceu exatamente. De repente, algo cresceu em seu peito. Uma coragem, talvez. Determinação. Parou de chorar na hora. Levantou-se e foi ao banheiro lavar o rosto. Voltou para o quarto e ficou em frente ao espelho, encarando o reflexo que a olhava de volta. Depois olhou para baixo e viu a balança. Logo em seguida, seus olhos pousaram na fita métrica.
deu um passo em direção a mesa e pegou o objeto mais pesado que conseguiu encontrar. Era um martelo, que sue pai havia esquecido na gaveta quando montou a escrivaninha no quarto da garota. O tirou de lá de dentro e foi em direção a balança, agachando-se e a golpeando várias vezes, com toda a força que conseguiu reunir.
It's the soul that needs a surgery
A balança ficou irreconhecível. Estava totalmente deformada. chorava enquanto a deixava num estado pior, parando apenas porque seu braço começou a doer por causa do esforço. Jogou o martelo em cima da cama e viu a fita. Pegou-a nas mãos e fitou-a. Dez segundos depois a rasgou em vários pedaços.
Lágrimas ainda escorriam pelo rosto de quando ela colocava os restos de balança e as partes da fita dentro de uma sacola de lixo.
Ali, ela soube.
Era o fim de uma Era.
Ain't got no doctor or pill that can take the pain away
The pain's inside and nobody frees you from your body
*
acordou naquela manhã ainda um pouco tonta. Tivera uma enxaqueca insuportável na noite anterior e tivera que tomar remédios para conseguir dormir. O toque insistente do seu celular na cômoda ao lado não parava um segundo, então ela o pegou e o atendeu. Dizendo um alô sonolento, olhou para o relógio próximo e viu que não havia passado das dez da manhã ainda. Menos mal, achou que se atrasaria.
Quando seu editor desligou, ela deixou o aparelho de lado e deitou novamente na cama, deixando os lençois brancos lhe envolverem. Vinte e oito anos nas costas e ainda odiava acordar antes das dez.
Virou o corpo para o lado e não pode deixar de sorrir com a imagem.
Nicholas parecia um anjo dormindo.
sempre achara o noivo atraente, desde o primeiro momento em que o viu. A única coisa que não poderia imaginar é que ele também pensou isso dela. A garota se achava sortuda por ter um homem ao seu lado como Nicholas. Ele fazia de tudo por ela, desde o começo. Tudo. Assim como os caras dos filmes que ela via e dos livros que ela lia. Considerava-se uma mulher privilegiada. Sabia que poucos casais passavam por tudo o que eles dois passaram. jamais achou que conseguiria amar alguém como o ama. E consegue ver que tudo isso é recíproco.
— Por que você tá me olhando? — Nicholas abria os olhos devagar.
— Sempre gostei de ver você dormindo, sabe disso. — sorriu.
Seu noivo sorriu de orelha a orelha.
— Você fica gostosa até acordando, como pode? — Ele riu e ela lhe bateu, rindo também.
O rapaz levantou-se e foi em direção ao banheiro, deixando a mulher ainda deitada imersa em pensamentos. Teria um dia cheio pela frente.
It's the soul, it's the soul that needs surgery
It's my soul that needs surgery
conferiu o relógio. Faltava cinco minutos para as duas horas. Aguardava atrás das cortinas de um auditório de uma Universidade conceituada do Estado em que nasceu e ainda morava. Nicholas estava segurando suas mãos e esquentando-as. Fazia um dia frio.
— Não precisa ficar nervosa. — O rapaz sorria largo enquanto a tranquilizava. — Eles vão te adorar.
— Eu já fui universitária. — rebatia. — Eu achava isso um saco.
— É, porque teu curso era agitado. Você não é o tipo de pessoa que achava que ficar sentada ouvindo era legal.
— Ainda não acho. — Disse. — Mas agora eu que vou falar, né? Espero que gostem de mim.
— E como não gostar? — Nicholas sorriu e lhe deu um beijo.
— Me deseje sorte. — A mulher disse e o abraçou.
— Boa sorte. Embora você nem precise. E se ficar nervosa, olhe pra mim. Vou estar na primeira fileira.
Com um sorriso, o rapaz afastou as cortinas para sair.
— Ok, . Você consegue. — Ela repetia.
— Tudo certo? — O coordenador perguntou e ela afirmou. — Então vamos começar. — Dito isso, o mais velho atravessou a cortina assim como seu noivo um minuto atrás.
Ela ouviu ele fazer toda aquela apresentação e chamar seu nome. As cortinas se abriram.
Plastic smiles and denial can only take you so far
and you break when the paper signs leaves you in the dark
andou até o centro do palco e foi recebida com palmas. Ela sorriu e agradeceu, e esperou até ficar silencioso de novo até começar a falar.
— Bom, como vocês sabem, meu nome é . E eu vou tentar fazer o máximo pra que isso aqui não fique chato, porque, olhem, eu já fui universitária e sei o quão chata pode ser uma palestra.
Ela riu e os estudantes também, o que aliviou um pouco seu nervosismo. Olhou para a primeira fileira. Lá estava Nicholas. Ele sorriu encorajando-a.
— Essa é a minha primeira palestra, na verdade. Fiquei surpresa quando o coordenador me ligou convidando. Eu não podia dizer não, afinal, eu adoro falar. — Os alunos riram. — Mas agora sério. Eu sei que vocês leram sobre a minha história. Tem nos panfletos que vocês receberam semana passada. Alguém gostaria de fazer uma pergunta?
Vários alunos levantaram a mão e o coordenador escolheu uma menina morena de óculos de grau do meio do auditório.
— Você passou por muita coisa. Quer dizer, olha só isso! Bullying por não ser socialmente aceita. Bulimia. Cutting. E todos eles aconteceram na fase em que você estava mudando. Em que seu corpo estava mudando, sua mente. Você estava crescendo. Como você se sentia em relação a isso?
pensou um pouco.
— Basicamente? Horrível. — começou a andar pelo palco enquanto dizia. — Era uma época complicada. Eu vivia, e nós ainda vivemos, em uma sociedade muito superficial. É o tamanho do quadril da mulher que interessa, e não o quanto ela pode mostrar para o mundo usando seu cérebro. Isso é algo que ainda me deprime. Revistas, programas de televisão, todos eles empurram goela abaixo que a mulher pra ser bonita precisa ser um palito, — Ela mostrou seu mindinho. — quando na verdade não é assim. Existem pessoas de todas as formas, de todas as raças, que são fantásticas do jeito que são. Bonitas não só pelo exterior, mas, e principalmente, pelo interior. Nada seduz mais do que inteligência, boa conversa e maturidade. A aparência ajuda, mas não é tudo. E quando eu tinha doze anos, sendo a melhor aluna da sala, com exceção em matemática, todo mundo é um porre em matemática. — riu e os outros também.— Mas com doze anos, sendo a melhor aluna da sala na maioria das matérias, eu achei que nunca me sentiria bem comigo mesma. Bonita. Desejada. Tudo isso ter acontecido nessa fase específica da minha vida foi um saco, mas eu sei que se tivesse acontecido em qualquer outra, eu não teria aprendido tanto com isso. Foi horrível até os dezoito anos. Ainda me machuca as vezes, mas é algo que eu superei.
Ela sorriu.
You left a shattered mirror
and the shards of a beautiful girl
— E de onde saiu a ideia de escrever um livro sobre a sua história? Inspirar pessoas era uma meta na sua vida?
olhou para a direta, onde havia um pequeno exemplar do seu recém lançado livro. Lia-se no título "Cicatrizes da Beleza".
— Vai parecer um pouco suspeito. — Ela fez uma careta. — Mas foi meu noivo que me incentivou a escrever. — A mulher sorriu para o noivo e ele levantou o braço se acusando. — Aí vocês me perguntam: Como uma publicitária se tornou escritora? Culpa desse aqui. — Apontou para o homem que amava. — Eu o conheci quando tinha vinte anos. Mas faz só uns quatro que eu contei tudo o que tinha acontecido comigo pra ele. E o Nicholas logo disse "isso daria um belo livro". Eu ri, mas ele me falou que estava falando sério. Eu disse que não, mas ele fez tudo pelas minhas costas. — riu e Nicholas levantou os braços em sinal de rendição. — Procurou um editor. Contou toda a minha história. No mês seguinte ele e o cara já tinham fechado um negócio sem eu nem ter noção disso. — Ela continuou rindo e os alunos também. — Mas sobre inspirar pessoas: Eu nunca fui exatamente um exemplo a se seguir. Afinal, eu fugia da dieta, comia horrores escondida, era bulêmica e me cortava. Não desejava o que eu passava pra ninguém. Acho que foi exatamente por isso que acabei aceitando a ideia de escrever um livro. Quem sofre isso não está sozinho. Tem como sair, dar a volta por cima de uma história dessa. É só querer. E eu não sei se eu inspiro pessoas. Meu livro lançou tem um mês só, mas espero que quem o tenha comprado, tenha se sentindo inspirado. Seria uma grande recompensa pra mim.
Pretty hurts
Shine the light on whatever's worse
Perfection is a disease of a nation
Pretty hurts, pretty hurts
— E como você conseguiu dar a volta por cima? — Um rapaz perguntara no fundo do auditório.
— Hum, acho que teve uma hora em que eu estava cansada de tentar me encaixar num quadrado sendo que sou um círculo. Entende? Eu não sou o tipo de pessoa que eu estava tentando ser. Magra, alta, que acorda impecável de manhã. Eu não sou assim. Ninguém é assim. E teve uma hora que eu cansei de lutar com o meu corpo. Eu me aceitei. Eu admiti, finalmente, que eu acabaria morrendo se continuasse naquela vida. Na época eu pensava em fazer várias cirurgias. Todas para poder ficar esteticamente aceitável. Magérrima, realmente um palito, e eu me enganava achando que eu seria feliz assim, mas não. É difícil. Mas tudo sempre começa com você se aceitando. Depois você tem que se mover. Já dizia minha mãe, ninguém é uma árvore. Todos podem correr atrás do que querem.
Pretty hurts
Shine the light on whatever's worse
Tryna fix something
But you can't fix what you can't see
— E por falar em mãe, você acha justo o que ela fez com você quando tinha apenas seis anos? — Outra pessoa levantou-se para perguntar.
— Justo talvez não seja a palavra certa. — começou. — Eu não culpo minha mãe. Se eu visse que a minha filha começaria a ficar acima do peso, eu também a levaria no médico. Não por estética, mas é questão de saúde. E tenho total certeza que minha mãe pensou nisso também. Ela pode ter parecido uma vilã ou algo assim, já que me colocou numa dieta quando eu era só uma criança, mas eu entendo. Minha mãe também sofreu bullying quando era pequena, e não queria que eu passasse por isso também. Talvez não tenha tomado a atitude mais saudável naquela circunstância, mas ela tentou me proteger da maldade do mundo e eu nunca vou poder demonstrar o quão grata eu sou por isso.
It's the soul that needs surgery
— Eu ainda não li seu livro, mas pretendo. — Uma aluna levantou sorrindo envergonhada e sorriu de volta. — Enquanto não o compro, poderia me dizer como conseguiu emagrecer e chegar ao peso que queria chegar?
— Comendo. Ironicamente, foi comendo. Quer dizer, eu comia pouca besteira. Comecei a comer direito. Fui ganhando corpo. Fiz academia, não por estética, mas para me manter saudável, e isso ajudou. Eu ainda tenho barriga, tenho estrias demais. Só que a diferença é que eu me aceito hoje.
When you're alone all by yourself
and you're lying in your bed
Reflection stares right into you
Are you happy with yourself?
— Muitas pessoas passam pela situação que você já passou. Você tem algo pra dizer pra elas? — Um aluno de óculos perguntou e agradeceu pela pergunta.
— Na verdade, eu tenho. — Ela sorriu e olhou para Nicholas, que sorria admirado. — Como eu disse, eu não fui a primeira e nem vou ser a última que vou passar por situações como essa. Bullying em Ensino Infantil, Fundamental e Médio tem sido cada vez mais comum, o que é horrível. Até em Universidades isso ainda acontece. Aquele garoto nerd sofre bullying por um cara que gostaria de ter as notas que ele tem. Entendem o quão ridículo isso acaba soando? — Ela fez um gesto com a mão que fez alguns alunos rirem. — Eu não fui exemplo pra ninguém quando era adolescente. Eu passava por muita coisa e nunca falei nada pra ninguém. Só a minha melhor amiga, , sabia. — olhou para a segunda fileira e a achou. — Eu não deixava ela contar pra ninguém. E isso é errado. Quanto mais ajuda você recebe das pessoas que você ama, melhor. Você se recupera. As pessoas que se importam com você te ajudam. Se você passa por isso, você precisa se perguntar: Você é feliz consigo mesmo? Com seu corpo? Com sua vida? Se a resposta é não, precisa ver por quê. — deu uma pausa. — E eu sei que isso é um problema que atinge meninos e meninas, homens e mulheres, mas eu fico chocada como pesquisas têm demonstrado o crescimento do número de bulêmicas. A TV diz que o que é maior é melhor. Que ser magro é melhor. Que o que você veste é o que importa. Que tem que ser uma princesa, sem poder ter um fio de cabelo pro alto, que aí você já não está ok pra ser bonita e isso é um realmente um porre. — Ela ficava nervosa. — Como se o que você veste definisse o que você é. Como se o que te definisse fosse o seu nível de magreza. E o pior de tudo é que muita gente ainda acredita que sim. Muita gente quer fazer um bocado de cirurgia só pra ser esteticamente aceita no padrão de beleza que a sociedade impõe. Não são vocês que precisam de cirurgia. É a alma que precisa de cirurgia.
It's just a way to masquerade
the illusion has been shed
Are you happy with yourself?
Are you happy with yourself?
— Eu gostaria de dar um conselho pra quem passa pelo que eu passei: Vocês são fortes. As coisas parecem nunca dar certo quando estamos passando por isso, sabe por quê? Porque as coisas só começam a entrar nos eixos quando você se aceita. Quando você aceita ser imperfeito. Assim que as coisas começaram a dar certo comigo. Depois que eu me aceitei, que eu comecei a me amar, é que alguém pôde me amar. Foi assim que achei meu noivo. Foi assim que... — Ela suspirou e olhou para Nicholas colocando a mão na barriga. — Foi assim que vamos ser pais. — O rapaz parecia paralizado. Ele não acreditava. Seus olhos estavam marejados, assim como os de . — Pois é, você vai ser pai. — Ela disse soltando um soluço. O auditório inteiro estava emocionado. — Foi assim que tudo começou a dar certo na minha vida. Quando eu me aceitei. Depois que destruí a minha balança, comecei a procurar um emprego. Pensar positivo. Trabalhei. Paguei minha faculdade. Me formei. Hoje eu trabalho na minha área, tenho um noivo maravilhoso e um corpo que gosto, sendo que estou no meu peso. Não por vaidade, mas por saúde. E tudo isso só aconteceu porque eu, primeiro, me aceitei. Eu sou assim, eu vou fazer o quê? — Ela estendeu os braços e riu. — Tudo só vai dar certo se você estiver feliz consigo mesmo. Mas não só fingir que está. Você tem que estar feliz consigo mesmo enquanto está refletindo, deitado na sua cama a noite. Você está feliz consigo? Está? Você deveria. Cada um de vocês aqui dentro, e também quem não está aqui, tem algo em si que o faz único. Eu demorei pra ver isso, mas com vinte e oito anos, eu entendo: Eu sou única. Assim como você, ou você e você — Ela apontou para três alunos diferentes. — Vocês são únicos. Tentar ficar como as garotas de revistas ou os modelos masculinos, se matando horas na academia, não vai adiantar nada. Aquilo é fabricado. Nem os próprios modelos são assim. Sorrisos de plástico e negação só levam para longe. Não sejam assim. Sejam melhores, para os outros e para si próprios. E daí se ela não tem tantas curvas? E qual o problema se ele é um pouco acima do peso? O que isso conta na capacidade de uma pessoa de mudar o mundo? Parem de se limitar ao que vocês veem na televisão. Não se baseiem nessa falsa perfeição que a sociedade impõe. A graça da vida é ser imperfeito. É ter uma pinta no rosto, um dente pontudo, uma covinha na bochecha. A graça da vida é ser quem você é e nunca o que querem que você seja. E eu espero realmente que vocês aprendam isso do modo fácil, porque eu não indico o modo difícil pra ninguém.
Poucos segundos em silêncio se seguiram. Houve uma movimentação na primeira fileira. Nicholas se levantou e começou a aplaudir. levantou e fez o mesmo logo em seguida. Depois o coordenador. E um após o outro também. Quando percebeu, todo o auditório a aplaudia de pé. Ela não podia conter o sorriso.
Talvez você não possa acabar com a corrupção ou com a fome. Talvez você não possa mudar o mundo com suas ações. Mas fazer com que um auditório de Universitários, futuros líderes da nossa sociedade — e isso inclui si própria —, te ouçam com verdade, te sintam com honestidade, seja um ótimo começo.
Talvez mudar o mundo seja isso, afinal: Um conjunto de poucas e pequenas ações que, quando unidas, se tornam muitas e imensuráveis.
Talvez seja isso que nós precisamos:
Pessoas corajosas que são capazes de fazer um pouco, tendo a consciência de que estão fazendo muito.
Yes
FIM
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