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#25 Temporada

Safe Inside
James Arthur



A Vida Que Eu Te Dei

Escrito por Nicole Manjiro

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  O relógio marcou 11 da noite.
  Olhei janela afora, me perguntando diversas coisas, todas relacionadas a ela.
  Respirei da forma como podia, com o auxílio das máquinas.
  Tentei engolir um pouco de saliva, mas não era tão fácil quanto antes.
  O som do monitor ligado ao meu corpo informava aos profissionais da saúde que entram de hora em hora no meu quarto, que estou bem - pelo menos, na medida do possível.
  Voltei a encarar o teto perfeitamente pintado. Um misto de sentimentos voltou a se instalar bem na boca do meu estômago, às vezes subindo para a garganta, às vezes permanecendo ali e crescendo até formar um novelo.
  Tédio. Eu queria mesmo era estar em casa, cuidando dela.
  Dor. Meu corpo já não obedecia aos meus comandos como eu queria.
  Insegurança. Será que ela está sóbria? A juventude traz uma embriaguez natural, em que a pessoa sempre acha que as coisas darão certo se ela simplesmente tentar.
  Medo. Como ela viverá após a minha morte?
  Nostalgia. Lembro-me de quando éramos mais novas, e ela chorava quando ralava o joelho ou não conseguia alcançar um livro na estante mais alta.
  Saudade. Queria que ela estivesse aqui agora.
  – Boa noite, . Hora da troca do soro.
  Olhei para a enfermeira como de costume. Não é que eu seja uma pessoa simpática; presa nessa cama, eu me agarro a tudo o que vem de novo e de fora daquela porta.
  – Sua irmã não vem hoje?
  Essa é exatamente a pergunta que me faço a todo momento: será que não vem hoje?
  – Ela tem uma vida pra viver - respondo, rouca.
  A enfermeira me dá um sorriso amoroso enquanto confere alguns dados em uma prancheta após mudar o meu soro. Sorrisos amorosos é tudo o que eu recebo. Gosto quando vem, porque parece que ela não sente que estou morrendo, mesmo eu tendo plena consciência de que ela sabe, sim. E que é por isso que não me visita muito.
  Quem é, afinal, que gosta de ver uma pessoa que está para deixar esse mundo?
  
   e eu somos filhas de mães diferentes.
  Quando ela nasceu, eu já tinha 14 anos. Meus pais haviam se separado havia 1 ano e meu pai decidiu que sua personal trainer era uma mulher muito mais apropriada para ele do que minha mãe. Quando fiz 21 anos, nem a personal trainer, nem minha mãe o queriam mais.
  Isso fez com que eu ficasse com ele e , cuidando dos dois enquanto tentava, ao mesmo tempo, ter uma vida de uma mulher de 21 anos. Terminava a faculdade de química, ia a congressos e tinha um namorado por ano. Mas eu só tinha 2 escolhas: ser eu mesma ou ser a irmã mais velha de , que só tinha 7 anos.
  Optei pela segunda opção, o que fez com que meu pai entendesse que não precisava mais se preocupar conosco, se nos garantisse um bom dinheiro todos os meses. Por isso, quando completou 9 anos, ao invés de lhe dar uma festa de aniversário, nosso pai nos deixou um cartão de crédito e débito, a escritura do apartamento em que morávamos, uma procuração em seu nome e uma carta com a orientação de só procurá-lo se fosse extremamente importante.
  Durante anos vivemos contando a mentira de que nossos pais estavam viajando. Nenhuma das nossas mães apareceu em nossas vidas e passei, todo mês, a tirar o dinheiro da conta que meu pai havia criado para nós e passado para uma conta que eu mesma havia criado.
  Trabalhei por meio período até fazer 17 anos, quando ingressou em uma faculdade pública no interior. Com ela um pouco mais longe, pude me dedicar à minha profissão como devia, mas não esperaria que estar exposta a componentes químicos por tanto tempo, mesmo que protegida, me causaria problemas à saúde - muito menos um problema mortal.
  – Você tem leucemia aguda grau 4 - a médica me disse, após alguns exames de sangue. – Precisamos fazer mais alguns exames, mas o ideal é que…
  – Há cura? - perguntei, sentindo o aperto em meu peito aumentar.
  Ela suspirou.
  – No seu caso, não. Está muito avançado.
  – Quanto tempo eu tenho?
  – Não tem como confirmar. Vai depender de como seu corpo reage aos medicamentos e ao tratamento.
  – Na melhor das hipóteses? - a pressiono, vendo-a me encarar séria. – Se eu não tenho solução, preciso, pelo menos, saber quanto tempo tenho para colocar minha vida em ordem. Minha única família é minha irmã de 21 anos. Não posso simplesmente perecer. Preciso… preciso organizar para que ela…
  Um lenço me foi oferecido, que foi quando percebi que estava chorando.
  Não era esse o plano.
  O plano era eu começar a viver minha vida assim que se formasse, no ano que vem. Ela estava namorando um cara legal, que vinha de uma boa família. Os dois tinham planos de irem estudar juntos no exterior, eu juntei muito dinheiro para que ela pudesse escolher qualquer lugar sem precisar se importar em economizar. Mas então, com ela lá fora, com alguém cuidando dela por mim, eu podia fazer o que eu quisesse.
  Podia começar uma aula de dança, como sempre quis.
  E poderia sair em encontros; talvez encontrasse um homem que não se importaria de eu não querer filhos. Talvez ele já tivesse os próprios filhos, eu não me importava.
  E nós viajaríamos. Conheceríamos o Chile e o Peru, e eu poderia finalmente ver uma alpaca. Então combinaríamos com e seu namorado de irmos visitá-los onde quer que estivessem. Eu olharia para trás, para os dias que vivi em uma rotina de trabalhar e cuidar de , e soltaria uma gargalhada, porque, olha só onde todo o meu esforço nos levou.
  A ideia de viver uma vida minha me dava uma alegria diferente.
  E agora, deitada nessa cama e ligada a uma máquina que me ajudava a ter um pouquinho mais de dignidade, vejo que minha única preocupação é saber se já saiu da fase rebelde, em que inventou que queria morar com o namorado e que faria laqueadura porque não queria se preocupar em engravidar nunca.
  Quando ela me disse que não queria ter filhos, abri um pequeno sorriso. Talvez ela tivesse isso em mente porque eu dizia repetidamente que não queria. Depois, pedia a ela que não se importasse com minhas besteiras, porque ela tinha que fazer o que queria.
  – Não cometa os mesmos erros que eu, - pedi.

  – Não acho que ela passe de hoje - uma enfermeira disse à outra -, você tem o contato da irmã?
  – Ela disse que precisava voltar para a cidade dela, e que voltaria na segunda-feira.
  – não vai chegar até segunda-feira.
  Fechei meus olhos, como se essa fosse a única maneira de eu conseguir tapar meus ouvidos. Queria que as pessoas parassem de cochichar verdades sobre minha saúde longe de mim. Eu sabia que não duraria até segunda-feira; de alguma forma, o corpo nos avisa de que o momento está chegando, como se dissessem "ei, já deu por aqui".
  Mas eu queria ver só mais uma vez.
  Queria dizer a ela muitas coisas. A maioria, coisas que já disse nas outras vezes que ela veio.
  Ou então, seria melhor se ela não viesse.
  Prefiro que minha irmã não me veja morrendo. Isso causaria um trauma nela, não é?
  Tento respirar fundo, mas não consigo. Meu peito dói e parece que minha garganta está forrada por esponjas de aço. Fecho os olhos para não me desesperar.
  Queria poder escrever uma carta. Uma nova carta, não a que deixei com o advogado, para entregar a ela junto da herança. A perspectiva da morte pronta para te abraçar lhe dá inspiração para dizer coisas diferentes.
  Olhei mais uma vez para o céu. Estava escuro e, como se soubesse, estrelado como eu gostava.
  Abri um pequeno sorriso. Isso eu conseguia.
  Tentei respirar mais uma vez.
  Surpreendentemente, consegui. Um longo e calmo suspiro.

˜*˜

   estava sentada na cama que um dia pertenceu à sua irmã.
  Seu rosto estava coberto pelas lágrimas que segurou durante todo o dia.
  Estava exausta e tudo em si doía: seu corpo, seus órgãos, seus músculos, sua alma.
  A ausência de , por mais que já não estivessem vivendo juntas, agora era gritante. Saber que não podia ouvir a voz da irmã mais velha que era praticamente sua mãe lhe doía mais do que mil cortes com faca.
  Mas a irmã havia a educado para ser mais forte do que isso.
  Durante a manhã cuidou do velório. Não durou mais do que 2 horas. não teve muitos amigos, tudo por culpa dela. A maioria das pessoas que foram, eram conhecidas de .
  O pai apareceu engomado. Pelo menos teve a decência de parecer arrependido.
  – Eu devia ter cuidado mais de vocês.
  Ele devia mesmo, pensou. Mas não disse nada, porque não gostaria. Durante toda a vida, nunca viu a irmã mais velha culpar o pai ou as mães dela por não ter uma vida boa. Quando a questionava, a irmã só dizia que era até melhor assim.
  – Se você precisar… - o pai tentou dizer a , mas deixou a voz morrer após ver no olhar da filha mais nova, que não havia nada, senão o sangue deles, que os unissem.
  Ele foi embora rapidamente, escoltado por um segurança. Se o pai vivia tão bem assim, por que teve que abdicar da própria vida para cuidar da irmã mais nova?
  Nenhuma das mães apareceu, mesmo tendo avisado as duas com fervor nos últimos 6 meses.
  Era melhor assim.
  Após o almoço, ela se encontrou com o advogado de na companhia do namorado e os pais dele, também advogados. Ele explicou que a irmã havia transferido tudo para o nome de antes da saúde se complicar, então não havia nada com o que se preocupar. Os pais de Eduardo sorriram docemente, dizendo que teve sorte de ter uma irmã tão responsável.
  – E a conta no banco?
  – A senhora já havia informado ao banco sobre a situação. Colocou como dependente e, assim, tudo automaticamente passa para o nome dela. Só é preciso ir com o atestado de óbito como comprovante.
   quis chorar. A irmã, antes de contar a ela sobre a doença, já havia resolvido tudo. Só deixou que a irmã mais nova soubesse de sua condição, quando já estivesse no hospital.
  Por fim, o advogado entregou a ela uma carta. Disse que foi a pedido de .
  Decidiu que não leria naquela hora. Precisava desse último momento a sós com sua irmã. Agradeceu aos pais de Eduardo pela companhia e também quando eles lhe disseram que ela podia contar com eles.
  Eduardo a acompanhou até o apartamento da irmã para deixá-la. Quando entraram, se surpreenderam ao ver a casa já vazia dos pertences de . Não havia nada o que arrumar.
  – Você tem certeza que não quer que eu fique? - Eduardo abraçou , que abraçou-o de volta. – Posso dormir aqui.
  – Não… Gostaria de ficar sozinha essa noite. Se você puder chegar amanhã de manhã…
  – Certo - ele sorriu e lhe deu um beijo –, mas se achar que precisa, pode me ligar, venho a qualquer hora durante a madrugada.
  – Obrigada…
  Após o jantar, Eduardo se despediu da namorada e deixou-a a sós com o último resquício de vida de .
   hesitou ao abrir a carta. Olhou para o quarto vazio de e sentiu as lágrimas já prontas para cair. Decidiu chorar um pouco antes de ler a carta, em uma forma de tentar ter menos o que chorar após a leitura. Abafou os gritos com o travesseiro que ainda tinha o cheiro da irmã. Xingou a Deus, aos pais e a todo mundo que não ofereceu o melhor da vida para a única pessoa que a amou desde o nascimento. merecia muito mais do que uma morte solitária no melhor hospital de São Paulo. Ela merecia, pelo menos, ter vivido.
  Quando o choro cessou e o ódio estancou por um minuto, decidiu que era hora de se dedicar à última mensagem de sua irmã.

  Querida ,

  Não tenho muita coisa para falar.
  Na verdade, tenho sim, mas você me conhece. Sabe o que eu diria agora.
  Querida, sei que não é fácil. Não está sendo para mim também. Mas assim como todas as dificuldades que passamos juntas, vamos passar por mais essa e logo estaremos bem.
  Não me arrependo de nenhuma escolha que fiz. Não me arrependo da vida que tive.
  Eu escolhi você, então, por favor, cuide do meu legado, que é a sua vida.
  Seja feliz. De preferência, não por mim, mas por você.
  Permaneça com ambição, com tenacidade e com muita vontade de viver. Vontade de viver é o que mais damos valor, quando descobrimos que não podemos viver muito. Não cometa o mesmo erro que eu e viva enquanto pode. Aproveite que não tem um prazo e
viva.
  Sei que ficará bem. Mesmo não sendo fácil, você ficará bem. Acredito nisso, porque eu a ensinei a ser assim. Forte e persistente.
  Faça o que você quiser. Viva da maneira que quiser. Não se importe com os outros. Gaste todo o seu tempo com você.
  E venha, uma vez por ano, me contar como foram os últimos meses. Me diga tudo o que a fez feliz e tudo o que a fez triste. Traga sua nova família para me conhecer e os apresente da forma como você os enxerga. Diga a eles que fui uma pessoa que a amou durante todos os dias da vida que vivi.
  Agora, deixe a minha ausência para trás. Você já é adulta e consegue cuidar de si. Se sentir minha falta, converse comigo, mas não deixe que a dor da saudade desse passado atrapalhe o seu futuro. Eu não vivi para ser um empecilho na sua vida. Também não morri para isso.
  Viva, .
  Viva todos os dias. Todos os minutos.
  E quando for a hora de nos encontrarmos, quero traga junto de você, histórias de uma vida inteira, para que assim nós possamos gastar uma eternidade para você me atualizar de tudo o que fez enquanto viveu.

  Com todo o amor,

  Sua irmã mais velha, .

FIM