À Sua Vontade

O aroma de grama recém-molhada penetrou no interior do carro antes mesmo de eu terminar o primeiro giro da manivela que descia o vidro da janela. Dei a seta para passar à pista da esquerda e diminuí a marcha, ficando em uma velocidade boa o suficiente para conseguir dirigir e acender o meu cigarro. Uma vez ligado, deixei-o preso entre meus dentes e acelerei novamente, voltando à velocidade anterior.

  Windsor passava ao fundo, com o castelo de veraneio da família real como ponto principal turístico. Seus jardins eram mais famosos do que o comércio local, um pequeno vilarejo com ingleses acostumados a receber pessoas de todo o mundo. Solto a fumaça do cigarro enquanto algumas lembranças da infância passam como uma cena de filme antigo. A criança que não se importava com o fato de a rainha da Inglaterra ter pisado naquele mesmo lugar; o que lhe chamava realmente a atenção, era a loja de chocolates, cuja barra custava uma fortuna.

  Decidi que ainda havia tempo para uma parada. Mais uma vez, dei a seta e peguei o primeiro retorno que pude. Parei em frente à loja; era inverno e, como toda vez nessa mesma época do ano, o tempo estava nublado e chuvoso, se não escuro, devido ao anoitecer precoce.

  — Duas dessa. — Apontei para um kit completo, exposto na vitrine da loja.

  A atendente manteve seu jeito tranquilo e amigável, até uma turista se aproximar e me pedir uma foto:

  — Sou do México — ela disse, o rosto vermelho. — Mal posso acreditar na minha sorte!

  — Imagino que o sortudo, então, seja eu. — Sorri de maneira de gentil. — Gracias.

  A garota soltou um pequeno grito e me deu um forte abraço, antes de voltar para perto da mãe, onde se gabou com a foto que havíamos acabado de tirar.

  — Seria um incômodo tirar uma comigo também? — a vendedora disse, timidamente.

  — Achei que não sabia quem sou.

  — Todo mundo sabe quem você é.

  Sorri, feliz com o repentino elogio. Tirei a foto e deixei uma gorjeta boa para que ela aproveitasse o final do ano.

  O inverno em Wokingham pode ser descrito de uma única maneira: úmida.

  Quero dizer, não úmida seca, com neve e o ar gelado geralmente presente em todas as manhãs de 3/4 do ano. Mas sim úmida molhada, de deixar os cabelos parecendo mal secos e as vias respiratórias inflamadas. Como um profissional que mexe com as cordas vocais, o local e meu corpo exigiam cuidado extra.

  — Sua apresentação está marcada para as oito — me informaram.

  Era minha última apresentação do ano antes do recesso. Eu havia aceitado esta de última hora porque me disseram que era beneficente. Gosto de fazer o bem de vez em quando. Achei estranho me convidarem, já que não tenho músicas natalinas e muito menos que falassem sobre a alegria de uma família unida, mas parecia que alguém havia indicado meu trabalho e, se a comunidade aprovou, era o suficiente.

  — Seu camarim é aquela porta. — O cara apontou. — Chamaremos você vinte minutos antes de entrar no palco.

  Não era preciso discutir sobre pontualidade. Somos ingleses. Apesar da minha geração para frente não levar tão a sério quanto nossos antepassados, ainda assim é um motivo de orgulho.

  — Algum bar ao redor? — perguntei, olhando no relógio e vendo que ainda havia duas horas até minha apresentação. Álcool em uma dose controlada, era um bom método relaxante, além de deixar minha voz ligeiramente rouca e melancólica, algo que as fãs diziam ser “um charme”. A regra diz, “se as fãs querem, as fãs terão”.

  — O pub da Rose é aqui do lado.

  — Obrigado.

  O tal do pub era, literalmente, do lado do local onde o pequeno festival aconteceria. A escuridão já estava em seu ápice em plena quase seis da tarde, por isso, aqueles que queriam aproveitar um bom vinho, rum ou whisky já estava acomodado em seus lugares, degustando da bebida. A maioria do público do pub da Rose era masculina; tal maioria contava aos estranhos que ali era o melhor lugar para se ficar, enquanto esposas e filhas passeavam pelas atrações que o festival oferecia.

  Wokingham é praticamente um bairro. Um bairro repleto de famílias com crianças e jovens prontos para passar nos exames finais e enfrentar as loucuras das universidades que nosso país (ou outros) ofereciam. Um dos pais se gabou sobre a mais velha ter sido aceita em Oxford.

  — Custará uma fortuna! — exclamou, não parecendo incomodado em ter de trabalhar três vezes mais para custear os estudos da filha.

  Durante toda hora seguinte, ouvi histórias e mais histórias daqueles homens, alguns passando por grandes dificuldades, outros vivendo a vida que queriam… haviam aqueles que estavam se descobrindo e também os que não esperavam estar se divertindo tanto, tendo uma vida que não imaginavam para si.

  — Eu achei que seria solteiro para sempre — o homem ao meu lado comentou. — Sempre namorei uma única mulher, minha esposa, mas não esperava me casar. Casamento é algo que, na época, achava ser demais para mim. A ideia de me vincular a alguém para sempre sob os olhos de Deus é um compromisso sério demais.

  — O que o fez se casar? — perguntei, interessado em sua resposta.

  O homem ergueu os ombros, como se não soubesse exatamente a resposta. Olhou para o grande copo de cerveja artesanal que Rose oferecia, e disse:

  — Minha esposa me pediu em casamento.

  Os homens riram, alguns tiraram sarro e outros soltaram palavras de admiração à mulher. Para mim, aquilo deu algo para pensar.

  Deixei a nota de cinquenta no balcão e agradeci a gentileza dos locais por me incluírem em sua roda de conversas. Os chamei para me assistirem cantar, apenas pela força do hábito.

  No caminho de volta, o assunto do último homem ainda pairava em minha mente. Peguei meu celular e procurei por alguma chamada não atendida ou mensagem não lida, mas não havia nada. Pelo menos, não da pessoa de quem esperava o contato.

  %Emily% e eu fomos amigos a adolescência inteira. %Em% nossa turma, não havia panelinhas de garotas e garotos. Éramos um só. Dividimos segredos, inseguranças e passamos pelas descobertas juntos. %Emily% não era a mais bonita, nem a mais carismática, muito menos a que se destacava mais; eu, por outro lado, admito ter tido uma boa dose de sucesso. Apesar de nossas diferenças, nos dávamos bem. Não éramos carne e unha, como ela era com Pete e eu era com Daisy, mas éramos amigos.

  Perdemos contato quando eu saí para minha primeira turnê no país. Foram só alguns meses ausentes, mas o suficiente para o grupo se desfazer e cada um seguir sua própria vida. A faculdade faz com que conheçamos novos amigos, novos lugares, querer ter uma nova vida. Às vezes, não há espaço para os antigos. Às vezes, não temos espaço na vida dos antigos.

  Dez anos depois, encontrei %Emily% novamente. Precisamente há três dias, quando passei em casa por ter dois dias livres antes do meu último trabalho do ano. Eu estava na festa de aniversário de Pete, e de repente uma grande quantidade de integrantes do grupo da juventude, como acabamos chamando, estava presente. %Emily% era uma delas.

  Quando a vi, esqueci que ela não era a mais bonita, nem a mais carismática, muito menos a principal do grupo. Naquele momento, ela era tudo isso e algumas qualidades a mais. E eu não fui o único a perceber.

  — De todas, voto em %Emily% — Daniel disse, assim que Pete perguntou qual das garotas mudou para melhorar. — Ela está fantástica!

  E estava mesmo.

  Seu trabalho a obrigava a permanecer na estrada por um longo tempo. Era artista. Não como eu. Gostava de pintura. E era muito boa no que fazia, pelo que vi através das fotos que mostrou.

  Não esperava conversar por tanto tempo quanto conversamos. Foi como se nunca tivéssemos nos separado. %Emily% estava linda e se divertia, contando histórias dos lugares mais inusitados que acabou indo sem querer.

  — Estar na estrada é sempre esperar por algo novo, não é, Harry? — Ela me olhou, sorridente.

  A maior parte do tempo eu acho uma chatice, principalmente se a viagem é durante a noite, mas com aquela expressão me encarando, tudo o que fiz foi concordar e complementar com uma ou outra coisa, só para estar à frente dos demais companheiros que a acharam encantadora. Principalmente Pete. O solteiro-sempre-legal-e-companheiro-Pete.

  — Não é divertido? — Daisy comentou, após um grande momento de silêncio. — Relembrar o passado, de como as coisas eram divertidas e novas para nós?

  Observei a turma inteira conversar sobre coisas que haviam acontecido na época em que andávamos juntos. Foi como se tivesse acontecido ontem. Eu não me recordava de grande parte das coisas, e com certeza o que mais me surpreendeu, foi que o pouco que me lembrava, eram lembranças que %Emily% estava presente.

  Talvez não fôssemos tão distantes quanto imaginava.

  Por ter gasto três quartos do meu tempo com %Emily%, recordando e ressuscitando sensações que achei ter deixado no passado, quando nos despedimos e trocamos contato, esperei de verdade que ela entrasse em contato como prometeu.

  Porém, três dias se passaram e continuo esperando ao menos uma mensagem.

  — Harry. Precisamos ir para o palco. — O responsável deu duas batidas em minha porta antes de entrar no pequeno camarim improvisado que haviam preparado.

  Antes de subir, colocaram em mim os apetrechos de som necessário e me entregaram o violão.

  Eu esperava um pequeno público local, mas aparentemente, Kyle, meu empresário, havia dito que minha fama cresceu como um jato no último ano. Ao entrar no palco, me surpreendo com um grande público.

  — Boa noite, Wokingham — disse, com um sorriso, recebendo, de volta, gritos e aplausos. — Obrigado por aquecerem minha noite fria até então.

  — Perfeito, Styles. — A organizadora do evento era puro sorrisos. — Obrigada por ter concordado com o evento. Sua presença ajudou muito a trazer mais pessoas, mesmo o frio ser cortante.

  Abri um pequeno sorriso de solidariedade. Ela não deveria estar tendo uma noite tranquila.

  — Espero que tenha atingido a meta.

  — Falta apenas um pouco, mas acredito que dará certo. Estou positiva.

  — Isso é ótimo. Boa sorte e feliz natal.

  No caminho para o carro, fui abordado por algumas garotas que me esperavam. Paguei para elas um chocolate quente e comprei algumas coisas para comer no caminho de volta para casa. Havia um bom caminho e esperava não pegar nenhum temporal.

  — Você poderia me dar um autógrafo?

  Olhei para trás e não consegui disfarçar a surpresa de vê-la ali.

  — Como você veio?

  — Minha amiga é sua fã. — Ela apontou para o lado, onde havia, de fato, uma amiga com os olhos vidrados e a expressão animada e ansiosa estampada no rosto. — Jazzmine.

  — Olá, Jazzmine — a cumprimentei, ouvindo um gaguejo de resposta. — Gostou do show?

  — Eu amei! Você é demais. — Ela sorriu e desatou a falar sobre todas as impressões que teve de mim durante os quarenta minutos que permaneci em cima do palco.

  — Que boa fã você é — observei, vendo as maçãs de seu rosto ficarem ainda mais vermelhas, se é que era possível.

  — Você a deixou constrangida — %Emily% brincou.

  — N-não! Estou b-bem… — E riu, sem graça.

  — Acho que você a deixou constrangida, %Emily%.

  — É o papel de amiga deixar a outra constrangida. — %Emily% abraçou Jazzmine, que lhe mandou um olhar de desespero, pedindo para que parasse. — Você ficará por aqui?

  — Estou voltando para Redditch. Você?

  %Emily% olhou para Jazzmine, que levantou os ombros.

  — A família de Jazzie está inteira para o natal, vou voltar também.

  — Está de carro? — perguntei, e ela explicou que pegaria um trem. — Bobagem, vamos comigo, estou indo para lá de qualquer maneira.

  — Tudo bem.

  Abri um sorriso. Sempre achei graça na maneira sincera e direta de %Emily%. %Em% nosso reencontro, percebi que era um hábito adorável que ela tinha.

  — Podemos passar na casa de Jazzie? Deixamos ela e pegamos minhas malas.

  — É claro. Entre, Jazzie. — Sorri para a amiga de %Emily%, que voltou a corar.

  — Pare com isso! — %Emily% deu um tapa em meu ombro. — Você é sempre encantador assim com as mulheres?

  — Só com as fãs. — E mandei uma piscadela para Jazzmine, que riu.

  No carro, %Emily% fez brincadeiras com sua amiga, contando podres que cometi quando éramos mais novos. No fim do caminho até a casa de Jazzie, ela já não me via mais como um ídolo.

  — Vocês não querem entrar para um chá?

  — Aceitarei da próxima vez, Jazzie. Dessa vez, preciso voltar para Redditch logo.

  — Vejo você em três meses — %Emily% disse, dando um forte abraço na amiga. — Obrigada por ter me hospedado nesses últimos dias.

  — Está pago. — Jazzmine olhou para mim com um sorriso. — Façam uma boa viagem.

  %Emily% jogou um beijo para a amiga, a tempo, antes de eu arrancar com o carro em direção à estrada que pegaríamos de volta para Redditch.

  — Até que você canta bem, Styles.

  Ergui uma sobrancelha, sabendo que ela estava se esforçando em não manter um silêncio constrangedor entre nós dois, mas principalmente porque eu precisaria, em algum momento, fazer um esforço extra para não dormir no volante.

  — Assim como você pinta? — a provoquei de volta, ouvindo sua risada. — Que tal um lanche em Windsor?

  — Você não consegue dirigir direto por uma hora e meia?

  — Não, quando estou com fome. E se fosse você, também não conseguiria. Meu estômago tem um grande poder sobre mim.

  — Achei que fosse a música.

  — Depois do estômago, ela ganha.

  — Tudo bem, conheço um lugar que fica até de madrugada e é bem gostoso. Siga para Eton.

  — Eton? — Quando pude, lhe enviei um olhar. — Foi pintar garotinhos passando pela puberdade? É por isso que está me fazendo sair tanto da rota?

  — Foi a arquitetura, para ser sincera. Era um trabalho da faculdade, essas coisas são insanas. E tudo o que foi feito por um rei, o professor dava pontos extras. E para sua informação, os garotinhos passando pela puberdade hoje em dia não são como na nossa época. Justin Bieber acabou de sair da puberdade e fez mais loucuras do que provavelmente nós dois juntos.

  — Porque ele engoliu o sol e agora acha que tudo gira em torno dele.

  %Emily% gargalhou e mencionou como eu era idiota. Após cerca de vinte minutos, estávamos entrando em um pub diferente do de Rose. Esse sim era um pub inglês. A porta se abria e o cheiro de homens bêbados saíam. Era improvável que um aluno de Eton fosse parar ali, mas se alguma vez aconteceu, espero que ele não tenha sido expulso do colégio.

  — Peixe com fritas? — %Emily% perguntou e ergui os ombros, mostrando que tanto fazia. Ela me deu as costas e foi até o balcão fazer nosso pedido, enquanto eu procurava um lugar mais tranquilo para nos alimentarmos.

  — Como você está dirigindo, água. — Ela colocou um enorme copo. — Para mim, sidra.

  — Obrigado pela consideração. — Faço-lhe uma careta e ela, como resposta, toma um belo gole da bebida. Ao voltar com o enorme copo à mesa, minha mão se dirige sem permissão até o canto de sua boca, onde limpei a espuma que a bebida trazia e que ficou no local.

  — Você não vai… — ela começou e levei o dedo com o resquício de sidra à boca. — Pelo amor de Deus, Styles.

  — Delicioso.

  Conversamos sobre amenidades. %Emily% falou sobre como trabalhava e quanto custava seus quadros. Eu mencionei sobre o processo de produção das músicas e quais artistas famosos conheci.

  — Se você não conheceu as Spice Girls, então você não é famoso de verdade.

  — Elas nem existem mais.

  — Calúnia! — %Emily% deu um tapa em minha mão. — Elas estão bem vivas e cheias de energia. Inclusive, com uma turnê inglesa que começará em breve.

  — E você tem os convites?

  — Se você disser que consegue me fazer encontrá-las, então a resposta é não.

  — Eu não sou tão famoso quanto você imagina. — Rio.

  — Você está brincando? — Ela mordeu outro pedaço de peixe. — Eu ouvi a organizadora dizer que havia doze vezes mais pessoas ali por causa de você.

  — Doze vezes mais é uma quantidade bastante específica. — Abri um sorriso irônico. Todo mundo sabia que o motivo da densidade humana em Wokingham se devia à minha presença. Nem minha humildade me permite negar.

  — E enorme. O que significa que você é muito mais do que o cara que toca e canta no metrô de Londres.

  — Tudo bem, não é para tanto. — Ergui minhas mãos. — Sou mais reconhecido que um cantor de rua.

  No meio de uma risada e outra brincadeira, decidimos voltar à estrada. O que não esperávamos, é que o clima decidisse que era melhor ficarmos por ali. A chuva, misturada ao vento e trovões, fazia uma boa bagunça com algumas árvores e a visão de muitos motoristas que estavam passando por ali.

  — Seríamos suicidas — %Emily% disse, quando perguntei o que ela queria fazer. — Se fossemos para casa agora, quero dizer.

  Perguntei ao barista do pub por algum lugar bom e tranquilo para passarmos a noite e ele indicou um local a duas quadras dali. Com o carro e excepcionalmente devagar, fomos dentro do carro, torcendo para que nenhum motorista imprudente passasse por nós, ou pior, colidisse conosco antes de nossa chegada na pousada.

  O local, aparentando muito aconchegante, estava lotado.

  — Temos um último quarto — a menina, que parecia não estar completamente preparada para tomar conta de uma pousada inteira, disse.

  — Não vai dizer que a cama é de casal — %Emily% disse, em uma voz bastante irônica.

  — Nah, é uma beliche. — Ela ergueu os ombros, despreocupada com o quão desconfortável uma beliche poderia ser.

  — Serve. — Coloquei meu cartão de crédito no balcão ao ver mais pessoas entrando correndo na recepção. A menina fez nosso cadastro e nos entregou uma chave desgastada.

  — Nosso café da manhã é servido das seis e meia às dez. O check-out é às 11. Não temos tratamento especial a celebridades. — Desviou o olhar para um ponto atrás de nós. — Estamos lotados — disse para o grupo que aguardava atrás de nós.

  — Ah, qual é! — um dos homens reclamou. — Já é o terceiro lugar que passamos.

  Enquanto %Emily% olhava com dó para o grupo, peguei sua mão e segui para o último quarto vago da pequena pousada.

  — Nós podíamos dividir com alguns deles — ela disse.

  — E como você enxerga isso?

  — Você não curte dormir no chão? — Olhei para ela a tempo de ver seu sorriso irônico. — Era o que você dizia quando dormia em casa.

  O fato dela ter se lembrado do que eu disse quando éramos adolescentes me fez ignorar a irritação de ter sido realmente colocado em pauta, a ideia de eu acabar dormindo em um chão úmido e gelado porque ela ficou com dó do grupo de casais.

  — É claro que eu fazia por educação. — Abri a porta do quarto minúsculo que realmente cabia somente uma beliche, um pequeno armário de madeira embutido na parede e duas poltronas grudadas em baixo da única janela do quarto. A pequena porta ao lado da de entrada dava para um banheiro absurdamente pequeno, sem nem ao menos uma banheira, como é de hábito do europeu ter nesse cômodo. — Agora sou uma celebridade, você não ouviu o que a menina falou?

  — Você poderia voltar a praticar a educação com aquele grupo lá em baixo. Além disso, você não ouviu a menina? Sem tratamento especial a celebridades.

  — Bem, eles não são você, para que eu precise me preocupar com bem-estar.

  Eu culpo o sono. Ou a falta dele. Não percebi o que havia dito até sentir a hesitação de %Emily% através de seu silêncio. Olhei para ela após terminar de retirar o casaco úmido e vi que suas bochechas haviam corado.

  — Você quer a cama de cima? — Apontei para o local.

  — Pode ser. Vou tomar um banho quente primeiro. Sorte que tenho uma mala repleta de roupas confortáveis.

  — Sorte que sou homem e posso dormir só de samba-canção.

  — Com uma mulher no mesmo local?

  — Você nunca viu um homem de samba-canção? — Olhei para ela, achando graça em sua repentina inocência.

  — É claro que já. — E desviou o olhar.

  — Porque você sabe que basta entrar na internet, digitar meu nome, mais o adjetivo “saradão” e ver a beldade que sou…

  — Eu disse que já vi um homem de samba-canção e não quero googlear você!

  Soltei uma pequena risada marota e abri o pequeno armário, vendo travesseiros e cobertas extras, e um par de roupões. Peguei um deles e o balancei para %Emily% ver.

  — Satisfeita?

  — Obrigada.

  Ri e joguei o roupão na cama de baixo, esperando ela sair do banho. Quando aconteceu, foi como se uma sereia estivesse se transformado em humano. Os cabelos molhados e a pele límpida, ela parecia uma princesa de um reino de mulheres sobrenaturalmente belas.

  — Perdeu algo aqui?

  — Não, mas quase. Você é boa em hipnotizar. — E sem esperar por uma resposta — se é que ela viria — entrei no banheiro.

  Ao sair, dei de cara com %Emily% sentada em uma das poltronas, a cabeça pendida para o lado, mostrando que estava presa em um sono profundo. Olhei para a cama feita e de volta para ela.

  — Você não me deixa escolha.

  Joguei a toalha que sequei o cabelo na outra poltrona e preparei a cama que era para ser minha, para ela. Com cuidado, a peguei no colo, fazendo com que ela despertasse, mas com muita sonolência.

  — Está fingindo cavalheirismo novamente, Harry?

  — Talvez. Está funcionando?

  — Hum… — A pousei com cautela na cama. Ao sentir o colchão macio, ela suspirou. — Isso é muito bom.

  — Então durma. — A cobri.

  — E você?

  — Vou dormir mais tarde.

  — Você não tem cama?

  Olhei para a beliche de cima, questionando a mim mesmo se deveria aproveitar da situação ou se respeitaria o sono de %Em%. Com os olhos fechados, ela parecia a Bela Adormecida, só que mais bonita.

  Me peguei pensando em quanto é que foi que surgiu o meu interesse nela. Ou o que foi que me conquistou. Pensar em mentir para poder dormir junto dela, mesmo que de forma inocente e respeitosa, não é do meu feitio. Eu não minto para poder dormir com alguém. Eu não cogito deitar na cama de uma mulher que acabei de conhecer ou reencontrar, e muito menos penso na possibilidade de gostar de alguém.

  Porque, na verdade, eu não me lembro de alguma vez já ter gostado de uma garota, a ponto de imaginar um futuro com ela.

  Olhando para %Emily% adormecida, percebo que o que fez a diferença nela, foi que temos um passado. E como consigo imaginá-lo, o futuro não parece muito ruim. Nós dois basicamente percorremos o mesmo caminho. Ela, na arte da pintura; eu, na arte da música. Temos nossas vidas agitadas, algumas vezes sem rumo, outras vezes tão repleta de horários, que chega a ser insuportável. E ainda assim, temos nosso lar, um lugar para voltar. Mas não alguém para quem nos receber.

  — Se você vai dormir no chão novamente, então durma aqui — ela murmurou, indo um pouco para o lado. — Está frio, você vai se resfriar.

  Abri um pequeno sorriso, achando graça em seu sonambulismo. Eu não me lembrava dela falar tanto durante o sono. Esperei um tempo para ver se ela acordaria ou me chamaria novamente, mas não aconteceu mais nada.

  E por isso, decidi dormir na beliche de cima.

  — Não que seja um problema para você pagar mais uma diária, então apelarei para o conforto. Se você não quiser dormir em uma cama de mola horrível por outra noite, é melhor acordar agora.

  Abri os olhos.

  — Bom dia, flor do dia. A tempestade parou, mas a chuva não. Dá para chegarmos a salvo em Redditch se formos com segurança.

  — Segurança é meu terceiro nome. — Desço da beliche em um pulo.

  — É mesmo? — Vejo que ela já está vestida e desvia o olhar ao ver que eu não vesti o roupão, como havia dito que faria. — E quais são os dois primeiros?

  — Sem muita.

  Ouvi sua risada e então segui o olhar do seu dedo, que apontou para um sanduíche e um café.

  — É comestível.

  — Que pena, eu esperava por algo com mofo.

  — E nome? Foi quase isso. Talvez você possa achar o queijo bastante curado.

  — Então irei amar. — Dei uma mordida no sanduíche e coloquei a roupa seca. — Obrigado por tê-las deixado no aquecedor.

  — Não queremos um músico gripado. E se você é como o Ed Sheeran, então não posso receber a culpa de sua rouquidão no final do dia.

  — Eu sou melhor que o Ed Sheeran.

  — Bem, isso eu já não posso confirmar. Gosto bastante das músicas dele.

  — Tsc tsc.

  — Não venha com essa, Harry. — Ela riu e logo mudou de assunto, provavelmente porque sabia que eu era melhor que ele de verdade. — Eu já fiz o check-out por nós e o carro está inteiro.

  — Que horas você acordou?

  — Às nove.

  Olhei no relógio para verificar que já era quase almoço.

  — Caramba.

  — Obrigada por ter me cedido sua cama.

  — Não foi fácil, mas de nada.

  — Aposto que você passou frio essa noite.

  — Para ser sincero, se passei, não senti nada.

  — Espero que seu corpo não tenha sentido.

  — Isso me dará uma boa desculpa para te ver todos os dias.

  — Eu não sou tão legal assim. — Ela me seguiu para fora do quarto.

  — Disse a mulher que queria dividir o quarto com um grupo de estranhos. — Rio, deixando a chave com o cara do turno do dia na recepção. — Obrigado.

  — Voltem sempre — ele disse, simpático e surpreso. Acho que ele não concordaria com a garota da noite anterior sobre não tratamento especial a celebridades.

  — Eu culpo o sono — %Emily% continuou falando até chegarmos no carro. — Eu pago a gasolina.

  — Nah, minha produtora pagará. — Sorrio, vendo-a cruzar os braços.

  — Então nossa hospedagem também foi financiada por eles?

  — Foi por causa do trabalho que vim para cá. — Ergui os ombros.

  — E escolhemos uma simples pousada?

  — Você esperava um hotel cinco estrelas aqui em Windsor? — Rio. — Talvez devêssemos ter ido direto ao castelo, então.

  Dei partida no carro em rumo a Redditch. Demorou pouco mais de uma hora. Nossas conversas variaram entre brincadeiras, ironias e nossas profissões. Foi somente quando estávamos quase em frente à casa aonde %Emily% morava, que o assunto do futuro chegou.

  — O que você fará na noite de natal? — ela me perguntou.

  — O mesmo de sempre. Jantar com os Styles, troca de presentes à meia-noite e uma caminhada com o Fox. E você?

  — Minha mãe se casou.

  Não era para ser informação o suficiente, mas, para minha surpresa, foi.

  Todo o grupo soube quando os pais de %Emily% se separaram, dois anos após termos parado de nos encontrar. Eles não se davam bem desde o primário de %Em%, então já era mais do que hora para cada um seguir seu rumo. %Emily% iria para a London School of Arts e sairia de casa. O que ela provavelmente não esperava, era que seu pai se casasse novamente cerca de dois meses depois, e sua mãe entrasse em uma crise em que nenhum homem prestava, mas todos poderiam suprir suas necessidades.

  Foi a época em que ela decidiu sair em busca de cenários e fotografias que pudesse tirar com sua memória e retransmiti-las em suas telas.

  — Ele é da África do Sul — ela disse.

  — Nossa.

  — É. No começo achei que ela não ia. Vire a próxima direita.

  — Mas foi. — Obedeci o seu comando e ela orientou a virar novamente a direita.

  – É aquela casa branca.

  – Então eu te busco às seis. — Desliguei o carro e saí para ajudá-la a retirar sua mala.

  — O quê?

  — Para a ceia — expliquei. — Nossa família janta cedo por causa das crianças. Acho desnecessário, já que todas permanecem ligadonas para abrirem os presentes à meia-noite.

  — Você não precisa me convidar.

  — Mas estou.

  — Não vou invadir a tradição da sua família.

  — Você não está invadindo. Foi convidada.

  — Ninguém nem sabe disso.

  Deixei a mala na porta da casa e a encarei.

  — Acredite quando digo que a minha família ficará muito encantada em ter você conosco. Além disso, não é como se eles não te conhecessem.

  %Emily% hesitou um pouco e olhou para o lado.

  — Eu vou pelo Fox.

  — Mas fui eu quem a convidou.

  — Mas ele é mais bonito que você.

  — Nossa. — Ri. — Fui comparado a um pug e perdi. — Ouvi %Emily% gargalhar e desci os degraus para o caminho de volta ao carro. — Amanhã, às seis.

  Como eu havia dito, minha família ficou encantada com a presença de %Emily%.

  A primeira razão é porque meus pais sempre gostaram muito da mãe de %Em%, dentista, que cuidou da boca de nossa família até o divórcio dela e a mudança repentina de profissão para confeiteira.

  A segunda, é que %Emily% era a primeira garota que eu levava para passar o natal conosco. E como ela era, mesmo, a primeira garota que eles viam junto de mim, era como se fosse um milagre da data.

  — Obrigada por ter me convidado — ela disse, mais tarde, no passeio com Fox. — Sua família é adorável.

  — Como eu.

  Abri um sorriso ao ouvir sua risada.

  — Seus pais me trataram muito bem. Eles acham que nós namoramos.

  — Nós podemos, se você quiser.

  — Eu não conseguiria lidar com seu ego.

  — Posso dar um jeito nele por você.

  Caminhamos por um tempo em silêncio, até eu olhar para ela. Pela maneira que me encarava, parecia estar tentando me decifrar.

  — O quê?

  — Não consigo saber se você está brincando ou falando sério.

  — O que você prefere?

  — Pare com isso, Harry. Estou falando sério.

  — Eu também. — Como hábito, soltei a coleira de Fox para deixá-lo fazer suas necessidades em paz, e levei as mãos para o conforto dos bolsos. — Eu não estou desesperado, %Emily%. Quero dizer, estou satisfeito com a minha vida como ela é. Com a minha carreira. Ainda há muito para percorrer e chegar aonde quero, mas há tempo. E eu tenho paciência.

  Sentei em um banco recém limpo provavelmente por alguém do bairro que também veio trazer os cachorros para passearem.

  — Mas se for você, não me importo de entrar em um compromisso sério.

  — Por quê?

  Ergui os ombros.

  — Não sei explicar. Vi você há pouco na festa do Pete e não achei que passou tanto tempo desde a última vez que nos falamos. Você agiu como se não tivéssemos nunca nos separado. E talvez você não tivesse feito diferença para mim semana passada, porque não estava na minha vida. — Olhei para ela. — Só que agora você está. Você agiu como antes e uma nostalgia incrível tomou conta de mim. E você não se prendeu só ao passado. Isso foi incrível. Então, sem perceber, moldei um futuro com você. Nossas carreiras, sua personalidade, nossas vidas. Quando juntei tudo, combinou. Consegui enxergar um futuro, algo que até então só havia acontecido com a música.

  — Mas não significa que você se apaixonou por mim.

  — Eu não preciso estar apaixonado por você para saber que estarei daqui a um mês.

  — O quê? — Ela riu. — Eu não consigo te entender, Harry. Você pode ter, ou já teve, todas as garotas mais legais do mundo. E agora você decide que eu serei a próxima dona de toda a sua paixão? Parece que você vive em um outro mundo.

  — É isso o que estou tentando te dizer, %Emily%. — Me levantei e parei em frente a ela. — Eu vivo em outro mundo. E até agora, não houve nenhuma mulher que se enquadrou nele. Não cabe ninguém senão eu e minha música. E então você chegou e agora olho para esse meu mundo e estamos nós três. É fácil de ver, de entender.

  — Mas e se eu não quiser? — Ela cruzou os braços. — Tanto faz?

  — Se você não quiser agora, tudo bem. Como disse, não estou desesperado. Nunca lidei com isso, estou deixando as coisas fluírem. — Segurei sua mão. — Mas se você quiser viver um amor, estou disposto a esperar por essa vontade. Quando quiser, você pode me ligar e me chamar para um encontro.

  — E se eu nunca te chamar?

  — Então seremos só eu, minha música e todas as fantasias que criarei sobre nós dois.

  %Emily% abriu um pequeno sorriso.

  — Isso quer dizer que você irá compor uma música para mim?

  — Se você quiser ficar comigo, pode apostar que terei material o suficiente para dezenas de álbuns.

  %Emily% riu um pouco e olhou para os seus pés. Sua mão que estava sendo segurada pela minha retribuiu o aperto.

  — Você sabia que eu gostava de você desde quando éramos pequenos?

  Arregalei meus olhos, pela primeira vez muito surpreso.

  — Demorou longos anos, mas acho que valeu a pena. — Seu olhar encontrou com o meu.

  — Você tem certeza?

  — Muita.

  — Não é a minha fama?

  — O que ela tem a ver comigo? Digo, no que ela me beneficiaria? Honestamente, não é legal ver em meu futuro, milhões de menininhas me perseguindo e opinando se somos ou não um bom casal.

  — Tenho certeza que você fará bom usufruto do que a minha fama trará para sua vida, da sua própria maneira. Além disso, o que importa mesmo, é nós dois estarmos felizes com a relação, não é? Ou devemos colocar minhas fãs no meio de tudo?

  — Quem está tentando convencer o outro de que essa coisa toda — apontou para nós dois — é uma boa ideia?

  Abri um pequeno sorriso e aproximei dela.

  — Acho que é você quem está sendo incoerente.

  — E você quer que eu seja mais?

  — Por favor.

  Sua mão puxou a minha e a outra veio em encontro ao meu pescoço, que uniu nossos lábios em um só, causando um curto circuito indescritível dentro de mim. As borboletas em meu estômago pareciam pássaros fugindo da tempestade e o cérebro travou em pane. Enquanto nossas línguas massageavam a outra, ouvi seu suspiro, o primeiro sinal de que eu a havia conquistado o resquício que a fazia hesitar sobre querer ficar comigo.

  Agora, era só uma questão de tempo até o mundo inteiro saber também.

  Porque eu faria questão de contar para todo mundo.