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#032 Temporada

thoughts i have while lying in bed
The Maine ft. Beach Weather



assunto delicado



Escrito por yasmin albuquerque | Twitter
Revisado por Songfics

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  A chuva bate no telhado da varanda que se estende abaixo da janela em direção à rua, enquanto eles escutam o barulho de dentro do quarto, as pernas entrelaçadas debaixo das cobertas. Luzes apagadas para que não se possa ver o toque - para que ele não mude de significado. Para que ele não tome a densidade que poderia.
  Os dedos ágeis de unhas roídas e pontas descascadas dele fazem desenhos invisíveis nas costas dela, deitada de bruços, cuja blusa está perdida em algum canto do chão lotado de itens que poderiam facilmente compor uma lixeira. Ela suspeita que o pedaço de pano possa estar perto do violão que, assim como a blusa, em algum momento daquela noite serviu para algo.
  Nenhum dos dois diz nada já faz uns bons dez minutos.
  Houve um acordo silencioso da falta de necessidade de se empreender um diálogo pós-sexo. Afinal de contas, todas as coisas que precisavam ser ditas foram substituídas pelo emprego de uma língua em contato direto com a outra.
  É 29 de dezembro. Faltam dois dias para o ano novo.
  Assim como as ruas, os bares e o shopping, do qual saíram não fazia nem duas horas completas, a casa também está vazia. Já é verão e a cidade interiorana sem praia tem o costume de expulsar todos os seus moradores com um calor excruciante quando chega dezembro.
  Todo mundo desistiu de ir de última hora ao cinema, com exceção deles. Concordaram com a solitude e compraram os ingressos. “Já que estamos aqui”, ele havia dito. Fila G, assentos 11 e 12; compra paga no débito. A pipoca ela tombou inteira no chão, após reclamar por minutos do preço. Não conseguiu segurar a própria risada. O beijo veio logo depois disso, após os trailers, nos créditos de abertura. Não era o primeiro deles, mas ela o sentiu diferente. Instantaneamente se perguntou, enquanto virava de lado na cadeira, forçada pelo braço rodeando sua cintura, se ele o teria feito, não estivessem os dois sozinhos.
  Nunca terminaram o filme.
  Escapuliram antes da metade para fora da sala, um acordo tácito ocorrido quando ele conseguiu ultrapassar as camadas de pano que a cobriam em sua busca incessante por pele, tirando a blusa de dentro do short, alcançando sua barriga. Ele pediu o Uber, e ela não disse uma palavra em desacordo. Impaciente, ele fez círculos em sua coxa, com a ponta do indicador, por todo o caminho enquanto o carro dava voltas na cidade em direção à casa dele.
  Um cachorro latiu quando ambos bateram as portas do veículo, descendo na calçada, mas não era dele, pois não tinha mais cachorro - apenas um gato preto, que ela não encontrou em lugar nenhum da casa no caminho para o quarto. Deveria estar pelas sombras, julgando-os.
  A luz do quarto ele resolveu acender, e os olhos dela bateram instantaneamente no violão. “Não sabia que você tocava”, disse. “Tem tempo que não”, ele respondeu. Mas se sentou na beirada da cama segurando o violão enquanto ela encostava a porta. Tocou os primeiros acordes de And I Love Her e ela riu. “Não gosta de Beatles?”, ele perguntou. “And I Love Her e Pais e Filhos são os clássicos clichês de violão que todo mundo aprende a tocar de cara”, ela, que sabia tocar, respondeu. Pegou o violão das mãos dele e se sentou ao seu lado.
  Pensou no que tocaria.
  Escolheu Another Love, do Tom Odell. Um pouco ousada, dadas as circunstâncias.
  Ele não reconheceu a música. Mas ela achou que sim, quando ele segurou suas mãos, a fazendo parar, e tirou o violão do seu colo, trazendo-a para o colo dele.
  Não demorou muito além disso para sua blusa fazer companhia ao violão, no chão.
  Em contrapartida, ele se demorou na expedição que fez sobre o corpo dela.
  Quando seu short fez companhia às outras peças de roupa no chão, perguntou se ele poderia apagar a luz. Nenhum dos dois viu mais nada, e a falta de um dos sentidos aflorou todos os outros, fazendo-os sentir tudo de forma ainda mais intensa.
  Depois de tudo, ali estavam: ela de bruços, pensando em absolutamente nada, e ele apoiado em suas costas, pedindo por favor ao universo e quaisquer forças responsáveis por ele para que ela não perceba o colar em seu pescoço e comece a fazer perguntas.

  Ainda há certo nível de desordem em sua cabeça acerca dos fatos que se sucederam naquele fim de tarde, de modo que aquele momento de silêncio lhe está sendo muito providencial para que consiga formar frases completas e coerentes quando ela resolver ir embora.
  Ele espera que ela eventualmente vá embora; entretanto, não consegue entender se isso é um desejo ou apenas uma conclusão precipitada. Tem pra si que as coisas são assim mesmo, chegam a um fim, eventualmente, e aquela circunstância não haveria por que ser diferente.
  Nem em seus sonhos mais malucos conseguiria adivinhar que as coisas tomariam a proporção que tomaram. Apesar de já terem se envolvido de forma rasa outras vezes, ele pensava não ver nada de especial nela. Não era a mais bonita, muito menos a mais simpática, beirando a arrogância, às vezes. E de todas do seu círculo de amigos das quais ele já havia beijado, jamais esteve nos planos levá-la pra cama.
  Contudo, lá estavam eles.
  Tinha de confessar - ainda que só para si mesmo, dentro da própria cabeça -, que ela lhe pareceu diferente ao virar o corredor do cinema, meio afobada, quase atrasada. Mas o fato de ela de repente lhe parecer mais atraente não era justificativa suficiente para que eles se beijassem antes de dez minutos de filme.
  Fato mesmo é que nada fazia sentido, então buscar justificativas só o levaria a um longo caminho em direção à loucura e ansiedade.
  Ela se mexe, atrapalhando a paz. Ele troca os dedos em suas costas pelos lábios, sem considerar muito se ela interpretará o ato como um convite para um segundo round. Ele não sabe se quer um segundo round, mas a dúvida por si só o faz pensar se a resposta óbvia, então, não seria um belo sim.
   “Um segundo round e, se possível, um terceiro, pois gosto de números ímpares”, conclui, mentalmente.
  Passeia com os lábios para cima, em direção aos ombros, e expõe a nuca arrepiada. Ela continua se mexendo até virar de lado, de frente para ele, os seios expostos, mas quase impossíveis de se enxergar, dada à iluminação indireta vinda da janela. Por dentro, ele entra em alerta; se ela decidir tocá-lo, vai achar o colar.
  É um mistério para si o fato de ela não o ter percebido até então.
  - Que foi, , que você não para quieta? – pergunta, continuando seu passeio pelo pescoço dela, ignorando o sabor de perfume e intencionando descer para o colo, querendo o segundo round e não começar o diálogo pós-sexo cuja formalidade ele achou que haviam dispensado.
  - Lembra da primeira vez que a gente se beijou?
  - Não – ele responde, sinceramente, parando de beijá-la e apoiando a cabeça na mão, virando em sua direção, apesar de não exatamente enxergá-la – Mas lembro daquela quinta-feira meio caótica em que você mordeu meu lábio em frente à mercearia. Acho que considero aquilo um beijo.
  - Muito me surpreende você lembrar disso, pelo tanto que ficou chapado.
  - Um baseado só! – ele eleva a voz, rindo – Que eu ainda tive que dividir.
  - Eu te dividi naquele dia também.
  Era meio verdade.
  Na quinta-feira mencionada eles haviam decidido ser jovens, pela provável última vez antes das provas finais do semestre, e a mercearia mais acima na rua da faculdade tinha preços muito melhores de qualquer item alcóolico do que o bar barra pub para o qual iriam. Fazia parte do ritual de ser jovem economizar o máximo possível nas bebidas – e não se preocupar com o uso ocasional de drogas leves, justamente porque ocasional.
  Ele ainda não havia feito o link mental, mas naquela quinta-feira da mordida no lábio em frente à mercearia ele a havia enxergado com a mesma distinção desse 29 de dezembro. Não havia respostas naquele dia tal qual não há respostas hoje. As mudanças sutis que a acompanhavam e o perseguiam sazonalmente eram um total mistério. Para ambos.
  Todos os outros estavam entre os corredores da mercearia, escolhendo ou pagando, mas ela já estava do lado de fora com um cigarro aceso e uma longneck na mão quando ele abriu a própria cerveja e se aproximou dela. Intencionava coisa alguma além de lhe fazer companhia.
  Não fazia mais ideia do que foi que disseram um ao outro, ou do que exatamente ele viu. Nada efêmero como maquiagem ou o cabelo; era uma energia diferente, simplesmente algo que lhe deu tesão. Mas não tomou atitude nenhuma mediante os próprios instintos. Ela o fez por ele, no final das contas.
  O tal baseado ele dividiu depois com Hannah, a integrante do grupo com questões paternas e acesso precoce à drogas. E Hannah havia visto tudo do caixa da mercearia, toda a aproximação lenta e o sorrisinho mole antes que prendesse o lábio inferior dele com os dentes. Naquela quinta-feira, ninguém sabia de nada, mas Hannah já havia decidido que seria dela. E ela chegou para atrapalhar bem no momento em que a mordida poderia evoluir caso um dos dois resolvesse envolver a língua além dos dentes.
  A mesma Hannah havia lhe dado o colar fazia menos de quinze dias, ao ir embora – o colar do qual ele esperava que ainda não houvesse se dado conta.
  Percebe que se ele considera de fato que aquela simples mordida foi um beijo, então ela realmente o dividiu com outra garota. E não com qualquer uma.
  - Por que não me beijou de verdade naquele dia? – ele fala e logo se arrepende, temendo que a resposta os leve para o assunto que ele gostaria de evitar entrar.
  - Você considerou um beijo – ela responde e ele ri, apertando a cintura dela, trazendo-a para mais perto.
  - Tu me entendeu.
  - Porra, mas eu também tenho que fazer tudo?
  - Hoje eu que fiz.
  - Você fez metade.
  - O quê? – ele soa indignado, e está, de certa forma. Não há THC em seu organismo para culpar ter esquecido a ordem de acontecimentos tão recentes – Fui eu que te beijei depois que você desperdiçou a pipoca inteira.
  - E me beijou por quê?
  Ele congela a resposta automática que seu cérebro desenvolveu na ponta da língua, pra pensar que tipo de resposta deveria dar; que tipo de resposta ela queria ouvir pra fazer aquela pergunta naquele tom. Tenta enxergar as coisas de outro ângulo, aumentando a superfície de contato, puxando-a de modo que ela fique embaixo dele, testando o terreno. Ela não reage em oposição; encaixa as coxas ao redor do quadril dele e as mãos em suas costelas. É sinal suficiente.
  - Porque eu quis.
  E, porque agora ela quer beijá-lo também, o faz, do jeito que ele considera ter sido o primeiro, mordendo seu lábio inferior um pouco mais forte do que o esperado. Mas ele não liga, recepciona bem a dor leve, o desafio no ato.
  - Fez metade porque eu quis também.
  Ele não discorda. Enquanto ela desce uma das mãos por entre o corpo deles, ele esquece de qualquer colar e de Hannah e da dúvida de quando foi o primeiro beijo de fato. “Segundo round, finalmente!”

  - Não te beijei de verdade naquele dia porque você não queria que eu fizesse isso.
  Ela quebra o silêncio e o pega de surpresa. Deitado de costas, observando o ventilador girando em sentido anti-horário, ele olha para baixo, enxergando o topo da cabeça dela, que nem ao menos olha pra cima enquanto lhe tira as esperanças de um terceiro round com uma só frase.
  - Oi?
  Apoiada em seu peito, ela se levanta, os olhos de cílios pequenos que fixa nos dele, que engole seco e espera que ela repita a frase, porque de fato não a entendeu direito. Quem ela acha que é pra dizer o que ele queria ou não queria em um momento tão específico tantos meses atrás?
  - É verdade, você não queria – ela se senta ao seu lado com as pernas cruzadas, a coberta rodeando seu quadril, o tronco todo exposto. Ele não consegue evitar pensar que é desconcertante o quão confortável ela demonstra estar sem roupa na sua frente, apesar de ser a primeira vez de ambos juntos naquelas circunstâncias, zero intimidade anterior adquirida.
  - Você não pode afirmar isso. Eu não posso afirmar isso!
  Do jeito que está ela permanece, sentada olhando pra ele, sem dizer mais nada. Ele se pergunta se ela já viu o colar, se o olhar desceu sem que ele percebesse – afinal de contas, está escuro. Ou até mesmo se ela já havia se dado conta dele antes, enquanto ele estava concentrado em entrar e sair do corpo dela no ritmo certo para não desandar a coisa toda cedo demais.
  Sendo racional, ele sabe que ela não tem como entender todo o peso e significado que o colar tem só pelo olhar.
  É um cordão vagabundo; uma corrente fina de aço com um pingente de dois por dois centímetros de uma peça de quebra-cabeça. No verso do pingente, encostado na sua pele para que o entendimento não seja coletivo, para que só ele seja capaz de dar significado ao colar, está a letra H. Ela não poderia fazer a menor ideia de nada que envolvesse a peça, então por que ele não parava de pensar naquilo desde que entraram no carro e a perspectiva de tirar as roupas se tornou real?
  Das coisas que ele sabe sobre ela, é que ela é perspicaz e observadora. E que se ela diz com a convicção da certeza de que ele não queria beijá-la naquela quinta-feira na mercearia, o faz porque percebeu dessa forma. Porque ele a fez perceber dessa forma. E se ela percebeu algo daquela natureza sem que nada nesse sentido fosse dito, sabe-se lá que outras coisas ela havia percebido sobre ele e a pessoa com a qual o dividiu naquela noite.
  - Por que diz isso? – ele pergunta, não apenas porque quer entender, mas porque se vê incomodado com o silêncio e com a postura inalterada dela.
  - Porque se quisesse, tal como hoje, teria feito - o fato dela estar certa não tira de si a vontade de retrucar, mas ele não tem muito o que dizer a partir daquela resposta. Ela percebe, e continua – Você já queria a Hannah e eu ia atrapalhar.
  Ela certamente sabe do colar, ele tem certeza.
  - Desculpa – ele diz, meio incerto, só porque não sabe o que dizer, apesar de achar que desculpas não são cabíveis no momento.
  - Pelo quê? – ela pergunta, enquanto levanta a coberta e passa a perna direita por cima do quadril dele, sentando-se sobre suas coxas. Ele fica ainda mais confuso pensando que tudo o que ela diz indica que vai se levantar e ir embora a qualquer momento, enquanto tudo o que ela faz o leva a acreditar que estão a segundos de iniciar o terceiro round.
  - Você tá me deixando confuso.
  - Por quê?
  Ao questioná-lo novamente, ela inclina o corpo para frente, apoiando os lábios sobre o peito dele, a centímetros do pingente. Após uma pausa, começa a beijá-lo em direção ao pescoço.
  - Porque tá falando de um assunto delicado enquanto...
  - Enquanto quero te deixar duro de novo – ela o corta, mordendo a ponta de sua orelha, no que ele segura os quadris e a puxa para frente, intencionando que ela fique mais perto de sua ereção, perdendo completamente o foco – Qual o problema?
  Os dedos dele puxam os cabelos dela, a trazendo para a sua boca, beijando-a com fogo, com foco no terceiro round, mas ela não permanece em seus lábios. Ele começa a achar que a intenção dela não é outra a não ser deixá-lo maluco.
  - O assunto delicado é ela, não é?
  Ele se ergue, sentando-se, aproximando-a ainda mais do seu quadril, querendo tirar o foco da conversa dela como ela faz com ele com tanta facilidade, mas ao mesmo tempo aceitando que se ela parece falar com naturalidade sobre aquilo, não vai ser ele a pessoa a criar caso.
  - Sim – ele morde o lábio inferior dela e pensa que eles parecem sempre voltar até aquele lugar de não saber o que o outro quer, mas estarem dispostos a cruzar uma linha invisível para dar o que quer que seja – Isso te incomoda?
  Ele desce os beijos por seu maxilar, seu pescoço, sua orelha. Ela puxa os seus cabelos e torce os quadris, fazendo com que ele a sinta inteira sobre si.
  - Não. Eu tô aqui enquanto ela é só uma coleira no teu pescoço – ele para de beijá-la e ela puxa seus cabelos com mais força, rebolando em seu colo. Ele sente que sua cabeça vai dar pane a qualquer minuto, enquanto seu corpo exige coisas que ele não tem concentração suficiente para prover. Ele levanta a cabeça e a olha nos olhos.
  - Eu não sou um pet.
  - Ela sabe disso? Você avisou, quando ela foi embora e te deixou só com um cordão no pescoço?
  Ela está sendo inacreditavelmente venenosa, mas ele não consegue evitar interpretar além da maldade explícita no que ela está dizendo. Há um fundo de verdade ali.
  Não haviam sido nada sérios, ele e Hannah, embora ele tenha mantido apenas ela como parceira após alguns meses. Por causa disso, muito provavelmente, para todo mundo eles pareceram algo sério, já que se tornaram exclusivos. Pelo menos em se tratando de si mesmo ele poderia afirmar aquilo. Nunca se preocupou de fato se era exclusivo para ela também.
  Tudo começou com o baseado dividido naquela quinta-feira, o que era muito irônico considerando o tempo presente e o diálogo que acabara de ter com . Eles se afastaram do pessoal por alguns minutos, até a rua escura mais próxima, só para fumar, e quando retornaram, eles já haviam se beijado muito mais do que dividido o cigarro, e ela já exercia alguma espécie de domínio sobre ele, que todos perceberam e ninguém ousou comentar.
  Fora muita coisa acontecendo muito rápido e ele se deixou levar porque ela era bonita, interessante e problemática, o tempero especial que ele adorava - que definitivamente não tinha. E então, do mais absoluto nada, sem nenhum aviso prévio, menos de vinte dias atrás, ela o informou que mudaria de estado, até mesmo de região, e de forma definitiva.
  Lembra muito claramente de ter refletido naquela mesma cama, olhando para o mesmo ventilador girando em sentido anti-horário, se sentiria falta dela – e a reflexão ter vindo de forma muito mais natural do que a falta em si já lhe disse muita coisa. Tanto que não pensou em dar nenhum tipo de presente de despedida pra ela, mas ela lhe deu o colar.
  Sobre o colar ele não refletiu; lhe pareceu só um presente simples, só um “vou lembrar de você, lembre de mim de volta”, porque um relacionamento que não era estabelecido não seria estabelecido às vésperas de uma mudança, e nem se sustentaria à distância se permanecesse livre de rótulos. Deixou que ela colocasse o cordão em seu pescoço antes de atravessar o portão de embarque e, sem que pensasse muito sobre, não o tirou mais.
  Agora estava sendo confrontado com a hipótese de o colar ser uma coleira, e o mais impressionante de tudo foi que não achou a comparação absurda de imediato.
  As coisas que a mente não desenvolve reação instantânea dificilmente são aquilo que acreditamos ser.
  - Eu queria você antes dela – novamente ela quebra o silêncio. A afirmação não o surpreende; sente que sempre soube disso.
  - E ela sabia – não era uma pergunta.
  - Sabia – ela envolve os ombros dele com os braços e encosta sua cabeça entre seus seios, tocando os lábios em suas têmporas – E também sabia que eu não ia tentar nada se ela tentasse primeiro.
  - Mas você tentou primeiro – ele diz, a voz meio abafada, os lábios encostando na pele dela ao passo em que as palavras saem.
  - Você não me beijou de verdade.
  Então era mesmo uma coleira.
  - Como você sabia do colar? – com as mãos em sua cintura ele a puxa para trás, buscando seus olhos.
  - Todo mundo sabe.
  - Não é possível – ele acha absurdo o que ela diz, sabendo bem que não contou a ninguém sobre o colar porque, gostasse ou não da verdade, sentia certa vergonha de deixar pendurado em seu pescoço um objeto que não significa nada para si. Ao mesmo tempo, sentiu um peso muito grande na consciência ao cogitar tirá-lo e deixá-lo guardado no armário, até ser irrevogavelmente esquecido.
  Muito em breve Hannah também não significará mais nada, ele sabe. É o caminho comum, já que não existe certeza se ela um dia irá voltar.
  - No dia seguinte ao que ela foi embora você, que nunca usou nada, nem relógio, apareceu com um cordão no pescoço. Foi muito óbvio.
  Ela afasta as mãos dele de sua cintura e faz menção de sair de seu colo, o que ele não permite, apertando-a de volta sobre si.
  - Não é um assunto delicado, exatamente.
  - Então o que é? – ela pergunta e aguarda, em silêncio, as mãos cruzadas atrás da cabeça dele.
  - Aí é que tá – ele suspira. Teme que o que quer que vá dizer soe tão confuso quanto é confuso em sua cabeça – Eu sinto que era pra ser um assunto delicado, porque foi quase um ano, mas deixei de sentir saudades na mesma semana. Parece que ela se mudar só antecipou um fim que era muito óbvio. Na real usar o colar me traz culpa, mas ela tem sido bem-vinda.
  Ele consegue ver seu rosto, uma pequena fração dele, através da luz da janela. Os olhos brilham, mas é só pela luz, ele sabe. Afora isso, não consegue absorver mais nada; nem ao menos sabe que expressão ela ostenta enquanto respira de forma inalterada nua sentada em seu colo.
  Quando o silêncio começa a lhe incomodar, começa a contar de forma decrescente a partir do número cem. Antes de chegar a quarenta já se sente ansioso. Move os braços, soltando-os da cintura dela, apoiando as mãos em suas coxas, sem querer quebrar contato. Ela continua sem reação.
  - Fala alguma coisa – pede, baixinho, sem coragem de ouvir qualquer coisa, mas achando aquilo tudo meio insustentável.
  As mãos dela se prendem em sua nuca e ela se aproxima, encostando a testa na sua, respirando fundo contra seus lábios. Ele se sente nervoso e não entende por que – não sente no peito ser algo inepto como apenas receio de não conseguir o terceiro round.
  - Eu não sou uma substituta.
  - Eu jamais – ela avança e morde seu lábio, o impedindo de continuar a frase.
  - Fica quieto. Eu não sou uma substituta pra enquanto você não descobre se ainda sente alguma coisa ou não. Tá confuso ou apreensivo, procura uma psicóloga. Ok?
  - Ok – ele responde uma vez que ela se cala – Você quer ir embora?
  - Tá me expulsando?
  - Porra, para com isso – ele afunda a cabeça na curva de sua clavícula e sente a barriga dela tremer enquanto ela ri às custas de sua agonia.
  - Você quer que eu fique? – ela pergunta, fazendo um carinho leve em seu couro cabeludo.
   a beija esperando que seja o suficiente para que ela entenda como um sim, mas suspeitando de suas habilidades em se fazer ser entendido, decide acrescentar:
  - Quero.

Fim