Aquela do Médico

Escrito por Marcela Marche | Revisado por Mariana

Tamanho da fonte: |


  “Você tem dois meses de vida”, foi o que ouviu da boca de seu médico há quase 50 dias. Desde então, o tempo tinha passado rápido como nunca, enquanto ela procurava fazer tudo o que não pôde por medo até então. Entre uma sessão de check up e outra, ficava o máximo com sua família e amigos, em uma tentativa desesperada de não fazê-los sofrer quando se fosse, guardando tantas memórias e lembranças quanto pudesse de bons momentos, de felizes momentos.
  As pintinhas que surgiram em suas costas pareciam nada no início, uma alergia qualquer talvez. E passaram despercebidas por meses, até que, enquanto esperava seu pedido ficar pronto em uma cafeteria qualquer do bairro, um homem com seus trinta anos a abordou perguntando sobre elas. “Já checou se são alguma coisa?”, ele perguntou. “Imagina,”, ela respondeu, “não devem ser nada”.
  Acabou que o sujeito era médico, oncologista, para ser mais exato. Ele se apresentou como Doutor , e embora pedisse que ela não se alarmasse, ofereceu uma consulta de graça para que ele pudesse examinar melhor as tão inocentes pintinhas. Ela achou tão desnecessário tal procedimento que concluiu que ele só podia estar dando em cima da mesma. E, bem, ele não era de se jogar fora. Acabou concordando.
  Uma semana depois, o mesmo doutor a ligava em casa dizendo ter os resultados dos exames, e pedindo para que se visse para conversar. achou uma graça, “Deve ser uma desculpa para marcar um encontro comigo”, comentou com as amigas. Nunca resistiu a um homem lindo daquele tanto, e tímido na mesma proporção, ao que tudo indicava. Por fim aceitou ir até a mesma cafeteria onde se conheceram.
  Lá recebeu a notícia que mudou sua vida. Não eram apenas pintinhas. Era um melanoma, um câncer de pele bastante avançado e com chances de cura praticamente nulas. não pôde acreditar. Só podia ser brincadeira! Aquele cara achava que podia entrar assim em sua vida e simplesmente arruiná-la? Ela não sentia nada na região, coceira, ardência, nada, como podia ser um câncer então?
   esperou pacientemente o descontrole da mulher cessar. Estava acostumado a reações do tipo quando dava notícias como aquela. Claro, o fato de ter simplesmente a arrastado ao consultório piorava as coisas. Ela não tinha suspeitas como seus pacientes normalmente tinham ao procurá-lo. Isso agravava um pouco as coisas.
  Fato é que aquilo estava acontecendo, e não tinha como voltar atrás. recusou sequer tentar os tratamentos, alegando que preferia viver ao máximo e morrer sem arrependimentos ou vontades do que adiar um pouco a morte de fato, mas vivendo precariamente até lá, toda debilitada por quimio e radioterapia. a entendeu, apoiou, e prometeu estar com ela a cada passo do processo, o que a tranquilizou e muito. Ele, como todo médico, era sereno e racional, e passava uma calma que achava incrível. Ela que sempre fora agitada ao extremo adorava estar perto do homem, pois tinha a sensação do tempo estar passando mais devagar.
  Quarenta e oito dias depois do ultimato, estava se dirigindo mais uma vez para se consultar com . Ele fazia questão de vê-la a cada três ou quatro dias, já que ela não estava em tratamento e seu tumor se enraizava rápido, pensava que assim teria mais controle das coisas. Mas as melhores e piores coisas das nossas vidas são sempre inesperadas. E foi por isso que, naquela quinta-feira de manhã, deu entrada no hospital para ser internada. Ela, que nunca tivera dores ou incômodos, acordou com o coração batendo forte e uma queimação fortíssima na base da coluna. Era isso. Estava começando.
  Entraram com analgésicos quase que imediatamente. agradeceu em qualquer prece, sentindo em poucos minutos a dor passar. Agora já praticamente sentia-se normal, visto que seus sintomas estavam sob controle. Mas sabia que aquilo não duraria. Tinha plena noção que seu estado agora era irreversível, que sua entrada no hospital não tinha saída marcada. Ou, ao menos, não viva.
   correu para o quarto da garota assim que soube. Sequer a cumprimentou e já foi pegando seu prontuário em mãos, avaliando se estava tudo certo e quais eram as perspectivas dali para frente. Seu rosto bonito contorceu-se em uma careta desanimada que não condizia com a expressão imparcial que um médico deveria ter frente a tal situação. Havia sido inevitável.
  , atenta a tudo que se passava naquele quarto e mais ainda a qualquer coisa que tivesse a ver com o rapaz, tratou de distraí-lo da tristeza inerente.
  - Sabe, doutor... – Começou captando rapidamente a atenção do rapaz para si. - Quando você veio falar comigo pela primeira vez eu achava que estava querendo me cantar, mas tinha vergonha. Achei isso uma graça em você. – Ele a olhou com a feição perdida, preso, talvez, no dia fatídico na cafeteria no fim da rua.
  - Não é de todo mentira. Eu comecei a reparar em você por conta da sua beleza e espontaneidade, e estava mesmo pensando em me aproximar e te chamar para sair. – Disse contrariando totalmente a imagem de timidez que ela tinha dele e a dando uma sensação boa de completude. - Mas então... as manchas tomaram a minha visão, e meu instinto médico falou mais alto. Foi inevitável.
  - Entendo. – Sentenciou, não querendo que ele se sentisse culpado. Ela preferia ir tendo a possibilidade de ter dado todos os seus adeus, e a preocupação dele proporcionou isso a ela. - Quer dizer que me acha bonita, ? – Completou procurando voltar para o mesmo clima descontraído de paquera do qual sentia falta.
  - Não sei se já te informaram, mas aqui no hospital temos uma política de satisfazer vontades dos pacientes terminais. – Ele disse em busca de mudar bruscamente o rumo da conversa que levavam. Ela, no entanto, não só não aprovou a atitude como se perguntava o porque de desejar tanto que ele correspondesse alguma das suas investidas. - Uma comida favorita regada a bastante sal e sobremesa com muito açúcar, mesmo para diabéticos e cardíacos, visitas fora do horário, acesso ao jardim de inverno... Tentamos deixar os últimos dias das pessoas mais agradáveis. – Continuou. - Você pode escolher o que quiser, , e é minha obrigação satisfazer seu desejo.
   pensou. Pensou como há dias não fazia. Avaliou prós e contras, colocou na balança, elaborou e planejou. Totalmente incoerente com seu jeito impulsivo, a atitude a seguir da garota não teve nada de impensado. De fato, era a fala mais mentalizada por seu subconsciente nos últimos tempos, e ela não estava em posição de argumentar consigo mesma sobre as impropriedades de fazer um pedido daquela magnitude, de modo que simplesmente disse:
  - Eu quero você, Doutor.
   piscou atônito por minutos a fio. Parecia não confiar no que seus ouvidos tinham captado, tampouco na mensagem que seu cérebro havia decodificado.
  - Como? – Perguntou para ter certeza. A voz falhara terrivelmente, mas como admitir que havia entendido o pedido da moça era infinitamente mais perturbador, não se importou com isso.
  - Você escutou bem. – Ela reafirmou, apenas para assistir mais uma série de caretas confusas se formarem do rosto bonito do médico. Suspirou e ajeitou a posição na cama. - Preste atenção, deixe-me explicar. – Começou, fazendo-o acenar brevemente e sentar-se ao lado dos pés da garota. - Desde que me deu a notícia que eu iria morrer, doutor, procurei fazer tudo que me dava vontade, procurei viver tudo aquilo que não me permitia antes por medo ou insegurança. E fui bem sucedida na minha empreitada. – Permitiu-se abrir um sorriso calmo em sinal de satisfação, logo sendo imitada por ele, como se o içar de seus lábios fosse imantado ao dele. Então tornou a ficar séria. - O único desejo que não pude realizar nesse tempo foi o de me sentir amada, . Amada como mulher, como amante, com paixão, sedução, sensualidade. Nunca tive esse tipo de vínculo com um homem, nunca confiei em nenhum a tal ponto, pois estava sempre esperando o dia que me deixariam na mão para sofrer. Pela primeira vez, eu sei que não haverá tempo para ser desiludida, e mais do que isso, pela primeira vez conheci alguém que posso afirmar com todas as letras ser alguém a quem confio minha vida. Você se mostrou preocupado, se mostrou tão cuidadoso e arrisco dizer até mesmo carinhoso, me tratou como eu nunca fui tratada. Você nunca foi simplesmente meu médico, foi um amigo e companheiro, nunca me cobrou um dólar, nunca elevou a voz, e agora, quando entrou aqui, parecia tão perturbado de simplesmente considerar minha partida... Esse é meu último desejo, doutor. Eu quero que me ame. Que me faça sua. Mais do que eu já sou.
  Aquilo bastou de explicação para , que mais do que nunca estava encantado com a força daquela garota aparentemente frágil. Ele levantou-se em direção a porta, procurando evitar o olhar de para não ver sua face decepcionada achando que ele a deixaria. Ele girou a chave na porta do quarto privativo e inalou uma grande quantidade de ar para dentro de seus pulmões, em uma tentativa falha de acalmar seu coração acelerado. Então virou-se de frente à encantadora paciente e olhou fundo nos seus olhos, caminhando calmamente de volta à cama até sentar-se na beirada perto das coxas de .
  Ele acariciou o rosto suave com precisão cirúrgica, procurando gravar os traços realizados dela em sua mente. Ela agarrou seu pulso trazendo-o para alcançar seus lábios em um beijo cálido na palma da mão do rapaz que fechou os olhos imitando-a.
  Ele inclinou-se brevemente, fazendo o caminho que antes seus dedos faziam com a ponta do nariz pelo rosto rosado da garota que permanecia sem olhá-lo, dando prioridade às sensações que a delicadeza do homem causavam em si. Então seus lábios se roçaram. Uma, duas, cinco vezes. A textura suave e levemente úmida dos dele em contato com os ressecados dela, o hálito másculo de menta com o aroma floral característico da garota.
  Quando suas bocas enfim se uniram em um selinho apertado, não houve mais espaço para a calma. Os dois sentiam necessidade um do outro, de se pertencerem, de sintonizarem na conhecida frequência cardíaca acelerada primordial ao amor. Por isso, tão logo se desgrudaram já estavam encaixados novamente, as línguas entrando em cena para deixar a cena mais íntima e intensa.
   alcançou uma mão em direção aos controles da cama, a fim de abaixar o encosto até estar deitada. No processo o medidor de pulso atado ao seu dedo indicador desprendeu-se e caiu no chão, causando um barulho imperceptível na opinião do casal. não perdeu tempo ao juntar-se à sua querida paciente, deitando-se parcialmente ao seu lado, parcialmente sobre si.
  O ar mal adentrava seus pulmões e já os deixava em lufadas altas de puro agrado, o beijo jamais sendo interrompido e as mãos, enfim, iniciando o processo de exploração do corpo alheio. Ele, não importava o quanto entregue, ainda se punia por desejar apertar vigorosamente a coxa semi-exposta da garota, e por isso mantinha seu toque na região da cintura dela. Ela, por sua vez, nada temia, estava entregue de tal modo que hesitação não houve ao embrenhar os dedos no cabelo sedoso do oncologista e ao empurrá-lo mais em sua direção pelo alto da lombar.
  Notando que a animação do homem começara a dar sinais de vida, não teve dúvidas ao passar as pernas ao redor de seu quadril. Queria senti-lo, queria poder notar o quanto ela fazia efeito nele, o quanto ele a desejava e a queria para si. começava, por fim, a ter seu desejo atendido.
   desceu as mãos pelo corpo delicado dela, venerando cada miúda parte que seus dedos contornavam. Ela encarregou-se de livrá-lo do jaleco, da camisa social e das calças que pesavam seu corpo. Ele não havia se dado conta de nada disso até estar nu em pelo sobre ela, que tinha a camisola do hospital elevada o tanto quanto necessário. Então, teve medo por ela. Ela devia estar descansando, ele devia estar providenciando os melhores cuidados para ela. Aquilo era certo?
  Bem, havia sido ela a pedir por aquilo. Olhando em seus olhos brilhantes, ele foi incapaz de encontrar qualquer traço de arrependimento ou temerosidade. Deixou-se contagiar pela certeza dela, segurando seu membro em uma das mãos e apontando-o à entrada da garota. Uniu suas testas ao que forçava sua intimidade devagar contra a dela. Viu quando cerrou os olhos apertados e pressionou um lábio contra o outro em uma típica careta de desconforto.
  - Eu não quero te machucar. – Disse, fazendo menção de retirar-se da intimidade quente e pulsante dela.
  - Você vai se desistir. – Ela respondeu, então abraçando-o pelas omoplatas e trazendo-o para mais perto, de modo que ele encostasse brevemente os lábios na testa suada da amada e então se deixasse perder entre suas pernas.
  “Amada?”, ele pensou. Ah, sim, amada. Há muito não sentia tudo que aquele pequeno pedaço de gente havia lhe proporcionado em tão pouco tempo. O envolvimento dos dois era irreal, e ainda assim tão necessário que ele por várias vezes se pegava questionando as decisões e procedimentos médicos a que pudesse submetê-la, quase como se duvidasse que as forças superiores fossem realmente banir do mundo tamanha beleza e vivacidade.
  Ela o encantava por ter a força e a coragem de acatar o destino como ninguém, por ter demonstrado a fé e o amor que nenhum ser humano entenderia, por abrir o mais lindo sorriso quando tudo definitivamente não eram flores.
  Deixando tais pensamentos inundá-lo, prolongou o momento o quanto pode apenas para ter a sensação de estar conectado à ela mais tempo, para ouvir e sentir seus gemidos sôfregos ao pé do ouvido, para deliciar-se com o calor que todo o corpo dela emanava e cada grau que elevava do seu próprio no mínimo toque. Por fim, encontrava-se exausto, satisfeito e completo, como nunca.
  - Eu... acho que amo você, . – Ele murmurou com o fim de voz que lhe restava, expondo aquilo que já habitava seus pensamento há algum tempo. Estranhando o silêncio que se seguiu à sua declaração, levantou vagarosamente o rosto do pescoço úmido e perfumado da mulher, esse esforço já sendo mais do que ele gostaria de fazer naquele estado pós atividade física, para encontrar seu rosto.
  Os olhos da garota estavam fixos no teto, mergulhados em lágrimas agradecidas, um sorriso realizado estampado em seus lábios congelados. Ela não piscava. Seu peito não esboçava sinal de subida e descida. havia partido.

FIM



Comentários da autora


Obrigado por ler, e volte sempre!