Aproveite a Viagem

Escrito por Annelise Stengel | Revisado por Lelen

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"A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse:
“Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre."

José Saramago

  Ela entrara no ônibus depois de mim. Seus olhos me analisaram por alguns segundos antes de ela se sentar no banco da frente. Tudo o que eu conseguia ver dela no momento era o topo de sua cabeça, mesmo assim só uma parte dele porque ela era um pouco baixa. Só que o tempo que ela passara de pé em minha frente fora necessário para que eu a analisasse.
  Ela era, como eu já disse, não muito alta. Olhos . Cabelos mas não muito, e . Uma blusa laranja com os dizeres "ALL YOU NEED IS ME' em branco, e uma bolsa ligeiramente grande.
  Típica menina de viagem de ônibus para o interior.
  A garota teve alguns problemas com a poltrona e eu pensei em ajudá-la, mas então ela ajeitou-se rapidamente. Fones saíam de seus ouvidos (bem, não exatamente saíam, deu pra entender) e ligavam-se a um pequeno iPod, parecido com o que estava no meu colo.
  Ela aquietou-se bem na hora que o ônibus saiu, e eu recostei-me e passei a observar a paisagem.

  Era uma viagem de três horas. Tinham se passado 15min e eu estava morrendo de tédio. Encarava mais meus olhos azuis no reflexo do vidro do que a paisagem familiar. All Time Low tocava lentamente em meu iPod, porque era Therapy. Eu provavelmente dormiria em questão de segundos se a pessoa sentada à minha frente não fizesse um movimento brusco e segundos depois me encarasse com seus grandes olhos . Pausei o iPod, assustado.
  - Oi! - ela disse, sorrindo de uma forma fofa. - O que você está ouvindo?
  Foi isso. Nada de "como você vai?" ou "meu nome é Fulana". Simplesmente "o que você está ouvindo?". Fiquei tão embasbacado com a pergunta que tudo que fiz foi continuar olhando em seus olhos. Ela os rolou.
  - No iPod, pessoa. - ela apontou. - Não estou falando de barulhos sobrenaturais nem nada do tipo. - sua risada foi breve e ela continuou sorrindo e me encarando.
  Percebi que deveria responder.
  - Ah! - corei. - Eu estava ouvindo All Time Low, mas a essa altura já acabou a música. É The Script agora. - falei.
  A garota pareceu satisfeita com minha resposta e estava prestes a se sentar novamente quando eu lhe fiz uma pergunta.
  - Qual o seu nome? - culpem o tédio.
  Surpresa, ela interrompeu-se no meio do ato de se virar e voltou a sorrir largamente para mim.
  - . E o seu? - ela apoiou os braços nas costas da poltrona.
  - . - sorri, e levantei a mão como se fosse acenar para ela. .
  - Garota, sente-se direito! - alguém gritou e ela corou, fazendo uma careta e virando-se para frente.
  Pensei que ia voltar a ser acometido pelo tédio, até o momento que algo - que definitivamente era maior e mais pesado - voou por cima do banco e me acertou. Segundos depois, havia materializado-se ao meu lado, retirando sua bolsa de cima de mim e checando minha respiração, o que me fez rir.
  - Desculpe. - ela fez uma careta.
  - Está tudo bem. - massageei onde a bolsa acertara. - Então você vai ficar por aqui mesmo? - arqueei as sobrancelhas, admirado com sua espontaneidade.
  - É. Algum problema? É que dificilmente as pessoas me respondem quando pergunto algo aleatório pra elas, você é legal. - ela cutucou meu ombro, sorrindo. Sorri também.
  - Bem... sinta-se à vontade então.
  - Obrigada! - devia ter dor nas bochechas, de tanto que ela sorria. Mas não me importei. - Então, - ela enfatizou meu nome de um jeito engraçado e eu não consegui segurar meu sorriso. - o que te leva ao nosso destino?
  - Visitar meus avós. Fim de semana com os primos. - fingi uma cara animada, mas ela arqueou as sobrancelhas, provavelmente não acreditando em minha atuação. Desisti. - E você? Família também?
  - Não, na verdade o meu é um pouco o contrário. - ela finalmente parou de sorrir e ficou pensativa. - Estou meio que fugindo dos meus pais.
  - Uh. - falei. Aquilo era inesperado. não parecia uma adolescente revoltada e rebelde que odiava os pais. Mas, como nunca se sabe, aparências enganam.
  - Não é do tipo fugir de casa, realmente. - ela rolou os olhos. - É só que, ah. Eles conseguem ser tão chatos. Então eu simplesmente saio de lá. Escolho um lugar aleatório na ferroviária ou na rodoviária e vou. Às vezes até pego um avião.
  - Sozinha? - admirei-me. Ela deu ombros.
  - Eles são ocupados demais pra me levar pra qualquer lugar mesmo. Até se quisessem. - explicou, e eu me interessei. Talvez não fosse ser uma viagem chata de três horas.
  - Mas eles não se importam de você ficar pegando o dinheiro e indo pra esses lugares?
  Pensei se minha mãe deixaria eu fazer isso, mas ela provavelmente me mataria. Sair de casa assim, o que parecia fazer com frequência, não daria certo.
  - Pf. Eles ficam até felizes que eu gasto o dinheiro deles de alguma forma. - ela pareceu irritada e eu pensei que talvez fosse melhor eu não continuar nesse assunto. - Desculpa, é só que meus pais são super ricos e adorariam que eu me esbanjasse no dinheiro deles. Mas eu realmente não ligo. E eles me atormentam tanto algumas vezes que viajar é unir o útil ao agradável. - ela disse, e eu acenei com a cabeça, entendendo. Quer dizer, tentando entender. Eu não conseguia imaginar uma vida daquelas.
  - E então, você simplesmente vai? - perguntei, analisando brevemente a paisagem ao meu redor. me cutucou e eu voltei a olhá-la.
  - O mundo todo está lá fora esperando por você. Não espere que ele vá até você. Porque ele não vai. Não espere demais, você pode acabar perdendo o melhor momento da sua vida. - ela disse, sorrindo de uma forma misteriosa e eu concordei com a cabeça.
  O que, foi profundo.
  - Você gosta de ler? - ela perguntou, do nada, abrindo a bolsa enorme dela.
  - Er. Não muito. - confessei, observando ela tirar um livro. Ela estendeu-o e pude observar o título. - Alice no País das Maravilhas?
  - É. - deu ombros. - É bem interessante. - ela começou a folheá-lo. Parou numa página, analisou-a, mas resmungou e continuou virando as folhas brancas. Eu apenas observava aquela garota. - Aqui! - ela exclamou, depois de repetir o processo umas três vezes. Estendeu o livro para mim e eu peguei-o, sem saber o que fazer. - Leia esse trecho.
  - Ok. - pigarreei, confuso. - "Um dia Alice chegou numa bifurcação na estrada e viu o Gato de Cheshire em uma árvore. 'Qual caminho eu devo tomar?' ela perguntou. 'Para onde você quer ir?' foi a resposta dele. 'Eu não sei', Alice respondeu. 'Então,' o gato disse, 'isso não importa realmente'."
  Levantei os olhos para , surpreso, ela só corou e deu ombros, sorrindo de lado.
  - Para onde você quer ir, ? - ela perguntou com voz doce, e eu não fiz mais nada além de devolver-lhe o livro e suspirar.

  - Não acredito que está chovendo. - e então ela se jogou por cima de mim para grudar seu rosto no vidro. Recuei ligeiramente, para não parecer que estava me aproveitando dela ou algo do tipo.
  - É. Espero que não esteja chovendo quando eu chegar na casa dos meus avós. - resmunguei. Ela voltou a se sentar, parecendo desanimada.
  - Que droga... - comentou, franzindo o nariz. Bufou e ajeitou-se na poltrona.
  - Qual é o grande problema da chuva? - perguntei, passando o dedo na janela que começara a ficar embaçada e desenhei uma coisa tosca e completamente abstrata, já que minhas habilidades de desenho não eram muitas.
  - Ela molha. - disse, espertamente. Rolei os olhos e encarei-a com toda a ironia que conseguia colocar no olhar. Ela deu ombros, arregalando ligeiramente os olhos. - O que? Eu ainda tenho que caçar um hotel pra ficar, e fazer isso na chuva não é legal.
  - Você não tem um lugar pra ficar?! - perguntei, espantado. - Que imprudência!
  - Desculpe, mamãe. - ela ironizou. - Imprudência? Que tipo de pessoa usa imprudência numa frase? De que século você é por acaso?
  - Ah, cale a boca. - empurrei-a levemente e ela deu língua. - Você é doida de ir assim, sem plano nenhum. Bem feito que vá tomar uma chuva danada.
  - Puxa, obrigada. - fez joinha. - E planos são para pessoas que não sabem aproveitar o improviso, que não sabem aproveitar o que a vida proporciona naquele momento. Pessoas como você. - ela me cutucou, e machucou! Trinquei o maxilar.
  - Puxa, obrigado. - imitei-a, com direito a voz de falsete. Ela bufou e ia me bater, mas então comecei a rir e ela não se aguentou, começando a rir também.
  Você pode ter percebido como em uma hora de viagem, sem conversar muito ou sobre algo sustancioso, nós tínhamos nos tornado bons amigos. era engraçada e espontânea, e eu admito que estava gostando da companhia dela.
  - Se ainda estiver chovendo quando chegarmos lá... - falei, depois que paramos de rir. Ela me olhou. - Posso ver com meus avós de você ficar em casa, sabe. Não acho que terá problemas. - ofereci, e ela sorriu largamente. - Digo, até parar de chover e você poder ir viver seus momentos instantâneos. - fiz gestos com a mão, e ela riu de mim.
  - Espontâneos, idiota, e não instantâneos! - ela disse rindo. Mas depois apenas me olhou sorrindo largamente. - Obrigada pela oferta, . Pensarei no seu caso.
  - Tudo bem. Mas saiba que você ficará no estábulo. - avisei-a.
  - Não vou não! - ela fez uma cara ultrajada e me empurrou.
  - Claro que vai. Não temos espaço pra você na casa, e eu já vou estar fazendo um favor de te abrigar na chuva.
  - Não vou dormir no estábulo, ! Vou dormir no seu quarto! - ela disse, sorrindo de um jeito estranho e eu parei o ataque de riso sem antes mesmo começá-lo. Eu ouvi direito?
  - Como é? - ela gargalhou, provavelmente da minha expressão surpresa, e só depois de um ou dois minutos consegui minha explicação.
  - Dormirei no seu quarto. E você no estábulo. Sou visita, mereço conforto, comida e carinho! - ela fez um bico e eu senti as células do meu corpo se aliviarem.
  Não é como se eu quisesse que ela ficasse mesmo no meu quarto... comigo lá. Era?
  - Sei, merece. Merece é uns tapas, sua mimada. - ameacei, jogando meus braços sobre ela, que soltou um gritinho e começou a rir enquanto eu caía de propósito em cima dela.
  - Shhhhhh! - alguém mandou nós nos calarmos, o que só aumentou a vontade de rir. Eu ainda estava jogado sobre ela no banco, prendendo-a em meus braços, e nós ríamos silenciosamente de toda a zona que estávamos causando.
  Enquanto eu tentava não rir muito alto, o ônibus começou a chacoalhar, e eu voltei para o meu lugar. Porém ao invés do balançar incômodo parar, ele continuou, até que de repente o ônibus parou de vez. Entreolhei-me com , que ficou séria de repente e voltou a se jogar por cima de mim para olhar lá para fora.
  - Paramos. - ela disse, sussurrando. - Por que paramos?
  - Sei lá... - falei, assustado com a bipolaridade dela.
  - DEMENTADORES! - ela berrou, se jogando de volta pro banco e puxando sua bolsa pra se esconder. - Me diga que você tem chocolate, ou uma varinha e que podemos fazer tudo isso sem eu desmaiar, oh meu Deus, já sinto os efeitos. - fez umas caretas e eu arregalei os olhos.
  - Você pirou garota? - perguntei, pensando que eu tinha de fato uma "varinha", mas por causa de sua menção à Harry Potter provavelmente não era exatamente a que ela queria. Preferi não me manifestar sobre isso, esperando ela responder.
   fez um bico e sentou-se normalmente, parando com o escândalo.
  - Desculpa, me empolguei.
  Nesse momento o motorista apareceu, molhado de chuva, parecendo envergonhado.
  - Senhoras e senhores, desculpem o incômodo, mas venho anunciar-lhes que houve um pequeno problema no motor que levará por volta de meia hora, talvez uma hora para consertar. Desculpem o inconveniente, faremos de tudo para que fiquem confortáveis e para que o problema seja consertado logo. - ele acenou e pudemos ouvir resmungos de todas as pessoas do ônibus.
  Olhei para , para ver sua reação, mas ela estava normal. Não parecia se importar. Eu, ao contrário, estava tirando meu celular da bolsa para avisar meus avós que a viagem demoraria um pouco mais. Do jeito que meu avô era, ele provavelmente já estaria indo agora para a rodoviária.
  - Já venho. - avisei, apontando o telefone, e ela concordou, sorrindo.
  Liguei rapidamente, explicando pro meus avós a situação, e falei que quando saíssemos daqui eu os avisaria. Eles concordaram, não parecendo muito preocupados, e desliguei. Voltei para o lado de que batucava uma música e mexia os lábios em silêncio, olhando pela janela.
  - Você roubou meu lugar! - acusei, cutucando-a. Ela sorriu.
  - Saiu pra namorar! - ela cantarolou e eu rolei os olhos com a infantilidade da menina, fazendo rir mais.
  Acabei por sentar-me no lugar que antes era dela, ela tinha até movido as malas! Garota folgada.
  - O que ta ouvindo? - repeti a pergunta que dera início a tudo aquilo e arranquei um de seus fones, fazendo-a soltar uma exclamação indignada. - O que é isso?!
  - My Chemical Romance, dooh. É Welcome To The Black Parade.
  - Ah ta. Você gosta deles? Você parece alegre demais pra gostar de MCR. - comentei, observando-a. Ela rolou os olhos.
  - Embora eu concorde com você, isso é preconceito sabia? E essa música é legal!
  - Ok, ok. Só me surpreendi.
  - Esperava o que? Taylor Swift e Demi Lovato? Selena Gomez e seu namoradinho? - ela arqueou as sobrancelhas, desafiadora, e eu neguei rapidamente com a cabeça.
   pareceu perceber que tinha me assustado, porque começou a rir novamente. Depois me encarou com um sorriso.
  - Ei, você tem namorada? - ela me perguntou, de repente, e eu arregalei os olhos.
  - Erm, não. Por que a pergunta inesperada? - corei. Ela deu ombros, e sorriu. Ela sorria pra caramba.
  - Não percebeu que sou assim? - ela disse e eu percebi que era verdade. Todos os nossos assuntos de conversa aconteceram porque ela me fizera uma pergunta estranha antes.
  - É, mas essa foi um pouco mais inesperada. - cocei a nuca, meio envergonhado.
  - Ué, por que? Só fiquei curiosa. Você é engraçado e simpático. Eu imaginaria que tem uma namorada. - ela deu ombros, e acho que essa foi a primeira vez que a vi realmente séria (sem contar o ataque dos dementadores). Eu corei.
  - Er, obrigado, eu acho. - falei. - Você tem namorado?
  - Não. - ela respondeu, simplesmente. Depois sorriu e voltou a olhar a janela.
  Eu não sabia se a conversa estava encerrada, mas fiquei quieto de qualquer forma, de repente pensando que se nós dois estávamos solteiros...
  Certo, sem relatos das coisas que se passaram em minha mente.

  - Para com isso, é impossível você acertar de novo. - reclamei, riscando a forca. riu, e enquanto ela ria passamos por uma lombada e pulamos, me fazendo rir com ela. O ônibus já havia sido consertado, mais rápido do que esperávamos, e estávamos na estrada numa velocidade estável. Chegaríamos logo, talvez em meia hora.
  - Quinze partidas de forca e eu só morri uma vez. Sinto-me invencível. Eu poderia voar. - ela dizia, sonhadora, e eu ri da sua cara de idiota.
  - Cale a boca, você leu meu pensamento.
  - Mais um motivo pra eu me sentir foda e invencível! - ela gabou-se, jogando uma mecha do cabelo de uma forma metida.
  Fiz a coisa mais adulta que podia ter feito, fui lá e puxei levemente forte a mesma mecha, rindo da cara de surpresa que ela fez. fez um som que poderia ser uma risada, um rosnado ou um pato engasgando e pulou em cima de mim, e eu me controlei pra não gritar ou soltar uma risada alta e o ônibus inteiro vier reclamar conosco novamente.
  - Ai, sai, você vai me matar sem ar desse jeito! - reclamei, empurrando-a levemente e sem querer encostando em um pedaço de pele de sua barriga, já que no alvoroço sua blusa levantou-se um pouco.
  Ela não pareceu se incomodar enquanto afastava-se sorrindo, mas eu havia corado e estava meio sem reação.
  - Então, você não me disse exatamente o que vai fazer na casa dos seus avós. - ela cruzou suas pernas e olhou pra mim.
  - Não é nada demais, exatamente. - dei ombros. - Só passar um tempo com a família. - acrescentei, não tentando parecer muito incomodado. - Acho que quero passar um tempo longe dos meus pais, também.
  - É? Por que? O que eles fizeram?
  - É só toda essa pressão sobre o futuro sabe. - cocei a nuca. Eu não gostava de falar muito disso, principalmente com estranhos, mas recitava Alice no País das Maravilhas e sempre viajava e eu me sentia como se ela fosse minha melhor amiga há anos. - Eu acabei de tirar minha carteira de motorista, o que é hilário já que estou dizendo isso em plena viagem de ônibus. - falei, rindo. sorriu também.
  - Ah, mas se você acabou de tirar a carteira de motorista, está mais para licença para matar. - ela brincou e eu dei língua, fazendo-a rir. - Eu acho que só iria tirar carteira de motorista pra aumentar a emoção.
  - De matar alguém?
  - Não, seu idiota. - ela me bateu com a manga do casaco grande que ela vestia. Eu ri. - De viajar. O chato de comprar passagens, é que você sabe qual é seu destino. Se eu tivesse um carro, simplesmente seguiria pelas ruas aleatórias e veria onde eu poderia chegar. Sabe. Aproveitar a viagem. - ela sorriu de canto. - Quer dizer, se eu tivesse carteira. Eu já tenho carro. - bufou.
  - Sério? - admirei-me. Ela fez uma careta e deu ombros.
  - Meu pai gosta. Não posso fazer nada. Mas não sei se usaria carros, eles poluem. Talvez uma bicicleta. - ela ponderou.
  - Você poderia ir pegando carona na estrada. Isso é bem aleatório. - sugeri.
  - E ser sequestrada e estuprada por caminhoneiros? Gosto de aventuras, mas gosto da minha vida também. - ela disse, e eu tive que concordar com ela. Depois riu e voltou a me bater.
  - Ai! Por que você fez isso? - reclamei, percebendo que estava começando a ser muito agredido durante aquela conversa.
  - Porque você está me distanciando do assunto. Vamos, você estava falando de seus pais e do seu futuro, tudo isso não pode ser só por causa da maldita carteira de motorista. - ela disse e eu fiz bico.
  - É, não é. É só que agora parece que eles querem jogar toda a responsabilidade pra cima de mim, e ficam me pressionando sobre faculdade, essas coisas. Eu não quero isso. - grunhi.
  - E o que você quer? - me encarou, seus olhos finalmente sérios debaixo de seus cílios longos e escuros. Encarei-a também.
  - Eu queria ser músico. - confessei, me sentindo bobo. Quantas milhares de pessoas não queriam, e não davam em nada? - Eu tenho uma banda com uns amigos e tudo o mais, mas... não sei, é um pouco difícil pros pais ouvirem que seu filho não vai seguir uma carreira que eles tanto esperavam. - concluí.
  - Eu acho que você devia seguir seu sonho, . Se é o que realmente vai te fazer feliz. - ela sorriu fraco. Eu apenas a encarei. - Digo, nós não estamos presos a um só lugar. Nós só pensamos que estamos. Mas podemos ir pra onde quisermos. Fazer o que quisermos. Basta acreditarmos que podemos. É confiar em si mesmo além de tudo, sabe. Se você começar uma banda sem nenhum motivo para ir longe, achando que vocês são uns merdas, vocês nunca vão passar disso. - era a primeira vez que tínhamos uma conversa séria, e eu só conseguia encarar em seus olhos enquanto ela filosofava como Yoda. - Mas se você acreditar, realmente acreditar que pode vencer os obstáculos e chegar lá, faça. Porque você consegue.
  - Mas...
  - Não tem "mas", . - ela me interrompeu, o que foi bom, porque eu provavelmente completaria a frase com algo choroso e infantil como "eu não sei". - Você tem que perseguir seus sonhos. Se você não o fizer, ninguém vai fazer por você.
  - Por que você está toda Mestre Yoda agora? - arqueei uma de minhas sobrancelhas e ela sorriu largamente.
  - Eu não sei. Às vezes faço isso. Gostaria que as pessoas vissem o mundo do jeito que eu o vejo. Às vezes acho que ele poderia ser um lugar melhor assim. - ela falou pensativa.
  - Aposto que Hitler também pensava assim. - a próxima coisa que senti foi novamente a manga de sua blusa, dessa vez com a mão, no meu braço.
  - Idiota. - disse rindo. Eu sorri.
  - Não pense que não prestei atenção em nada do que você disse. Eu prestei sim e acho que é tudo verdade. E prometo que tentarei seguir seu pensamento e correr atrás dos meus sonhos. - falei, sorrindo.
  - Que bom. Não vai te fazer mal nenhum. - ela sorriu torto. - Além de uns desapontamentos, momentos difíceis e tal. Mas não se preocupe, a vida é feita de altos e baixos. - ela piscou.
  - Eu só fico imaginando o que viria depois, sabe? O que eu faria se eu conseguisse alcançar o sucesso como músico. Não consigo pensar em nada. - confessei, dando ombros.
  - Epa epa, uma coisa por vez. - disse, colocando uma mão em meu peito, como um sinal de pare. Vou ter que comentar os arrepios que senti percorrendo todo o meu corpo com seu toque. - Eu acho que essa é a parte mais divertida de realizar um sonho.
  - Qual? - Franzi as sobrancelhas. Ela sorriu mais largamente, daquele jeito misterioso, e por um segundo associe-a ao gato de Cheshire.
  - Achar um novo.

  Estávamos arrumando nossas coisas. Estávamos na pequena rodoviária da cidade dos meus avós, e tinha parado de chover. Eu espiava recolher sua mala com o canto dos olhos, enquanto baixava a minha. Enrolei o iPod e deixei-a passar na minha frente para que saíssemos do ônibus. Conversamos pouco depois da nossa profunda conversa Yoda-Luke, até porque não nos restara muito tempo. E agora estávamos saindo em silêncio e nos tratando como se fôssemos ainda os estranhos que entraram no ônibus horas mais cedo.
  O que não éramos, ao meu ponto de vista.
  - Parou de chover. - ela observou, sorrindo, assim que pisou no chão da rodoviária.
  - Pois é. E lá está meu avô. - acenei para ele, que tirou o chapéu e sorriu largamente. Voltei a olhar , que também o olhava com um sorriso enorme no rosto, e tinha acabado de acenar pra ele. Ela voltou seus olhos para mim. - Ainda vai querer o estábulo? - brinquei, um pouco desapontado da chuva ter ido embora. Ela riu.
  - Acho que agora consigo correr atrás de um hotel, mas obrigada mesmo assim pela proposta. Seu avô parece uma pessoa adorável, e eu adoraria conhecer sua avó também.
  - Então venha. Você economiza o hotel. Não vai ter problemas. - disse, tentando não parecer insistente e deixar transparente que queria mais tempo com ela.
   mordeu o lábio inferior por um segundo, parecendo pensar, e depois suspirou. Inclinou-se na ponta dos pés e aproximou seus lábios ligeiramente avermelhados da minha bochecha. Minhas pernas tremeram levemente com o contato, mas eu fechei os olhos e pela primeira vez aspirei seu perfume, um cheiro bem leve e agradável. O momento acabou e ela afastou-se, e eu olhei-a, um pouco atordoado.
  - Obrigada mesmo, . E obrigada pela companhia na viagem, não acredito que usarei essa palavra, - ela fez uma careta, e depois riu - mas foi formidável viajar ao seu lado. Mas você não sabe nada sobre mim. É melhor eu seguir meu caminho, como sempre foi. - ela deu um sorriso triste, e eu apenas concordei. - Mas, sabe... "Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós".
  - O que é isso? - perguntei, confuso. riu mais.
  - Antoine de Saint-Exupery. O autor de Pequeno Príncipe. Sabe, você deveria ler um pouco mais de clássicos. - ela debochou e eu virei a cara. Ela riu.
  - Lerei, eu prometo. - cocei a nuca.
  - Ok então. Até mais, . - ela acenou, começando a se afastar. Percebi que ela sorriu para o meu avô, e eu segurei seu braço, fazendo-a ficar ao meu lado por mais um minuto apenas.
  - A gente vai se ver de novo? - perguntei, olhando em seus olhos . sorriu, eu ainda acho que ela deve ir dormir com as bochechas doloridas.
  - Quem sabe? É um mundo cheio de possibilidades, cheio de caminhos, e muitos deles se cruzam. Nós não tivemos a intenção de nos conhecer, raramente temos a intenção de conhecer alguém na verdade... o que quer dizer que qualquer que seja o motivo que nos colocou no mesmo lugar hoje, pode colocar novamente. Nós só temos que esperar. - ela piscou. - Essa foi bem foda, pode confessar.
  - Certo... - eu falei, rindo. - Até mais então, estranha.
  - Nos vemos em breve, estranho. - ela piscou. - E não se esqueça de aproveitar a viagem, sempre.
  E então ela se foi.
  Fui para o lado do meu avô, que me cumprimentou com um abraço e jorrou perguntas para cima de mim. Infelizmente eu não prestei muita atenção no que ele dizia, pensando em e em todo o tempo que eu passara ao lado dela. Tinha sido incrível. Eu não saberia usar outro adjetivo para descrever melhor. Eu sabia que, não importava quantas vezes eu viajasse, aquela seria sempre a melhor viagem de toda a minha vida.

Epílogo ('s POV)

  Dois meses depois
  Eu seguia a pé. A mochila no meu ombro não estava muito pesada, e o iPod estava um volume suficientemente alto para que eu ouvisse a música e os barulhos da estrada. Ela era bem longa, era uma rodovia, e eu não via muito além dela mesma, morros e mato ao meu redor.
  E eu não me considerava perdida. Respirei fundo, satisfeita, e continuei, passo a passo. Alguns carros passaram na direção contrária, alguns me ofereceram carona e neguei todas. Um ônibus de viagem passou por mim, e eu me lembrei de . Sorri. Eu gostara daquela viagem. Tinha sido divertido, e em alguns momentos eu me arrependia de não ter pedido seu telefone, ou ficado na casa dos avós para conhecê-lo melhor.
  Ouvi uma buzina atrás de mim e olhei através de meus óculos escuros o carro azul marinho que passava por mim. Ele parou, não muito a frente, e a porta do motorista foi aberta. Um cara mais ou menos alto, também de óculos escuros e com cabelos ao vento saiu e olhou pra mim.
  Pensei se teletransporte por pensamento poderia ser possível, ou se ele era um espírito que eu tinha invocado, algo sobrenatural assim, porque de repente estava ali, sorrindo pra mim.
  - Não acredito nisso! - ele exclamou, e depois riu. Eu sorri também, atordoada com a coincidência.
  - . - falei, seu nome soando doce em meus lábios. Ele aproximou-se de mim, e tirou os óculos. Fiz o mesmo e nos encaramos sorrindo idiotamente por um tempo.
  - Isso é tão estranho. - ele confessou, e eu ri.
  - Seria ainda mais estranho se eu dissesse que acabara de lembrar de você? - arqueei minhas sobrancelhas e ele arregalou os olhos. - Pois é.
  - Está perdida? - inclinou levemente a cabeça e eu levantei meus ombros.
  - Você sabe que no fundo nunca estou. - pisquei.
  - É verdade. Gostaria de uma carona? - apontou para o carro. - Consegui faz pouco tempo, mas prometo que não vou nos matar.
  - Obrigada pela oferta, mas eu já te disse minha opinião sobre caronas. - espera, eu estava recusando sua companhia novamente? Depois de passar pela minha mente que eu talvez sentisse falta dele? Eu acho que tenho problemas.
  - Mas eu não sou nenhum caminhoneiro. - ele abriu os braços, parecendo surpreso. Suspirei e arrumei meu cabelo atrás da orelha, que logo foi bagunçado com o vento.
  - É, de fato.
  - Vamos, qual é o problema? Não é como se fôssemos estranhos. É só pra... vamos ver, uma garantia que você chegue em algum lugar para passar a noite, que não seja o meio do mato.
  - E pra onde está indo? - perguntei, praticamente convencida. Ele sorriu de lado e colocou os óculos de volta no rosto.
  - Essa é a melhor parte. - ele disse, e quase pude ver seus olhos brilharem. Ele estendeu sua mão para mim. - Nenhum lugar definido.
  Sorri largamente, também colocando meus óculos escuros.
  - É mais do que bom para mim. - disse, e segurei sua mão.

Fim.



Comentários da autora


Bah, duas semanas pra uma fic assim. A ideia surgiu depois que eu voltava de São Paulo depois do show do Before You Exit, e vocês nem imaginam qual foi a única coisa que se passava pela minha mente naquela hora né? HAHA
Eu conheci os meninos e... bem, uma viagem inteira pensando em cinco rapazes, pois é.
Não sei se vocês repararam, mas é uma característica minha, e eu amo passar mensagens nas minhas fics, pras pessoas não só lerem, mas também pensarem um pouco a respeito. Eu literalmente entupi Aproveite a Viagem com elas, então espero que tenham levado alguma coisa com vocês.
Beijos e espero que tenham gostado, eu realmente gosto dela, como eu disse na nota da capa, tem muito de mim nessa personagem (:
xx