a porta dormiu aberta



Escrito por penélope a.
Revisado por Natashia Kitamura

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parte 1
salvar o desejo

  O que te faz pensar em mim às três horas da manhã?
  É um período vulnerável, as horas que compreendem a madrugada, eu entendo isso. Nostalgia, insônia, carência, tesão, são só alguns monstros que escolhem atacar depois da meia noite. E eu aceito o argumento do álcool exacerbando todos eles. Mas por que, ao se perceber vulnerável, por um ou outro motivo, é em mim que você pensa?
  Já faz três anos, eu e você. São muitos dias que nos separam do nosso último encontro. Nenhum de nós deve lembrar a textura e o gosto do outro.
  O que te arrasta até mim?
  Eu já me fiz essa pergunta e não tenho resposta; não sei, parece vago, mas é o que sei (nada). Daí, talvez, seja injusto da minha parte esperar uma resposta conclusiva sua, admito. Sua resposta pode ser igual à resposta que eu já tenho. E aí ninguém vai a lugar nenhum.
  Não sei se quero ir a algum lugar, mas já que estou aqui…
  Eu te assustei, não te assustei?

  Olhou pra mensagem digitada salva como rascunho na DM, os dedos dançando sobre o botão enviar. Estava mais uma vez naquele lugar de “e se” porque aconteceu novamente. De madrugada, como das últimas duas vezes. Não era nada demais, no fim das contas, era só um like silencioso numa foto. Das outras vezes ela também ficou dando significados àquilo, sozinha com sua consciência, mas sempre de forma atrasada, sempre após acordar com a notificação.
  Naquela noite ela estava desperta, e acompanhou ao vivo o alerta aparecendo na tela. Outro like silencioso que ela não viu chegando. Mas ao encarar o celular, colocando a longneck na pia do banheiro apertado, não conseguiu evitar pensar que o antecipara; o desejara. Por nunca saber quando viriam, se encontrava em um frequente estado de alerta ao postar qualquer coisa. E aquilo não era nada bom.
  O primeiro fora há sete meses - dois anos e cinco completos desde que se tocaram para além de cumprimentos públicos impessoais, vinte e sete dias depois que a foto havia sido postada, o que lhe dizia que ele foi procurá-la. Era quatro da manhã de um sábado; ela estava dormindo. Fazia quase dois anos que só beijava uma pessoa e essa pessoa não era ele. E isso era grande parte do problema.
  Não se sentia correta de antecipar interações de um terceiro em suas postagens, mas o fazia inconscientemente. Não entendeu que aquele gosto amargo em sua saliva era culpa até o segundo like chegar.
  Foi menos aleatório que o primeiro, afinal a foto estava no ar por vinte e quatro horas ininterruptas antes de sumir sozinha. Mas ela era um repost, a publicação completa estava em seu perfil, provavelmente no topo do feed de todos os amigos com quem interagia com mais frequência. Ele não era um deles. Fazia sentido ele dar o bendito like no story e não na publicação completa, então, certo? Exceto que não fazia sentido o like em si, em primeiro lugar.
  A última foto sua que curtiu, apesar de sempre estar entre os visualizadores de suas postagens, fora aquela em março, quando a madrugada revelou uma vontade que ele escondia da luz do dia. Ou assim ela projetava a situação toda, depois que resolveu dar significado àquilo, já que não poderia ser uma simples coincidência. As peças da eventualidade não se encaixavam. Ou ela não queria que se encaixassem, casa onde se instalava a culpa.
  Era tudo muito estúpido. Angustiante.
  Likes e nenhuma comunicação significativa para os quais ela, por que motivo fosse, dava atenção demais. As interações vazias do século XXI e seus efeitos na mente.
  Mas então ali estava, acordada na madrugada em que ele resolveu apertar o coração no canto inferior direito da foto que ela postou no espelho do bar onde eles deram o primeiro beijo. Onde ela lhe roubara um beijo, verdade seja dita.
  Não havia coincidências ali.
  Ainda assim, saiu da conversa e fechou o aplicativo.

  As mãos dele são tão suaves conhecendo meu corpo e eu queria que elas me cobrissem com sede, mas isso não é coisa que se peça; ela escreveu em agosto de 2021 em seu journal. Apesar de não citar nome algum, enquanto encarava a página aberta em cima de sua escrivaninha, sabia que estava falando dele.
  No intervalo entre sentir, entender e externalizar o que sentia através da escrita, ela o havia beijado intensamente no carro de um amigo de um amigo com quem pegaram carona. Wild One, do Hippie Sabotage, tocava altíssimo nos autos falantes enquanto ela sorria em seus lábios e subia a mão pela coxa dele, protegidos pela escuridão do banco de trás, à caminho de deixá-lo na porta de seu condomínio. Os dois viajariam no dia seguinte, para destinos e com objetivos completamente diferentes.
  Enquanto estava em Cabo Frio, enviou do banheiro compartilhado do Airbnb uma seminude inofensiva, que foi devidamente visualizada, mas nunca respondida. Perdeu um dia inteiro de viagem se perguntando se fora equivocada, se entendeu errado o beijo diferente que deram naquela pseudo despedida. E aí ele postou um link do spotify com Corduroy Dreams do Rex Orange County. Tinha vinte e poucos à época, então não se sentiu assim tão mal de buscar significado nas coisas como se sentia atualmente fazendo o mesmo. E a música serviu como uma luva pra justificar a falta de reação à seminude. How could I ignore you? Trust me I adore you.
  E por ter dado significado a isso, aprendeu duas coisas sobre ele: que tinha um ótimo gosto musical, e que, nas raras vezes em que postava alguma coisa, essas coisas postadas provavelmente significavam algo.
  A outra vez em que ele postou algo possivelmente significativo foi amarga.
  Ela tinha ligado pra ele, já tarde da noite, sob efeito de muitas doses de álcool, intencionando que eles repetissem o que haviam feito na suíte da casa em que estiveram juntos na semana anterior. Ele não atendeu; nada foi dito em decorrência dessas ligações quando ela acordou de manhã e se lembrou, envergonhada.
  E aí, naquela mesma noite, ele mandou uma mensagem enorme, muito educada e cheia de dedos, dizendo que era melhor que o que tinham não evoluísse, que ele estava muito bem em sua própria zona de conforto, sozinho. E no dia seguinte postou um link pra There’s A Reason Why (I Never Returned Your Calls) do Blossom. Pra ela, que também não conhecia essa, foi auto explicativo o suficiente; nunca parou para ouvir a música.
  Enquanto lembrava disso, ao observar mais uma vez a DM aberta que marcava a mensagem estática como rascunho, dias depois do último like silencioso, se sentindo em Nick & Norah’s Infinite Playlist, ela resolveu finalmente ouvi-la.

  There's a reason why I never returned your calls.
  I wish I could forget it all.
  But I never returned your calls
  'cause I'd fall in again
.

  – Merda - sozinha no silêncio de seu quarto, leu e releu o refrão da música enquanto ela progredia em seus fones de ouvido.
  Se sentiu meio dormente, as pontas dos dedos formigando enquanto se ajeitava na cadeira, voltando a música do início, sem acreditar no que escutava. Lembrava-se vividamente de abrir o story e entender o recado pelo título autoexplicativo, mas por se sentir um pouco humilhada, não quis investigar mais nada além daquele ponto. Tem um motivo pelo qual nunca retornei suas ligações lhe parecia informação suficiente, muito obrigada - ainda que ela não entendesse muito bem tal motivo. Aquela publicação associada à mensagem - muito honesta e, talvez justamente por isso, bastante dolorosa -, era tudo o que precisava saber pra entender que havia acabado, gostasse ela ou não.
  Como os poucos meses que compreenderam a relação deles também ficaram em sua cabeça tempos depois, não era surpresa que o título da música nunca tenha sumido. Sentiu que as informações que ela adquiria ali, enquanto ouvia a música e entendia o possível motivo, mudavam tudo o que julgava saber sobre ele, sobre o que tiveram e sobre porquê ele resolveu ir embora.
  O que não mudava nada na realidade em que vivia agora, namorando outra pessoa. Só a colocava num lugar de desconforto tremendo, de ter intencionado mostrar vulnerabilidade a alguém que estava vulnerável igual, e ainda assim guardou tudo pra si, engoliu os próprios sentimentos com farinha, achou que era melhor não. Para três anos depois distribuir likes silenciosos em suas fotos, promover interações que pareciam vazias, de tão inofensivas, mas ela não conseguia achar que eram.
  Via camadas atrás de camadas no que ele fazia, talvez refletindo a si mesma, que por considerar o que ele fazia como pistas, distribuía as suas próprias, nesse seu costume de trazer intensidade para tudo à sua volta. Ou poderia ser seu desejo de ter se alojado em algum lugar por baixo da pele dele de onde não saiu durante todo aquele tempo, como parecia ter acontecido consigo.
  Quando a música acabou e ela pausou a próxima, encontrava-se num impasse: não podia fazer nada, mas precisava fazer alguma coisa.
  Medo e culpa a dominavam em igual proporção.

  Ela não acredita em horóscopo, destino, cartas de tarot, leitura de mãos, predestinação, ou nenhuma das inúmeras possibilidades que os humanos ao longo da história fizeram ser narrativas para substituir o livre arbítrio e a angústia da casualidade. Suas amigas, entretanto, sentadas na mesa do restaurante pedindo novos drinks depois de seu relato terminar, tinham opiniões divergentes quanto a isso.
  – É questão de energia, não precisa elaborar muito! Ele não sai da sua cabeça, eu aposto que você não sai da dele.
  – É muito mais difícil trabalhar com essa hipótese do que com a possibilidade de eu estar ficando maluca - suspira, agradecendo a segunda caipirinha do dia ao garçom.
  – Isso nem faz sentido!
  – Lógico que faz! Se você estiver certa, e ele está obsessivamente pensando em mim, eu faço o quê com essa informação?
  Naquela tarde de sábado ela completava quatro dias quase completos em que esteve dominada pela culpa. O copo à sua frente ser apenas o segundo era, inclusive, um milagre, resultado direto de ter passado os últimos trinta minutos contextualizando-as, condensando os fatos de três anos atrás até o que decidiu fazer naquela semana.
  Na terça-feira anterior, chegou à conclusão de que o que podia ser feito, pra que a culpa fosse menor, pra que potencialmente ninguém saísse machucado, pra que o texto em rascunho na DM dele continuasse exatamente lá, estacionado, era um teste. Um teste nos moldes do que ele fazia: uma música no story, para a qual ela daria um significado além de si mesma, esperando que, de alguma forma, numa transmissão de pensamentos, ele entendesse o recado. Algo que ficasse apenas ali, no seguro plano das ideias.
  Queria ser óbvia, inclusive, porque era provável que a sutileza excessiva não lhe desse nenhuma resposta, e aí o próximo passo seria enviar a mensagem que já deveria ter apagado, mas não conseguia - apagar, ou enviar. Why’d you only call me when you’re high? foi uma opção; tinha tantas coisas que ela gostaria de dizer, como a mensagem de rascunho explicitava, e incapable of making alright decisions, and havin’ bad ideas parecia resumir bem, deixar no ar, mas não muito.
  Mas o algoritmo do spotify movido pelas forças que regiam o universo - as quais ela era absurdamente cética sobre - sugeriu Honey Whiskey do Nothing But Thieves no final de uma de suas playlists. E ao passo em que ela ouvia a letra pela primeira vez, traduzindo simultaneamente, só conseguia pensar que ele era fã da banda e que não tinha teste melhor do que aquele.
  Postou, se retorcendo de agonia, vergonha e culpa. Era oito da noite.
  Quando acordou com o despertador na manhã seguinte, a notificação do like dele estava lá desde às seis e meia da manhã - não de madrugada, na hora da vulnerabilidade de sempre. Junto com outra, aliás, do seu namorado lhe dando bom dia na hora em que chegou ao trabalho. Foi sentimento demais para processar antes de sequer ter tomado café.
  Estava lá o que ela queria, o teste que planejou por dias havia dado resultado positivo. Ele não apenas curtiu como foi o único que curtiu o maldito story; não havia possibilidade de ele não ter entendido o recado. E ela não fazia a menor ideia do que fazer a partir daí, porque não sabia, em primeiro lugar, o que queria com aquele teste, além de afastar o fantasma da loucura de seu autodiagnóstico.
  Na quinta-feira, um de seus dias presenciais no trabalho, ela abriu o Instagram enquanto seu computador ligava, ajeitando o corpo na cadeira, tomando um gole do café doce demais que pegara na copa, e viu a foto dele, o ícone de story bem brilhante e redondo no início da sua lista. Tremeu. Clicou.

  So go on and tell me now
  Do you have enough love in your heart
  To go and get your hands dirty?

  Também não conhecia a música, mas ele foi muito menos sutil do que ela, colocando o trecho inteiro de uma vez, então não faria diferença. Quer dizer, se é que aquilo era um recado para si, afinal. O teste ter sido bem sucedido não lhe pareceu mais sinal suficiente. Agora eles iam se comunicar através de músicas nos stories? Que espécie de maluquice era aquela?
  Deu um like. Fechou o aplicativo correndo, como se alguém estivesse vendo-a e julgando-a, além de si mesma. Tentou prestar atenção no que fazia no trabalho, mas se sentia perturbada, no absoluto sentido da palavra.
  Dias depois, sentada na mesa do restaurante, mais uma vez entretendo suas amigas com sua vida amorosa, coisa que não fazia desde que, bem, esteve solteira, era naquele ponto em que estava. Sua teoria fazia sentido. E agora?
  – O que você faz com essa informação só você pode saber, amiga. Mas, pra mim, tá tudo muito óbvio.
  Houve uma concordância coletiva ao redor da mesa e ela respirou fundo. Culpa. Culpa. Culpa.

  Nas semanas seguintes, ela seguiu numa espiral de impulso e culpa na forma com a qual escolheu lidar com a situação.
  Numa quinta-feira à tarde, no meio de uma viagem de Uber a caminho de uma reunião importante, a escolhida não aleatória - aliás, cuidadosamente pensada - foi Body Paint, do Arctic Monkeys.

  And I’m keepin’ on my costume (keeping on)
  I’m callin’ it a writin’ tool
  And if you’re thinkin’ of me, I’m probably thinkin’ of you

  Tão previsível, após sair da reunião, lá estava a notificação do like.
  Nove dias depois resolveu colocá-lo em seus melhores amigos.
  Dois dias depois disso, coincidentemente, o show do Arctic que ela havia ido no Rio de Janeiro fez aniversário de dois anos, e ela compartilhou um reels de Do I Wanna Know? - com um trecho destacado, claro. Não era boba, nem inocente, e já havia passado do momento em que tentava se enganar disso.

  (Baby we both know)
  That the nights were mainly made for sayin’ things
  That you can’t say tomorrow day
  Crawling back to you

  Pensava, toda vez, “por que não?”, e continuava a jogar esse jogo mudo como quem não sabia se jogava ou não sozinha. Já não fazia muito diferença as coisas que ele próprio postava, se eram ou não pra ela, se se encaixavam ou não na narrativa que criou na própria cabeça, desde que a sua mensagem estivesse sendo entregue. Desde que ele estivesse dizendo, sem usar uma única palavra, que ainda pensava nela, que a desejava.
  Quatro dias depois, achou que já era hora de publicar algo ainda mais específico, salvo há muitos meses além do que vinha pensando nele. Matar a culpa, salvar o desejo - dizia o pano de prato compartilhado entre seus melhores amigos. E lá estava o like, como esperado.
  Dois dias depois, num domingo, descobriu que também estava nos melhores amigos dele. Ele postou Call It What You Want, do Foster The People, e apesar de ela não ter reivindicado para si como alvo daquela postagem, apenas a plataforma utilizada pra tal, mais tarde naquele dia postou Harden The Paint.
  E foi aí que o trem descarrilhou dos trilhos, a maré e os ventos mudaram, pois ele respondeu.
  Apenas um estúpido “aí tu pega na ferida”, como quem não quer se comprometer tanto assim, mas entendeu onde o interlocutor da conversa quer chegar. Ela se sentiu extremamente vulnerável no momento em que viu a notificação, principalmente considerando que tomava um café com o namorado na mesa da copa de sua casa quando aconteceu.
  Queria dizer algo, qualquer coisa; alimentar a conversa, talvez, entender onde ele queria chegar para que, através dele, entendesse onde ela própria queria chegar. Qualquer coisa além de um emoji. Mas ela cedeu ao emoji, pois sentiu medo. E culpa.
  Não houve qualquer tipo de comunicação pelos próximos dez dias, dos quais três ela passou transando com o namorado em um Airbnb alugado na serra, tentando não fazer barulho para que o restante dos amigos dormindo no quarto compartilhado não percebesse nada. A naturalidade com que seu relacionamento seguia bem e estável era mais um fator que engordava a culpa dentro dela, como um parasita em seu estômago se alimentando das decisões questionáveis que tomava.
  Dizia pra si mesma que, até então, não fizera nada de errado, que não podia controlar os próprios pensamentos, mas que era senhora deles, uma vez que não a dominassem. Sentia, contudo, que o momento em que ia perder a briga estava próximo, e que a linha entre a culpa imaginária e a culpa fática ficava cada vez mais tênue.
  Na madrugada de um feriado em que perdeu o sono, postou Fireside, do Arctic Monkeys. E o like estava lá ao acordar, como esperava que estivesse.
  Dois dias depois, enquanto bebia com os amigos as bebidas que sobraram da viagem, já tendo secado quase duas garrafas inteiras de vinho, e comido muito pouco, resolveu tocar na ferida de verdade com Longshot, do Catfish and the Bottlemen.

  Come on, how’d you feel?
  And I suppose you’ve come down to help me
  Add scenes to the reel, to the reel
  Why we lapped it up when we’re wise enough, who knows?

  E cedo demais, absolutamente na hora errada, pois ela ficava cada vez mais bêbada enquanto o álcool assentava ao redor da culpa crescendo em seu estômago vazio, ele respondeu o story.

parte 2
matar a culpa

  Antes, em diversos momentos, enquanto tentava encontrar meios de se convidar para a casa dele, apesar de eles não terem nenhuma intimidade, ela se perguntou como seria o apartamento de dois homens morando sozinhos, ainda que um deles fosse o pai, teoricamente responsável por não deixar as coisas saírem do controle — ou caírem aos pedaços.
  Considerou pouca decoração, iluminação fria de clínica odontológica, apenas um par de cada item na cozinha (pra evitar bagunça), e nenhuma sombra de hospitalidade. Aí lembrou que o condomínio era antigo, assim como o prédio, então talvez o apartamento também tivesse um quê de antiquado. Uma poltrona velha num canto, uma manta cobrindo um sofá manchado, bagunça, canecas descombinadas, plantas perto da janela — já que não tinha varanda.
  A realidade acabou se traduzindo em uma mistura estranha dos dois: luz fria de clínica odontológica, sim, mas também plantas ao redor da sala e na cozinha, uma grande TV com um Xbox embaixo, uma pilha de papeis deslocada ao lado do videogame, uma capa de crochê sobre o garrafão de água no filtro.
  — Não sei o que fazer, nunca cheguei nessa parte. — Ela o ouviu dizer da cozinha e virou o pescoço, deixando de analisar o sofá, totalmente desproporcional para o espaço da sala, e que tinha uma manta cobrindo-o, afinal. — Você quer beber algo?
  Veneno, ela pensou, mas perguntou se tinha café, pois já havia bebido álcool o suficiente. O assistiu ficar nervoso, percebendo que não, não tinha, se ela queria que ele passasse. Ela se ofereceu pra passar e foi andando em direção à cozinha, deixando a bolsa sobre o sofá. Queria rir do nervosismo dele, mas a diferença entre os dois era apenas que ela sabia disfarçar melhor.
  Em todos aqueles meses em que eles se comunicaram através de stories inominados, compartilharam pensamentos confusos sem se darem conta, e procuraram-se nos lugares que frequentavam, aquele era o momento em que ela chegava mais perto de solidificar a culpa que vinha arrastando como uma sombra atrás de si.
  Não no momento derradeiro em que cedeu e respondeu a mensagem dele pra além de um simples emoji; ou quando se percebeu alimentando a conversa, movida por desejo, nostalgia e pelo álcool, pisando em ovos para não dizer demais. Mas ali, semanas depois, quando ele estava a um braço de distância de si e todas as coisas que ainda não haviam sido ditas poderiam ser, se quisessem. Onde a expectativa poderia ser atendida ou despedaçada. Onde a lembrança que tinha das coisas e sentimentos que ele lhe causou naquela única vez que dormiram juntos poderia ser mantida ou manchada.
  Ele colocou um pote de vidro com pó de café no balcão e retirou uma leiteira do armário embaixo da pia. Lhe entregou a garrafa de café vazia e um filtro de pano, enchendo um copo d’água para si. Ficou encostado no limite entre os dois ambientes, a olhando. Ela se questionou se não deveria ter deixado que ele passasse o café enquanto analisava os papeis largados em cima do rack, à uma distância segura, complacente e silenciosa.
  — Você não me convidou pra gente ouvir um conjunto específico de músicas juntos? — ela perguntou, enquanto tentava descobrir como ligar o fogão para esquentar a água.
  — Você… Levou o convite ao pé da letra? — Ele se aproximou, tomando o cuidado de não encostar nela. Se não intencionalmente ou de caso pensado, não soube decifrar de imediato.
  Respirando fundo, focou sua concentração no movimento dos dedos dele pra acender a boca inferior direita do fogão — a mesma que ela usava em casa — pensando que seria engraçado se as coisas degringolassem a partir daquele momento, cedo demais, impulsionadas pela coincidência de uma chama se acendendo.
  — Não deveria? — Ela balançou a cabeça e o olhou, o quadril encostando no botão que ligava o forno, braços cruzados na altura dos seios, querendo que sua expressão não dissesse nada, mas tão impressionada com a cor dos olhos dele quanto ficou quando o conheceu. — “Quando eu voltar a gente ouve algumas delas”, tu disse.
  — Eu disse. — Ele secou o copo, não parava de olhá-la. A chama acesa do fogão transmitia os seus efeitos para a água, e ela esperava que nada estivesse sendo acendido dentro dela.
  — Podemos começar por Call It What You Want. — Ele sorriu, ela não soube interpretar se achando graça ou de vergonha. — Põe lá enquanto termino aqui.
  Esperava que “lá” fosse a TV da sala, não seu quarto. Se ele fosse mais rápido do que ela na condução das coisas, ela não conseguiria prever o resultado de tudo, e sentia uma necessidade latente de manter as coisas sob seu controle. Ignorava que estar ali já era indicativo de que o controle havia sido perdido há muito tempo.
  O cheiro de café se espalhou pelo apartamento quando ela abriu o pote, detectando em sua visão periférica ele sentando no sofá e pegando o controle remoto. Respirou aliviada, contando as colheres que depositava no filtro. Uma, duas, três, quatro… E meia. Se o café era pra si, poderia muito bem fazê-lo como gostava.
  Ele deu play na música, mas logo pausou. Ela checou a água quase fervendo, querendo desviar o olhar dele, sabendo onde a atenção dele estava.
  — Se é pra ouvirmos juntos, você tem que terminar primeiro.
  — Não sou a maior fã de silêncio. Dá play, deixa mais baixo, e vem cá conversar comigo.
  Aquele pedido contradizia seus receios de proximidade, mas não havia muito mais o que ser feito sobre toda a incoerência que a moveu até o bloco 3, apartamento 504. Ela estava em contradição desde o dia em que resolveu se incomodar com um like. Cruzar a portaria do prédio atrás dele já havia sido um caminho sem volta; dizer “vem cá”, nessa altura do campeonato, não queria dizer nada perto da magnitude de tudo o que poderia estar prestes a fazer.
  Ele a obedeceu, mas passou direto por ela e abriu um pouco mais a janela da área de serviço anexa à cozinha. Como se ainda fosse 2021, puxou um maço de Black do bolso da calça e acendeu um cigarro. O cheiro do pó de café aguardando no filtro misturado à fragrância de cravo do cigarro cuja fumaça ele expelia era uma boa combinação. Ele estendeu o cigarro pra ela.
  — Não, eu não fumo mais — respondeu, ciente de que fumaria tranquilamente um cigarro com ele, como faziam juntos em 2021, apenas em nome da nostalgia, pois apesar de não sentir a urgência dos viciados, sentia falta do hábito, por pior que fosse.
  — Aqui eu deveria dizer que tô tentando parar, mas seria mentira.
  — Acredita que eu não precisei das tentativas? Só parei.
  — Há quanto tempo você fumava?
  — Desde os dezoito, espaçadamente. — A água alcançou o ponto ideal de quase fervura e ela começou a passar o café. — Sempre quando eu bebia, lá uma vez ou outra no intervalo da faculdade.
  — Parou pra ser saudável?
  — Me pediram.
  O sujeito indeterminado na frase era uma incógnita real para aquela dinâmica que estabeleciam; ela não sabia se ele sabia que ela namorava, e também não sabia se haveria um momento ideal para mencionar isso, no caso de ele não saber. Tinha em mente que o momento ideal não precisaria existir se eles não houvessem cruzado a linha imaginária que ela havia estabelecido e da qual nunca o comunicara.
  E era uma meia-verdade, ainda por cima. Seu namorado nunca a pedira diretamente pra parar, mas sempre deixou claro que era um hábito que ele odiava. Quando se deu conta, havia parado de comprar os próprios maços, mas ainda fumava às vezes, pois a maioria de seus amigos era um tipo de fumante ou outro.
  Num sábado, depois de, na noite anterior, dividir treze litrões entre quatro pessoas e fumar quase a quantidade de cigarros que deixara de fumar desde seu último maço comprado, ela acordou numa ressaca homérica. Fosse a quantidade exagerada de cervejas, o estômago vazio, ou seu fígado em um dia ruim, ela entendeu que era um recado do seu corpo dizendo que pra certas coisas ela não tinha mais idade. E aí parou de vez.
  Estar naquele apartamento, atendendo desejos escusos e que deveriam estar adormecidos há três anos (por vontade dele), também não era algo a que ela deveria novamente sujeitar seu corpo. Mas àquele conselho ela não dera ouvidos.
  — Essa não foi pra você.
  Ela gostaria de não saber sobre o que ele estava falando, mas sabia. Tinha absoluta certeza. Simplesmente aguardava o momento em que um dos dois ia ceder e tocar objetivamente no assunto, e ficou feliz que foi ele que o fez. Todas as músicas que postou sem destinatário explícito, mas com alvo certo, já a colocaram num lugar de vulnerabilidade extremo, e ela se sentia no direito de exigir o mesmo em contrapartida.
  — Eu imaginei que não, mas aproveitei a deixa mesmo assim.
  — É pra colocar Harden The Paint na sequência?
  Ela sorriu, a água quente descendo em direção ao filtro, se misturando ao pó de café, o barulho do líquido enchendo a garrafa tomando conta dos seus ouvidos, a música em segundo plano. Será que ele lembrava de todas as músicas, como ela própria? Será que não fora mesmo um delírio?
  A possibilidade de não ter ficado maluca nos últimos meses não a confortou como ela esperava que fizesse, dadas as circunstâncias.
  — Acho que a próxima pode ser Body Paint.
  Uma escolha que deveria iniciar o jogo, no caso de ainda não terem ultrapassado aquela linha.
  Ele não disse nada enquanto o barulho do café coado ecoando nas paredes da garrafa térmica se sobrepunha à música baixa vindo da televisão. Antes que ela terminasse, ele colocou uma caneca sobre a bancada e perguntou se ela queria açúcar. Ela apenas balançou a cabeça, e assistiu pelo canto do olho enquanto ele molhava a ponta do cigarro na pia e jogava a guimba fora.
  Quando terminou, encheu sua xícara, e os primeiros acordes de Body Paint começaram na TV, bem baixinho, como música de elevador preenchendo o ambiente. Fechou a garrafa; you’ve made yourself quite the bed to lie in, cantarolou, contornando a divisão entre a cozinha e a sala e sentando-se no sofá, a perna esquerda cruzada por baixo do corpo. Ele a seguiu, bem de perto, sentando logo ali ao seu lado, mais próximo do que a distância de um braço, aumentando o volume da TV.
  Ela estava em um bar com seus amigos quando a notificação chegou. “Já tô de volta, consigo te ver hoje?”, ela pôde ler ainda na tela de bloqueio, uma corrente de gelo lambendo sua barriga por dentro no instante em que leu o remetente. Levou mais duas cervejas para decidir que decisão tomaria e o que responderia, propositalmente contando com o álcool para alcançar uma resposta. E só abriu a conversa quando chegou a uma conclusão, esperando que ele estivesse online, visualizasse rápido e a troca fosse ligeira o suficiente para que ela não desistisse no meio do caminho.
  Ele estava; visualizou na hora, lhe passando seu endereço, que ela copiou e colou no aplicativo da Uber enquanto se despedia dos seus amigos e ia até o caixa pagar sua parte da conta.
  As coisas sempre foram assim entre eles, objetivas, de certa forma. Nenhum plano era feito com antecedência, as mensagens eram respondidas de imediato ou perdia-se o timing, ninguém elaborava muito bem para onde aquilo ia ou o que aquilo era. Talvez, muito por esse aspecto, tenha sido um equívoco dela lá atrás pensar que eles poderiam ser algo além da eventualidade que eram.
  Porque ela se deixou pensar isso, se deixou sentir saudades dele quando durante aquela viagem. Foi ingênua de expressar isso quando ele voltou, e tinha absoluta certeza de que o assustou ao fazê-lo. O que em absoluto não o impediu de descer o zíper de sua blusa enquanto a olhava pelo espelho do banheiro, ou sorrir quando ela se ajoelhou dentro do box, a água quente embaçando os vidros, as mãos bagunçando os cabelos úmidos dela, agarrando seu crânio com firmeza.
  Soprou a caneca e tomou um gole do café, tirando o foco do sexo. Uma vez mais estavam sozinhos juntos e ela ainda não sabia se gostaria de repetir os eventos da única vez em que isso aconteceu.
  — Então — começou a dizer —, você estava?
  — Estava o quê? — O braço dele estava apoiado no encosto do sofá, os dedos tamborilando no ritmo da música, os olhos voltados para ela.
  Aquele olhar, o tipo, a insistência em mantê-lo, a estavam desconcertando. Geralmente ela era a pessoa cujo olhar insistente desconcertava os outros. Ao longo dos anos, aprimorou a habilidade de manter um contato visual ininterrupto sem sentir vergonha. Funcionava toda vez. Mas nunca parou pra pensar que poderia ser desconfortável estar do outro lado. Touché.
  — Pensando em mim enquanto eu pensava em você.
  Ele piscou, mas sua expressão não mudou e ela sabia a resposta antes que viesse. Sentiu os dedos dele em seu ombro exposto, só as pontas, desenhando pequenos círculos sobre a pele; não conseguiu evitar tremer.
  — Passei os últimos meses me perguntando se tava maluco.
  Ela respirou fundo, só então percebendo que sua respiração estava suspensa. Foi um alívio, mas também foi um banho de água gelada; nada mais poderia ser encarado como acontecendo no plano das ideias a partir de agora.
  — Isso é um sim?
  — Definitivamente um sim. — Ele riu, o peso dos dedos dele intensificando em sua pele. Ela não tremia mais, mas seu sistema nervoso ainda estava em alerta, se acostumando ao estímulo. Se perguntou quando ele virou aquela pessoa, lhe mandando indiretas, a convidando pro apartamento dele, a tocando sorrateiramente. Quando a vontade havia superado a timidez.
  — Foi você quem começou.
  — De certa forma. — Ele não parecia querer fugir do fato, como ela imaginou que faria, pelas evasivas que se arrastaram por meses.
  — O que aconteceu?
  Ela não esperava que a resposta fosse automática, mas também não lhe ocorreu que pudesse demorar. Ele continuou a tocá-la, continuou olhando em seus olhos como se pudesse lhe dizer a resposta por telepatia, mas não dizia uma palavra. Ela franziu a testa, mordeu a parte inferior da bochecha, lembrou que segurava café nas mãos e deu um gole; já estava quase morno. Percebeu que ele se inclinou um pouco, mas o único ponto de contato que mantinham continuava sendo seu ombro.
  Quando abriu a boca pra falar, desconversar, voltar atrás — que fosse — ele foi mais rápido.
  — Acho que nunca parei de pensar sobre, na verdade.
  — Mas partiu de você, não de mim. — A expressão dele pareceu confusa, e ela continuou: — O fim.
  Ele riu. Ela não esperava que ele risse, mas começava a achar que não conhecia mais tão bem assim aquela pessoa. E na esteira desse raciocínio, se perguntou se chegou a conhecê-lo de fato em algum momento quando estiveram juntos, anos atrás, pelo curto período de tempo em que durou até que ele decretasse o fim.
  — Tu me pegou com a guarda baixa agora.
  — Desculpe. — Ela ergueu ambas as mãos, se rendendo, tomando outro gole do café.
  Não sentia que era sua vez de dizer mais nada, então ficou em silêncio. Esperou, olhando-o como ele a olhava, impulsionada pela coragem que apertar um nervo sem saber que o fazia lhe causou. Precisava internalizar que eles, aparentemente, estavam em pé de igualdade ali, uma vez que ele deixou claro que ela não estava ficando maluca sozinha, afinal.
  Os dedos escorregaram levemente para sul, no limite entre seu ombro e sua clavícula. Ela engoliu seco, pensando que a culpa, convenientemente, talvez houvesse ficado embaixo do tapete ao lado de fora da porta.
  — Acho que eu quem tenho que me desculpar… Talvez?
  — Tá perguntando, sério? — Foi a vez dela rir.
  Naquele intervalo de mais de três anos, não sentiu em nenhum momento que ele lhe devia desculpas.
  Claro que doeu, ainda que pouco, a mensagem enorme que ele enviou justificando que não queria mais. Porque a justificativa lhe pareceu porca, lhe pareceu vazia; pareceu mais um “acho que você é trabalhosa e não quero lidar com o transtorno”, do que um “não te quero mais” de verdade.
  Doeu no ego, e essa dor era difícil pra ela engolir e digerir.
  — Sei lá, acho que não consegui te responder da forma que devia.
  — Devia ou queria?
  — Não é que eu não quisesse. — Ele pegou a xícara da mão dela, colocou ao lado do Xbox e voltou a se sentar. A ponta de seu joelho encostou no dela e ela sentiu como se o contato estivesse acontecendo por baixo da camada do jeans que ele vestia. — Eu não estava bem comigo e não conseguiria estar cem por cento com você.
  — Presta atenção. — Ela segurou seu rosto e percebeu que o pegou de surpresa com isso. Se aproximou inclinando o tronco em direção a ele, centímetros de distância entre os lábios. Ela não tinha memória olfativa significativa, mas teve absoluta certeza de que ele cheirava igual. — Naquela época, eu só queria te dar.
  Talvez ele a quisesse de fato agora, três anos depois, com a intensidade que foi dela, antes. Talvez a confusão com a qual ele estivesse lidando já houvesse se liquefeito. Talvez, assim como ela, ele começou a fazer terapia e lidou com os próprios demônios de forma eficiente o suficiente para não arrastar suas questões para terceiros. Talvez já fosse tarde pra tudo isso.
  Talvez fosse só papinho.
  — E agora?
  — Agora as coisas não são tão simples.
  A frieza da frase, embora tenha sido dita em tom quente, não o afastou, nem afetou seu olhar. O subentendido não estava sendo assimilado; se estava, era solenemente ignorado. Ele segurou seus pulsos e passeou uma das mãos ao longo de seus braços, voltando uma delas para a clavícula, os ombros, subindo até a nuca e apertando seus cabelos entre os dedos.
  A lembrança foi imediata e arrastou efeitos ao longo do corpo dela.
  — Mas você quer me beijar.
  — Também quero te bater. — Ele sorriu.
  — Tô ok com isso.
  Vodca foi o que ela bebeu três anos antes, durante a festa em cujo pós finalmente conseguiu que as mãos dele a cobrisse com sede — embora tivesse para si que nunca passou da superfície da pele; ele não permitiu. Talvez pelo álcool escolhido, que não era de seu consumo regular, lembrava apenas de trechos daquela noite, nunca dela completa. Em suas exaustivas análises posteriores sobre, culpou o tesão também. Foram tantos meses querendo e tantos dias longe dele depois de ter escorregado a mão ao norte daquela calça preta que ele usava sempre, como se mais ninguém estivesse no carro, que aquilo acumulou dentro dela. Uma ansiedade que não estava lá antes. Uma sede.
  Agora ela tinha bebido cerveja, a marca de sempre, na quantidade de sempre para um sábado à noite. Portanto, não havia possibilidade de culpar o álcool pela forma como se sentia compelida a empurrá-lo contra o sofá, montar em suas coxas e sentir o gosto do cravo do cigarro direto de sua língua.
  Como se ainda fosse 2021 e ele tivesse acabado de voltar de apenas quarenta dias longe dela.
  Ele virou a cabeça à direita, e foi só por isso que ela o deixou se aproximar ainda mais. Sentiu os lábios dele em sua bochecha, e a ponta dos dedos da mão que não agarrava seus cabelos, em sua coxa, no limite do tecido da saia. Engoliu seco e fechou os olhos.
  Aquilo já era traição, não era?
  Voluntariamente levou seu corpo disposto até aquele apartamento. Completamente dentro de suas faculdades mentais, sentou-se ao lado dele no sofá. Deixou que a entretivesse, deixou que a tocasse; já sentia as gavinhas se insinuando por baixo de sua pele, se aprofundando, intencionando chegar na corrente sanguínea.
  E, no entanto, aquilo não mudava nada.
  A forma como se sentia sobre seu namorado era a mesma. Entendia que o que estava fazendo era errado — ninguém sabia que ela fora até ali, afinal —, sentia-se culpada sobre isso, mas queria fazê-lo da mesma forma.
  Com os lábios dele descendo pelo seu pescoço e os dedos subindo por sua coxa, não conseguia avaliar de forma objetiva se valia a pena o risco de conviver com uma memória vívida deles dois.
  — Você precisa saber de uma coisa — ela falou baixinho em seu ouvido, um último resquício de decência, a culpa assumindo o controle de sua língua.
  O refrão de R U Mine?, aleatoriamente acrescentada pelo Spotify na sequência, não tocava alto o suficiente para abafar a voz dela. Ele ergueu a cabeça, os olhos tão azuis perscrutando sua alma e ela sentiu que ele poderia saber. Que talvez todo o receio e a delicadeza na comunicação tivesse a ver com aquela informação que ele resolveu aguardar que ela trouxesse à tona. Ou que resolveu ignorar.
  Poderia ser o caso de que ele tentou ignorar, mas ela deu sinais suficientes pra que ele se sentisse tentado, ainda que de posse da informação de que ela namorava outra pessoa.
  — Acho que sei o que você quer me contar.
  Ela congelou, arregalando os olhos. Mas a afirmação não veio em conjunto a um afastamento e ela não soube interpretar isso.
  A frase completa veio até a ponta da sua língua e se dissolveu, feito algodão doce. Não entendia qual era a questão moral que a compelia a querer falar daquilo naquele momento, que nada poderia ter a ver com a imoralidade de tudo. Parecia que, já que estava enganando alguém, que pelo menos ele não fosse mais um.
  — Sabe?
  — Tenho um palpite. — Ele trouxe a mão de volta de sua nuca e afastou seu cabelo do rosto. A ponta dos dedos, agora, pairava sobre a veia tensionada em seu pescoço. — Mas se for o que eu tô pensando e você falar te fazer ir embora, prefiro que não diga nada.
  Ela o olhou, garganta apertada, respiração presa, milhões de dúvidas contidas num espaço de tempo que ela não dispunha para organizá-las e entendê-las. Sentiu que ia perder a coragem.
  — Tudo bem, eu não digo.

  Três dias depois ela descobriu que ele a havia silenciado no Instagram.
  Após dois meses ele voltou a figurar entre os visualizadores de seus stories.

Fim



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