
a porta dormiu aberta
Escrito por penélope a.
Revisado por Natashia Kitamura
parte 1
salvar o desejo
O que te faz pensar em mim às três horas da manhã?
É um período vulnerável, as horas que compreendem a madrugada, eu entendo isso. Nostalgia, insônia, carência, tesão, são só alguns monstros que escolhem atacar depois da meia noite. E eu aceito o argumento do álcool exacerbando todos eles. Mas por que, ao se perceber vulnerável, por um ou outro motivo, é em mim que você pensa?
Já faz três anos, eu e você. São muitos dias que nos separam do nosso último encontro. Nenhum de nós deve lembrar a textura e o gosto do outro.
O que te arrasta até mim?
Eu já me fiz essa pergunta e não tenho resposta; não sei, parece vago, mas é o que sei (nada). Daí, talvez, seja injusto da minha parte esperar uma resposta conclusiva sua, admito. Sua resposta pode ser igual à resposta que eu já tenho. E aí ninguém vai a lugar nenhum.
Não sei se quero ir a algum lugar, mas já que estou aqui…
Eu te assustei, não te assustei?
Olhou pra mensagem digitada salva como rascunho na DM, os dedos dançando sobre o botão enviar. Estava mais uma vez naquele lugar de “e se” porque aconteceu novamente. De madrugada, como das últimas duas vezes. Não era nada demais, no fim das contas, era só um like silencioso numa foto. Das outras vezes ela também ficou dando significados àquilo, sozinha com sua consciência, mas sempre de forma atrasada, sempre após acordar com a notificação.
Naquela noite ela estava desperta, e acompanhou ao vivo o alerta aparecendo na tela. Outro like silencioso que ela não viu chegando. Mas ao encarar o celular, colocando a longneck na pia do banheiro apertado, não conseguiu evitar pensar que o antecipara; o desejara. Por nunca saber quando viriam, se encontrava em um frequente estado de alerta ao postar qualquer coisa. E aquilo não era nada bom.
O primeiro fora há sete meses - dois anos e cinco completos desde que se tocaram para além de cumprimentos públicos impessoais, vinte e sete dias depois que a foto havia sido postada, o que lhe dizia que ele foi procurá-la. Era quatro da manhã de um sábado; ela estava dormindo. Fazia quase dois anos que só beijava uma pessoa e essa pessoa não era ele. E isso era grande parte do problema.
Não se sentia correta de antecipar interações de um terceiro em suas postagens, mas o fazia inconscientemente. Não entendeu que aquele gosto amargo em sua saliva era culpa até o segundo like chegar.
Foi menos aleatório que o primeiro, afinal a foto estava no ar por vinte e quatro horas ininterruptas antes de sumir sozinha. Mas ela era um repost, a publicação completa estava em seu perfil, provavelmente no topo do feed de todos os amigos com quem interagia com mais frequência. Ele não era um deles. Fazia sentido ele dar o bendito like no story e não na publicação completa, então, certo? Exceto que não fazia sentido o like em si, em primeiro lugar.
A última foto sua que curtiu, apesar de sempre estar entre os visualizadores de suas postagens, fora aquela em março, quando a madrugada revelou uma vontade que ele escondia da luz do dia. Ou assim ela projetava a situação toda, depois que resolveu dar significado àquilo, já que não poderia ser uma simples coincidência. As peças da eventualidade não se encaixavam. Ou ela não queria que se encaixassem, casa onde se instalava a culpa.
Era tudo muito estúpido. Angustiante.
Likes e nenhuma comunicação significativa para os quais ela, por que motivo fosse, dava atenção demais. As interações vazias do século XXI e seus efeitos na mente.
Mas então ali estava, acordada na madrugada em que ele resolveu apertar o coração no canto inferior direito da foto que ela postou no espelho do bar onde eles deram o primeiro beijo. Onde ela lhe roubara um beijo, verdade seja dita.
Não havia coincidências ali.
Ainda assim, saiu da conversa e fechou o aplicativo.
As mãos dele são tão suaves conhecendo meu corpo e eu queria que elas me cobrissem com sede, mas isso não é coisa que se peça; ela escreveu em agosto de 2021 em seu journal. Apesar de não citar nome algum, enquanto encarava a página aberta em cima de sua escrivaninha, sabia que estava falando dele.
No intervalo entre sentir, entender e externalizar o que sentia através da escrita, ela o havia beijado intensamente no carro de um amigo de um amigo com quem pegaram carona. Wild One, do Hippie Sabotage, tocava altíssimo nos autos falantes enquanto ela sorria em seus lábios e subia a mão pela coxa dele, protegidos pela escuridão do banco de trás, à caminho de deixá-lo na porta de seu condomínio. Os dois viajariam no dia seguinte, para destinos e com objetivos completamente diferentes.
Enquanto estava em Cabo Frio, enviou do banheiro compartilhado do Airbnb uma seminude inofensiva, que foi devidamente visualizada, mas nunca respondida. Perdeu um dia inteiro de viagem se perguntando se fora equivocada, se entendeu errado o beijo diferente que deram naquela pseudo despedida. E aí ele postou um link do spotify com Corduroy Dreams do Rex Orange County. Tinha vinte e poucos à época, então não se sentiu assim tão mal de buscar significado nas coisas como se sentia atualmente fazendo o mesmo. E a música serviu como uma luva pra justificar a falta de reação à seminude. How could I ignore you? Trust me I adore you.
E por ter dado significado a isso, aprendeu duas coisas sobre ele: que tinha um ótimo gosto musical, e que, nas raras vezes em que postava alguma coisa, essas coisas postadas provavelmente significavam algo.
A outra vez em que ele postou algo possivelmente significativo foi amarga.
Ela tinha ligado pra ele, já tarde da noite, sob efeito de muitas doses de álcool, intencionando que eles repetissem o que haviam feito na suíte da casa em que estiveram juntos na semana anterior. Ele não atendeu; nada foi dito em decorrência dessas ligações quando ela acordou de manhã e se lembrou, envergonhada.
E aí, naquela mesma noite, ele mandou uma mensagem enorme, muito educada e cheia de dedos, dizendo que era melhor que o que tinham não evoluísse, que ele estava muito bem em sua própria zona de conforto, sozinho. E no dia seguinte postou um link pra There’s A Reason Why (I Never Returned Your Calls) do Blossom. Pra ela, que também não conhecia essa, foi auto explicativo o suficiente; nunca parou para ouvir a música.
Enquanto lembrava disso, ao observar mais uma vez a DM aberta que marcava a mensagem estática como rascunho, dias depois do último like silencioso, se sentindo em Nick & Norah’s Infinite Playlist, ela resolveu finalmente ouvi-la.
There's a reason why I never returned your calls.
I wish I could forget it all.
But I never returned your calls
'cause I'd fall in again.
– Merda - sozinha no silêncio de seu quarto, leu e releu o refrão da música enquanto ela progredia em seus fones de ouvido.
Se sentiu meio dormente, as pontas dos dedos formigando enquanto se ajeitava na cadeira, voltando a música do início, sem acreditar no que escutava. Lembrava-se vividamente de abrir o story e entender o recado pelo título autoexplicativo, mas por se sentir um pouco humilhada, não quis investigar mais nada além daquele ponto. Tem um motivo pelo qual nunca retornei suas ligações lhe parecia informação suficiente, muito obrigada - ainda que ela não entendesse muito bem tal motivo. Aquela publicação associada à mensagem - muito honesta e, talvez justamente por isso, bastante dolorosa -, era tudo o que precisava saber pra entender que havia acabado, gostasse ela ou não.
Como os poucos meses que compreenderam a relação deles também ficaram em sua cabeça tempos depois, não era surpresa que o título da música nunca tenha sumido. Sentiu que as informações que ela adquiria ali, enquanto ouvia a música e entendia o possível motivo, mudavam tudo o que julgava saber sobre ele, sobre o que tiveram e sobre porquê ele resolveu ir embora.
O que não mudava nada na realidade em que vivia agora, namorando outra pessoa. Só a colocava num lugar de desconforto tremendo, de ter intencionado mostrar vulnerabilidade a alguém que estava vulnerável igual, e ainda assim guardou tudo pra si, engoliu os próprios sentimentos com farinha, achou que era melhor não. Para três anos depois distribuir likes silenciosos em suas fotos, promover interações que pareciam vazias, de tão inofensivas, mas ela não conseguia achar que eram.
Via camadas atrás de camadas no que ele fazia, talvez refletindo a si mesma, que por considerar o que ele fazia como pistas, distribuía as suas próprias, nesse seu costume de trazer intensidade para tudo à sua volta. Ou poderia ser seu desejo de ter se alojado em algum lugar por baixo da pele dele de onde não saiu durante todo aquele tempo, como parecia ter acontecido consigo.
Quando a música acabou e ela pausou a próxima, encontrava-se num impasse: não podia fazer nada, mas precisava fazer alguma coisa.
Medo e culpa a dominavam em igual proporção.
Ela não acredita em horóscopo, destino, cartas de tarot, leitura de mãos, predestinação, ou nenhuma das inúmeras possibilidades que os humanos ao longo da história fizeram ser narrativas para substituir o livre arbítrio e a angústia da casualidade. Suas amigas, entretanto, sentadas na mesa do restaurante pedindo novos drinks depois de seu relato terminar, tinham opiniões divergentes quanto a isso.
– É questão de energia, não precisa elaborar muito! Ele não sai da sua cabeça, eu aposto que você não sai da dele.
– É muito mais difícil trabalhar com essa hipótese do que com a possibilidade de eu estar ficando maluca - suspira, agradecendo a segunda caipirinha do dia ao garçom.
– Isso nem faz sentido!
– Lógico que faz! Se você estiver certa, e ele está obsessivamente pensando em mim, eu faço o quê com essa informação?
Naquela tarde de sábado ela completava quatro dias quase completos em que esteve dominada pela culpa. O copo à sua frente ser apenas o segundo era, inclusive, um milagre, resultado direto de ter passado os últimos trinta minutos contextualizando-as, condensando os fatos de três anos atrás até o que decidiu fazer naquela semana.
Na terça-feira anterior, chegou à conclusão de que o que podia ser feito, pra que a culpa fosse menor, pra que potencialmente ninguém saísse machucado, pra que o texto em rascunho na DM dele continuasse exatamente lá, estacionado, era um teste. Um teste nos moldes do que ele fazia: uma música no story, para a qual ela daria um significado além de si mesma, esperando que, de alguma forma, numa transmissão de pensamentos, ele entendesse o recado. Algo que ficasse apenas ali, no seguro plano das ideias.
Queria ser óbvia, inclusive, porque era provável que a sutileza excessiva não lhe desse nenhuma resposta, e aí o próximo passo seria enviar a mensagem que já deveria ter apagado, mas não conseguia - apagar, ou enviar. Why’d you only call me when you’re high? foi uma opção; tinha tantas coisas que ela gostaria de dizer, como a mensagem de rascunho explicitava, e incapable of making alright decisions, and havin’ bad ideas parecia resumir bem, deixar no ar, mas não muito.
Mas o algoritmo do spotify movido pelas forças que regiam o universo - as quais ela era absurdamente cética sobre - sugeriu Honey Whiskey do Nothing But Thieves no final de uma de suas playlists. E ao passo em que ela ouvia a letra pela primeira vez, traduzindo simultaneamente, só conseguia pensar que ele era fã da banda e que não tinha teste melhor do que aquele.
Postou, se retorcendo de agonia, vergonha e culpa. Era oito da noite.
Quando acordou com o despertador na manhã seguinte, a notificação do like dele estava lá desde às seis e meia da manhã - não de madrugada, na hora da vulnerabilidade de sempre. Junto com outra, aliás, do seu namorado lhe dando bom dia na hora em que chegou ao trabalho. Foi sentimento demais para processar antes de sequer ter tomado café.
Estava lá o que ela queria, o teste que planejou por dias havia dado resultado positivo. Ele não apenas curtiu como foi o único que curtiu o maldito story; não havia possibilidade de ele não ter entendido o recado. E ela não fazia a menor ideia do que fazer a partir daí, porque não sabia, em primeiro lugar, o que queria com aquele teste, além de afastar o fantasma da loucura de seu autodiagnóstico.
Na quinta-feira, um de seus dias presenciais no trabalho, ela abriu o Instagram enquanto seu computador ligava, ajeitando o corpo na cadeira, tomando um gole do café doce demais que pegara na copa, e viu a foto dele, o ícone de story bem brilhante e redondo no início da sua lista. Tremeu. Clicou.
So go on and tell me now
Do you have enough love in your heart
To go and get your hands dirty?
Também não conhecia a música, mas ele foi muito menos sutil do que ela, colocando o trecho inteiro de uma vez, então não faria diferença. Quer dizer, se é que aquilo era um recado para si, afinal. O teste ter sido bem sucedido não lhe pareceu mais sinal suficiente. Agora eles iam se comunicar através de músicas nos stories? Que espécie de maluquice era aquela?
Deu um like. Fechou o aplicativo correndo, como se alguém estivesse vendo-a e julgando-a, além de si mesma. Tentou prestar atenção no que fazia no trabalho, mas se sentia perturbada, no absoluto sentido da palavra.
Dias depois, sentada na mesa do restaurante, mais uma vez entretendo suas amigas com sua vida amorosa, coisa que não fazia desde que, bem, esteve solteira, era naquele ponto em que estava. Sua teoria fazia sentido. E agora?
– O que você faz com essa informação só você pode saber, amiga. Mas, pra mim, tá tudo muito óbvio.
Houve uma concordância coletiva ao redor da mesa e ela respirou fundo. Culpa. Culpa. Culpa.
Nas semanas seguintes, ela seguiu numa espiral de impulso e culpa na forma com a qual escolheu lidar com a situação.
Numa quinta-feira à tarde, no meio de uma viagem de Uber a caminho de uma reunião importante, a escolhida não aleatória - aliás, cuidadosamente pensada - foi Body Paint, do Arctic Monkeys.
And I’m keepin’ on my costume (keeping on)
I’m callin’ it a writin’ tool
And if you’re thinkin’ of me, I’m probably thinkin’ of you
Tão previsível, após sair da reunião, lá estava a notificação do like.
Nove dias depois resolveu colocá-lo em seus melhores amigos.
Dois dias depois disso, coincidentemente, o show do Arctic que ela havia ido no Rio de Janeiro fez aniversário de dois anos, e ela compartilhou um reels de Do I Wanna Know? - com um trecho destacado, claro. Não era boba, nem inocente, e já havia passado do momento em que tentava se enganar disso.
(Baby we both know)
That the nights were mainly made for sayin’ things
That you can’t say tomorrow day
Crawling back to you
Pensava, toda vez, “por que não?”, e continuava a jogar esse jogo mudo como quem não sabia se jogava ou não sozinha. Já não fazia muito diferença as coisas que ele próprio postava, se eram ou não pra ela, se se encaixavam ou não na narrativa que criou na própria cabeça, desde que a sua mensagem estivesse sendo entregue. Desde que ele estivesse dizendo, sem usar uma única palavra, que ainda pensava nela, que a desejava.
Quatro dias depois, achou que já era hora de publicar algo ainda mais específico, salvo há muitos meses além do que vinha pensando nele. Matar a culpa, salvar o desejo - dizia o pano de prato compartilhado entre seus melhores amigos. E lá estava o like, como esperado.
Dois dias depois, num domingo, descobriu que também estava nos melhores amigos dele. Ele postou Call It What You Want, do Foster The People, e apesar de ela não ter reivindicado para si como alvo daquela postagem, apenas a plataforma utilizada pra tal, mais tarde naquele dia postou Harden The Paint.
E foi aí que o trem descarrilhou dos trilhos, a maré e os ventos mudaram, pois ele respondeu.
Apenas um estúpido “aí tu pega na ferida”, como quem não quer se comprometer tanto assim, mas entendeu onde o interlocutor da conversa quer chegar. Ela se sentiu extremamente vulnerável no momento em que viu a notificação, principalmente considerando que tomava um café com o namorado na mesa da copa de sua casa quando aconteceu.
Queria dizer algo, qualquer coisa; alimentar a conversa, talvez, entender onde ele queria chegar para que, através dele, entendesse onde ela própria queria chegar. Qualquer coisa além de um emoji. Mas ela cedeu ao emoji, pois sentiu medo. E culpa.
Não houve qualquer tipo de comunicação pelos próximos dez dias, dos quais três ela passou transando com o namorado em um Airbnb alugado na serra, tentando não fazer barulho para que o restante dos amigos dormindo no quarto compartilhado não percebesse nada. A naturalidade com que seu relacionamento seguia bem e estável era mais um fator que engordava a culpa dentro dela, como um parasita em seu estômago se alimentando das decisões questionáveis que tomava.
Dizia pra si mesma que, até então, não fizera nada de errado, que não podia controlar os próprios pensamentos, mas que era senhora deles, uma vez que não a dominassem. Sentia, contudo, que o momento em que ia perder a briga estava próximo, e que a linha entre a culpa imaginária e a culpa fática ficava cada vez mais tênue.
Na madrugada de um feriado em que perdeu o sono, postou Fireside, do Arctic Monkeys. E o like estava lá ao acordar, como esperava que estivesse.
Dois dias depois, enquanto bebia com os amigos as bebidas que sobraram da viagem, já tendo secado quase duas garrafas inteiras de vinho, e comido muito pouco, resolveu tocar na ferida de verdade com Longshot, do Catfish and the Bottlemen.
Come on, how’d you feel?
And I suppose you’ve come down to help me
Add scenes to the reel, to the reel
Why we lapped it up when we’re wise enough, who knows?
E cedo demais, absolutamente na hora errada, pois ela ficava cada vez mais bêbada enquanto o álcool assentava ao redor da culpa crescendo em seu estômago vazio, ele respondeu o story.