Apenas por um dia
Escrito por Dinha | Revisado por May
Helena fechou os olhos mais uma vez, sentido o incômodo aumentar dentro de si. Por toda a vida havia escutado que aquela não era a solução mais corajosa, mas a garota sabia que o seu limite tinha chegado finalmente, ela simplesmente não aguentava mais. Ouviu as crianças que brincavam no parque naquela fria manhã de domingo, então lembrou-se de um passado muito distante em que ela era tão viva quanto aqueles pequenos.
Inclinou o corpo para poder se levantar do banco que ocupava, determinada a seguir com seu planos, mas foi impedida por uma pressão que a puxou novamente para baixo. Duas mãos fortes a puxavam, obrigando Helena a sentar-se outra vez, ainda atordoada ela olhou para o estranho que a obrigava a continuar no mesmo lugar. Ela tentou mais uma vez sair dali, porém, de novo, sem êxito. Ela o encarou pronta para ordená-lo que a soltasse, e então ela conseguiu ver o rosto mais lindo que já vira na vida. Os olhos dele eram de um cinza escuro, mas havia um brilho que ela não conseguia explicar, os cabelos loiros estavam bagunçados pelo vento deixando o rapaz ao seu lado com a aparência mais descontraída, e ao mesmo tempo, mais bonita. E o sorriso, contido e receoso, no entanto tão belo que fazia com que Helena se esquecesse do seu propósito de outrora.
- Eu vi você aqui sozinha, e pensei – o estranho tinha a voz rouca e calma, falava como se não houvesse nada de esquisito em toda aquela situação – Que nós poderíamos fazer companhia um para o outro. Eu também me sinto sozinho aqui.
Helena olhou espantada para ele, mais pelo fato dele ter usado a palavra sinto no lugar do costumeiro estou. Ele sabia, da mesma maneira que ela, como era se sentir constantemente solitário e mais uma vez, quando os olhos dos dois se encontraram, ela sabia que ele a conhecia mais do que imaginava. Era assustador, mas não para Helena, ela não tinha medo do estranho que sentara ao seu lado e começava a falar coisas sem sentido, pelo contrário, ela conseguia sentir uma estranha sensação de plenitude. Era como se enfim alguém estivesse a completando. Ela sentiu um arrepiou percorrer por sua espinha, aquilo não podia estar certo, ela precisava ir embora e finalmente terminar o que planejava. Terminar tudo de uma vez.
- Me desculpe – ela pronunciou as palavras com hesitação, não sabia qual seria a reação dele – Eu preciso ir embora, tenho algo importante para fazer.
Helena tentou tirar a mão dele que ainda segurava a dela contra o banco, mas o rapaz era evidentemente mais forte que ela, aquilo estava começando a ficar esquisito por demais. Mesmo assim, por algum motivo, Helena não se sentia amedrontada. Ela só queria sair e terminar o que pretendia, e precisava ser naquele momento antes que a coragem fosse embora.
- Eu não quero te assustar – ele continuou ainda calmo, mas sua mão exercia uma força maior sobre a mão dela – Mas eu não posso deixar você ir – ele não sorria mais e seus olhos tinham um tom sombrio agora – Meu nome é Rodrigo e não vou te machucar, eu prometo – ele então olhou para Helena – Só preciso de um dia em sua companhia.
- Eu conheço você? – a garota perguntou um pouco confusa com as palavras de Rodrigo.
- Ainda não – ele sorria ainda mantendo a mão sobre a de Helena, como que para ter certeza de que ela não sairia correndo dele.
- Rodrigo, eu realmente preciso ir – Helena já não certeza se queria ir embora, isso significava que sua coragem já estava sumindo. Ela precisava ir enquanto a vontade ainda fazia parte dela, ou senão, estaria arrependida no outro dia, como sempre acontecia.
- Por favor, não vá – Rodrigo implorava e Helena apenas conseguia admirar os olhos marejados dele. Ele estava quase chorando apenas com a ideia dela ir – Um dia, é tudo o que eu peço.
- Por quê?
- Porque nós dois precisamos disso.
Sem saber o que realmente estava fazendo, ou com o que realmente estava concordando Helena aceitou passar o domingo com Rodrigo, aquele estranho que surgira tão de repente em seu banco na praça. E o mais engraçado nisso é que ela realmente não estava com medo. Helena assentiu concordando com a cabeça, apenas observando os olhos cinzentos brilharem outra vez. E como se pudesse sentir que ela não tinha mais vontade de ir embora Rodrigo soltou sua mão, relaxando de vez no banco, abrindo de novo aquele sorriso que fizera Helena esquecer sua dor.
- Tem uma sorveteria italiana aqui no bairro – ele levantou oferecendo o braço a ela – Preciso tomar uma bola de chocomenta. Me acompanha?
- Você percebeu que hoje é um dos dias mais frios do ano até agora?
- Quem se importa, Helena? O importante é que agora eu tô com vontade de tomar duas bolas de chocomenta. Vem, deixa de ser uma velha.
Helena não pôde conter uma risada divertida ao vê-lo todo animado para tomar suas bolas de sorvete. A garota se encolheu quando uma rajada fria passou por seu rosto, mas quem se importava com o tempo gelado? Ela então levantou e agarrou-se ao braço oferecido por Rodrigo e o acompanhou a tal sorveteria que nem ela sabia que existia. Helena se sentia tão a vontade com ele que nem se incomodara em ouvi-lo dizer seu nome mesmo que ela ainda não o tivesse dito a ele.
Os dois andaram por cerca de dois minutos, conversando sobre qualquer coisa sem importância, rindo como se fossem velhos conhecidos. A sorveteria estava, sem nenhuma surpresa, vazia, mas os dois apreciaram seus sorvetes como em um dia normal de calor. Nenhum falou de sua vida, e nem precisavam, mas não conseguiam ficar sem assunto nem por um segundo. Rodrigo enfatizava as coisas boas da vida, como tomar sorvete em um dia frio ou admirar crianças brincando em um parque, e Helena concordava surpresa por não perceber o quanto gostava das coisas simples da vida.
Enquanto Rodrigo dizia o quanto gostava de observar as crianças brincando, os velhos divagando sobre a vida e os jovens entusiasmados com o novo ídolo teen, Helena percebia que gostava dessas pequenas coisas também e que no fundo, ela apreciava a vida. Apreciava os pequenos milagres do dia a dia.
Demoraram por volta de uma hora no estabelecimento, e assim que pagaram a conta Rodrigo conduziu a garota em uma caminhada até a livraria mais próxima. Ela sentiu a felicidade invadi-la, pois estar no meio dos livros era uma das poucas coisas que a deixava confortável. Os dois passaram uma eternidade na pequena loja, folheando e lendo sinopses de livros que os interessavam. Para Helena, aquele era o paraíso.
- Para você – ela foi tirada sutilmente da leitura da milésima sinopse para ver o embrulho que Rodrigo a entregava – É um presente meu para você.
Helena queria dizer que não precisava do presente, mas não conseguiu, ao invés disso, capturou rapidamente o pacote das mãos dele. O livro era lindo com sua capa cinza, da cor dos olhos dele, e tinha muitas páginas que provavelmente ocupariam dias da vida dela, e era de livros assim que ela gostava. Delicadamente ela o abriu, observando atentamente a dedicatória escrita elegantemente por ele. Era curta, mas Helena tinha certeza de que iria gostar. Olhou para ele e recebeu um incentivo para que lesse o que estava escrito.
R.M.
- O livro fala sobre um homem que tem que escolher entre viver ou morrer.
- Você já leu?
- Não, mas eu deveria ter lido.
Rodrigo deu as costas para a garota que se sentia intrigada com o que tinha acabado de ouvir. O arrepio voltou por seu corpo, mas ainda assim, ela não sentiu medo.
Rodrigo levou Helena para a praia, para mostrar a menina o seu lugar preferido no mundo. E era lindo e impressionante, como aquele dia tinha sido para ela. Outra vez ela percebeu que nunca tinha visto aquela praia do jeito que Rodrigo a mostrava, o som das ondas nas pedras, o movimento da água na areia tudo aquilo transmitia uma tranquilidade que ela sempre buscara.
Sentada na areia observando o mar, Helena desistiu do seu plano de mais cedo, Rodrigo tinha mostrado pouca coisa a ela, porém o suficiente para fazê-la querer viver mais. Como era possível? Será que ele ao menos sabia o que tinha acabado de fazer por ela?
Rodrigo tinha salvado sua vida sem ao menos se dar conta disso.
Helena segurou a mão dele sentindo a necessidade de estar ao lado dele para sempre, no mesmo instante, Rodrigo a abraçou, passando a mão sobre o ombro dela, acabando com qualquer distancia entre os dois. Helena não sentia aquilo por ninguém, até tinha o apelido de coração de gelo, mas Rodrigo era diferente e inesperado. Tudo o que ela precisava em toda a sua vida. Podia parecer loucura, mas ela descobriu seu amor por ele ali naquela praia, e sabia que Rodrigo sentia o mesmo. De alguma forma ela conseguia sentir, e mesmo assim não parecia estranho ela estar apaixonada por alguém que nem sabia o sobrenome. Não, nada naquele dia tinha sido estranho.
Helena não sentia medo algum.
- Preciso ir embora, Helena – o lamento na voz dele era nítido, Helena sentiu os braços de Rodrigo a apertando um pouco mais.
- Mas você não pode ir – o desespero tomou conta dela, porque algo no peito da garota dizia que ele não voltaria – Eu quero que você fique.
- Eu também quero ficar – ele passou a mão gelada pelo rosto dela com tanta sutileza que a fazia tremer – Mas eu não posso, está acima de minha vontade.
- Eu vou voltar a te ver?
- Por um bom tempo não, mas nós vamos nos encontrar logo.
O rosto dele era sereno, mas a tristeza estava estampada nos olhos cinzas, Rodrigo não queria deixá-la, mas deveria. As coisas deveriam seguir o ritmo que o universo ditava, já havia feito sua parte por hoje e agora era esperar até que os dois pudessem se encontrar.
- Quem é você? – Helena tinha lágrimas no rosto, não queria deixar Rodrigo partir, mas sabia que era preciso – Você não tem noção do que eu estava prestes a fazer hoje. Você me salvou, Rodrigo.
- Eu te conheço mais do que imagina Helena, sei que antes de eu aparecer no parque você tinha a intenção de ir para casa e se entupir de remédios, entregando-se ao sono eterno. Eu sei o tamanho da solidão que você sente, sei o quanto isso dói em você – as palavras chocaram a garota, mas de maneira positiva. De qualquer jeito que fosse ela não temia ele – Acredite quando eu digo que sei, mas não é assim que você deve deixar o mundo. Não estava certo, eu precisava impedir.
- Como você sabia? – a frase saiu em um sussurro.
- Eu te conheço mais do que você imagina – ele repetiu mais uma vez – Preciso ir, minha hora chegou, mas não se esqueça: eu volto logo.
- De algum modo eu sei disso – Helena sentiu a mão de Rodrigo limpando as lágrimas em sua bochecha – Obrigada, por tudo.
Então Rodrigo, devagar, encostou as suas bocas. Um beijo rápido e delicado, mas muito bom. Helena agradeceu mentalmente por ter tido a oportunidade de conhecê-lo e esperava ansiosamente pelo dia que os dois voltariam a se encontrar.
- Se cuida – e sem mais nenhuma palavra ele foi embora, não olhou para trás.
Helena chorou, mas não se sentiu sozinha como sempre se sentia, ela agora sabia que tinha Rodrigo para ela.
E ela não tinha medo.
Xx
Dois dias se passaram desde o encontro com Rodrigo, ela não achava a vida maravilhosa, mas não se sentia solitária mais. Não tinha vontade de tomar remédios para nunca mais acordar, ela apenas aproveitava mais dos momentos simples e, se sentia feliz.
Helena passou na floricultura próxima ao seu trabalho, queria aproveitar o horário de almoço para visitar o tumulo da sua avó, que havia sido como uma mãe para ela. Ela não costumava ir ao cemitério em dias de semana, mas nada naqueles dias estava sendo normal então não ignorou a vontade precoce de deixar flores para a finada avó.
Escolhera lírios brancos como sempre, eram as flores preferidas da avó Hermínia, e o buquê conseguia deixar a lápide um pouco mais elegante. Helena caminhava pelo cemitério com uma calma invejável, ela se sentia estranhamente confortável naquele lugar. Sempre fora assim, desde pequena, nunca temera a morte.
A garota fez o caminho habitual, mas hoje algo chamava sua atenção: um túmulo colorido, cheio de flores recém colocadas. O dono daquela lápide devia ser muito amado para conseguir tantas flores. Ela deixou a curiosidade vencer seu bom senso, e se aproximou mais do lugar onde as flores estavam depositadas. Ela queria saber quem era o ser tão amado.
Rodrigo Martins – 1989 – 2010
Filho amado e amigo querido, nos deixou precocemente, mas seu amor nunca sairá de nós.
O estômago de Helena revirou, sentiu o buquê cair por suas mãos no mesmo instante em que ela caia sobre seus joelhos. Sentia-se fraca para controlar seu choro então, Helena chorou. Não podia acreditar. Não podia ser verdade. Ela havia passado à tarde de domingo com ele, ela havia o beijado e mesmo assim a foto na lápide mostrava que Rodrigo estava morto há quatro anos.
Como era possível?
- Você o conhecia? – uma senhora elegante estava ao seu lado. Helena olhou para cima, sem entender direito o que estava acontecendo – O meu filho, você o conhecia?
- De certa forma – Helena chorava copiosamente, mas agora por sentir a dor de saber que seu querido Rodrigo estava morto – Mas eu não sabia que ele estava... – ela não conseguiu terminar a frase.
Logo em seguida a mulher ajoelhou-se ao lado de Helena e abraçou pelos ombros, como Rodrigo havia feito na praia há dois dias. Helena se permitiu chorar mais forte. Ela estava confusa e muito triste, mas ainda não sentia medo.
- Hoje completa quatro anos que ele morreu.
- Eu sinto muito – Helena disse entre os soluços de seu choro.
- Eu também – a mulher tinha uma tranquilidade na voz, mas Helena conseguiu ver uma lágrima descer por baixo de seus óculos escuros – Ele faz muita falta.
- Como aconteceu?
Helena precisava saber, doía nela imaginar que ele havia sofrido antes de morrer. Um acidente, só aquilo poderia ter tirado a vida do rapaz que ela tinha aprendido a amar em tão pouco tempo. Então rezou para que ele apenas não tivesse sentido muita dor antes de partir.
- Suicídio - a mulher elegante levantou-se mais uma vez, mostrando o desconforto por falar naquilo – Um dia ele tomou todos os remédios que encontrou pela frente.
Helena levantou-se, chocada o bastante para permanecer ali. Sentiu um soco no estômago ao lembrar o domingo passado. Domingo que ela havia passado com ele. Em um gesto de conforto, apertou o ombro da mulher que agora chorava indiscretamente. A dor de perder um filho, a pior dor do mundo.
Sem mais nenhuma palavra, Helena saiu de perto dela. De perto da lápide. De perto de Rodrigo. Ela estava atordoada, confusa e levemente enjoada, precisava ir embora.
- Obrigada – a voz a vez virar-se outra vez a mulher continuava a encarar a foto do filho – Pelas flores, eram as preferidas dele.
Sem aguentar mais Helena começou a correr, cheia de coisas em sua cabeça. Correu sem ao menos perceber o caminho que fazia até chegar em casa e deitar em sua cama. Como era possível? Era tudo que ela pensava, mesmo assim, ainda sentia o amor por Rodrigo. E ele crescia dentro dela, mas em nenhum momento voltou a pensar em tirar sua vida, nem mesmo para encontrar com ele. Não era o que ele queria.
Ainda assim ela não sentia medo.
Xx
Um mês havia se passado e agora Helena visitava todos os dias o túmulo dele, levando as suas flores preferidas. Passava horas em frente à lápide de Rodrigo, conversando sobre coisas rotineiras, apenas ela. Mas Helena sabia que Rodrigo poderia escutá-la, ela sabia que de algum lugar ele a estava observando.Um dia Helena estava tomando o seu caminho para o cemitério, estranhamente satisfeita pelo dia que tinha se passado. Nada demais, a mesma coisa, porém no fundo ela sentia que tinha sido pleno. Como de costume, colocou os fones de ouvido para a música acompanhá-la até seu destino, comprou dois ramos de lírios brancos – um para sua avó e outro para Rodrigo – e rumou para seu destino.
A música que começou a tocar no seu iPod era a sua preferida e então, Helena começou a cantá-la, tomada pela canção ela fechou os olhos distraída cantando junto aos Beatles, seus pés não pararam eles conheciam de cor o caminho até o cemitério, mas por alguma razão ela não conseguia abrir os olhos.
Foi rápido. Ela não viu, mas sentiu o metal pesado bater em seu corpo a lançando para o chão. Ela sentiu uma dor grande ao cair, mas depois disso nada mais doía.
Helena abriu os olhos e apesar de ver toda a cena por cima dela não conseguia ouvir nada, seu corpo não doía mais e seu coração não batia mais. A morte não tinha sido complicada nem revoltante, ela só não sabia para onde ir agora. Ainda no chão ela olhou para a multidão que cercava seu corpo inerte em desespero e, no meio deles ela o encontrou.
Os olhos cinzas e os cabelos dourados era inconfundíveis, Helena sorriu o fazendo sorrir também. Rodrigo abriu caminho pelas pessoas que nem tinham noção da cena que estava acontecendo diante delas.
- Você veio – Helena disse desgrudando do seu corpo já sem vida para pegar a mão que Rodrigo a oferecia.
- Eu disse que te encontraria de novo - ele a tomou pelo braço, a beijando com mais intensidade do que tinha sido o primeiro beijo dos dois – Doeu? – ele disse em seguida ainda mantendo Helena em seu abraço.
- Um pouco – ela sorria, feliz por estar ao lado dele – Não dói mais – então o beijo outra vez.
- Vamos?
Rodrigo a guiou para longe de todo aquele tumulto, Helena não sabia para onde nem o que aconteceria em seguida, apenas tinha certeza que se sentia bem ao lado dele e, agora seria para sempre. De mãos dadas os dois seguiram seu caminho.
E Helena não sentia medo.