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O dia começou igual a todos os outros. Na minha rotina cheguei no hospital e troquei de roupa. Como sempre, São Jorge estava cheio de doentes, na espera de atendimentos ou em quartos isolados. Como era um hospital com o foco na elite, tinha um paciente em cada quarto. Mas entre todos os pacientes, nesse dia, foi um senhor de aproximadamente setenta anos que mudou a minha vida. Um senhor chamado Thoth, com problemas cardíacos causados pela velhice. Ele estava há um tempo no quarto. Como de costume, fez amizade com os médicos e com os enfermeiros. Por volta do meio-dia ele me chamou.
Andava nos corredores do hospital quando passei pelo quarto dele. Não dei muita atenção no início, pois passei com o olhar confiante para frente. Mas ao sair de frente da porta, escutei um grito de socorro. Voltei correndo com o olhar preocupado. E ao entrar na sala, vi um homem se contorcendo, não soube identificar se era de dor ou era uma epilepsia. Pois em seu confronto interno ele estava entre o real e a ilusão. O homem tremia e gritava em silêncio, pois seu corpo não conseguia segurar um fôlego. Sua boca se dilatava e se reprimia em busca do fôlego que não vinha. Os lençóis que estavam no chão e o corpo na exaustão, diziam o mal no coração, em que eu não pude decifrar na hora. Era como se o corpo não quisesse se mover, mas algo o forçava, o puxando para todos os lados. “O que seria isso?”, eu me perguntei. Mas sem a resposta, chamei um médico e aumentei a morfina. Então o corpo descansou.
Quando os médicos chegaram, não souberam responder a minha pergunta. Várias médicos e nenhum deles podia dar uma resposta sobre o que aconteceu. Mas naquela hora minha alma sabia que algo de errado acontecera. Os médicos passaram todo tipo de exame: de sangue, raios-x e etc. Eles não acharam nada, pois o corpo do paciente estava perfeitamente normal. Porém eu não aceitei, sabia que algo estava errado com ele, afinal ele estava internado em um hospital. Na minha missão pessoal de achar a doença dele, busquei meus colegas de trabalho. Mas nenhum deles soube me responder. Busquei em arquivos o motivo da internação e lá achei uma ficha, na qual dizia que o senhor Thoth tinha entrado no hospital por causa de problemas no coração e nada mais.
A minha curiosidade não parou com aquelas palavras. No decorrer de uma semana criei coragem para falar com ele. Esperei até o final do meu turno para falar com o homem. Com delicadeza abri a porta e perguntei se podia entrar. Com um enorme sorriso e olhos radiantes no rosto, o bom velhinho me mandou sentar ao lado de seu leito. Eu, como sempre, entrei um pouco desajeitado, fechando a porta devagar e quase caindo em cima dela, pelo menos meu novo amigo riu. Ao sentar do lado dele, extremamente envergonhado, perguntei o que tinha acontecido com ele. No momento em que as palavras terminaram de sair de minha boca, o sorriso do homem se desfez. E os olhos radiantes que antes me olhavam se tornaram frios e cautelosos. Na própria expressão dele eu vi o terror.
Com medo do que ele iria falar e com vergonha de ter perguntado algo que podia ser tão pessoal, me levantei e fui em direção à porta. Sem jeito, quase caí da cadeira ao levantar. E em um movimento rápido já estava na porta. Ao girar a gelada maçaneta, o homem soltou uma palavra, que saiu como se fosse o ranger de pesadas correntes, mas ela saiu com alívio do homem. Ao ouvir a palavra me tremi como se um espírito passasse por mim. Por um momento fiquei imobilizado, mas consegui forças e saí do quarto sem dizer mais nada. A palavra que ele disse me marcou e eu levarei pelo resto da minha vida. Uma pequena palavra de grande peso sobre os fracos corações. Como o meu.
E por semanas meu coração andou agarrado à palavra. Sem a minha razão querer, meus sentimentos encontraram a palavra nas minhas memórias. Minhas lembranças de momentos vergonhosos vieram junto com lágrimas amargas do meu ego. E em todo momento e em toda hora eu vi a marca dela. No hospital, os médicos com pesadas correntes ignoradas passavam por mim. Nos pacientes, seus familiares traziam mais peso que os coitados carregavam. Foi ela que me fez parar de comer, parar de beber e etc. Pois nem mesmo no prazer de um programa eu me livrava da prisão dessa palavra. Eu passei a ver ela em todos os lugares, nos gritos, nos gestos e nas atitudes. Para esclarecer, eu já tinha escutado ela, mas nunca naquela tonalidade. Pois naquela hora ela foi dita para alma e não para os ouvidos, algo que eu só fui descobrir depois.
Passadas semanas com o peso, para o quarto eu voltei. E com a mesma determinação de antes perguntei ao bom senhor o porquê dele ter me dito aquela palavra. E ele me contou uma história: de que, quando jovem, essa palavra o apossou depois da morte de sua esposa, sem o esquecimento dela, a palavra se transformou na doença de seu coração. Assustado e desesperado, com lágrimas nos olhos, o perguntei: por que me disseste essa palavra? O senhor fechou os olhos e me disse com um pequeno sorriso: A curiosidade é uma puta.
E ela uma puta traiçoeira. Mas no fim da fala do velho, ele me disse que poderia me ajudar, pois os anos que se passaram com ela serviu de aprendizado. Ao saber de uma possível cura para a minha doença, meu coração se alegrou. E voltei a sentir esperança. E na troca de lugares, todos os dias depois do meu turno, passeai a visitar o senhor Thoth, pois eu me tornei seu paciente.
Em cada dia o senhor Thoth me contou sobre a sua história de vida. Soube que o velho conheceu a morte como ninguém, pois era polícia e dentro da corporação teve que matar para não morrer, mas nem todas foram feitas por ele. Conheceu a morte pela doença de sua esposa e mãe, e conheceu a morte de filho não nascido. E em todos as histórias prestei atenção. Mas quando se aproximava do fim de sua vida, ele me contou o real motivo da palavra, e foi mais me fascinou, pois eu sabia que ela estava comigo. Ele disse as seguintes palavras:
“Há muitos anos, um homem descobriu o segredo da imortalidade. Nela conheceu o mundo, mulheres e todos os prazeres. Mas, como todo presente, a imortalidade tinha seu preço. Um que não é exclusivo dela, pois é o preço da vida. Quanto mais se vive, mais se paga. A pergunta que se tem que fazer é: se a vida vale esse preço”.
E foi nessas palavras que descobri o que havia de errado comigo e ele. E entrei em um diálogo: será que ela vale o preço? Uns dizem que sim, mas às vezes acho que não. E por fim, ao criar coragem, perguntei para ele o que acontece com quem acha que vida não vale o preço. O senhor Thoth, com alívio, me respondeu: que se eu não aceitasse pagar, teria que me deixar levar. Logo, eu não entendi, porém aprendi com as palavras dele, aprendi mais ainda com a palavra inicial.
Daquele dia em diante passei a visitar o senhor Thoth todos os dias. E em todos os dias fiz questão de alegrá-lo com um chocolate ou alguma delícia que podia comprar perto do hospital. Não demorou muito para que o meu paciente se tornasse o meu amigo e meu mentor, pois foi ele a me ensinar a suportar o peso de cada dia e a fazer o peso não crescer. Era bobagem, pois ele me ensinou coisas que meus pais me disseram quando pequeno, como: pedir desculpa, dar licença para as pessoas, ceder o acento e etc. O senhor me ensinou a fazer tudo isso que meus pais não me ensinaram. E eu adotei esses hábitos na minha vida.
Com o passar das semanas me senti mais leve, mas o senhor Thoth se sentiu pior. Seu fraco coração não estava mais aguentando a sua velhice. Então ele me disse que estava perto de seu fim, logo ele iria se entregar, algo que sempre falava. Mas eu nunca soube a que ele iria se entregar. Então eu dei um celular para ele me ligar a qualquer hora. O senhor Thoth agradeceu com um sorriso.
Passado mais algumas semanas, ele me ligou no meio da noite. Foi então que eu me perdi, pois eu os vi, eu vi a palavra. E no meio da noite corri para o hospital ajudar meu amigo. Porém quando cheguei ao hospital, um ar gelado se abateu sobre mim, impedindo que eu continuasse, mas eu fui insistindo até entrar. Corri para o quarto dele e abri a porta com a força que os médicos abriam quando iriam salvar vidas, foi então que perdi minha sanidade.
Ao abrir, o grito de dor do senhor Thoth tomou conta de meu corpo. Ao olhar para o quarto, o ambiente tinha desaparecido, tinha sido tomado por um deserto. Sim, não era uma alucinação, pois todos os objetos do quarto estavam lá como a cama, a cortina, os aparelhos do hospital. Mas as paredes sumiram junto com o chão e o teto. No lugar do chão, tinha areia, no lugar das paredes, tinha dunas e no lugar do teto, nuvens de tempestade. O ambiente estava gelado como a morte, pois um frio vento passava sobre minha pele, cobrindo-a com areia.
Sem saber o que fazer, me taquei no chão e lá a areia tomou meus olhos. Com dificuldade, a tirei de cima enquanto ouvia os gritos do velho. Ainda caído no chão, olhei de volta para porta e nada existia no lugar do que era uma porta. Era como se tudo no mundo sumisse. E então o ar não foi dominado com os gritos do meu amigo, pois minha voz lutou contra a dele sobre o domínio do som. Meus gritos foram levados ao vento, que quando passou sobre minha pele, depositando areia, fez o som da minha voz sumir. E não me restou nada além de correr para o meu amigo.
Me levantei contra o vento, me impus contra ele. Mas a visão dobrou meus joelhos. Ajoelhado no chão, eu o olhei. Olhei para o que o velho falou que se entregaria. Um ser, a palavra, com quatro patas em que davam para o esqueleto de uma mão repousava sobre meu amigo. O ser não tinha carne, apenas a pele ligava seu ossos, sobre ela se via a mistura de um humano com uma cobra. E de cada vértebra vinha laços de escuridão do céu chuvoso. Em sua cabeça nada aparecia além de chifres insanos e seis olhos vermelhos flutuantes. A criatura puxava do velho o que acredito ser seu espírito. Pois o corpo do senhor Thoth não se movia, mas o espectro de um homem lutava contra as oito mãos da criatura.
No meu corpo, além do desespero, corri para agarrar meu amigo, mas não pude, pois não vi. Não na hora o que me segurou, mas depois de algumas tentativas, vi. Em cima do meu corpo, outra criatura igual me puxava. Debaixo do que seria seu peito tinha uma luz sedutora que me obrigava a ir na direção dela. Mas tive forças e antes de tocar na luz empurrei a criatura e caí.
De repente, acordei na cama de um hospital. Gritei para alguém. No fim do meu grito surgiu um enfermeiro, colega meu, que me disse que tive um ataque cardíaco. Perguntei sobre o senhor Thoth, e meu colega me disse que faleceu. Infelizmente a doença de meu amigo passou para mim. Quando contei para os médicos, eles me disseram que foi um sonho. Mas eu sei que não, pois ninguém seria capaz de sonhar com algo como aquilo.
No fim, nada me restou, aqui na cama de hospital, além de pagar pelo preço. O preço dos pecados da alma, pois magoei alguns. O peso da correntes da vergonha, pois eu não falei o que deveria em determinado momento. O que agora matava meu coração, pois em minha alma eu sei que fui bom para as pessoas que amava. O peso dessa palavra que eu carrego no decorrer de meu dia. O peso da palavra: culpa.
A Palavra
Escrito por Gabriel Martins | Revisado por Angel
Capítulo Único
Eu sou enfermeiro e conheço a parte mais grotesca de um hospital. Mas o que eu vi não se compara a nada visto antes. Meu médico não acredita em mim, ele me vê como um alucinado qualquer, mas não sou. Na minha loucura há uma razão, em que me persegue diariamente. Para me entender, terei que dizer primeiro em como eu fui de enfermeiro para paciente. Pois só quem ler essa carta entenderá o que me levou, na verdade, o que levou e levará a todos.O dia começou igual a todos os outros. Na minha rotina cheguei no hospital e troquei de roupa. Como sempre, São Jorge estava cheio de doentes, na espera de atendimentos ou em quartos isolados. Como era um hospital com o foco na elite, tinha um paciente em cada quarto. Mas entre todos os pacientes, nesse dia, foi um senhor de aproximadamente setenta anos que mudou a minha vida. Um senhor chamado Thoth, com problemas cardíacos causados pela velhice. Ele estava há um tempo no quarto. Como de costume, fez amizade com os médicos e com os enfermeiros. Por volta do meio-dia ele me chamou.
Andava nos corredores do hospital quando passei pelo quarto dele. Não dei muita atenção no início, pois passei com o olhar confiante para frente. Mas ao sair de frente da porta, escutei um grito de socorro. Voltei correndo com o olhar preocupado. E ao entrar na sala, vi um homem se contorcendo, não soube identificar se era de dor ou era uma epilepsia. Pois em seu confronto interno ele estava entre o real e a ilusão. O homem tremia e gritava em silêncio, pois seu corpo não conseguia segurar um fôlego. Sua boca se dilatava e se reprimia em busca do fôlego que não vinha. Os lençóis que estavam no chão e o corpo na exaustão, diziam o mal no coração, em que eu não pude decifrar na hora. Era como se o corpo não quisesse se mover, mas algo o forçava, o puxando para todos os lados. “O que seria isso?”, eu me perguntei. Mas sem a resposta, chamei um médico e aumentei a morfina. Então o corpo descansou.
Quando os médicos chegaram, não souberam responder a minha pergunta. Várias médicos e nenhum deles podia dar uma resposta sobre o que aconteceu. Mas naquela hora minha alma sabia que algo de errado acontecera. Os médicos passaram todo tipo de exame: de sangue, raios-x e etc. Eles não acharam nada, pois o corpo do paciente estava perfeitamente normal. Porém eu não aceitei, sabia que algo estava errado com ele, afinal ele estava internado em um hospital. Na minha missão pessoal de achar a doença dele, busquei meus colegas de trabalho. Mas nenhum deles soube me responder. Busquei em arquivos o motivo da internação e lá achei uma ficha, na qual dizia que o senhor Thoth tinha entrado no hospital por causa de problemas no coração e nada mais.
A minha curiosidade não parou com aquelas palavras. No decorrer de uma semana criei coragem para falar com ele. Esperei até o final do meu turno para falar com o homem. Com delicadeza abri a porta e perguntei se podia entrar. Com um enorme sorriso e olhos radiantes no rosto, o bom velhinho me mandou sentar ao lado de seu leito. Eu, como sempre, entrei um pouco desajeitado, fechando a porta devagar e quase caindo em cima dela, pelo menos meu novo amigo riu. Ao sentar do lado dele, extremamente envergonhado, perguntei o que tinha acontecido com ele. No momento em que as palavras terminaram de sair de minha boca, o sorriso do homem se desfez. E os olhos radiantes que antes me olhavam se tornaram frios e cautelosos. Na própria expressão dele eu vi o terror.
Com medo do que ele iria falar e com vergonha de ter perguntado algo que podia ser tão pessoal, me levantei e fui em direção à porta. Sem jeito, quase caí da cadeira ao levantar. E em um movimento rápido já estava na porta. Ao girar a gelada maçaneta, o homem soltou uma palavra, que saiu como se fosse o ranger de pesadas correntes, mas ela saiu com alívio do homem. Ao ouvir a palavra me tremi como se um espírito passasse por mim. Por um momento fiquei imobilizado, mas consegui forças e saí do quarto sem dizer mais nada. A palavra que ele disse me marcou e eu levarei pelo resto da minha vida. Uma pequena palavra de grande peso sobre os fracos corações. Como o meu.
E por semanas meu coração andou agarrado à palavra. Sem a minha razão querer, meus sentimentos encontraram a palavra nas minhas memórias. Minhas lembranças de momentos vergonhosos vieram junto com lágrimas amargas do meu ego. E em todo momento e em toda hora eu vi a marca dela. No hospital, os médicos com pesadas correntes ignoradas passavam por mim. Nos pacientes, seus familiares traziam mais peso que os coitados carregavam. Foi ela que me fez parar de comer, parar de beber e etc. Pois nem mesmo no prazer de um programa eu me livrava da prisão dessa palavra. Eu passei a ver ela em todos os lugares, nos gritos, nos gestos e nas atitudes. Para esclarecer, eu já tinha escutado ela, mas nunca naquela tonalidade. Pois naquela hora ela foi dita para alma e não para os ouvidos, algo que eu só fui descobrir depois.
Passadas semanas com o peso, para o quarto eu voltei. E com a mesma determinação de antes perguntei ao bom senhor o porquê dele ter me dito aquela palavra. E ele me contou uma história: de que, quando jovem, essa palavra o apossou depois da morte de sua esposa, sem o esquecimento dela, a palavra se transformou na doença de seu coração. Assustado e desesperado, com lágrimas nos olhos, o perguntei: por que me disseste essa palavra? O senhor fechou os olhos e me disse com um pequeno sorriso: A curiosidade é uma puta.
E ela uma puta traiçoeira. Mas no fim da fala do velho, ele me disse que poderia me ajudar, pois os anos que se passaram com ela serviu de aprendizado. Ao saber de uma possível cura para a minha doença, meu coração se alegrou. E voltei a sentir esperança. E na troca de lugares, todos os dias depois do meu turno, passeai a visitar o senhor Thoth, pois eu me tornei seu paciente.
Em cada dia o senhor Thoth me contou sobre a sua história de vida. Soube que o velho conheceu a morte como ninguém, pois era polícia e dentro da corporação teve que matar para não morrer, mas nem todas foram feitas por ele. Conheceu a morte pela doença de sua esposa e mãe, e conheceu a morte de filho não nascido. E em todos as histórias prestei atenção. Mas quando se aproximava do fim de sua vida, ele me contou o real motivo da palavra, e foi mais me fascinou, pois eu sabia que ela estava comigo. Ele disse as seguintes palavras:
“Há muitos anos, um homem descobriu o segredo da imortalidade. Nela conheceu o mundo, mulheres e todos os prazeres. Mas, como todo presente, a imortalidade tinha seu preço. Um que não é exclusivo dela, pois é o preço da vida. Quanto mais se vive, mais se paga. A pergunta que se tem que fazer é: se a vida vale esse preço”.
E foi nessas palavras que descobri o que havia de errado comigo e ele. E entrei em um diálogo: será que ela vale o preço? Uns dizem que sim, mas às vezes acho que não. E por fim, ao criar coragem, perguntei para ele o que acontece com quem acha que vida não vale o preço. O senhor Thoth, com alívio, me respondeu: que se eu não aceitasse pagar, teria que me deixar levar. Logo, eu não entendi, porém aprendi com as palavras dele, aprendi mais ainda com a palavra inicial.
Daquele dia em diante passei a visitar o senhor Thoth todos os dias. E em todos os dias fiz questão de alegrá-lo com um chocolate ou alguma delícia que podia comprar perto do hospital. Não demorou muito para que o meu paciente se tornasse o meu amigo e meu mentor, pois foi ele a me ensinar a suportar o peso de cada dia e a fazer o peso não crescer. Era bobagem, pois ele me ensinou coisas que meus pais me disseram quando pequeno, como: pedir desculpa, dar licença para as pessoas, ceder o acento e etc. O senhor me ensinou a fazer tudo isso que meus pais não me ensinaram. E eu adotei esses hábitos na minha vida.
Com o passar das semanas me senti mais leve, mas o senhor Thoth se sentiu pior. Seu fraco coração não estava mais aguentando a sua velhice. Então ele me disse que estava perto de seu fim, logo ele iria se entregar, algo que sempre falava. Mas eu nunca soube a que ele iria se entregar. Então eu dei um celular para ele me ligar a qualquer hora. O senhor Thoth agradeceu com um sorriso.
Passado mais algumas semanas, ele me ligou no meio da noite. Foi então que eu me perdi, pois eu os vi, eu vi a palavra. E no meio da noite corri para o hospital ajudar meu amigo. Porém quando cheguei ao hospital, um ar gelado se abateu sobre mim, impedindo que eu continuasse, mas eu fui insistindo até entrar. Corri para o quarto dele e abri a porta com a força que os médicos abriam quando iriam salvar vidas, foi então que perdi minha sanidade.
Ao abrir, o grito de dor do senhor Thoth tomou conta de meu corpo. Ao olhar para o quarto, o ambiente tinha desaparecido, tinha sido tomado por um deserto. Sim, não era uma alucinação, pois todos os objetos do quarto estavam lá como a cama, a cortina, os aparelhos do hospital. Mas as paredes sumiram junto com o chão e o teto. No lugar do chão, tinha areia, no lugar das paredes, tinha dunas e no lugar do teto, nuvens de tempestade. O ambiente estava gelado como a morte, pois um frio vento passava sobre minha pele, cobrindo-a com areia.
Sem saber o que fazer, me taquei no chão e lá a areia tomou meus olhos. Com dificuldade, a tirei de cima enquanto ouvia os gritos do velho. Ainda caído no chão, olhei de volta para porta e nada existia no lugar do que era uma porta. Era como se tudo no mundo sumisse. E então o ar não foi dominado com os gritos do meu amigo, pois minha voz lutou contra a dele sobre o domínio do som. Meus gritos foram levados ao vento, que quando passou sobre minha pele, depositando areia, fez o som da minha voz sumir. E não me restou nada além de correr para o meu amigo.
Me levantei contra o vento, me impus contra ele. Mas a visão dobrou meus joelhos. Ajoelhado no chão, eu o olhei. Olhei para o que o velho falou que se entregaria. Um ser, a palavra, com quatro patas em que davam para o esqueleto de uma mão repousava sobre meu amigo. O ser não tinha carne, apenas a pele ligava seu ossos, sobre ela se via a mistura de um humano com uma cobra. E de cada vértebra vinha laços de escuridão do céu chuvoso. Em sua cabeça nada aparecia além de chifres insanos e seis olhos vermelhos flutuantes. A criatura puxava do velho o que acredito ser seu espírito. Pois o corpo do senhor Thoth não se movia, mas o espectro de um homem lutava contra as oito mãos da criatura.
No meu corpo, além do desespero, corri para agarrar meu amigo, mas não pude, pois não vi. Não na hora o que me segurou, mas depois de algumas tentativas, vi. Em cima do meu corpo, outra criatura igual me puxava. Debaixo do que seria seu peito tinha uma luz sedutora que me obrigava a ir na direção dela. Mas tive forças e antes de tocar na luz empurrei a criatura e caí.
De repente, acordei na cama de um hospital. Gritei para alguém. No fim do meu grito surgiu um enfermeiro, colega meu, que me disse que tive um ataque cardíaco. Perguntei sobre o senhor Thoth, e meu colega me disse que faleceu. Infelizmente a doença de meu amigo passou para mim. Quando contei para os médicos, eles me disseram que foi um sonho. Mas eu sei que não, pois ninguém seria capaz de sonhar com algo como aquilo.
No fim, nada me restou, aqui na cama de hospital, além de pagar pelo preço. O preço dos pecados da alma, pois magoei alguns. O peso da correntes da vergonha, pois eu não falei o que deveria em determinado momento. O que agora matava meu coração, pois em minha alma eu sei que fui bom para as pessoas que amava. O peso dessa palavra que eu carrego no decorrer de meu dia. O peso da palavra: culpa.
FIM
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