Anos Perdidos

Escrito por Camylla Martiniano | Revisado por Any

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  As imagens da rua passavam distorcidas diante dos meus olhos. Eu me sentia nervosa, tensa e muito ansiosa. A única coisa que eu queria era chegar ao meu destino o mais rápido possível, mas parecia que o tempo estava contra mim.
  O tempo.
  Era estranho pensar que eu estava prestes a respirar de verdade depois de 24 anos tentando acabar com toda aquela agonia, esperando descobrir o motivo de tanto sofrimento, de tanta falta de respostas. Mas hoje eu as teria.
  Olhei para a pessoa ao meu lado, que dirigia o carro. . Meu doce e amável . Meu marido, o amor da minha vida. Ele estava ali, sua expressão dura e preocupada tomava conta do rosto lindo e encantador. Ele não tinha um sorriso nos lábios quando me olhou, mas eu sabia que ele estava com medo daquilo tudo tanto quanto eu. Era graças a ele que eu estava aqui, prestes a tirar meu passado a limpo, começar uma nova vida. Era graças a ele que eu fui feliz metade da minha vida e agora estava me fazendo ser a mulher mais feliz do mundo.
  Ele me olhou esboçando um sorriso nervoso e colocou a mão sobre a minha perna, apertando-a levemente sem segundas intenções. Quando paramos no sinal vermelho, a mão subiu pelo meu corpo, tocando minha barriga um tanto quanto avantajada por causa dos nove meses de gravidez. Nós dois sorrimos de verdade porque sentimentos o bebê mexer.
  Nosso bebê. Nosso filho.
  - Eu não vejo a hora de ver a carinha dele. - comentei acariciando minha barriga quando tirou a mão da mesma para se concentrar no trânsito. - Tomara que seja igual a você.
  - Andrew será igual a você, . - ele falou fazendo com que sua voz melosa me acalmasse naquele momento. - Será tão lindo e maravilhoso quanto você.
  Eu tentei me inclinar para beijá-lo na bochecha por causa daquelas palavras lindas, mas o cinto e a barriga não deixaram que eu me movesse muito, deixando minha frustração num nível mais alto ainda, fazendo-o sorrir quebrando totalmente aquele ar tenso ao qual estávamos desde o dia anterior.   Podia ser apenas pela minha enorme ansiedade, mas demorou em chegarmos finalmente ao restaurante onde tinha feito duas reservas. Eu não saí de imediato do carro. A verdade é que eu estava apreensiva e com medo. Medo do que poderia ouvir da pessoa que eu iria encontrar assim que eu fechasse a porta do carro e entrasse no local.
  Acho que nunca senti tanto medo da vida.
  Fechei os olhos, tentando me concentrar do que estava prestes a fazer.
  Vamos lá, , você lutou tanto por isso, por que amarelar agora?
  Antes mesmo que eu reabrisse meus olhos, senti o cheiro que tanto me tranquilizava mais de perto e as mãos quentes de segurando as minhas que estavam, novamente, sobre a minha barriga, me dando uma dose forte e poderosa de coragem.
  - Se você quiser, eu entro com você. - ele sugeriu me olhando intensamente, transmitindo calma e mais coragem. Só que eu sabia que era exatamente isso que ele sentia. Ele também estava com medo. - Você sabe que eu estou preocupado. Não quero que você se altere, nem nada, eu posso...
  - Não, amor. - me virei, dessa vez conseguindo mais ou menos encará-lo quase de frente. Coloquei uma mão em seu rosto tentando passar uma falsa segurança, o vendo fechar e abrir os olhos com meu toque. Eu amava o efeito que eu tinha sobre ... E amava mais ainda o efeito que ele tinha sobre mim. - Eu vou ficar bem. Além do mais, não acho que algo vá piorar as coisas. Se acontecer algo, eu ligo pra você.
  - E eu venho correndo te buscar. - ele pegou minha mão em seu rosto, dando um beijo delicado nela. - Eu amo você, . Amo Andrew.
  - Eu também te amo, . Nós dois te amamos muito. - disse com um sorriso bobo nos lábios.
  Ele se inclinou para que sua boca tocasse a minha num beijo caloroso e eu percebi que seus olhos não transmitiam tanta coragem como ele tentava passar quando nos separamos. Saí do carro e bati a porta, caminhando em direção ao restaurante. Antes de entrar, olhei para trás, vendo que ainda estava parado, vigiando meus passos. Sibilei um ?vai logo? e ele, a contra gosto, acelerou o carro na direção da casa de e , nossos melhores amigos. O primeiro não apenas amigo. era meu irmão de criação e o que mais estava contrariado com aquela situação. Eu sempre soube que não era sua irmã de verdade, mas nada tinha impedido que nos amássemos como se fôssemos do mesmo sangue ou que ele batesse nos garotos que me chamavam para sair, incluindo .
  Eu sabia muito bem o porquê do escolher um local tão perto da casa deles. Assim ele não precisaria ficar muito longe. e seu jeito todo protetor comigo.
  Quando abri a porta, um jato de ar quente e aconchegante atingiu meu corpo, me deixando um pouco relaxada, mas não por muito tempo.
  Ela já estava lá. Não tinha como não reconhecê-la mesmo diante de tantas pessoas.
  Poderia até soar estranho para uma pessoa qualquer, mas para mim, era ela. Eu tinha certeza daquilo. Há coisas na vida que você sabe e sente, mas que não tem explicação do como, e aquilo era uma dessas coisas.
  Assim que eu vi a mulher sentada numa mesa reservada a alguns passos de mim, meu corpo ficou tenso novamente e minhas pernas pareciam gritar para que eu saísse correndo dali à procura de um esconderijo. Mas não o fiz. Fiz o caminho todo, passo a passo com todo o cuidado para não tropeçar, respirando fundo, ignorando meu coração que batia forte contra o meu peito indicando que a qualquer momento eu poderia ter um ataque cardíaco e morrer, ou minhas mãos úmidas, que logo eu tentei pô-las na minha barriga como se aquele gesto fosse um escudo muito poderoso e nada e nem ninguém no mundo pudesse ferir a mim ou ao meu bebê.
  Tudo vai ficar bem. Eu dizia a mim mesma, mentalmente, enquanto continuava a andar, até que eu parei em frente à mesa e a mulher me encarou. Ela não tinha me visto entrar por estar distraída vendo algumas fotos de crianças pequenas, mas eu não prestei muito atenção nelas.
  A mulher tinha os meus olhos. Engoli seco.
  - O-Oi. - gaguejei e uma súbita vontade de me socar por aquilo cresceu dento de mim. - Sou a .
  - Olá, . - a mulher sorriu fraco para mim e desviou os olhos para a minha barriga. Seu sorriso se estendeu um pouco mais e ela indicou uma cadeira vazia a sua frente para que eu sentasse. Sua voz estava pastosa, como se estivesse chorado poucos minutos atrás. Ou era impressão minha. Eu não conhecia o tom da minha mãe e era bizarro admitir isso.
  Nos encaramos por um breve momento com um silêncio incômodo, mas era de se esperar, não era? Não é tão simples estar diante da mãe que te abandonou quando você nasceu, depois de tantos anos se perguntando o motivo dela ter feito aquilo. Por anos eu quis esquecê-la. Por anos tentei ignorar o fato da família de ter me adotado. Eu desejava tão fervorosamente que eles fossem minha família de verdade... Até que eu me dei conta de que não importava nada além do amor que tínhamos uns pelos outros. Eles já eram minha família assim que tivemos o primeiro contato. Eu não me lembrava, é claro. Era um bebê recém nascido.
  - Parece que vai nascer. - , ou minha mãe, como preferir, disse ainda com os olhos vidrados na minha barriga.
  - Vai sim. - baixei meus olhos para onde ela olhava, acariciando minha barriga. - Ele vai ser muito feliz.
  - Eu tenho certeza que sim. - ouvi um barulho estranho vindo dela e levantei a cabeça. estava chorando, mas tentava disfarçar limpando as lágrimas. - Eu fiquei vendo as fotos de quando você era criança... - ela me indicou uma foto em particular onde estava eu e no natal há muitos anos atrás, ambos empacotados por causa do frio e com sorrisos cheios de si porque tínhamos conseguido fazer um boneco de neve sem a ajuda do papai ou do tio Ben. - Eu não sei por onde começar.
  - Por que você não começa do começo? - perguntei com a voz um pouco grave sentindo minha garganta se fechar com a expectativa do que estava prestes a ouvir. - Por que você me abandonou? Por que nunca me procurou?
  - Eu procurei. - ela soltou um suspiro, passando as mãos nos olhos. A última coisa que precisávamos era que ela tivesse um ataque de consciência e chorasse sem parar. - Mas já era tarde demais, você já havia sido adotada.
  - Por que não antes? Por que você fez isso comigo? - eram tantas perguntas que rondavam minha cabeça naquele momento... Eu precisava saber de tudo.
  - Eu era nova... - ela começou, suspirando mais uma vez. Suas mãos postas em cima da mesa mostravam claramente o quanto nervosa ela estava. - Eu não sabia o que era o amor, tinha dezessete anos e estava apaixonada. - fechou os olhos, fazendo um careta para conter o choro. - Eu fiquei grávida, mas meus pais não aceitaram o fato de eu esperar um filho de uma pessoa com a classe abaixo da minha. - nesse momento ela abriu os olhos, fixando-os nos meus. - Eu queria você, . Eu e seu pai queríamos você. Nós lutamos por você até o dia em que você nasceu...
  Meu coração estava muito acelerado e minhas mãos tremiam compulsivamente na minha barriga. Eu as pus em cima da mesa, pensando que aquela tremedeira pudesse assustar o bebê. Eu nem sabia se ele poderia sentir, mas estava me prevenindo. Meus olhos começaram a queimar, anunciando que logo lágrimas desceriam por eles. Eu não queria chorar, queria ser forte e ouvir tudo. Eu não estava com raiva da mulher diante de mim. Não mais. Essa fase da minha vida já havia passado e com a gravidez, isso apenas se acentuou.
  - Mas quando eu cheguei ao quarto depois do parto, tinham me dito que você tinha nascido morta por causa do cordão umbilical que estava enrolado em seu pescoço. - ela fechou as mãos com força, aumentando a voz gradativamente. - Eu fiquei desesperada. Eu e seu pai. Estava tudo planejado. Iríamos fugir com você e quando me disseram toda essa história, eu acreditei. Acreditei porque era burra demais para enxergar as coisas claramente.
  - Então como você soube que eu estava viva? - perguntei, me manifestando pela primeira vez desde que ela começara, sentindo que meu coração sairia pela boca a qualquer momento.
  E então ela começou a chorar antes mesmo de me responder. Estávamos num canto particular do ambiente, mas era claro que todos estavam prestando atenção na nossa conversa agora. Principalmente com chorando daquela maneira. Quando me dei conta, eu também estava chorando. As lágrimas grossas lavavam meu rosto e eu deixei que elas escorressem até o meu queixo e caíssem no meu colo. Eu não poderia mais esconder o quanto aquilo tudo estava me afetando. Só que ao contrário da minha companhia, eu chorava em silêncio.
  - Me desculpe por isso. - pediu, limpando as lágrimas do seu rosto totalmente molhado e vermelho com as mãos. Ela respirou fundo e voltou a me encarar, suplicante. - Eu não sabia de nada. Eu só fui saber anos depois... Só fui saber quando meu pai estava morrendo. Ele tinha assinado um documento autorizando a adoção por eu ser menor de idade na época. Ele não pensou duas vezes antes de fazer. Estavam querendo me tirar você e afastar seu pai de mim e conseguiram. Eu me mudei para a Irlanda e seu pai ficou aqui, sem saber onde ou como eu estava. Eu o amava muito e foi doloroso demais perder vocês dois de uma vez só. Mas assim que eu soube que você ainda estava viva, contratei um detetive.
  Eu já sabia o resto. Já sabia o que aconteceria depois dela descobrir tudo. me encorajou a procurar minha mãe biológica e através do detetive dela, estávamos diante uma da outra. Não havia outro dia melhor se não hoje, um dia especial para as mães.
  A voz dela estava afetada demais. Dava para ver o quanto ela se sentia falando sobre aquilo, me fazendo acreditar. Por anos eu achei que minha mãe biológica fosse uma mulher sem coração que tinha me abandonado num orfanato, sem pensar, mas a verdade é que ela sempre sofreu. Eu poderia até a arriscar em dizer que ela era a que mais sofreu com tudo isso. A perda da sua filha e do homem que amava. E depois de anos, descobrir que tudo era por causa de um capricho ridículo da sua família em não aceitar que ela se casasse com alguém pobre.
  Eu me levantei antes que percebesse o que estava fazendo e abri meus braços, com um sorriso fraco no rosto.
  - Por que você não me dá um abraço, mamãe? - ela me olhou com os olhos arregalados ao me ouvir lhe chamar de mãe pela primeira vez na vida. E logo depois sorriu alargamente pra mim, dando a volta na mesa me abraçando forte.
  - É tão bom ouvir você me chamando assim. - a voz pastosa dela se misturava aos nossos soluços cheios de sentimentos não compartilhados durante anos. - Não imaginei que você fosse me perdoar.
  - Não há nada para ser perdoado. Você não teve culpa de nada. - ela me apertou mais forte quando eu falei e mais lágrimas desceram pelos meus olhos.
  Ficamos assim por tanto tempo que eu poderia dizer que horas haviam se passado. Nossas lágrimas molhando uma a outra, nossos soluços misturados, a saudade de anos, o reencontro finalmente selado.
  - Eu amo você, minha filha. Nunca me esqueci de você. - ela falou me apertando mais contra si, como se eu pudesse escapar a qualquer momento.
  Eu não iria embora, não agora. Não depois de saber de tudo.
  - Eu sei, mãe. - correspondi seu abraço, sentindo um beijo na minha bochecha.
  Ela se afastou. Os olhos vermelhos, as lágrimas tomando conta do seu rosto e o mesmo sorriso sustentado nos lábios. O sorriso dela era igual ao meu.
  - Eu não acredito que perdi tantas coisas na sua vida, mas agora eu quero recompensá-las com o meu neto ou neta. - pôs a mão na minha barriga, passando os dedos levemente sobre ela. Seus olhos brilhavam de admiração. - Você vai ser a mãe mais linda do mundo.
  - O nome dele é Andrew. - sorri, colocando a minha mão sobre a dela. - E disse a mesma coisa. Ele me bajula tanto.
  - Você tem sorte de poder tê-lo ao seu lado e ele também. - ela ainda sorria, mas eu percebi que suas palavras estavam carregadas de tristeza. Não era de propósito, minha mãe apenas queria ter a mesma sorte que eu, ninguém poderia condená-la.
  - Você... Você não teve mais notícias do meu pai?
  - Não. - ela balançou a cabeça, seus olhos perdidos em algum ponto da minha barriga, voltaram a se fixar nos meus. - Nunca mais tive notícias. Quando voltei, procurei por ele na casa que morava, mas ele havia se mudado. Alguns vizinhos disseram que ele se casou.
  - Eu sinto muito por tudo que você passou. Agora eu só quero que você e eu possamos tirar o atraso de todos esses anos.
  - Esse é o melhor dia das mães que eu poderia sonhar em ter. - ela disse, deixando mais lágrimas caíram de seus olhos, fazendo os meus voltarem a arder com o mesmo objetivo. - Reencontrar você, ouvir todas essas coisas.
  - Eu não comprei nenhum presente... Não fazia ideia do que poderia te dar. - disse, limpando as lágrimas que voltaram a descer.
  - Eu já ganhei meu presente.
  Nós nos abraçamos novamente. Mas dessa vez meus olhos não arderam e sim um sorriso tomou conta nos meus lábios. Um sorriso de felicidade.
  - Ei, estou atrapalhando?
  Virei-me, vendo nos olhando com um sorriso bobo no rosto e em suas mãos, dois buquês de flores.
  - Trouxe para vocês. - ele me entregou o buquê de tulipas brancas e um buquê de margaridas para minha mãe. - Oi, eu sou o , seu genro.
  - Olá, querido. - mamãe sorriu para ele, admirada. - Você trouxe a coisa mais importante da minha vida, nunca vou poder te agradecer o suficiente por isso.
  - Eu só queria ver a mulher que eu amo feliz. - envolveu minha cintura, me dando um beijo na bochecha. - E pelo jeito acho que consegui.
  - ... - o chamei, sentindo uma pontada na barriga. Oh, meu Deus. - Eu acho que estourou a bolsa.
  - Calma, - ele falou mais nervoso do que eu. - Está tudo sobre controle!
  Fui posta no banco de trás com minha mãe ao meu lado, enquanto dirigia e ligava para todos os parentes. Entre as contrações, escutei gritando feito um louco do outro lado da linha.
  - Parece que vamos conhecer alguém hoje. - minha mãe disse sorrindo, massageando minha barriga. Eu soltei um sorriso nervoso, sentindo a dor aumentar, mas feliz por tudo que estava acontecendo.

FIM



Comentários da autora

  Oi gente :) por mais estranho que pareça, nunca tinha me passado pela cabeça mandar essa short pro site, até a Any dar a ideia, então tá aí. Foi com ela que eu consegui uma das coisas mais legais nesse mundo de fanfic que foi ganhar o challenge de dia das mães do All About Fics. Fiz algumas modificações porque algumas coisas estavam me irritando, mas como não sou boa em finais, ele continua podre rs. A história foi inspirada no filme "O som do coração" com o meu amado Robin Williams. É lindo, eu recomendo. É isso, espero que vocês gostem e não se esqueçam de comentar; beijobeijo, Mylla