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#021 Temporada

Lose Somebody
Kygo & OneRepublic

 

Amores Plásticos

Escrita por Yasmin Albuquerque | Revisada por Maria Carolina

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Sessão 01, 28 de maio de 2021

  – Tá, calma. Espera um pouco e vamos voltar do começo.
  – Começo começo? – A mulher assentiu. – Então, tudo começou quando eu nasci.
  A mulher riu, o corpo relaxado sobre a cadeira, a caneta na mão e o bloco cheio de rabiscos ininteligíveis sobre a mesa. Contudo, falava muito sério. Seu problema revolvia aos tempos mais remotos de sua existência, até onde ela sabia. Não possuía nenhuma lembrança de relacionamentos que não foram afetados pelo que ela chamava de defeito. Estava ali, inclusive, justamente porque, se um dos conceitos da palavra defeito era incorreção, haveria de existir alguma possibilidade de corrigi-la.
  – Tem algum exemplo prático?
  – Até mais de um.
  – E qual o primeiro? Um que você ache que ilustre melhor?

  O céu estava claro, apesar do vento, então resolvi ir a pé.
  Era razoavelmente longe, eu sabia, mas achava minha cidade suficientemente bonita e segura. Peguei, então, o maior caminho. Se eu fosse inteligente, perto do parque, mais ou menos na metade do percurso, eu mudaria de ideia. A intenção, então, era clara: dar a mim mesma a oportunidade de fazer a coisa certa. Tipo comum de dúvida quando você não sabe muito bem o que está fazendo.
  Apertei o casaco ao redor do corpo. O celular fez barulho dentro da bolsa e pensei: “ele já chegou, não é de bom tom desistir agora, você está sem saída”. A verdade é que eu estava sem saída desde o começo. É muito fácil negar um pedido alheio, mas tente negar algo que seu próprio corpo pede pra ver se é divertido.
  Negar ao próprio corpo é negar a si mesmo, e isso é hipocrisia. Das muitas coisas que eu me permitia ser, hipócrita não era uma delas.
  Perto do meu ponto de desistência, parei numa cafeteria antiga de esquina. A atendente já conhecia meu rosto e perguntou: “O de sempre?”, o que me fez sorrir; me entregou o expresso com creme e deu um tchauzinho, já atendendo outra pessoa. Sempre me perguntei o que faz os atendentes se apegarem às pessoas específicas, já que viam centenas de rostos banais todos os dias.
  O mesmo que faz a gente, talvez.
  Não estava com sede nem nunca fui do tipo viciada em café. Mas ele era, e dizia que gostava mais do beijo se eu tinha gosto de café na língua, então era motivo suficiente. Ele também gostava de chocolate e caramelo, mas dentre essas opções, preferia café. Sempre fui meio amarga e acho que ele sabia disso.
  No semáforo seguinte, me perguntei por que fazemos coisas para os outros que nem sempre nos trazem benefícios. Nada filantrópico, como dar seu lugar no ônibus a um velhinho ou doar trinta reais por mês para ajudar os Médicos Sem Fronteiras a lutar contra a fome em países de terceiro mundo. Meu questionamento era por que eu tomava café antes de encontrá-lo, se não ligava para a bebida? E por que estava usando batom vermelho, se achava que chamava atenção demais?
  Deixá-lo minimamente contente já era motivo para me deixar contente, e isso bastava. Ao me dar conta disso, percebi que a sensação era parecida com a de estar prestes a pular de paraquedas, mesmo que eu jamais tivesse pulado antes. Aquela decisão que tinha cheiro de que mudaria sua vida ou a sua forma de ver o mundo.
  Eu sempre fui dramática, é o ascendente em câncer. No fundo, eu sempre soube o que era tudo aquilo – só estava me apaixonando.
  Só que eu sabia, lá, semanas atrás, enquanto ele bagunçava meu cabelo e marcava meu corpo pela primeira vez, que aquela era uma hipótese inaceitável. Eu fui avisada sobre ele, inúmeras vezes, por inúmeras pessoas, e mesmo assim caí na estupidez de me perder nas mãos firmes e nas costas largas. Se apaixonar era uma estupidez ainda maior. Claro que eu sabia que corria o risco, mas achava ser estupidez muito grande pra minha inteligência.
  Talvez fosse subestimar minha ingenuidade, apenas.
  Tendo em mente que eu estava me apaixonando, só existia uma coisa que eu poderia fazer sobre isso, e era dar o fora o quanto antes.
  Eu sei o que as pessoas pensam quando veem alguém fugindo do amor. É normal, mesmo que não pareça. Algumas se mudam por ele, mas as inteligentes fogem. Algumas vezes o relacionamento não compensa o fim e não dá para saber esse tipo de coisa com antecedência, então a gente precisa ficar ligada quando parece que não vai dar certo. Geralmente, quando eu sentia cheiro de fracasso, estava certa, e esse era meu sinal.
  O engraçado era que, com ele, eu não sentia nada. E sabia por quê.
  Como o Dean Winchester quando questionado pela Fome os motivos de não ser afetado por ela, eu era vazia. Estava vazia há muito tempo e era muito difícil que eu fosse afetada por palavras fofas ou um carinho fora de hora. Eu não era suscetível àquelas coisas, achava. Talvez elas só viessem na hora errada. Então ele chegou e, de repente, eu comecei a tomar café e usar batom vermelho constantemente.
  Filho da puta.
  Perto da rodoviária o trânsito é intenso e a travessia geralmente demora. Enquanto o sinal não fechava, peguei o celular. Duas mensagens dele, confirmando sua chegada e perguntando onde eu estava, se eu queria que ele me pegasse. Não respondi, para dar a mim mesma o benefício da dúvida, a possibilidade de ir embora, mas àquela altura minha casa já estava longe demais pra voltar.
  Como se diz para alguém com quem você está se relacionando, cujo relacionamento aparentemente não tem nada de errado, que ele deve acabar?
  Fácil eu sabia que não seria, mas ele não era burro. Sabia tanto quanto eu que não tínhamos futuro. Foram quase quatro meses de perda de tempo e não era fácil admitir aquilo. Se fosse para brincarmos com corpos alheios, que pelo menos não fizéssemos isso escondido.
  Então era isso. Seria a última vez que ele diria que gostava do gosto de café na minha língua e a última vez que eu usaria batom vermelho às quatro horas da tarde.
  Se eu repetisse aquilo até chegar ao cinema, conseguiria tornar real.
  Contornei a biblioteca municipal e peguei a rua do shopping. Meu celular vibrou de novo. Eu sabia que seria difícil dizer tchau pra ele se eu ouvisse sua voz antes de vê-lo. Ele não tinha a voz mais bonita, mas ele dizia as coisas certas, e esse era o principal motivo de eu estar meio encrencada. Mesmo depois que tudo acabasse, eu sabia que precisaria de ajuda psicológica pra me ajudar a entender o que tinha acontecido comigo. Sozinha eu não conseguiria entender como fiquei tão frágil em tão pouco tempo.
  Se eu fosse tentar descobrir sozinha, me perderia em todas as mensagens e em todos os gestos e começaria a sorrir feito idiota, perdendo o fio da meada. Meu rosto esquentou de vergonha de mim mesma ao constatar isso.
  Acho que tudo começou a ruir no dia em que o melhor amigo dele fez vinte e um anos. A festa foi na casa dele, porque a única coisa que todo mundo queria era encher a cara e os pais do melhor amigo não gostavam que ele bebesse. E lá fui eu, um casaco bem comprido, uma saia bem curta, cigarro aceso e um bilhete em cima da mesa que dizia: mãe, não volto hoje, amo você.
  Alguém levou uma tequila e eu abracei a garrafa assim que cheguei à festa. Ele só ficou me olhando de longe, uma Skol Beats na mão. Depois da minha quarta dose, fui perguntar onde era o banheiro, e ele resolveu que seria legal me levar até lá. Assim que ficamos sozinhos no corredor, prendeu meus lábios entre os dele. Prendeu de verdade; uma vez que ele começava a me beijar, era difícil para mim afastá-lo. Mas a minha sorte do dia era que eu estava bêbada, e as coisas funcionam diferente num organismo alterado pelo álcool.
   – Eu queria mesmo falar com você – falei de uma forma meio bêbada e ele sorriu, achando que minha voz enrolada lhe diria coisas boas. – Acho que você devia ficar com a Mari.
  Lembro que ele sorriu, certamente achando que era brincadeira. Mari gostava dele, e eu também gostava dela; era um dos motivos para nossos encontros serem quase sempre em corredores ou quartos escuros. Nossos erros faziam mêsversário aquele dia e eu levei uns dez minutos naquele corredor tentando convencê-lo de que fazer aquilo seria o mais sensato, mesmo que eu não estivesse sensata o suficiente pra ter certeza do que dizia. Ainda naquela época, depois do segundo, quase terceiro mês, ele não havia entendido meus motivos.
  Quando voltei pra perto do melhor amigo dele, que era apaixonado por mim há dois anos e de quem eu gostava muito, mas não desse jeito, vi de longe ele sentar ao lado dela no sofá puído da varanda e a beijar uns cinco minutos depois. Foram precisos mais dez minutos e mais quatro doses de tequila para que eu dormisse naquele mesmo sofá depois de dançar
Blame em cima da mesa de centro da sala – não que eu me orgulhe disso.
  Ele passou o resto da festa sem falar comigo, mas segurou meu cabelo enquanto eu vomitava bem cedo no dia seguinte. Me deu sal de frutas, uma toalha e um beijo na testa.
  Aquilo bastou pra eu entender que ele não iria ficar com ela como ficava comigo. Que a preterida não era eu.
  O café no copo estava acabando e, com ele, minha coragem de dar fim àquilo naquele dia. Talvez eu devesse ser escrota e terminar por mensagem. Ri sozinha da hipótese; nunca conseguiria perdoar a mim mesma por ser assim tão fraca.
  Faltavam alguns metros para que eu virasse a esquina, poucos, mas eu sabia que se não tomara a decisão nos três quilômetros que percorrera tranquilamente até ali, não tomaria naquele curto período.
  Ele estava me esperando com um sorriso assim que virei a esquina. E eu sorri quando o vi, exatamente como sabia que faria. Me abraçou apertado e beijou o topo da minha cabeça.
  – Você demorou.
  – Fiz uma parada rápida – respondi, erguendo o copo de café. Ele sorriu e me deu um beijo.
  Omiti as outras paradas ocasionais, onde repensei nossas atitudes e quase dei meia volta. Minha coragem ficou parada em frente ao vidro da praça de alimentação na rua ao lado, junto com todas as palavras que eu planejara dizer pra ele.
   – Vem, eu já comprei os ingressos.
  Ele me pegou pela mão e entrelaçou nossos dedos enquanto entrávamos no shopping, o ar-condicionado forte mesmo no inverno. Deixei minha decisão ser soterrada por coisas mais relevantes, como o discurso de formatura e a cor do vestido que eu usaria no casamento da minha irmã.

  – Você se apaixonou, no fim das contas?
  – Não deixei o sentimento enraizar, não.
  – E como vocês ficaram?
  – Bem. Hoje ele namora a Mari.

Sessão 02, 09 de junho de 2021

  – Eu tive um sonho essa semana que me deixou pensativa – ela se esticou sobre a mesa, pegando a garrafa de água e afastando a máscara do rosto para beber. – Eu andava nessa rua, que eu não sabia qual nem onde era, mas sabia que meu destino era uma loja de doces, e que eu ia gastar exatos quarenta e dois reais numa caixinha de macarons; doce que, aliás, nunca comi. Daí eu acordei e fiquei pensando que seria bacana se a gente conseguisse saber a nota exata de uma prova baseado no quanto estudamos, ou qual o melhor horário pra se pegar um ônibus na rodoviária e evitar sofrer um acidente na estrada.
  – Evitar o acaso?
  – Isso, evitar o acaso, se você acredita nele. Certeza de que eu não teria feito tanta merda na vida se conseguisse fazer isso; descobrir de antemão se o meu interesse pela pessoa vai durar três meses ou três décadas – ela riu de algo que só sua mente poderia saber o que era. – Já passou de três meses, só pra constar, mas nunca chegou a uma década.

  O quarto 103 estava vago e era o que ele não gostava, mas pegou a chave e entrou no motel antes que o carro atrás de nós perdesse a paciência. Aquele ser o único quarto disponível já me parecia um sinal.
  Eu estava tentando esconder o fato de que não me importava o número do quarto ou se só haveria lâmpadas de uma cor embutidas no gesso; não queria estar lá. Aquilo era uma última tentativa de averiguar se a magia entre a gente ainda era real e latente, porque eu sentia as coisas se esvaindo pelos meus dedos feito areia fina de praia e não sabia como evitar e ele simplesmente não percebia, muito mergulhado nas coisas que sentia e nas sensações que eu lhe causava – porque eu sou
muito boa, e com ele eu conseguia ser boa sem nenhum esforço.
  Pelo rumo das coisas, eu já temia que o momento inevitável em todos os meus relacionamentos houvesse chegado: o momento em que eu me cansava. O momento em que a graça acabava, os beijos não me acendiam mais, a paciência escorria através de respostas sarcásticas e pouco caso. O momento em que não importavam os gestos, as palavras e o toque; nós dois enquanto “casal” havíamos parado de funcionar.
  Me deixei levar até o quarto 103 de um motel barato para comprovar o óbvio – e para fazê-lo apenas pra mim mesma. Após ter certeza, o momento de contar a ele seria posterior, visto que a fragilidade da relação não emanava de mim e, apesar de fria, eu não sou de todo insensível.
  Entrei no quarto enquanto ele descia o toldo que escondia o carro. Fui ao banheiro, fiz xixi e respirei fundo. Iria tentar. Aquilo era ser adulta, não era? Em prol do dinheiro gasto e da história que tínhamos, iria ao menos tentar.
  Ele tirava o relógio do pulso quando voltei ao quarto para ligar a playlist – a que já estava tão acostumada a usar com ele que me perguntei se conseguiria usar com outra pessoa. Enquanto estava de costas, ele se aproximou, afastando meu cabelo, beijando minha nuca, se aproveitando de minha vulnerabilidade. Ele sempre fazia aquilo, o mesmo ritual, e me peguei distraída pelo clichê do momento, sem que os beijos me causassem qualquer efeito.
  Disse que ia tentar, não disse? Não verbalizei, mas disse.
  Virei o corpo e o beijei, tentando imprimir ao beijo toda a vontade que um dia eu já tivera. Ele agarrou meus cabelos, minha cintura, amassou minhas roupas, me empurrou contra a parede. Riscou o fósforo para acender todas as velas.
  Mas eu não sentia nada.
  Reconheci a umidade na calcinha, mas sabia que aquilo era mecânico; era só meu corpo respondendo aos estímulos que recebia de forma automática. O complemento que me era necessário ao sexo, o fator psicológico, não estava lá. Fiquei me perguntando como faria aquilo chegar até o final.
  Deixei que ele tirasse minhas roupas, deixei que ele provasse o sabor de cada pedaço de pele que encontrou pelo caminho. Correspondi até onde achei que aguentava sem parecer que me esforçava para isso. Me aproveitei do fato de que ele não era nada egoísta e adorava me satisfazer, gozando na sua boca. Mas quando ele me penetrou, quando invadiu meu corpo e meus poros, algo aconteceu.
  Primeiro um nome me veio à cabeça. Um nome que era só isso, sabe? A identificação genérica de uma pessoa. Não significava nada pra mim, nada me ligava a ele. Era atraída por aquela pessoa? Talvez fosse, mas não era algo que teria o poder de me tirar o sono. Mas quando ele escondeu a cabeça no meu pescoço e me invadiu com força, comecei a pensar que não era mais ele ali, era outro, seus fios de cabelo loiros, os olhos azuis, a barba cheia.
  Era outro que me preenchia, que me saciava, que apertava meu quadril e gemia na minha pele. Fechei os olhos e me deixei enganar, já que era aquilo que meu corpo pedia, que era ele ali e não outra pessoa. Até que acabasse, até que o orgasmo viesse e eu pudesse respirar aliviada porque aquele era o fim e não precisaria mais fingir.
  Foi a certeza de que eu não sentia mais nada. O advento de transar com uma pessoa e sentir o corpo, o cheiro, a presença de outra... Foi inédito e desconfortável.
  Vinte minutos depois fechamos a conta, a chave deixada na fechadura da porta, e outra coisa para perturbar minha mente que não o término iminente daquele relacionamento fadado ao fracasso.

  – Por que acha que vocês eram fadados ao fracasso?
  – Ele namorava outra pessoa.
  – E você sabia?
  – Sempre soube – a mulher fez algumas anotações no bloco, que naquela sessão ela empoleirou no colo. A postura, encostada tranquilamente na cadeira, fez com que pensasse que ela gostava de ouvir suas histórias mais do que tinha interesse em ajudá-la a resolver seu “problema”. – Ele me dizia várias coisas intensas e não bancava porra nenhuma do que dizia.
  – Considerou, nesse caso, que suas atitudes poderiam magoar terceiros?
  – Eu sinto que sempre acabo voltando pra um ponto onde sou completamente capaz de magoar todo mundo ao meu redor e, mesmo assim, aperto o botão “estou ciente e quero continuar”.

Sessão 03, 23 de junho de 2021

  – Eu tenho uma amiga que é bióloga, a Ana. Uma vez conversamos sobre hormônios e como cada pessoa reage de uma forma em relação à outra e como isso é químico e não há nenhum tipo de controle – pausa dramática. gostava delas, a mulher aprendera já na primeira sessão. – A poesia em volta das faíscas voando e arrepios ao toque é real e é física.
  – Isso é verdade, a gente nunca escolhe a quem nosso corpo vai reagir.
  – Pois é, essa imprevisibilidade é a mãe da merda.
  – Você ficou de contar sobre o outro, na última sessão – a mulher tentou trazê-la de volta daquilo que parecia um devaneio profundo.
  – É sobre ele mesmo que estou falando.

  Antes daquele dia não havia acontecido nenhum toque. Nem por acidente, nem por inocência. Era de se esperar que a existência da tal reação química entre nós dois fosse um mistério.
  Duas cordinhas de tecido estampado cruzadas entre si, formando um nó. Um dos lados formando uma barriga, cruzado com o outro por baixo. A confecção de um laço. Nós dois ainda sozinhos no carro. Zero contato físico, costas nuas expostas.
  Óbvio que a todo momento minha mente ia e voltava até a última transa que tive, estragada por aquele sentado ao meu lado prestando atenção na estrada, completamente ignorante deste fato.
  De propósito ou não, ele separou o banco para que eu me sentasse ao seu lado. De propósito ou não, sentou-se meio torto, encostando a perna na minha.
  Ali eu senti a sutileza se esvaindo, mas por não ser óbvio, também poderia ser ilusão.
  Mais laços seguiram-se ao primeiro, a cada vez que eu ia ao banheiro esvaziar a bexiga de toda a água que tomava. Brincadeirinhas inocentes, joelho contra joelho. Sorrisos, uma foto.
  Às dezoito horas já era noite, o mar à nossa frente se mostrava cada vez mais escuro e o vento castigava com mais força; não com força suficiente para que eu não pudesse aguentar sozinha com os braços, pernas e costas nuas, mas ele mostrou-se solícito, e foi nessa demonstração que o contato de fato ocorreu.
  Limpo e irrestrito.
  Os braços por minhas costas, cabeça encostada em seu ombro, um carinho desnecessário no braço. “Isso não significa nada além do que é”, eu dizia a mim mesma, mas aquele pouco, comparado ao nada anterior, já era coisa pra caralho.
  O beijo não demorou muito depois disso. Parecia o caminho natural da coisa para absolutamente qualquer um que olhasse de fora. E dada à intensidade do beijo, pra mim e pra ele, o sexo pareceu um caminho natural também.
  Não me entenda mal, não foi ruim, e no geral nunca tive problemas com sexo casual, mas foi algo
carnal demais, e eu não estava pronta pra deixar os hormônios comandarem meu corpo naquele nível. Foi pouco mais de um ano só com o anterior, que havia me bagunçado bastante.
  Inconscientemente, eu só queria tirá-lo do meu corpo.
  Foi quando entendi que cada um deles leva um pedacinho consigo e deixa outro comigo.
  Ninguém nunca vai embora de verdade.

  – Na sua primeira sessão você disse que se considerava vazia – acenou, pois se lembrava de quase todas as palavras duras que usara para descrever a si mesma. – Como poderia de fato ser se, pra você, eles levam pedaços seus consigo?
  – Eles levam só aquela parte de fora do biscoito, sabe? Não tem recheio nenhum.

Sessão 04, 07 de julho de 2021

  – Você mencionou esse nome na última sessão. Quer falar sobre ele?
  – Nem sei por que mencionei, ele não é importante.
  – Durou pouco?
  – Padrão, né? Uns três meses – começou a roer a unha do dedão, fato percebido e anotado pela mulher, que tinha a impressão de finalmente estar lhe descobrindo camada atrás de camada. – Mas ele meio que nasceu de um acidente, sabe?
  – Como assim?
  – Se eu tivesse um aviso prévio, tinha beijado o amigo dele de novo naquela festa de réveillon.

  Dava pra ouvir a letra de uma música conhecida ecoando pelo quintal junto às vozes das outras pessoas na festa, inclusive os anfitriões. Acho que a música chama Only, da Nicki Minaj, e é ótima pra transar. Mas enfim, estávamos os dois tão enfiados um no outro além do fator físico que não dávamos atenção a mais nada.
  Eu sabia que muito em breve seria procurada. Sabia que carregar ele pro canto nada discretamente havia sido uma afronta para os outros dois caras que se iludiram perante a possibilidade de estarem no lugar dele, entre as minhas pernas. Porque eu fiz questão de deixar tudo em aberto; não fui eu, afinal, a culpada por delegar esse poder a mim mesma. Azar o deles.
  Faço muito isso às vezes. Eles me dão poder e eu abuso abertamente. Passei muitos anos ignorando essa vantagem pra parar agora.
  Sentia as costas arranhando pela fricção da pele nua pela abertura do vestido com a textura da parede, mas a dor era gostosa. Ele entrava e saía de dentro de mim com a velocidade perfeita, o que era bem louco considerando que fazia poucas horas que eu acabara de conhecê-lo. Quando ele mordeu meu ombro, diminuindo a velocidade, eu me permiti gemer um pouco mais alto, acreditando no poder da distância e da altura da caixa de som.
  Quando abri os olhos, um dos dois abandonados me encarava do início do corredor, parado com o copo de cerveja na mão, perplexo.
  Eu sabia que de todas as coisas que eles esperavam de mim ao me convidar pra aquela festa, com certeza escapar pra lateral da casa pra transar com alguém que não fosse um dos dois não estava entre elas, nem de longe.
  Não que eu me orgulhe de ter feito o que fiz, mas gemi e pedi por mais, mantendo o contato visual com o anfitrião número dois. Aquele espectador desavisado, por mais que o fato me surpreendesse, aumentava meu tesão em muitos níveis, e aquele empenhado em me levar ao orgasmo, ignorante da audiência, excitado pelo pedido, aumentou a velocidade e a força.
  E ele fez o trabalho direitinho; gozei primeiro, encarando o outro sem piscar, que saiu da entrada do corredor assim que minha perna desceu do quadril de desconhecido.

  – O que acha que aconteceu pra você enjoar dele?
  A mulher usou a palavra “enjoar” com desdém, e sabia que era porque discordava da nomenclatura que ela deu para o fato de que nenhum sentimento que lhe ofertavam parecia ser suficiente. Eventualmente ela sempre se cansava de todos eles.
  – Acho que dá pra dizer com tranquilidade que foi quando ele começou a me chamar de vida.
  – Soa como alguém apaixonado, pra mim.
  – Provavelmente – olhou pro relógio, seu desconforto era nítido. – Mas ele também não bancou o que sentia. Devo ter dedo podre.
  – Sabe… Eu não acredito em dedo podre.
  – Não consigo chamar de outra coisa minha total inabilidade de encontrar alguém que sinta as coisas de forma equilibrada. Não dá pra dizer que o mundo inteiro é inapto, o problema tem que ser comigo.

Sessão 05, 16 de julho de 2021

  – Que bom que não foi um problema pra você diminuir os intervalos entre as sessões!
  A mulher a recebeu de pé na porta, o que nunca acontecera antes, reforçando a teoria que sua mente criou de que o que a interessava ali eram suas histórias, não necessariamente seu “tratamento”. Ela falava com ironia sobre o tratamento porque, apesar de ter ido até lá com o objetivo final de ser consertada, não acreditava de fato que estava no caminho certo. Mas era bom falar. Era bom fingir que fazia os exercícios que a terapeuta comportamental lhe pedia. Seu ego gostava do autoengano de que ao menos estava tentando.
  E ousou dizer que não se permitia ser hipócrita...
  – Entrei de férias segunda-feira.
  – Que coisa boa! E quais são os seus planos?
  – Bem, eu pretendia viajar – ela sentou-se e tirou o casaco, deixando-o na cadeira vazia ao lado da sua. Sempre se perguntou por que duas cadeiras no consultório; jamais vira nenhum casal na sala de espera.
  – Pretendia? Algo deu errado?
  – É que já viajei, no fim de semana.
  – Quer me contar como foi?

  Quem olhasse para o terceiro andar daquele prédio antigo na Tijuca, veria uma silhueta nua. Devido ao horário (algo perto das quatro da manhã), não seria possível perceber o êxtase. Justamente por conta do horário, eu não me preocupei em afastar as cortinas.
  Ele me olhava, deitado na cama.
  O Rio fervia. Os cinquenta dias de Carnaval prometidos pelo prefeito se desenrolavam de maneira orgânica; a cidade respirava glitter, fantasias e festas, e eu respirava tudo isso junto.
  Fazia mais ou menos dez horas que a gente tinha se conhecido exatamente naquele contexto – sete horas que havíamos dado o primeiro beijo – eu atravessei avenidas e túneis e ruas que nunca vi na vida dentro de um Uber ao lado dele porque não consegui dizer não. Senti o que meu corpo pedia e quis mais do que depressa agradá-lo.
  Nunca fui conhecida por ser uma pessoa sensata, mas tenho que admitir a dimensão da escolha que fiz.
  Tinha claro e transparente pra mim que jamais me arrependeria. Coisa de intuição mesmo, sabe? Não conseguiria conviver pacificamente com a decisão de ter negado a ambos sentirmos as coisas que sentimos.
  Lógico que eu pensava apenas por mim mesma.
  Já é sabido que eu entendo como verdade que os hormônios que possuo no meu corpo não respondem de maneira harmônica aos hormônios nos corpos de todas as pessoas. Ligações químicas reais, latentes e invisíveis, que acontecem sem que os envolvidos possam prever ou controlar.
  Óbvio que eu aplicava, nessa circunstância, e aplico em outras, essa verdade universal apenas ao âmbito físico; não sou ingênua a ponto de crer que o emocional é consequência direta, o experimento químico perfeito – apesar de, em alguns momentos, já ter me deixado levar. Não sou uma pedra de gelo, no fim das contas.
  Mas dali de onde estava, de pé em frente à janela com a luz amarelada dos postes da rua iluminando meu corpo, ansiando por um cigarro, não tinha como saber se ele sentira o mesmo.
  Suspeitava, óbvio. Colhi pequenos indícios que só então a mente começava a sintetizar. Como ele olhou e elogiou meu corpo de maneira espontânea; o jeito com que ele dizia meu nome que, agravado pelo sotaque, me causava efeitos imediatos entre as pernas; a forma como a voz falhou quando fiquei de quatro… Tenho de admitir que me empolguei pra cacete. Quis mais do que nunca provar que era boa.
  Mesmo assim, nada daquilo me dava certeza absoluta.
  Não era uma demanda urgente, também. Eu teria todo o constrangedor momento entre a gente acordar e tomar (ou não) café juntos para lidar com aquilo.
  – Vem cá – eu o ouvi dizer.
  Fechei a cortina e voltei pra cama, disposta a começar tudo de novo.
  Cinco horas da manhã eu olhei o celular e fiquei horrorizada com a velocidade com que as horas haviam passado sem que nós dois percebêssemos, entorpecidos demais um no outro – e também porque íamos em direção já ao terceiro dia de Carnaval, dos quais eu tinha certeza não ter dormido oito horas completas, e nossos celulares despertariam dentro de três horas.
  Por muitos motivos meu corpo entraria em parafuso; a falta de uma boa noite de sono era só mais um deles.
  Ele fez ovos mexidos quando acordamos do cochilo, se ofereceu para chamar meu Uber, me colocou dentro do carro e disse “até daqui a pouco!”.
  Mas o público estimado para o Sargento Pimenta, naquela segunda no Aterro do Flamengo, era de oitenta mil pessoas. Era mais provável que eu perdesse uma das meninas do que o encontrasse. Minhas expectativas quanto a isso eram zero.
  Completamente despreocupada, tomei uma série de drinks de procedência duvidosa, comi um brownie de maconha que abaixou um pouco minha pressão, discuti com Marina brevemente, fumei os cigarros que deixei de fumar na madrugada anterior.
  Daí, então, rolaram aquela sucessão de eventos estranhos que ninguém consegue justificar de forma congruente: alguém falou que precisava ir ao banheiro, e apesar da grande quantidade de banheiros químicos, as filas estavam enormes (oitenta mil pessoas, dã). Tempo de espera estimado: dez a quinze minutos.
  Foi enquanto aguardava em um dos inúmeros conjuntos de banheiros que escolhemos ao acaso que eu o vi, do outro lado. Ele me viu também. Lembro que disse “caralho, não é possível”.
  Desculpa, eu sei que falo muito palavrão. Mas
oitenta fucking mil pessoas e lá estávamos os dois, tão próximos quanto durante toda a noite anterior.
  E então, antes de desaparecer, como todo mundo faz em qualquer Carnaval, ele me disse que eu havia esquecido o carregador no apartamento.
  Estava em Botafogo com 28% de bateria e a merda do carregador estava a mais de onze quilômetros de distância num apê vazio, porque a hora em que cheguei no apartamento com as meninas, ele estava à caminho da Sapucaí.
  Eu só conseguia pensar que
ele passaria a pensar que fiz de propósito, para obrigá-lo a me encontrar novamente no dia seguinte. Não que eu fizesse qualquer objeção a vê-lo de novo, afinal minhas amigas não deixaram que o encontro daquela tarde se estendesse o tanto que eu gostaria, mas queria que a coisa fluísse de forma natural, e meu descuido tinha a capacidade de cagar com tudo.
  Sentiu o cheiro do desastre prestes a acontecer? Pois é.
  Tentei remediar a situação enviando um “eu compro outro fio na minha cidade”. Recebi como resposta um “mas amanhã não vamos nos ver?”.
  Não esperava aquele nível de honestidade, sabe? Mas também não consegui ficar desconfortável com ela. Tenho para mim que a honestidade é sempre o melhor caminho, só que a atipicidade daquela situação me pegou completamente de surpresa. Eu estava pisando em ovos e aquela posição era muito desconfortável, e ele parecia querer dizer que era desnecessária também.
  Resolvi, então, ser honesta como ele vinha sendo.
  Respondi algo como “chego a estar incomodada com o quanto quero”. Pensei, depois de enviada a mensagem, que poderia parecer emoção demais, mas tentei não me importar. No mesmo minuto a resposta “se você quiser eu te busco em qualquer lugar, antes, durante ou depois do bloco” chegou pra mim, que sorri feito idiota e pensei ser perfeito que ele desburocratizasse tranquilamente as coisas que eu burocratizava no automático.

  – E como foi o fim de semana com ele depois de tanto tempo?
  – Não vou usar a expressão delírio coletivo porque não foi ruim, mas também não foi igual.
  – Acha que não é a mesma pessoa que era naquele carnaval?
  – Quem foi que fez aquela analogia sobre um rio? – Ela se inclinou sobre a mesa, empolgada com a conexão mental que fizera, mas a mulher não entendeu de imediato sobre o que ela estava falando. – Que ninguém entra duas vezes no mesmo rio…
  – Ah, Heráclito.
  – Isso! – Bateu palmas, empolgada, mesmo que o nome do filósofo não tivesse relevância. – Dá pra dizer que ele não entrou duas vezes na mesma .
  – A pandemia mexeu com todo mundo, já mencionamos isso anteriormente.
  – Sim, mas não acho que seja só isso – ela se endireitou na cadeira e, pela primeira vez em quatro sessões, parecia incerta acerca do que havia preparado para dizer. Porque a mulher tinha absoluta certeza de que ela ensaiava um texto antes de cada consulta. – Fazia tempo que não, mas eu me deixei criar expectativas sobre ele.
  – E por que você acha que isso ocorreu logo com ele?
  – Os acasos que não pude evitar, né?

Sessão 06, 23 de julho de 2021

  – Me vacinei ontem.
  – Que coisa boa! Eu já tomei as duas doses – a mulher endireitou o óculos sobre o ferrinho da máscara no nariz, para que parasse de embaçar. – Teve alguma reação?
  – Sim, tive febre ontem à noite, mas até que acordei bem.
  – Eu não tive nenhuma reação, ao contrário do meu marido.
  – Mais ninguém na minha casa teve, mas tinha cem por cento de certeza de que aconteceria comigo.
  – Por quê?
  – Você já deve ter reparado que as probabilidades não estão muito a meu favor.

  Dizer que alguém entrou na sua cabeça é pesado demais, eu sei. Mas foi exatamente isso que ele fez, há mais anos do que eu gostaria de admitir. E então levou muito tempo até que eu permitisse, mas também deixei que ele entrasse no meu corpo. Já tinha feito morada na cabeça, qual o problema, né?
  Qual o problema…
  O problema começa na volta que eu dei até chegar no colo daquele homem.
  Às vezes a gente sai de casa cem por cento certo de que o rolê é errado, erradíssimo, e é muito mais provável que dê merda do que dê certo. Esse foi um desses. Milagre ter dado certo.
  Eu disse pra minha mãe que estava em C, disse pra R que estava em D, fui pra Y pra depois ir de fato pra D, enganando todo mundo no meio do caminho e aproveitando a carona. Evitando que duas pessoas que não sabem uma sobre a outra, descobrissem sobre si. Complexo, mas muito divertido. Manter minhas opções todas disponíveis é sempre muito divertido.
  E depois que tudo deu certo, eu tive diversão de sobra naquela noite.
  Nem me importou o orgasmo; pela segunda vez na vida toda ele foi mero coadjuvante. O que é uma merda, né, se eu lembrar direitinho como eu me senti na primeira vez que o sexo foi protagonista.
  Tento me convencer de que é diferente, porque não apenas sou outra pessoa – o bendito rio! –, como o conheço e sei o que ele quer. Mas sempre pode dar tudo errado, né?
  O trem descarrilhar dos trilhos, alguém confundir as coisas, a saudade deixar de ser física – porque tudo bem sentir falta do pau dele e dos tapas, mas da presença... Aí já é demais.
  Bom que eu tenho pra mim que somos muito honestos um com o outro e sempre tem a opção de cair fora.
  Sou mestre em fazer isso.

  – Você pode se deixar sentir o que quiser.
  – Não… Por ele, não.
  – Qual o problema?
  – Ele é igualzinho a mim. Seria um tiro no meu próprio pé – olhava pros próprios pés, como se o tiro já tivesse sido dado. – Que irônico, né? Dessa vez eu gostaria de me deixar sentir.

Sessão 20, 29 de outubro de 2021

  – Se cuida! – A mulher soltou ao fechar a porta atrás de , que entendia que já se cuidava antes de começar a terapia e continuaria fazendo o mesmo que fazia antes agora que recebera alta.
  Era a última sessão do dia, mas a mulher estava particularmente ansiosa em começar o relatório com a conversa ainda fresca em sua cabeça.
  Era um hábito trazido dos tempos de estágio, os relatórios finais, que não mais compunham as pastas da clínica universitária, servindo de capa para as pastas que arquivava no armário do canto da sala. E a pasta de , caso seu arquivo não fosse organizado por ordem alfabética, como qualquer outro, estaria na primeira gaveta, na cara do gol; fora um dos casos mais interessantes que já tivera.
  A mulher mais uma vez sentou-se em frente à sua mesa, abriu o notebook e começou a digitar.

Relatório final de atendimento Paciente nº 2021-022

  O atendimento à paciente , de vinte e três anos, foi iniciado ao vigésimo oitavo dia do mês de maio, com a entrevista para definição do tratamento. Ficou determinada como abordagem, de comum acordo, a terapia comportamental. Não foi estabelecido número máximo de sessões.
  Sua principal queixa motivadora para buscar ajuda psicológica foi o que ela chamava de
defeito: não consegue, por fatores externos, ou escolhe não criar laços com terceiros com quem se envolve romanticamente. Ressaltou, no primeiro encontro, que não possuía problemas familiares, mantendo boa relação com mãe, pai e a irmã mais velha. Também afirmou estar satisfeita com os rumos de sua vida profissional.
   é uma jovem eloquente, egoísta, prolixa, extrovertida, com um círculo de amigos sólido e vida social consistente. Não tem problemas em expressar sua sexualidade de forma livre. Sua dificuldade, pude observar desde o começo, rege em identificar o que sente e se permitir sentir, ao invés de “fugir” do sentimento. Fez todos os exercícios propostos, demonstrando certo desprezo quanto a eles.
  Ao longo das sessões, a paciente narrou diferentes experiências amorosas com desfechos similares. Ao analisar cada uma de suas histórias, às quais ela narrava ora de forma extremamente detalhada, ora de forma quase poética de tão vaga, pude concluir que os pontos congêneres sempre remetiam à ela e à falta de confiança nos outros para se mostrar vulnerável. tem em mente que nenhuma das pessoas com quem se envolveu era digna de receber seus sentimentos.
  Foram propostos exercícios para trabalhar sua autoconfiança, a qual descobri não ser de fato o problema – a paciente tem consciência apurada de si, seu corpo e suas vontades.
  Apesar de não ter tido acesso a tal informação, tendo em vista a desconfiança dela para com seus parceiros, presumi que tenha havido uma história anterior àquelas que me foram confiadas, que desencadeou seu comportamento arredio. Quando toquei no assunto, em diferentes sessões, a paciente claramente desconversou.
  Ao final da décima nona seção, cheguei à conclusão de que o óbvio já havia sido dito inúmeras vezes para a paciente dentro dos dezenove encontros, e que uma nova bateria de quatro a cinco seções mensais não faria tanta diferença.
  Encerramos o atendimento na vigésima sessão, ao vigésimo nono dia do mês de outubro, e recebeu alta completamente consciente de que o único problema que a aflige será resolvido através do clássico método tentativa e erro. Suas exatas palavras que confirmam a ciência de todo o esforço despendido nas vinte sessões a que compareceu sem falta, foram: “tenho consciência de que corações são feitos pra dobrar, só não quero quebrar o meu no processo

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