Akina
Escrito por Lyra M. | Revisado por Lyra M.
Capítulo Único
No I'm never gonna leave you darling
No I'm never gonna go regardless
Even when all the lights are fading
Even then if your hope was shaking
I'm here holding on
And now I know what it's like
Reaching from the other side
(…)
I will always be yours
Forever and more
Is it ever enough?
Rinji não tinha a menor lembrança de sua vida antes de ser um Guardião. Na verdade, ele nem mesmo sabia se tivera uma vida antes disso. O que ele sabia era que os Guardiões eram como uma lenda viva, e ninguém em seu mundo, com exceção dos Reis e Rainhas de cada reino, sabia de sua existência.
Os Quatro Reinos viviam em uma paz armada desde o que parecia ser sempre. Para que tudo permanecesse em equilíbrio, era proibida a interação entre aqueles que não pertencessem ao mesmo reino – com exceção, é claro, das reuniões que exigiam a presença dos Reis e Rainhas, para discutir os interesses mútuos de seus domínios. Assim sendo, se a simples conversa entre, por exemplo, um silfo e uma sereia era expressamente proibida, quem poderia imaginar que alguém vivesse tão perto das fronteiras com o mundo humano?
Todos tinham consciência da existência de um mundo diferente, sem magia. Mas eles também sabiam que esse mundo, ao contrário do seu próprio, era repleto de guerras, doenças e desgraças em geral – o exato oposto de tudo aquilo que eles se esforçavam para manter. Por isso, a ideia de ir até lá era absurda, e ficava longe da mente de todos. Ninguém precisava se esforçar para manter os habitantes de cada um dos reinos longe dos humanos. O problema era que quase todos se esqueciam de uma pergunta muito simples: e quanto aos esforços para manter os humanos longe dos reinos?
Aí entravam os Guardiões.
Seu trabalho era guardar a entrada para suas terras, e por isso eles ficavam o mais longe possível da civilização, e o mais perto possível do mundo humano. A solução encontrada foi uma espécie de caverna, tão grande quanto a sala do trono de qualquer Rei ou Rainha, ligada a um longo corredor que, por sua vez, guardava a entrada para os Quatro Reinos.
No mundo terreno, como por vezes era chamado o mundo humano, havia várias passagens para o universo em que Rinji vivia. Todos os portais eram invisíveis a olhos mundanos, e todos culminavam no mesmo corredor, em direção à caverna. Lá, moravam os Guardiões, cuja missão era proteger seu mundo da entrada de alguém cuja presença fosse indesejada e temida.
Os Guardiões eram quatro, no total, sendo cada um de um reino diferente, desenvolvendo suas habilidades e aprendendo a viver em harmonia. Ao longo de anos, cada um deles fez daquela caverna sua casa; havia um lago cristalino para Mairin, uma sereia, e três grandes quartos para os restantes, cômodos quase tão grandes quanto a própria caverna, e com entradas tão bem camufladas que parecia mágica – e talvez fosse mesmo.
O quarto de Rinji era praticamente um pedaço de floresta perdido no subsolo: o chão era, de fato, rochoso, mas grama crescia em alguns pontos, assim como algumas flores desabrochavam, coloridas, e cipós pendiam do teto. No centro do cômodo, uma grande árvore crescia até o teto, com galhos grossos e retorcidos, de onde cresciam poucas folhas. Próxima às raízes, havia uma cama larga, com lençóis esverdeados. Ela não parecia encaixada de algum modo ali; era mais como se tivesse crescido a partir da própria árvore, e era ali que Rinji estava naquele momento.
Ele esfregou o rosto, cansado, e deixou que um riso baixo e sem humor escapasse de seus lábios. Era tudo muito irônico. Meses atrás, uma jovem humana havia conseguido atravessar um portal, e ao que tudo indicava, sua presença era aguardada no mundo mágico, embora não naquele momento, e ela foi forçada a voltar para o mundo do qual viera. Desde então, ele sabia que Adish, Guardião do Fogo, a esperava, e não havia nada que Rinji ou as duas Guardiãs restantes pudessem falar que seria capaz de dissuadi-lo disso.
Agora, tanto tempo depois, ele estava na mesma situação. Bem, não exatamente – na verdade, de certa forma era exatamente o oposto de Adish.
Enquanto o amigo esperava pacientemente que a moça humana estivesse preparada para voltar, Rinji teria de ver a jovem por quem se apaixonara ir embora.
Akina, assim como Rinji, vinha do povo da terra, mas ao passo em que o jovem era escondido de seu povo e vivia em exílio, ela era uma das poucas que teria permissão para cruzar a fronteira entre os mundos.
Tantos séculos antes, desde quando foi decidido que a magia deveria ser escondida daqueles que não a usariam para o bem, um projeto começou a ser discutido pelos Reis e Rainhas, em reuniões mantidas sob forte sigilo. A pauta era apenas uma: se eles vivem em um mundo corrompido pela maldade, por que não ensiná-los a amar?
Quando todos entraram em um acordo sobre as regras que deveriam ser seguidas, a iniciativa foi posta em prática, ainda em segredo. Aqueles que habitassem qualquer um dos quatro reinos e se mostrassem capazes de manter a pureza mesmo diante da maldade, a leveza de coração mesmo quando a tristeza tentasse dominar e o amor diante do ódio, seriam escolhidos como Viajantes.
Suas identidades seriam mantidas em segredo, assim como sua missão: infiltrar-se no mundo humano e transmitir uma mensagem de paz e amor, na esperança de que, com o tempo, os humanos evoluíssem, deixando para trás sua natureza destrutiva. Rinji, assim como os outros Guardiões, sabia de tudo aquilo. Era como uma pequena recompensa por seu trabalho; se eles teriam que viver em exílio, ao menos seriam mantidos informados de tudo que acontecesse nos reinos que deixaram para trás.
Durante algum tempo, Akina também viveu em exílio, como uma espécie de treinamento – ela não poderia ir direto para o mundo terreno, considerando todas as diferenças entre os dois lugares. Era impensável, apenas. Não, primeiro os Viajantes precisavam de um período de adaptação, para só então atravessarem o portal. Sendo assim, durante meses, os Viajantes viviam na caverna junto com os Guardiões, aprendendo as regras e costumes do mundo humano, e ao final de seu treinamento, poderiam finalmente partir e cumprir a missão que lhes fora designada.
O tempo que ela passou lá pareceu uma eternidade.
Não apenas porque o treinamento era exaustivo, com tantos costumes tão diferentes a serem aprendidos, mas porque, por um momento, a vida de Akina virou de cabeça para baixo.
A jovem elfa entrou em choque, para começo de conversa, ao descobrir que os Guardiões de fato existiam – a informação não lhe foi revelada até que ela os encontrasse, e vê-los foi como descobrir um segredo há muito escondido. Além do mais, Akina nunca imaginou que um dia teria a chance de interagir com uma fada ou uma sereia, e muito menos encontrar um elfo fora de suas terras.
Rinji, desde o começo, foi como um porto seguro. Era como se, apenas por existir, ele a acalmasse, e não só por ser de natureza calma, mas também por lembrá-la de casa. Ele deixara o povo da terra ainda muito jovem para começar o treinamento de Guardião, mas ainda era parte de lá. Como um antigo ditado de seu povo costumava dizer, ele fazia parte da terra, e a terra fazia parte dele também.
Era fácil conversar com ele. Mairin, a Guardiã da Água, era doce e gentil, enquanto Adish era seguro e confiante, e Kallima era de fato tão leve quanto o ar, domínio de seu povo. Mas Rinji... havia algo sobre ele que Akina não sabia explicar. Era como se ela o conhecesse durante toda sua vida.
Com o passar dos meses, Akina começou a sentir um peso em seu coração sempre que pensava em ambos os mundos que conhecia: o que a aguardava, desconhecido e misterioso, e o que ela deixaria para trás, familiar e aconchegante. Estar na caverna com os Guardiões era como estar em um mundo suspenso, fora da realidade; era quase como um universo apenas para si, e por vezes a jovem pensou em desistir da missão, mas sabia que não era possível. Uma vez que ela havia concordado em deixar os elfos para trás, estava feito. Era uma decisão sem volta.
O problema era que, ainda assim, ela queria ficar com Rinji, e isso a assustava.
No começo, sua missão com os humanos era tudo sobre o que Akina conseguia falar. Mas, com o tempo, ela parou. Não porque havia enjoado do assunto, mas porque a ideia de ficar com Rinji era tentadora demais, e a assustava – ela sabia o que seu povo dizia sobre isso. Tinha quase certeza de que o próprio Rinji também sabia, embora não tivesse convivido com os elfos por muito tempo. Eles simplesmente sabiam, e muito provavelmente era do mesmo jeito nos outros três reinos.
Quando duas pessoas se apaixonavam, não havia quem pudesse separá-los, nem mesmo o tempo; era eterno.
E, deuses, Akina amava Rinji mais do que achava ser possível.
Era assustador como havia se apegado a ele tão rápido, mas o sentimento estava lá e não podia ser ignorado.
Saindo de uma última reunião com os Reis e Rainhas dos quatro reinos, onde recebera as últimas recomendações e conselhos, Akina engoliu em seco. Não podia mais evitar aquele momento, e foi com o coração pesado que ela se dirigiu à caverna dos Guardiões, o último lugar de seu mundo em que pisaria por um longo, longo tempo.
Rinji não sabia explicar como se sentia. Adish parecia ansioso, andando de um lado para o outro, ao passo em que Kallima remexia-se no mesmo lugar, inquieta, e Mairin era o único exemplo de calmaria no ambiente.
Era normal que os Guardiões ficassem ansiosos quando um Rei ou Rainha ia até a caverna; seus desempenhos eram julgados e avaliados, mas daquela vez não havia motivo para nervosismo. Todos os governantes estariam presentes, sim, e isso não era comum, mas o centro das atenções seria Akina, e não um deles.
Provavelmente, a ansiedade que os tomava era apenas força do hábito, disso Rinji bem sabia. Mas o rapaz também sabia que, no que dizia respeito apenas a ele, o que mais incomodava era a despedida que se seguiria.
Ele olhou para Mairin em busca de apoio quando vozes e passos se tornaram gradualmente mais altos, indicando que em breve eles não mais estariam sozinhos, e, depois de receber um aceno encorajador da sereia em resposta, Rinji respirou fundo.
Era hora.
Um a um, os Reis e Rainhas de cada reino entraram na enorme caverna, seguidos de Akina, parecendo ligeiramente desconfortável. Os Guardiões curvaram-se em respeito e saudação à realeza, e quando voltaram a se levantar, um silêncio solene pairou durante poucos segundos.
Quando um Viajante era escolhido, todos os governantes dos Reinos deveriam comparecer à sua despedida, o começo da jornada. E, sendo Akina nascida da terra, foi Damek, Rei dos Elfos, quem começou a falar:
— Não é um hábito que cultuamos, nos misturar com os habitantes da chamada Terra. — Ele disse com seriedade. — No entanto, é nossa aspiração viver em harmonia, fazendo de nosso povo e da natureza apenas um. Os humanos precisam de nossos ensinamentos, e se nos é dada a chance de cooperar com a evolução de uma espécie tão digna quanto a nossa, então essa chance nós aceitaremos.
Ele pausou, olhando para cada um dos Guardiões com solenidade, antes de prosseguir:
— Hoje, Akina, dama do povo dos elfos, será encarregada desta missão, tendo se provado digna de confiança e pura de coração. É um prazer tê-la em meu reino, minha jovem. — Ele falou suavemente, inclinando de leve a cabeça na direção dela. — Vá, e ajude àquele mundo a encontrar a paz de espírito que nos acompanha em todos os momentos.
Cada palavra doía no coração de Rinji; o orgulho que ele sentia de Akina transbordava, mas cada sílaba era uma sentença de separação. Quando ela reverenciou em agradecimento, ele soube que só tinha mais alguns minutos.
— Que a proteção de nossos antepassados lhe proteja no mundo desconhecido que a espera mais adiante. — Faeryn, Rainha das Fadas, disse suavemente, sendo acompanhada dos outros governantes, que também abençoaram a jovem elfa.
— Rinji, Guardião da Terra. — Damek chamou, tirando o rapaz do mundo particular em que quase se perdera. Ele olhou para o governante de seu povo, esperando ordens. — Acompanhe Akina até o portal.
Grande ironia.
Ela iria embora, e ele era o encarregado de se certificar de que isso aconteceria sem nenhum problema. Havia a possibilidade de que o sentimento entre os dois fosse do conhecimento dos Reis, é claro; eles sempre sabiam o que se passava entre seus súditos, mesmo a menor das informações, mesmo que parecesse impossível ser do conhecimento deles.
De qualquer forma, Rinji não pôde fazer nada senão concordar com a cabeça e, com uma reverência, virar para a direção contrária à que os visitantes haviam vindo.
Akina o seguiu em silêncio todo o caminho ao longo da caverna, até que eles entraram em um longo corredor, que Akina sonhou atravessar durante meses.
O teto ali não era muito alto, e a única iluminação vinha de pequenas rochas que cresciam das paredes, e eram tão brilhantes e azuladas que se pareciam com diamantes. O ar era leve e fresco, apesar de tudo, e algumas poças de água molhavam o chão rochoso.
Eles andaram por vários minutos, até que o corredor chegou a um fim. Não era sem saída, com uma parede também feita de rocha, mas algo que Akina só conseguia definir como um véu, translúcido o suficiente para enxergar do outro lado, mas sem permitir que ela visse com clareza.
Ela estacou no lugar, de repente nervosa. Dependendo do ângulo que olhasse, conseguia ver o que a aguardava do outro lado: o portal aparentemente estava no final de um beco, com construções em ambos os lados, e chão que parecia tão sólido quanto a rocha em que ela pisava naquele momento, embora fosse liso e de um tom acinzentado. Completamente diferente do que ela estava acostumada.
Rinji apertou a mão dela, de forma leve, e virou-a pelos ombros antes que a jovem tivesse a chance de dar mais um passo em direção ao mundo terreno.
— Eu sei que não deveria estar fazendo isso. — Ele começou, hesitante. — E sei que não é justo fazer um compromisso desses, nem comigo, nem com você, mas não consigo evitar.
Akina olhou nos olhos castanhos de Rinji. No fundo, já sabia o que ele estava fazendo, mas a surpresa ainda estava lá, dentro dela, insistente.
— Não posso te pedir para ficar, porque conheço as regras melhor do que ninguém, mas também não posso te deixar ir sem falar nada. — Ele recomeçou, em um tom de voz baixo e urgente. — Eu sei que não vou te esquecer, Akina. Sei que é eterno, e sei que você sente o mesmo por mim, e não há nada que possamos fazer para mudar isso – mesmo que houvesse, eu não mudaria. Os meses em que você esteve aqui foram os melhores de que me lembro, e sei que deveria, mas não me sinto nem um pouco culpado de te dar isso.
Com cuidado, ele retirou do bolso um colar com pingente entalhado em madeira, no formato de um coração. Era facilmente o trabalho de arte mais bonito que Akina havia visto na vida, tão minucioso e delicado. Gentilmente, ele segurou o pingente pelas duas extremidades, girando cada uma para um lado. O coração se abriu, deixando cair na palma da mão do Rapaz quatro grandes pérolas translúcidas como cristais.
— São chamadas cryscis. Vêm do reino dos sereianos, e são bastante comuns entre as profundezas. É o meio mais rápido de entrar em contato com quem está longe, como uma espécie de portal. Você só precisa usá-las juntas, e mentalizar a imagem da pessoa com quem quer falar. Não é fácil encontrá-las fora d’água, mas Mairin não se incomodou em dá-las para mim.
Ele abriu um sorriso pequeno e melancólico, antes de tornar a guardar as pérolas dentro do coração, e entregá-lo para Akina.
— Pode entrar em contato comigo, ou com quem quiser, quando quiser. Não dura muito, mas é melhor do que nada. Espero que seja o suficiente. — Ele pausou, e Akina fez o possível para segurar as lágrimas que queriam se aproximar, insistentes.
— Não sei quanto tempo vou ficar lá. — Ela começou, insegura. — Nós dois sabemos que o tempo passa de forma diferente entre os dois mundos, e não sei se demorarei meses ou anos, mas eu vou voltar. Eu prometo.
A promessa não valia de muito, ambos sabiam – quando retornasse, Akina deveria voltar para o reino da terra, ficar junto dos outros elfos. Sua estadia com os Guardiões estava fora de questão, mas os dois também sabiam que o que importava era a intenção.
— Eu vou esperar. — Rinji assegurou, envolvendo-a em um abraço e depositando um beijo suave nos cabelos escuros da moça. — Estarei aqui, não importa o que aconteça. Mesmo quando as coisas parecerem escuras e sem vida, mesmo quando sua esperança fraquejar, eu estarei aqui esperando.
Abraçando-o apertado antes de tomar coragem para finalmente se soltar, Akina respirou fundo e virou-se para o portal mais uma vez. Sua vida estava prestes a mudar completamente, e era hora de ela aceitar isso. Fechando os olhos, Akina atravessou, e logo Rinji estava sozinho no corredor rochoso.
Suspirando fundo, ele deu meia-volta, pronto para voltar para a única vida que conhecera até então. Agora, assim como Adish esperava a jovem humana regressar, Rinji também sabia como era esperar por alguém do outro lado.