Ainda É Tempo
Escrito por Ray Alves | Revisado por Maria Carolina
Presente
30 de janeiro de 2020
Eu encarava o vai e vem das pessoas dentro do aeroporto de Guarulhos como se não estivesse ali de fato. Fazia exatamente dez minutos e dezenove segundos que eu desligara a ligação na cara da minha melhor amiga que iria se casar dali a doze horas, porque descobrira que as passagens que ela e o noivo haviam comprado para os padrinhos chegarem até Pernambuco incluíam assentos já escolhidos. E o meu problema não foi ela escolher que eu ficasse na janela, mesmo tendo um certo medo de altura – ela sabia que mesmo com medo, eu amava olhar o céu. O meu problema era que ao meu lado iria meu ex-marido, o motivo de muitas lágrimas, pratos quebrados e uma dor no coração que, embora eu nunca fosse admitir, ainda era presente.
Eu não queria estar ali. Assim que Roberta me disse quem iria ao meu lado, minha primeira reação foi dizer que não iria. Mas então procurei saber dos próximos voos e o único que chegaria a tempo custava muito mais do que eu estava disposta a pagar. Voltei então a falar que não iria, que ela deveria arrumar outra madrinha, mas embora a raiva de Roberta fosse grande, eu jamais perderia seu casamento com o homem da sua vida.
— ! — Escutei alguém exclamar e virei para a voz.
Era Edmundo, um dos padrinhos e melhor amigo do noivo. Bom moço, bonito e extremamente educado. Eu gostava dele.
— Oi — respondi, tentando me recolocar naquele espaço.
— Faz tanto tempo que a gente não se vê, né? Como pode! Moramos quase que na mesma cidade.
— É sim — respondi com um meio sorriso.
— Tá tudo bem?
Edmundo, com aquele jeito bom moço dele, sempre tivera o dom de perceber o íntimo das pessoas. Obviamente não seria diferente naquele momento.
Encarei meu amigo e senti os olhos pinicarem e lágrimas ridículas quererem cair, mas segurei o choro e respondi.
— Tá sim. Só estou um pouco irritada. Você tá bem?
Meu amigo me emcarou e sorriu amarelo, entregando que já fazia ideia do motivo para aquela minha reposta.
— Você já sabia? — Indaguei enquanto lhe encarava.
— Carlos havia me falado sobre isso.
— Eu não acredito que aqueles dois cretinos disseram a todos, menos a mim — reclamei sobre o casal.
— Eles não tinham más intenções.
— Pois de boas intenções o inferno tá cheio, Edmundo — voltei a reclamar, até que me passou uma ótima ideia na cabeça. — Você bem que podia trocar de assento comigo, né? O problema estaria resolvido.
Edmundo então voltou a sorrir amarelo antes de falar:
— Eu juro que faria isso, , mesmo sendo errado — fez questão de frisar. — Mas não vai rolar.
E antes que eu pudesse lhe implorar até mesmo de joelhos, ele estendeu a mão para alguém atrás de mim e logo uma mulher linda de cabelos cacheados e pele negra apareceu dando a mão a ele.
— Essa é Marina, minha namorada. Ela vai ao meu lado e, antes que tente argumentar, Marina tem medo de avião e não quero sair de perto dela neste momento.
Respirei fundo, derrotada e com as lágrimas voltando a querer escorrer novamente.
— Oi, , ouvi falar muito bem de você.
— Fico feliz — respondi, já indo pra longe sem conseguir conter a vontade de sumir.
Andei de um lado para o outro, sem querer sentar e dar lugar à lembranças que eu não desejava, até que encarei a porta de entrada e senti tudo em mim gelar.
Era ele. usava uma calça moletom, uma camisa preta com um casaco do mesmo tecido e cor da calça por cima, e um tênis Adidas nos pés. Absurdamente lindo, assim como era desde a última vez que eu havia lhe visto, há cerca de cinco meses.
Pensei em dar as costas e fingir que não tinha lhe visto, mas não fui rápida do bastante. me encontrou em meio ao ir e vir de pessoas e sorriu, o mesmo sorriso que ele tinha me dado na primeira vez que nos vimos, e então a memória daquele dia invadiu meus pensamentos.
15 de abril de 2015
Eu respirava fundo em pé na coxia enquanto encarava minhas sapatilhas de ponta e tentava calar o turbilhão de pensamentos que se passavam em minha cabeça. Eu havia conseguido. Dera conta de fazer o maior solo da minha vida e agora esperava chegar minha hora de entrar na última dança para encerrarmos o espetáculo.
Eu entrei, dancei e logo estava agradecendo a todos e recebendo um buquê do coreógrafo. Tudo parecia perfeito e foi então que encontrei um par de olhos brilhantes na plateia e, de imediato, tudo pareceu ficar mágico.
O dono do par de olhos brilhantes ignorava qualquer pessoa ao meu lado e me encarava, parecendo magnificado. Suas palmas não eram para mais ninguém além de mim. E como se o mundo ao redor de nós tivesse deixado de existir, ele percebeu meu olhar e então sorriu; um sorriso de lado, meio tímido, mas que parecia dizer: você é brilhante, magnífica, um espetáculo, e logo depois seus lábios confirmaram.
— Magnífica! — Pude ver seus lábios falarem.
E ali, no meio do palco, eu soube que havia ganhado muito mais do que aplausos.
— Oi, — ele balbuciou de longe, assim como havia feito naquele dia no espetáculo.
Dei as costas para ele e comecei a andar a procura de Edmundo, mas antes que eu pudesse encontrá-lo, ouvi a voz de perto de mim.
— , me deixa falar com você.
— . Meu nome é . Não me chame de ., você não é íntimo meu.
— , me deixei falar — falou desta vez, agora tocando meu braço.
— Pelo amor de Deus, não me toque! — Exclamei irritada enquanto me virava para ele.
— Nós vamos passar cerca de três horas um ao lado do outro. Por favor, me escute.
— Escutar o quê, ? O que raios você quer que eu escute? Já não basta termos que viajar juntos, você ainda quer deixar o clima ruim?
— O clima já é ruim sem eu precisar fazer nada, só me deixe tentar consertar.
Suspirei derrotada.
— Isso não está acontecendo. Isso não está acontecendo — comecei a repetir baixinho e senti novamente me tocar.
— Ei, eu só queria que a gente pudesse nos falar sem brigas. Somos bons nisso, lembra? A gente sabe resolver as coisas sem precisar de brigas. Lembra?
30 de julho de 2015
— Eu não acredito que vamos brigar por causa de uma coisa dessas — exclamou.
— Brigar? Eu não vou brigar com você. Não tenho nem por que brigar com você. Por que eu brigaria com você? — Indaguei de forma quase retórica.
suspirou e depois deu seu sorriso.
— Vem cá — ele esticou o braço para me dar a mão. — Fala o que te incomodou. Não vamos brigar, por favor, . Só seja sincera.
— Eu não estou com ciúmes, quero logo adiantar que não se trata disso. É só que... — Comecei, incerta se deveria falar, ou não, sobre o que sentia.
Eu tinha minha carga de relacionamentos passados, assim como quase todo mundo, e algumas dessas cargas me ensinaram a não querer me mostrar vulnerável para todo mundo. Algumas pessoas gostavam de se aproveitar da sua vulnerabilidade.
— Só fala, .
Então eu respirei fundo e despejei tudo.
— É só que é estranho. A gente sai junto, mulheres dão em cima de você comigo de lado e eu não sei como agir, entende?
— Isso te deixa insegura?
— Eu não sei — confessei. Eu não sabia direito o que sentir.
— Olha, primeiro me promete uma coisa — pediu e eu balancei a cabeça em um sim. — A gente não vai mais sair de lugar algum na frente do outro como se estivéssemos prestes a quebrar pau. Pode ser?
Novamente balancei a cabeça em um sim e ele sorriu.
— E me promete mais uma coisa: vamos resolver as coisas na conversa, pode ser? Você aceita isso?
— Sim — respondi baixinho.
— Agora deixa eu explicar que não precisa sentir o que quer que seja sobre essas garotas, elas não me interessam, de verdade. E por último, mas não menos importante, quero saber se você aceita outra coisa.
— O quê? — Indaguei curiosa.
— Você aceita namorar comigo?
Então olhei para aqueles olhos brilhantes que tanto amava e sorri de orelha a orelha.
— É claro que sim!
Selamos nossos acordos com um beijo apaixonado que tirava a importância de qualquer problema. Ali eu sabia que seríamos capazes de tudo e que daríamos certo.
— Eu não lembro de nada, — menti agora que havia saído daquela lembrança. — Faz um ano. Um ano que acabamos. Por que você quer que eu lembre do que quer que seja?
— Porque pode se passar o tempo que for, algumas coisas eu sei que não mudam, e uma coisa que sei é que você sempre será sempre fiel às suas promessas, ditas no altar ou fora dele.
falou aquilo me encarando, da maneira que ele sempre fazia quando queria mostrar que estava falando sério, e ele sabia que nada me fazia prestar mais atenção do que seu olhar no meu.
— Não faz isso — pedi, quase suplicando.
— O quê? — Indagou, ainda me olhando nos olhos.
Antes que eu pudesse falar alguma coisa, Edmundo chegou e nos tirou daquela bolha de lembranças e sentimentos confusos.
— É... Nosso embarque começou faz um tempo. Fiquei ali esperando vocês terminarem de conversar, mas acho que se não formos agora, perderemos o voo. Você chegou em cima da hora, .
Vi Marina olhar sem jeito para mim e e depois baixar o olhar, como quem se desculpa por estar presente em um momento tão íntimo. Eu queria socar por me fazer passar por aquilo.
Mostrar meus documentos no embarque e arrastar minha pequena mala até o avião foi tornando tudo ainda mais real, e embora Edmundo e Marina tentassem me entreter com conversas triviais sobre Pernambuco, eu não conseguia deixar de pensar em como seriam as próximas três horas. Olhei de canto para e tive a impressão de que ele vivia algo parecido, já que estava calado e com o olhar distante, algo que não era costume dele quando estava perto de gente conhecida. Saber que ele estava naquele processo mexeu comigo de uma forma estranha e me deixou com algumas perguntas na cabeça.
O que ele queria? Por que se importar em me lembrar de como éramos?
Assim que entramos na aeronave e me viu sentar na janela, indagou:
— Quer trocar de lugar comigo? Assim você pode ver o céu sem ver lá embaixo.
Fiquei tentada a aceitar, mas não queria nada vindo dele.
— Não precisa se preocupar.
Pretendia colocar minha venda e fingir dormir até aterrissarmos, era o plano perfeito para evitá-lo, e assim tentei fazer. Me sentei, abri minha bolsa de lado, peguei a venda e coloquei sobre os olhos, mas não dava pra pedir para um peixe ficar vivo fora da água, não é mesmo? E pedir para se manter calado era algo perto disto.
— .
— . Me chame de — respondi, sem me dar ao trabalho de retirar a venda.
— , eu queria te mostrar uma coisa — ele disse baixinho, mostrando que não queria que o senhor ao lado prestasse atenção.
— Eu não vou tirar minha venda por nada nesse mundo, — respondi cansada.
— Não precisa. Só ouve.
E então uma melodia baixinha começou a ocupar o espaço e tomar conta de mim. A música era tocada em um piano e as notas me lembravam o balé, lembravam a mim. Embora não tivesse letra, de alguma forma eu sabia que era sobre mim. Inevitavelmente tirei a venda e encarei .
— É sua? — Indaguei, sentindo o coração acelerar a cada nota.
— É sim. Você sabe... Amo música.
E ele amava. Essa era uma das coisas que nos unia. Não tínhamos muito em comum e nem desejávamos isso, mas a música era algo em comum que gritava entre a gente.
3 de março de 2016
e eu estávamos em sua sala de estar tomando suco de uva com queijo, já que nenhum de nós dois ingeria álcool. Agora, ele estava sentado em frente ao lindo piano que tinha e eu me encontrava sentada com as pernas cruzadas em seu tapete, enquanto ostentava um sorriso nos lábios ao olhar meu namorado tocar.
Era mágico vê-lo tocar. saía de orbita e nada era mais sincero para mim quanto suas melodias. Me deitei, então, no tapete e fechei os olhos, deixando cada nota tomar conta de mim. Quando a música terminou, não abri os olhos. Sabia que ele viria até mim sem que eu precisasse lhe chamar.
Senti seus lábios tocarem o meu de leve, em um selinho terno, e então abri os olhos sorrindo.
— Queria que você dançasse ela um dia. Se eu fecho os olhos enquanto toco, só vem você à minha mente, rodando por essa sala e preenchendo ela de você e sua arte.
— Então toca. Me deixa dançar sua música — falei lhe encarando e depois mordendo seu lábio.
Mas a música acabou ficando para outro dia. Minha mordida em seu lábio acabou tirando tudo do foco e logo estávamos nos beijando calorosamente.
Fiquei em silêncio ouvindo a música e deixando que aquela lembrança me preenchesse de uma forma que eu nunca havia permitido antes. Mas tê-lo ali, tão perto e com uma música tão linda, deixava tudo mais difícil de ser negado.
Como não fiz nenhuma pergunta, suspirou e disse:
— Fiz essa música há cinco meses.
Ele não precisava dizer mais nada. Eu sabia o que tinha acontecido há cinco meses. Foi a primeira e única vez que tínhamos nos visto depois da separação. Um dia tão conturbado quanto aquele, mas com a diferença de que eu sabia que iria encontrá-lo, embora tivesse que admitir que passar uma semana me preparando não havia deixado as coisas mais fáceis.
— Por que você tá fazendo isso, ? — Indaguei baixinho, sentindo meu coração apertar.
— Você ocupa minhas melhores lembranças, , e eu precisava dizer isso a você. Precisava ter certeza de que você sabia que sempre foi muito importante para mim.
— Acabamos há um ano. Você não deveria se preocupar com o que penso ou deixo de pensar.
— Isso vai ser mais difícil do que eu pensava — ele falou e, sem saber o motivo exato, me irritou.
— O que você pensava então? — Indaguei. — Que chegaria aqui, falaria qualquer merda e alguma mágica aconteceria? Fomos casados, . Fomos casados e agora somos divorciados. Essa história que ex segue amigo de ex é lindo e até desejável, mas já faz um ano, você deveria saber que isso não vai acontecer com a gente!
O senhor que estava ao nosso lado não conseguiu conter a curiosidade e me encarou com aqueles olhos de quem tudo sabe e tudo entende. Não havia presunção ou nada do tipo, apenas um olhar curioso de quem queria saber onde aquilo daria, embora no fundo soubesse.
— Mano, você me conhece, ! Você sabe que não me casaria com alguém apenas por casar, sabe que só amor me levaria ao altar e eu só queria poder não deixar tudo isso em um emaranhado de coisas ruins, porque minhas melhores lembranças são com você, é você. Você dançando, arriscando cantar mesmo sendo horrível, debatendo política comigo mesmo que soubesse que eu ligo menos que você para isso, você ajudando pessoas desconhecidas, você rindo e dizendo que era um gênio da programação mesmo que não entendesse um if else . Você dizendo sim para mim.
E então fui teletransportada para outra lembrança.
16 de setembro de 2016
Estávamos todos sentados na mesa de um restaurante comemorando algo que, no fundo, ninguém sabia o que era. Roberta havia apenas mandado mensagem chamando Edmundo, Isadora, e eu, além de Carlos. Ela apenas disse que queria comemorar e, como bons amigos, fomos ao seu encontro. Agora nos encontrávamos rindo e falando besteira como se não houvesse amanhã, até que respirou fundo e falou:
— , queria te dar isso.
E tudo mundo parou de falar. Os olhares cheios de expectativas me deixaram ansiosa e, com as mãos trêmulas, puxei a carta que havia deixado em cima da mesa para mim. Puxei a folha que tinha dentro e comecei a ler.
— Lê em voz alta, — escutei alguém falar e não consigo ter certeza se foi Isadora ou não.
Encarei todos e não consegui obter respostas e, sentindo o coração pela boca, encarei meu namorado. Seus olhos brilhantes encontraram os meus e então ele falou:
— Lê, .
— Querida , sinto que devo abrir meu coração, já que estamos... — Comecei a ler e automaticamente sorri. Eu reconhecia aquelas palavras, era o início da carta de Gilbert para Anne.
— Vai, .
— Querida , sinto que devo abrir meu coração, já que estamos há mais de um ano juntos e quero viver ao seu lado, certamente para sempre — voltei a ler, percebendo a primeira alteração. — Você é a apaixonante razão do meu afeto e anseio. Você, e só você, é a dona da chave para o meu coração. Por isso...
Terminei de ler a carta com uma lágrima de emoção escorrendo dos olhos.
— Por isso... — Roberta estimulou para que eu terminasse.
— A carta acaba aqui — informei enquanto olhava para com curiosidade.
— Por isso... — Ele começou, enquanto arrumava a postura. — Minha querida , você aceitaria casar comigo?
Levei minha mão a boca em choque enquanto via abrir uma caixinha com duas alianças personalizadas. A minha tinha uma sapatilha gravada e, na dele, uma nota musical.
— E aí? — Ele perguntou sorrindo.
Não respondi com palavras. Puxei para um beijo e lá longe consegui escutar os gritos e aplausos dos meus amigos e desconhecidos do restaurante.
Encarei sem palavras e percebi que seus olhos entregavam que estávamos saindo da mesma lembrança. Balancei minha cabeça, como se pudesse apagar aquela lembrança da minha cabeça.
— Acho melhor encerrarmos essa conversa aqui, — falei enquanto colocava minha venda de volta nos olhos.
Houve um silêncio e suspirei aliviada, agradecendo a Deus por perceber que ele ficaria calado. Mas tão logo suspirei, ouvi sua voz falando:
— .
— , .
Pude ouvi-lo suspirar e logo depois uma voz estranha, provavelmente sendo a do senhor ao nosso lado, lhe encorajando.
— Tente.
— .
— Oi, — respondi sem paciência.
— Por que a gente não tentou?
— Como? — Indaguei confusa e sentindo meu coração acelerar.
Eu não achava que estávamos prontos para aquela conversa.
— A gente se desentendeu e se divorciou. Por que a gente não tentou de verdade? É como se não tivéssemos entendido nossas palavras no altar.
E ainda que eu estivesse de olhos fechados, me negando a acreditar na veracidade daquela conversa, a lembrança do nosso casamento me veio à mente.
16 de janeiro de 2017
Eu me encarava no espelho e percebia que nunca havia estado tão linda em toda minha vida. O vestido branco, levemente armado, me deixava com ar de princesa contemporânea. Aquele seria o dia mais marcante da minha vida até então e, embora eu soubesse que deveria manter aquele vestido intacto, sentia minha barriga dar voltas e me sentia prestes a vomitar.
— Você está linda, — Isadora falou enquanto encarava meu reflexo.
— Sinto que posso desmaiar ou vomitar a qualquer momento.
— Nem ouse! — Roberta falou aos risos. Logo depois disse: — Muito nervosismo, né?
— Demais — confessei com um suspiro. — Eu não vejo a hora de chegar ao altar e vê-lo lá, me esperando.
E nem nos meus maiores sonhos meu casamento seria tão mágico quanto foi.
Quando meu pai apareceu na porta do quarto, me indagando se eu estava pronta, e depois me levou rumo ao local que estava lindamente organizado em meio ao gramado da fazenda do pai de Roberta, eu parecia anestesiada. Mas então chegamos até o início do tapete que levava até o altar e vi, lá longe — que para ser sincera não era tão longe assim —, me olhar e sorrir aquele sorriso. Então tudo mudou de figura e a dormência passou, dando lugar a uma alegria sem fim.
Naquele dia ouvimos muitas pessoas dizerem que foram capazes de ver a felicidade se materializando em sua frente quando nos olhamos e quando dissemos sim, e eu não duvidava. Poderia viver cem vidas e ainda não esqueceria de me falando:
— Você é a mulher da minha vida, , e eu sempre soube. No momento em que te vi pela primeira vez, ainda no palco, rodando e tomando conta de todo aquele teatro, eu sabia que você também havia ocupado outro espeço. Você tomou conta do meu coração e nele você tem espaço vitalício para as suas apresentações.
Aquela lembrança me deixou arrepiada.
— Você não pode estar falando sério — resmunguei, mais para mim do que para ele.
odiava quando eu resmungava e isso sempre fora motivo de riso para mim.
— Eu estou falando muito sério, .
Tirei lentamente a venda dos meus olhos e dessa vez lhe encarei o mais séria que poderia estar. Queria dizer aquelas palavras lhe encarando para não deixar dúvidas sobre toda a dor que aquele processo havia me causado.
— Talvez porque a gente já não estivesse bem, . Talvez porque depois de um tempo eu tenha me tornado apenas um móvel no seu quarto tão cheio de computadores e lembretes das mil reuniões que você deveria estar. Talvez porque, depois de tantas tentativas de conversas não terminadas por sua falta de tempo, a gente só tenha percebido que eu não tinha vaga em sua agenda e que o único tempo que lhe restava era o de receber a visita do nosso advogado, que diga-se de passagem fui eu quem escolhi porque você não tinha tempo, para assinar um documento sem nem ler direito e me ver de uma vez por todas fora da sua vida tão bem arrumada que não cabia uma bailarina para bagunçar seus papéis milimetricamente organizados em cima da nossa mesa de centro onde, mesmo que eu tenha me oposto, também virou seu local de trabalho. É. Acho que foi por isso que a gente não tentou. Ou melhor, acho que foi por isso que você não tentou, porque eu, , eu passei cerca de três meses tentando manter um casamento sozinha.
— ...
— Tua falta de tempo nos roubou tudo. Roubou seu tempo para tocar piano, seu amor pela música, sua paixão pela minha dança... Você não tinha mais tempo para ser o homem por quem me apaixonei e muito menos para me ter como esposa.
— ...
— Ou você esqueceu de como as coisas estavam?
9 de outubro de 2018
estava sentado em frente ao computador, programando mais um dos trabalhos da empresa que fazia parte, e parecia irritado ao perceber um erro que alguém da equipe que ele gerenciava havia feito.
— Cacete! — Ele esbravejou estressado e eu rolei os olhos.
Desde que ele havia trocado de empresa e conseguido a gerência, os trabalhos trazidos para casa deixaram de ser esporádicos para virar rotina, assim como suas reuniões fora de horário e seus gritos de estresse.
Eu odiava cada parte daquilo. Odiava como o barulho na nossa casa deixou de ser seu piano para se tornar gritos de xingamento, como nosso quarto, devido a falta de cômodo extra, havia se tornado também seu escritório e o quanto isso acabava me tirando a privacidade e também algumas horas de sono, além de me tirar seu corpo ao lado do meu. Outro motivo do meu ódio era olhar nossa sala, o único cômodo realmente grande da casa e onde eu me aventurava em fazer alguns passos de dança, e ver que estava com a mesa de centro cheia de seus papeis e, como mesmo sendo contra aquilo, parecia o mais certo a se fazer, já que eu acordava tarde e ele precisava trabalhar logo cedo, às seis da manhã muitas vezes.
— Filho da mãe burro do cacete! — Ele voltou a xingar sozinho e dessa vez fiz questão de bufar alto o bastante para que ele ouvisse.
olhou para mim e sorriu sem jeito.
— Estou fazendo de novo, né?
— Sim — confirmei suspirando.
— Me desculpa, meu amor, mas é que isso vai render tantas horas de trabalho a mais que você não faz ideia. Não consigo acreditar que o cara fez isso — ele justificou e eu rolei os olhos.
— Mas você não precisa gritar e assustar o Gilbert por isso — falei enquanto mostrava o gatinho em pé, em alerta. — Nós vamos para a sala.
— É melhor. Assim a gente evita incômodos desnecessários.
E embora qualquer um que escutasse achasse que ele estava falando sobre si mesmo nos atrapalhando com seus gritos, eu sabia que na verdade ele se referia a mim o atrapalhando.
Chegando à sala, sentei no banco em frente ao piano, que há cerca de quinze dias não era usado, e toquei algumas poucas notas que sabia muito mais ou menos. Automaticamente a paz começou a invadir conforme a música ia tomando forma, mas cedo demais apareceu na sala e reclamou:
— Será que você poderia não tocar? Te ouvir tocando me dá vontade de te ensinar e eu não estou com tempo, então me atrapalha.
Toda minha paz foi embora e deu lugar a uma irritação instantânea.
— Então me diz, por tudo que é mais sagrado, o que eu posso fazer nessa casa. Porque eu não posso me deitar na cama, não posso ter amigos aqui, não posso tocar. O que eu posso fazer?
— Assistir televisão? — Ele sugeriu meio incerto e aquilo bastou para mim.
— Meu senhor! Esta não é apenas sua casa, , esta casa também é minha e eu não sinto mais isso.
suspirou e depois me encarou, se desculpando com os olhos.
— Depois a gente conversa sobre isso, tudo bem? Eu tenho uma reunião em vinte minutos e preciso deixar tudo pronto.
E tão rápido como apareceu na sala, saiu, deixando apenas Gilbert e eu com o sentimento de que não pertencíamos àquele lugar.
15 de novembro de 2018
Eu estava no palco, agradecendo aos aplausos que ganhávamos depois da estreia de mais um espetáculo, e procurava, entre os rostos desconhecidos, o meu rosto preferido: o de . Embora não estivesse achando, continuei procurando enquanto forçava meu sorriso a continuar no rosto mesmo não lhe encontrando. Depois de encontrar Roberta na plateia sem mais ninguém ao seu lado, entendi que ele não havia ido.
Assim que as cortinas fecharam e me arrumei para ir embora, encontrei Roberta me esperando com um sorriso orgulhoso nos lábios.
— Você estava magnífica.
— Obrigada — respondi, tentando forçar um sorriso.
— Ei, ele deve ter uma boa justificativa — ela disse, como se lesse meus pensamentos.
— Não tem importância, tá tudo bem.
Segui para casa e, assim que abri a porta, encontrei em pé, com cara de culpado.
— Me desculpa. Eu fiquei ocupado até tarde revisando um trabalho e...
— Não importa, . Eu só quero me deitar e descansar, pode ser? Foi uma apresentação longa e eu preciso de um bom banho quente.
— Eu vou arrumar a bagunça que deixei no quarto, porque ocupou nossa cama.
Foi tudo que ele disse, sem se convidar para o banho, como ele sempre fazia.
28 de dezembro de 2018
Era perto do fim de ano e eu amava aquela época do ano. As árvores de Natal, as comidas, o compartilhar de histórias e amor. Enquanto assistia sozinha mais um especial de Natal na Netflix, senti vontade de dançar e então coloquei uma música para tocar no celular, em volume baixo. Eu não pretendia fazer grandes saltos ou passos, queria apenas que a felicidade pelas datas comemorativas pudesse transbordar de mim.
Afastei então o centro abarrotado de papéis e me permiti dar os primeiros passos ao som da música. Logo a música foi me envolvendo e os passos tomando vida própria dentro de mim e, em algum momento, sem que eu percebesse, cheguei perto demais do centro e acabei tropeçando, fazendo com que ele virasse.
O esbarrão, embora não tenha quebrado nada, me fez cair de mal jeito e machucar o pé.
— Ai! — Exclamei.
— O que houve? — logo apareceu na sala, preocupado.
— Eu estava...
Mas antes que pudesse continuar, ele olhou para os papeis, agora misturados, e ficou horrorizado.
— Que merda você fez?
Eu estar no chão segurando meu pé passou despercebido por ele, apenas os papeis pareciam importar. Pareciam não, eles realmente eram a única coisa que importava.
— Eu tropecei — falei enquanto massageava o pé.
— Como isso aconteceu? Você não viu o centro desse tamanho?
Minha careta de dor também passou despercebida.
— Eu fui dançar um pouco e...
— Eu não acredito que você fez isso! Eu te falei pra parar de fazer isso.
A dor deu lugar a raiva e logo eu estava forçando meu pé a me dar forças para me levantar.
— Eu não sei se você lembra, , mas esta também é minha casa, lembra? Eu acho que não, porque desde que essa droga de trabalho veio aqui pra casa que parece que ela é só sua e eu só existo para obedecer a suas regras.
— Esses papeis vão dar muito trabalho para arrumar.
— Se o problema é esse, começo a arrumar agora mesmo. Pode deixar.
se apressou em ficar entre mim e os papeis e disse:
— Deixa que eu faço isso, já que parece que você não entende a seriedade de um trabalho.
— Eu não entendo? É sério? Achei que você me visse indo trabalhar todos os dias. A diferença é que eu não coloco isso em primeiro lugar em tudo na minha vida!
— Óbvio que não, não é mesmo, ? Óbvio que a linda e leve não coloca isto em primeiro lugar, afinal, tudo tem que ser movido através de leveza e calma. Mas advinha? Tem gente que tem trabalhos reais nessa vida. Você entenderia se tivesse um trabalho de verdade.
Tão logo as palavras saíram de sua boca, virou para mim e já estava pronto para pedir desculpas quando falei:
— Não ouse se desculpar — adverti com lágrimas já escorrendo dos olhos.
— Eu não queria dizer isso, as coisas saíram...
— Foi exatamente o que você queria falar. Isso explica muito bem tudo que vem acontecendo nos últimos meses.
— — me chamou, mas não completou a frase.
Diante de seu silêncio, o quebrei com a única solução para que aquilo acabasse.
— Isso não está mais dando certo.
Falar aquilo me partiu por inteira e quase não tive fôlego para me manter de pé.
— O que você tá querendo dizer, ?
— Eu não estou feliz e, sejamos sinceros, nem você. Por que prolongar ainda mais? Acho que já houve machucados o bastante por aqui.
— , eu falei na hora da raiva, eu não penso isso.
— Não se trata só disso, .
Antes que falasse mais alguma coisa, seu celular tocou e ele parou para olhar quem era.
— É o Eduardo do trabalho, eu preciso atender.
Permaneci calada enquanto ele conversava com Eduardo, até que ele desligou.
— Preciso fazer uma chamada com ele urgente. Prometo que depois a gente termina essa conversa.
— Se você entrar em mais uma de suas reuniões agora, não terá depois, .
— , é algo muito importante.
— Você está fora do horário de trabalho, .
— Mas eu não posso faltar, acabei de dizer que iria.
— Pode ir, , mas eu não estarei mais aqui.
Então ele mordeu os lábios em desculpas.
— Eu preciso mesmo ir. Me espera.
Mas eu já havia esperado demais. Ele não tinha tempo naquele momento e não teria nunca mais. Não pra mim.
Esperei que ele entrasse na reunião para então entrar no quarto, o forçando a desligar a câmera como sempre acontecia quando eu entrava. Então comecei a arrumar minhas coisas debaixo de seu olhar em pânico e ainda pude vê-lo balbuciar “não faz isso”, mas já era tarde demais.
Arrumei as coisas o mais rápido que pude e peguei o presente que não havia lhe dado, porque tínhamos combinado de dar no ano novo, e levei para sala. Voltei para o quarto apenas para lhe olhar e falar:
— Vou procurar um advogado e pagar com nossa conta conjunta. Fica com Deus.
Voltei então para sala e escrevi um bilhete para acompanhar o presente.
“Para que você não esqueça quem é e nem para onde quer ir.
Com amor, .”
E lá deixei uma caixinha de música que dentro vinha um pianista e uma bailarina.
As lembranças insistiam em me fazer querer chorar, mas aguentei firme e encarei , esperando uma resposta, já que ele queria tanto aquela conversa.
— Não, eu não esqueci, e você não faz ideia de como me arrependo de cada momento perdido sem ser ao seu lado, cada palavra não dita e também das ditas quando eu sei que deveriam nunca nem ter passado pela minha mente. Agora, eu queria te pedir uma coisa. Eu passei cinco meses apenas com a melodia que te mostrei, mas essa semana, enquanto não conseguia conter a ansiedade por te ver, aquela melodia ganhou uma letra de música para acompanhá-la e eu queria que você ouvisse. Vou ao banheiro para te dar esse momento. Por favor, escuta.
se levantou e me entregou seu celular, e eu não sabia o que deveria fazer. Assim que ele se afastou, encarei o celular com lágrimas escorrendo no rosto e sem conseguir fazer nada.
— Eu não suporto o lugar de “senhor de idade que sabe de tudo”, mas eu acho que você deveria escutar — o senhor que observava tudo falou.
Então dei play e escutei a música, que desde o início já sabia que tinha algo sobre mim, se tornar ainda mais real. A avalanche de lembranças que vieram foi tão forte e rápida que não caberia descrevê-la, mas logo ela escorreu copiosamente pelos meus olhos e os fechei, me permitindo dançar em minha mente, colocando para fora tudo que eu sentia do jeito que eu mais sabia.
Quando a música parou, continuei ali, de olhos fechados, finalizando meus passos imaginários. Acredito que o senhor fez sinal para que viesse, porque foi a voz dele, no timing exato, que me tirou dos meus pensamentos.
— Larguei meu emprego e estou recomeçando em uma outra empresa. Voltei a tocar, como você viu, e tenho agora um escritório para os dias em que o trabalho é em casa, embora uma das minhas exigências tenha sido que isso seria em caso excepcionais — ele começou listando as coisas que mudaram em sua vida desde que nos separamos. — Será que ainda é tempo?
Eu não sabia o que o futuro guardava, mas algo dentro de mim respondia que, embora houvesse dor, a gente merecia uma conversa, e eu não conseguia negar isto.
— Ao menos para um café e uma conversa civilizada sei que há tempo — foi o que fui capaz de responder antes de receber o sorriso lindo de como agradecimento.
Futuro
16 de outubro de 2022
— Eu não acredito que estamos casando vocês outra vez — Isadora diz enquanto ri satisfeita.
— Já eu sempre soube. Vocês sempre se amaram — Roberta fala, também rindo.
Contrariando a própria de cerca de dois anos e meio atrás, agora estou no quarto de uma pousada absurdamente linda de Olinda, em Pernambuco, para comemorar meu segundo casamento com o mesmo homem.
O lugar escolhido não podia ser outro. Foi ali que nos hospedamos durante a semana que passamos em Pernambuco após o casamento de Roberta, e foi ali que conversamos e fizemos amor pela primeira vez depois de tanto tempo. Foi ali que, mesmo sem saber direito do futuro, a gente escolheu que teríamos todo tempo do mundo para nos amarmos. E é por isso que agora eu uso um vestido azul claro e me preparo para ver o amor da minha vida mais uma vez no altar.
Desta vez, entro sozinha, já que meu pai partiu devido à pandemia que assolou o mundo e acabou ano passado, e embora ele não esteja ali, posso senti-lo ao meu lado.
Caminho rumo ao meu ex e, novamente, futuro esposo e dou minha mão a ele assim que chego perto o suficiente. Logo estamos dizendo sim um ao outro e nos beijando na frente de todos que amamos.
— Obrigada, . Obrigada por ser quem é, por me aceitar, por estar aqui. Nada do que eu possa fazer é capaz de fazer justiça ao tanto que você me faz. Minha vontade é roubar você daqui para podermos ficar a sós o mais rápido possível, sem precisar falar com ninguém, apenas nós dois — sussurra em meu ouvido.
Me afasto levemente e lhe encaro enquanto sorrio.
— Calma, meu amor, temos todo o tempo.
E então lhe puxo para mim em um beijo que gritava: ainda é tempo.
Nota do autor: Ahhhh, como eu amei contar essa história. Que coisa magnífica foi viajar no tempo com esse casal. O presente da história se passa no início de 2020 porque era um tempo onde ainda era normal viajar para grandes festas. Já o futuro, em 2022, é para ser positiva e jogar pra o universo essa possibilidade de já termos passado por tudo isso até ano que vem.
Espero que vocês gostem dessa história tanto quanto eu gostei de escrever.
Também sou autora de outras histórias aqui no site. Que tal dar uma olhadinha?
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