A Garota do Ônibus
Escrito por Marcella Ribeiro
Ela subia no ônibus número 42 todos os dias, entre as sete e trinta e as sete e quarenta e cinco da manhã. Exatamente dois pontos depois do meu, e descia sempre um ponto antes, lá para as oito e quinze.
E toda vez que ela entrava, eu não conseguia mais desviar os olhos dela por muito tempo. O modo como ela se movia, e sorria para os estranhos, era lindo demais, quase hipnotizante.
O nome dela era , ela tinha por volta dos 20 anos, e estudava Engenharia Química.
Eu sei, loucura.
Mas veja bem: eu não sou um stalker nem nada disso. Um doido que fica seguindo a garota e reparando em tudo o que ela faz, eu juro. Eu só sei algumas dessas informações porque fui apaixonado por ela por, mais ou menos, uns oito anos.
A verdade é que nós estudamos juntos durante todo o ensino fundamental. Fomos para escolas diferentes apenas no ensino médio, e não, eu nunca falei com ela nem nada. Exceto uma vez que ela esbarrou em mim e então pediu desculpas, e eu, como um idiota, nem respondi porque não sabia o que falar. E ao invés de dizer “ah, tudo bem” ou “não foi nada”, meio que dei de ombros e fiz um som parecido com “gaaah?”, logo depois ficando vermelho.
De qualquer forma, fiquei três anos sem vê-la. Mesmo morando na mesma cidade, nunca a vi em shoppings ou restaurantes ou andando pela rua durante meus anos de ensino médio. Não tive sequer um vislumbre dela, e embora de vez em quando cruzasse minha mente, a verdade mesmo é que, depois do primeiro ano longe, nos outros dois eu me esqueci dela.
Ela era a garota que eu gostava no ensino fundamental, e daí? Será que gostava mesmo? Será que não era apenas uma vontade de conhecê-la melhor, porque ela me chamava a atenção?
E com esses pensamentos, eu enterrei-a bem fundo nas minhas lembranças.
Até, é claro, ela começar a pegar o mesmo ônibus que eu.
Eu não fazia faculdade ainda. Quando a vida adulta chegou, junto com as contas e todas as despesas, eu tive que optar por trabalhar ao invés de estudar, e embora ainda tivesse planos para isso, não tinha conseguido colocar em prática.
Eu trabalhava em uma empresa de informática há poucas quadras da faculdade em que estudava, e se ela me reconhecia todas as vezes que olhava para mim no ônibus, eu não sabia dizer. Só sei que vê-la era o ponto alto dos meus dias.
Minha vida não era lá essas coisas. Eu trabalhava em um ramo que gostava muito, mas eu não estudava ainda para aumentar meus conhecimentos, então logo aquela empresa de informática entrou na mesmice pra mim. No quesito amoroso, eu sempre acabava conhecendo algumas garotas, mas nenhuma que chamasse minha atenção por muito tempo. Nenhuma com quem eu gostasse de conversar por horas e horas e horas... então na maior parte dos dias eu simplesmente acordava, ia para o trabalho, voltava para casa e dormia novamente.
Talvez por isso aquela garota voltou a ser o ponto alto dos meus dias, talvez por isso eu acabei voltando a reparar nela, e ter memórias distantes dela na escola. Nunca comigo, é claro, mas sempre com um grupo de amigos, ou até fazendo coisas sozinha. E a forma como ela sorria era realmente linda. Ora, quem gosta quando um senhor ou senhora senta do seu lado no ônibus e começa a reclamar da vida? Ninguém!
Mas ela não se importava. Ela conversava, e tentava animar todos eles. Ela ouvia, e não somente daquele jeito que a maioria de nós fazemos: com um fone de ouvido em uma orelha e olhando para os lados desconfortável enquanto reza silenciosamente pro velho calar a boca. Ela dirigia toda sua atenção, e comentava, e sorria... ela se importava, e me lembrava daquela menina que ainda tinha umas espinhas perdidas pelo rosto, que era meio magrela, confortando alguma amiga, ou fazendo alguém rir.
Então, sim, o meu interesse por ela voltou com força total, mas como o meu eu de antes, eu apenas a observava, porque era bem mais fácil assim. Às vezes idealizamos tanto alguma coisa, ou alguém, que a decepção é como um soco na cara quando a conhecemos a fundo. E eu nunca quis que com ela fosse assim. Ela era o anjinho de porcelana que eu podia observar, não tomar pra mim. E eu estava ok com isso.
Mas é claro que em toda boa história, existe um “até que no dia X...” que conta como nós acabamos nos encontrando em algum lugar e conversamos por horas. Não seria diferente comigo.
Então, foi assim: Ela era o anjinho de porcelana que eu podia observar e blá-blá-blá... Até que, no dia 09 de Setembro, no dia do aniversário da minha mãe, nos encontramos também no ônibus da volta do trabalho.
Eu raramente saía cedo, embora tivesse essa possibilidade. Muitos funcionários faziam esquemas de horários, em que um dia um saía cedo e o outro ficava mais tempo para compensar, e depois trocavam. Como era aniversário da minha mãe, eu troquei com um colega, e consegui ficar apenas meio período.
Eu tinha encomendado um bolo de festa numa padaria ali perto. Não era dos melhores – nem dos maiores –, mas era o que o dinheiro cobria, então logo que busquei o bolo, peguei o ônibus de sempre e fui embora.
Só que lá para as 13 horas da tarde, horário de pico, o ônibus estava cheio e não consegui lugar, então lá fui eu, tentando me equilibrar com o bolo e me segurar, sem distrações, para não arruinar o dia.
Até entrar no ônibus, é claro. Entrou no mesmo ponto que descia, aquele em frente sua faculdade, e minhas atenções já estavam divididas. Olhava ela ou me concentrava no bolo?
“Que filho horrível”, você deve estar pensando. “No dia do aniversário da mãe, trocou o bolo dela pra olhar uma garota”.
Mas olha, em minha defesa, eu consegui carregar o bolo quase o caminho todo. Só que estando parado perto da saída, passou por mim quando foi descer, e bem nessa hora, com uma freada brusca do motorista porque algum carro entrou na frente dele e a minha falta de atenção para o bolo, ele foi para o chão.
Estava coberto com um papel, mas não havia dúvidas de que tinha sido arruinado, já que tinha bolo saindo pelas frestas.
Um pouco ainda desacreditado, eu disse um “puta merda!” meio alto demais, e todos os passageiros por perto fizeram um coro de “ooh”, que me fez sentir burro e envergonhado.
Que bosta eu ia fazer agora?!
O motorista parou o ônibus no próximo ponto, aquele em que descia, porque ele precisava tentar limpar a minha sujeira. Veio com um pano e uma vassoura e pá que mantinha guardados em algum lugar do ônibus, e eu sabia que não tinha jeito. Aquele bolo todinho - que me custara oitenta reais! – Ia para o lixo.
Muitos passageiros desceram do ônibus, inclusive eu, para liberar espaço para o motorista, e eu já estava ficando meio desesperado. Minha única tarefa do dia era chegar cedo em casa com o bolo. E eu já tinha estragado isso!
Alguns passageiros me deram suas condolências, o que foi até engraçado. Parecia que alguém tinha morrido.
Então alguém tocou no meu braço, e eu me virei.
Era .
Por um momento, eu tinha até me esquecido dela!
- Esse bolo era pra quem? – ela me perguntou, e a minha primeira reação, como na primeira vez que ela falou comigo, foi ficar meio atônito e sem saber o que fazer. Abri a boca, e fiz outro som estranho, dessa vez um “errr... hmmm...” até ela continuar – É que parecia de aniversário, era seu?
Finalmente destravei.
- Não, não – eu falei, agora sem olhar na direção dela, me sentindo um pouco desconfortável. - É aniversário da minha mãe. Era pra ela.
- Putz – ela disse, e eu pensei que seria isso. Primeiro contato em anos, e eu sendo um idiota, mas falou comigo de novo – Então, talvez eu possa te ajudar.
Eu estava tão desesperado, que me virei pra ela de maneira brusca e meu tom de voz até aumentou um pouco.
- Pode?!
- Sim. Olha, eu moro aqui perto, e minha avó mora comigo. Ela costumava fazer bolos pra festas. Talvez ainda não tenha perdido o jeito, posso ver se ela consegue fazer alguma coisa de última hora.
- Ah – eu disse, voltando para o meu eu desconfortável – Eu não quero dar trabalho, , mas obrigado.
Ela me dirigiu um olhar surpreso, e então eu me dei conta. . Eu dissera o nome dela.
- Você me conhece?
Balancei a cabeça, me sentindo idiota.
- Nós estudamos juntos. No ensino fundamental. – O olhar dela se tornou menos confuso – Desculpa, eu não sou um doido nem nada, eu apenas sabia seu nome porque... amigos em comum... e tal.
Ela assentiu, com um sorriso.
- Eu tive a impressão de que te conhecia de algum lugar já – ela comentou – agora sei de onde. Mas olha, eu acho que dificilmente você vai conseguir alguém para fazer o bolo em poucas horas, e se achar, vão te cobrar muito caro por isso. Já a minha avó vai ficar feliz de ter algo pra fazer.
Eu suspirei, e o motorista acabou de limpar o ônibus. Os passageiros começaram a voltar lá pra dentro, e eu pensei por uns instantes. Eu realmente precisava do bolo, e eu finalmente tinha a chance de conhecer melhor. Mas e se fosse uma decepção?
Bom, pelo menos não vou ficar pensando nela como um idiota depois disso, pensei, então assenti.
- Tudo bem então. Se der certo você vai salvar a minha pele!
Ela sorriu e deu de ombros.
- Qual seu nome mesmo?
- – eu disse, e já estávamos andando em direção a casa dela.
- Claro – ela falou, com um sorriso meio estranho no rosto, quase como vergonha – É verdade. Você era amigo do , não era? Do oitavo A?
- Sim, eu era. Você também. De vez em quando ia falar com ele nos intervalos.
Ela assentiu.
- Ele me falou uma vez que você tinha uma quedinha por mim – ela riu, e eu também, mas diferente de estar achando graça, eu estava rindo de vergonha.
- O era doido – eu menti, tentando pôr um fim no assunto – Então... sua avó faz bolo, é?
Ela percebeu a mudança, e sorriu.
- Faz sim, . E são ótimos.
~*~
Chegamos na casa dela em poucos minutos, e a avó, que se chamava Glória, estava terminando o almoço quando falou sobre o bolo que eu precisava com urgência.
A senhora parecia animada. Estava de pantufas ainda, com um vestido que mais parecia camisola, mas sorriu para mim muito aliviada.
- Graças a Deus, menino! Você não sabe como é entediante ser velha e não ter mais nada pra fazer. – E antes que eu pudesse responder, ela me disse: – Vou fazer uma lista do que vou precisar, você vai no mercado comprar pra mim, e aí não precisa me pagar mais nada – deu uma piscadinha.
- Não, não. – Protestei - Olha, a senhora vai estar me fazendo um favor enorme. Meu ÚNICO dever hoje era levar aquele bolo inteiro, minha mãe ia me matar se a senhora não fosse fazer um pra substituir, então por favor cobre pelo menos um pouco, ou vou me sentir muito mal!
Ela revirou os olhos, mas assentiu, procurando uma caneta.
- Tudo bem. Depois que eu terminar nós discutimos isso novamente. Agora, , por favor, uma caneta.
abriu a mochila que tinha jogado em uma cadeira e tirou um pedaço de papel e uma caneta.
Enquanto as duas sentaram à mesa e tentaram lembrar todos os ingredientes para o bolo, eu fiquei meio desconfortável, ainda parado à porta, sem saber o que fazer até elas terminarem.
- É melhor você ir com ele, . – Dona Glória falou e, então, olhando para mim disse: - A sempre ficava atrás de mim, pedindo pra eu deixar ela ajudar com os bolos, então ela conhece bastante coisa sobre o preparo, vai te ajudar a escolher as melhores marcas.
- Ah – eu disse, imaginando fazer compras com o meu amor de infância e me sentindo imediatamente nervoso – Se for dar muito trabalho pra você, não precisa – eu disse, me dirigindo a – já vou dar trabalho demais pra sua avó.
- Que isso – a avó dela que respondeu - Quando ela volta da faculdade fica só fazendo trabalho ou arrumando a casa, é bom ela fazer alguma coisa diferente, e já tava mais do que na hora de trazer um rapaz bonito pra casa, vai que dá certo.
- Vó! – quase gritou, em protesto, e eu ri um pouco junto com a avó dela.
ficou muito vermelha, e fez um gesto pra mim como que se pra eu não ligar para a senhora, mas aquilo me fez sentir melhor. Porque primeiro, eu sabia agora que ela não tinha namorado, e segundo porque tornou ela um pouco mais humana ao meu ver, menos inalcançável. Nada daquela menina linda que eu não podia tocar, e sim um ser humano normal, como eu, que também ficava constrangida e envergonhada.
- Vamos logo, vai – ela começou a dizer, me puxando para fora – antes que ela invente mais alguma coisa, não é, dona Glória? – Dirigiu um olhar feio à avó, que ficou rindo e ligou o rádio casualmente, para ouvir algumas músicas até que voltássemos.
~*~
- Sua avó parece ser muito engraçada – eu comentei, depois de termos andado um pouco em direção ao mercado mais próximo, que ficava no bairro de mesmo, tentando engatar em alguma conversa. Eu imaginei que já que passaria uma parte da tarde com ela, nada melhor do que aproveitar um pouco para conhecê-la melhor.
- Ela é meio doida às vezes – me respondeu, com ar de graça – Mas adoro aquela velha!
Foi então que me dei conta do porquê ela sempre parecia tão receptiva aos idosos dos ônibus: ela tinha uma avó muito legal, e a adorava, provavelmente conseguia ver um pouquinho da sua avó em cada senhor e senhora que ia conversar com ela.
Me dei conta também de que minhas habilidades sociais eram mínimas, porque depois desse comentário, eu já não sabia o que mais falar, mas o fez por mim:
- E a sua mãe? Quantos anos ela está fazendo?
- 47 – respondi – Ou 46... – então parei pra pensar, totalmente confuso, e quando olhou pra mim, eu parecia que estava perguntando pra ela – 45?
Ela riu de mim.
- Que filho maravilhoso você deve ser!
- Já sou obrigado a lembrar a minha idade, a de terceiros já é pedir demais – riu mais um pouquinho.
- Falando em gente legal você também parece ser. Uma pena que podíamos ter sido amigos há mais tempo se nos falássemos na escola – ela disse, doce, e eu sorri um pouco, mas dei de ombros.
- Acho que não teria dado certo.
- Por quê?
- Bom, uma vez você falou comigo, e eu travei. Não sabia o que responder, foi bem constrangedor pra mim.
- Eu não lembro disso! – ela gargalhou.
- Bom pra você! – comentei – Eu tento a todo custo reprimir essa lembrança, mas é difícil.
- Você não fez nem um barulho estranho? Tipo o de hoje – ela disse, e então me imitou – Errr... Hmm... Err...
- Não tem graça – eu disse, me sentindo ainda mais constrangido enquanto ela continuou rindo.
- Desculpa, eu não devia estar te zoando assim, mas às vezes eu não consigo evitar – acabei rindo da risada dela – Mas por que você não conseguiu falar comigo?
- Sei lá – eu cocei a nuca – Às vezes nem eu me entendo. Já estamos chegando?
Novamente, ela percebeu que eu mudei o assunto. Também, quem não perceberia? Eu não conseguia ser nem um pouco sutil.
- Quase lá – ela então vasculhou os bolsos da calça que estava vestindo, com um olhar meio de pânico, e então relaxou – Ah, nossa, achei que tinha perdido a lista, mas tá aqui.
Eu sorri pra ela, sem saber o que dizer.
- Você faz faculdade de Engenharia Química, né? – soltei, pra logo depois me dar conta que essa era mais uma informação que ela não devia saber que eu sabia. Só descobrira aquela porque reparei demais nela. Primeiro pelos livros que carregava, todos com títulos parecidos com isso, e depois algumas conversas que ela tinha ao telefone.
Pensando bem, talvez eu fosse mais ou menos um stalker...
- Como você sabe? – ela franziu a testa, talvez começando a perceber que eu fosse doente ou algo assim.
- Eu vi alguns livros seus – admiti, contrariado, e ela ficou em silêncio, me olhando estranho – No ônibus – completei – Pegamos aquele mesmo ônibus juntos há mais de um ano.
- Oh – ela disse, surpresa. – Eu já tinha reparado em você, mas não achei que fizesse tanto tempo. Você estava... reparando em mim?
Pronto, agora eu estava ferrado!
- Ah, eu vi sem querer – menti – Às vezes não tem nada pra fazer no ônibus, e aí eu fico reparando nas pessoas...
- Nas pessoas ou só em mim? – ela perguntou, fazendo cara de quem estava investigando alguma coisa.
Fiquei vermelho na hora, e ela continuava com uma cara séria. E eu tinha certeza que logo iria chamar a polícia pra mim, dizer que eu a estava seguindo e era louco.
- Olha, eu... – não soube como me explicar, até que ela deu uma risada.
- Você fica engraçado quando tá com vergonha – comentou, me deixando surpresa – Olha, uma dica – me disse, em tom de confidência – Quando você quiser ficar reparando em alguém, tente ser mais sutil, porque eu sei que você fica me olhando o tempo todo já tem uns meses...
Fechei os olhos por um momento, confuso.
- E você fala isso numa boa? – perguntei.
- Ah, pra me vingar eu reparava em você também – deu de ombros – é sempre bom ter algo bonito pra olhar logo de manhã.
Ela falou num tom brincalhão, por isso eu acabei dando risada.
- Que pedreira – eu brinquei – Usando essas cantadas baratas!
Ela riu também, e por mais que eu estivesse um pouco constrangido, estava feliz por duas coisas. Primeiro porque ela acabou sendo mais legal e brincalhona do que eu pensei de primeiro momento. E segundo porque ela disse que me olhava de volta. Ela falou de um jeito brincalhão, mas só podia ser verdade, porque se não fizesse isso, como ela saberia que eu a olhava também?
Acabamos chegando no mercado e conversamos bastante sobre várias coisas enquanto procurávamos o que precisávamos. Sobre os tempos de escola, sobre onde fomos no ensino médio, sobre a faculdade dela e o meu trabalho... e quando ela me disse que fazia tempo que não tinha uma conversa tão boa, eu não sei o que me deu, mas todas aquelas vezes que eu ficava olhando pra ela e imaginando como ela seria pareceram valer à pena.
~*~
Ao voltarmos pra casa dela, a avó de já tinha deixado a cozinha extremamente limpa, com espaços vazios pra não atrapalhar no preparo do bolo, e todas as formas que ela ia precisar.
Ela tinha me dito que faria um bolo de três andares. Eu achei que seria sofisticado demais pra uma festinha na qual só a família iria, mas ela não ligou pra mim quando eu disse isso. Apenas me falou que quanto mais, melhor.
Eu tinha pensado em ir pra casa e esperar, mas dona Glória tinha uma ideia melhor. Quando perguntei se eu devia voltar depois, ela apenas me disse:
- Nada disso, mocinho. Você fica aqui e ajuda a gente.
Achando graça dela, eu fiz tudo o que podia, como untar as formas e passar os ingredientes pra ela. Enquanto isso lavava a louça que sujávamos e dona Glória fazia o bolo propriamente dito.
Ela pediu para eu ligar o rádio em uma estação específica, que tocava muitas músicas antigas. Algumas, dos anos 80 e 90 eu reconhecia, mas a maioria das músicas eram bem mais velhas do que aquilo.
Quando estávamos praticamente na metade do trabalho, uma música claramente bem antiga pela parte instrumental começou a tocar, e dona Glória quase gritou.
- Aumenta, aumenta!
Fiz o que ela pediu, e ela parou o que estava fazendo, puxando pra elas dançarem.
Observando-as, eu sorri, enquanto rodopiava pela cozinha com a avó dela.
Chances are, 'cause I wear that silly grin
the moment you come into view;
chances are you think that I'm in love with you.
Just because my composure sort-of slips
the moment that your lips meet mine,
chances are you think my heart's your Valentine.
In the magic of moonlight,
when I sigh "hold me close, dear"
chances are you believe
the stars that fill the skies are in my eyes.
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Guess you feel you'll always be
the one and only one for me
and if you think you could,
well, chances are your chances are awfully good!
The chances are your chances are awfully good!
Quando a música acabou e dona Glória voltou ao seu trabalho, percebi que ela tinha os olhos embargados.
- Eu conheci meu falecido marido quando tinha 15 anos. – ela contou – essa música já não era tão nova na época, mas ele gostava muito, e sempre dedicava ela pra mim. No dia do nosso casamento, dançamos ao som dela.
- E também dançaram quando estavam comemorando as bodas de ouro – falou, sorrindo para a avó – Foi lindo demais.
Dona Glória secou aquela lágrima e sorriu pra mim.
- Desculpe, querido. Toda vez que ela toca eu me fico assim, emotiva. Mas vamos voltar ao trabalho!
E, agora parecendo falar consigo mesma, ela acrescentou:
- Ah, essa música... Faz milagres.
E com um sorriso saudoso continuou com o bolo da minha mãe.
~*~
Em uma hora, tínhamos acabado a maior parte dos preparativos. Enquanto o bolo foi para o forno, dona Glória preparou o recheio e eu e fomos para o quintal. Era uma casa grande a delas, com um quintal com várias flores.
- Minha avó gosta dessas coisas de jardinagem – ela me contou – é uma pena que não tenha mais espaço para cultivar mais coisas, mas também acho que se tivesse mais coisa aqui não daríamos conta.
Ela passou então a regar algumas flores e plantas, e enquanto isso conversávamos. Ela sujou meu braço de terra por brincadeira, e depois disso nos sentamos em um banquinho lá fora para esperar o bolo.
- Se você quiser pode ir lá em casa – convidei, um pouco incerto – você e sua avó. Tenho certeza que ela não vai querer cobrar, ela falou isso umas cinco vezes já, então pelo menos vocês aproveitam um pouco.
- Ah, não acho que ela vai querer. Ela dorme bem cedo e tudo o mais – respondeu.
Eu não queria insistir e parecer desesperado, mas ela era ainda melhor do que eu tinha imaginado, por isso perguntei:
- E você? Quer ir?
me olhou de relance com um sorriso.
- Você quer que eu vá não é, garoto do ônibus?
Sorri.
- Claro que quero. Ou todas as horas que perdi olhando pra você terão sido em vão – entrei na brincadeira, que tinha sim um fundinho de verdade, e ela revirou os olhos.
- Mais tarde nós vemos isso.
Ela piscou pra mim. Então dona Glória nos chamou da cozinha, para desenformar os bolos, montá-los e decorar.
Quem fez todo o trabalho foi a avó de . Em um momento, ela me pegou olhando tão desejoso, que me perguntou se eu queria tentar decorar como ela estava fazendo.
Mas eu já tinha destruído um bolo inteiro, não iria arriscar a arruinar outro, então continuei só observando.
Quando o bolo ficou pronto, já era por volta das seis horas. Como eu imaginei, dona Glória se recusou a me cobrar. Disse-me que adorava fazer bolo, e há tanto tempo não fazia, que aquele dia fora como um presente para ela. Estava até reconsiderando voltar a vender bolos de vez em quando.
Embora eu tenha insistido, ela insistiu mais ainda, então acabou que não paguei nada pelo bolo fora os ingredientes.
- Você pode me pagar levando minha neta pra sair – ela disse, naquele jeito direto dela.
- Ai meu Deus, vó – falou – Para de tentar arranjar namorado pra mim, mulher!
Ela deu de ombros.
- Não se pode culpar uma mulher por tentar. E o parece um bom moço. – Então se dirigiu a mim – Você não pode me fazer esse favor e tirar essa menina de casa?!
Ri do jeito dela.
- Olha, eu até tentei, dona Glória – eu respondi – Chamei ela pra ir até a minha casa hoje já que vai ter a festinha, mas até agora ela não me respondeu.
Olhei pra com uma sobrancelha erguida, e ela balançou a cabeça negativamente, mas riu de mim.
- Eu vou se você me acompanhar de volta pra casa – ela disse.
- Claro. À noite eu posso até usar o carro da minha mãe, te deixo na porta!
- Está combinado então! – dona Glória respondeu por ela, fazendo a gente rir.
- Intrometida – resmungou, alto o bastante para a avó ouvir, mas ela apenas sorriu e piscou pra mim.
~*~
Quando chegamos na minha casa, apresentei à minha mãe e alguns parentes que já tinham chegado.
Depois que contei a história do bolo, o pessoal só ria, e também. Minha mãe agradeceu a ela, por não me deixar estragar o dia, e eu agradeci também.
Fiquei perto dela a maior parte do tempo. Acreditei que era o mínimo que eu podia fazer, tendo levado a menina para um lugar onde ela não conhecia ninguém, e quanto mais conversávamos, mais próximo dela eu me sentia. Aquele meu amigo do ensino fundamental, , tinha me falado que eu devia tentar ser amigo dela, no mínimo, pois valia à pena. Mas ele não tinha me dito com ênfase suficiente que valia tanto à pena assim.
Eu sabia que devia tentar algo. Era como “é agora ou nunca”, mas eu nunca reunia coragem o suficiente, e ficava nervoso também. Toda vez que isso acontecia eu acabava falando alguma besteira, que se tornava engraçada ao invés de romântica, hilária ao invés de promissora, então optei por ficar calado.
Por volta das dez da noite, eu, e alguns parentes entramos no carro. Eu era sempre encarregado de levar os tios que não tinham carro de volta pra casa, e foi o que eu fiz, deixando por último.
Ela ligou o rádio naquela estação que dona Glória gostava, e fomos em silêncio escutando as músicas antigas, que sua avó com certeza também estaria escutando se ainda estivesse acordada.
Quando paramos em frente à casa dela, sorriu.
- Foi um dia incomum – me falou – Mas eu gostei. Talvez a gente devesse sair mais vezes.
- Ao invés de só ficar olhando um pro outro no ônibus? – eu ri e ela também – Sim, com certeza. É bem mais legal falar com você do que só olhar de longe.
Ela mordeu o lábio inferior, em um meio sorriso.
- Te vejo no ônibus amanhã então?
- Claro, garota do ônibus – sorri, e ela chegou a abrir a porta, mas então aquela música da avó dela começou a tocar, e ela parou, me olhando surpresa.
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- Agora me diz – ela falou – quais as chances disso acontecer?
Dei de ombros, também sem entender, e voltou a se ajeitar no banco, fechando a porta pra ouvir o restante da música.
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- É uma música legal, no fim das contas – comentei, e ela assentiu, balançando a cabeça no ritmo.
In the magic of moonlight,
when I sigh "hold me close, dear"
chances are you believe
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Olhei-a nos olhos por uns momentos, e ambos meio que sorrimos e desviamos o olhar depois.
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when I sigh "hold me close, dear"
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- Você não acha que seria interessante se a música romântica do meu avô e da minha avó se tornasse a nossa música romântica também? – ela comentou, de novo com aquele ar brincalhão, com uma sobrancelha levantada.
- Você é pedreira demais pra uma Engenheira – ela riu, mas se você quer saber, eu sinceramente queria muito parar com a brincadeira e beijar ela pra valer. – Mas eu tenho uma, olha o que você acha: - falei, tentando imitar o tom dela, mas soando sério demais – Que tal seu presente de aniversário pra minha mãe ser virar a nora dela?
gargalhou alto, balançando a cabeça.
- Você é pior do que eu! – acusou, rindo.
- Acho que somos igualmente ruins.
- Talvez a gente se mereça?
- Não, não – eu brinquei mais um pouco – Com certeza você é pior do que eu.
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A música estava acabando, mas eu tinha certeza que, pra nós dois, a noite ainda não tinha terminado. Porque agora estávamos olhando um para o outro num veículo bem diferente, perto demais pra ignorar.
- Eu fui apaixonado por você por todos os oito anos do ensino fundamental – confessei, meio sem saber o que estava fazendo – Acho que por isso toda vez que você entra naquele ônibus eu não consigo não olhar pra você. Fiquei fazendo isso por oito anos antes...
Ela sorriu de um jeito doce.
- Você nem me conhecia direito – ela disse – Como podia ser apaixonado por mim?
- Não sei também – dei de ombros, agora já voltando ao meu normal e me sentindo constrangido de novo, desviando o olhar.
- Ei – ela me chamou, virando meu rosto de volta pra ela. – Eu tenho chance de te fazer se apaixonar de novo se te deixar me conhecer?
Olhei para ela, que tinha um sorrisinho no rosto. Aquele mesmo sorriso lindo que eu via ela dar todos os dias pra alguém no ônibus, mas agora tinha também um brilho bonito nos olhos.
Lembrando da música, sorri.
- Acho que suas chances são muito boas. – respondi, com um sorriso, e fiz um carinho no rosto dela.
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- E quando você vai beijar a garota do ônibus? – perguntou, com um sorrisinho sapeca, e eu sorri.
Me inclinei em direção a ela, mas antes de fazer qualquer coisa, sussurrei:
- Agora você não é mais garota do ônibus. Agora você é minha garota.
Então encostei meus lábios nos dela, delicado no início, mas logo ansioso por mais. Sonhei com aquilo por tanto tempo, que ter de verdade era surreal.
me correspondeu com a mesma intensidade, e ficamos ali nos beijando por vários minutos, entregues àquele momento, até alguém bater na janela do carro e nos assustar.
Abaixei o vidro, que já estava todo embaçado pelas nossas respirações ofegantes, e demos de cara com dona Glória.
- Eu estava ouvindo o rádio – ela contou. – Enquanto esperava vocês chegarem. E olha... eu falei que aquela música fazia milagres!
E dando aquela piscadinha marota, voltou pra dentro de casa, me deixando com a neta linda dela pra muitos outros beijos como aqueles que trocamos antes dela interromper.
Fim
Nota: Então... eu só lembrei do projeto no último dia do prazo, pois é! Fiquei desesperada, quase achei que não dava tempo, e estou escrevendo essa n/a exatamente às 23:45 do último dia do prazo! HUAHUAHAHUA enfim, tá meio corrida, mas espero que gostem.
Aliás, pra quem mandou a música, eu adorei!
Beijos!