A Garota do Metrô

Escrito por Lady Chapel | Revisado por Lelen

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  Rotina é uma coisa engraçada, faz com que a gente faça a maioria das coisas no automático. pensava exatamente isso enquanto sentia o balançado do metrô, sabia perfeitamente quantas paradas o vagão precisava fazer até que finalmente fosse a parada em que ia descer, sendo assim, dava tempo o suficiente para cochilar enquanto não chegava no ponto final. Só que mesmo com tudo programado na mente, não impedia de a cada parada abrir os olhos com medo de perder a estação de desembarque, mesmo que internamente soubesse que aquele não era o ponto ainda, por isso ele observava todos o que entravam e saíam antes de fechar os olhos novamente.
  Naquele dia ele tinha conseguido sentar-se, o que facilitava seus cochilos sem a preocupação de cair, e pensava o quão irônico era pegar o mesmo metrô todos os dias da semana, no mesmo horário, e mesmo assim quase nunca encontrar alguém reconhecível pela mesma viagem. Os noticiários diziam que duas milhões de pessoas usavam o meio de transporte por dia, talvez isso justificasse o fato de ele não reconhecer os rostos ali mesmo que pegasse quase sempre no mesmo horário.
  Como não reconheceu, por exemplo, a garota que entrou apressada no vagão com um livro na mão, ela estava usando roupa esportiva, um short e uma regata, e um coque feito de qualquer jeito, a viu largando a bolsa no chão enquanto encostava nas paredes de metal, extremamente focada na leitura, ele também não conseguia reconhecer qual o título do livro já que não era tão leitor assim, mas o foco impressionante da garota chamou sua atenção.
  Quando o vagão começou a balançar mais uma vez, ele tirou seu cochilo mais uma vez focando na música que tocava no fone de ouvido, mas quando abriu novamente, já era duas estações a frente do esperado e a garota que estava ali próximo já tinha sumido. Estava tão cansado a esse ponto? De perder algumas paradas? Não sabia ao certo, só que a sua era a próxima, por isso tinha que se manter acordado até lá.
  Vasculhou o vagão novamente, observando quem entrava e saía, e mais uma vez não reconheceu ninguém, porém uma coisa chamou sua atenção: a bolsa da garota ainda estava lá. Ela não estaria tão entretida ao ponto de esquecer aquele item ali, estaria? Passou o olhar mais uma vez e nada de encontrá-la, entrou entre o dilema moral de pegar ou não. Se não pegasse, outra pessoa pegaria? Ou iria para o final do expediente para algum “achados e perdidos”? Ela já teria se tocado a essa altura e estava atrás? Se ele pegasse, achariam que estava roubando? O pânico interno o deixou aceso o suficiente até a próxima estação, e quando o vagão finalmente parou, ele simplesmente correu para pegar a bolsa e sair de lá de dentro.

  A casa dele ficava a apenas dois quarteirões do ponto da estação, andou o mais rápido que conseguiu para chegar logo. Talvez ele realmente até parecesse um suspeito de roubo se pegassem pelas câmeras, entretanto, estava apenas agoniado querendo logo resolver esse problema e devolver à garota seus pertences, não imaginava como ele se sentiria se estivesse no lugar dela, já que dentro da mochila que carregava nas costas tinha quase toda sua vida dentro.
  Assim que subiu os três lances de escada e destrancou a porta, colocou a bolsa sobre a mesa de jantar e encarou. Vasculhar uma bolsa definitivamente seria algum tipo de violação pessoal, mas precisava de alguma informação.
  — E aí, cara, que cara é essa? Está fugindo da polícia? — Era James, o colega de apartamento de .
  — Uma garota esqueceu essa bolsa no vagão, peguei para ver se consigo localizá-la — explicou, abriu a mochila rapidamente, revirando o que tinha dentro. — Pelo menos o celular não está aqui dentro.
  Era bom e ruim já que ela poderia ligar para o próprio celular e tentar fazer contato, só que não seria possível.
  — Tenta ver se tem algum e-mail em caderno ou agenda — o outro sugeriu enquanto procurava alguma coisa para comer nos armários.
  — Quem escreve e-mail nos cadernos em 2023? — questionou enquanto abria uma agenda que encontrou e para sua surpresa, realmente escrevia, com uma letra cursiva bem bonita, inclusive, lá estava o nome e o endereço de Gmail logo embaixo.
  — É, parece que eu tinha razão. — James surgiu ao lado de , dando um tapinha no ombro do rapaz.
  — Como que ela escreve o e-mail, mas não foi capaz de escrever o número de telefone? — questionou a si mesmo antes de tirar uma foto da bolsa com o próprio celular e começar a digitar o e-mail.

  “De:
  Para:

  Olá! Tudo bem? Aqui é , estou enviando esse e-mail porque achei sua bolsa no metrô e gostaria de devolver, acabei vasculhando um pouco para achar uma forma de me comunicar, espero que não se importe. Gostaria de saber como faço para te devolver. Vou deixar meu número em anexo caso queira enviar uma mensagem ao invés de responder aqui.”

  Estava muito formal? Tanto faz, o importante era que ela recebesse a mensagem. Anexou a foto da mochila e enviou.
  Decidiu tomar banho para relaxar os músculos depois de um dia cansativo. Tinha saído da faculdade direto para o trabalho na Five Guys, uma rede de fast food muito famosa na Inglaterra. Não era o ideal, claro, ser atende de restaurante estava um pouco longe da sua área de atuação, que era TI, mas o dinheiro o ajudava a dividir as contas do apartamento enquanto encontrava poucos trabalhos que envolvesse o curso. Ele saía todo dia pela manhã e chegava por volta das sete da noite em casa, sua rotina era puxada num geral, mas era sexta-feira, o que significava que ele tinha um final de semana esperadíssimo para poder descansar um pouco.
  Quando saiu debaixo do chuveiro conferiu o celular e viu que já tinha muitas mensagens.

  NOSSA
  Você salvou minha vida
  Eu e minha cabeça na lua
  MUITO OBRIGADA

De nada 😊
  Imaginei que você estivesse um pouco aflita
  Não sei o que faria se tivesse perdido a minha

  Estava completamente em pânico
  Voltando para a estação para ver se alguém tinha visto
  Ainda bem que você encontrou

Precisa de algo muito urgente que está aqui?
  Onde posso encontrá-la para devolver?

  E foi assim que se viu sentado em uma arquibancada de um ginásio às duas horas da tarde no dia seguinte, enquanto assistia terminar seu treino de vôlei. A garota usava roupas parecidas com as do dia anterior, shorts, regata e um coque no cabelo para finalizar, com um acréscimo de uma faixa no cabelo. Se fosse para descrever ela naquela situação, ele diria que era uma pessoa voraz e estava com muito sangue nos olhos enquanto encarava seus oponentes do outro lado da rede. Questionou-se internamente como ela estava sobrevivendo àquele frio ameno de início de outono londrino, já que, ao contrário da atleta, usava um moletom e uma calça para se aquecer, mas certamente a adrenalina não a deixaria sentir frio de verdade. Era comum ver pessoas correndo de shorts até na época mais fria do inverno, achava primeiramente que aquilo era loucura, pois nada era mais confortável que roupas quentinhas em dias mais frios, e segundo que exercícios assim também não eram seu forte, puxar uns pesos na academia era de bom tamanho.
  Ele a viu se aproximar correndo em sua direção logo após o fim do treino, com um sorriso tão radiante que dava para esquentar Londres inteira, estava um pouco vermelha e sem fôlego por conta dos exercícios, mas por um momento ele achou que estivesse perdendo o seu próprio fôlego só de olhá-la.
  — Olá — ela disse quando estava próxima o suficiente, bem à sua frente.
  — Olá. — Ele devolveu o sorriso e ergueu a bolsa na direção dela. — Acho que tenho algo que te pertence.
  Ela riu.
  — Muito obrigada por guardar e me entregar, nem sei como agradecer! — abraçou a bolsa extremamente aliviada. — Na verdade até sei, deixe-me te pagar um lanche como recompensa e ter feito você andar até aqui para me entregar.
  — Não precisa se incomodar...
  — Eu insisto — ela disse ainda sorrindo, mas acrescentou rapidamente: — Se você não tiver nenhum compromisso agora, claro.
  Ele não tinha, e um lanche de graça não seria nada mau, já estava ali mesmo.
  — Tudo bem! — ele concordou e a viu soltar um gritinho animada.
  — Deixa só eu me trocar.
   a observou andar para a parte de trás da quadra, imaginou ele que fosse os vestiários. Esperou apenas alguns minutos, quando a viu sair de lá completamente diferente de como entrou, uma saia quadriculada, uma blusa de mangas e um sobretudo verde aberto por cima, agora sim vestida para umas temperaturas frias. Seus cabelos estavam soltos dessa vez, além de ainda carregar aquele sorriso radiante que o estava deixando levemente mal-acostumado.
  — Vamos?

  Acabaram parando em um restaurante chamado Frankie & Benny’s, perto do Hyde Park,o qual não tinha conhecimento até então. O ambiente era extremamente aconchegante, as luzes amareladas, as mesas eram com poltronas iguais àquelas lanchonetes de filmes norte-americanos, porém o ambiente era carregado por cores mais neutras, como o amarelo e o marrom. Assistiu a garota pedir um hamburger caseiro, com batatas fritas e um cappuccino para acompanhar, o que achou uma mistura intrigante, já ele optou por um macarrão com frango e um suco, cansado de ver hambúrguer e batatas o tempo todo no trabalho, como explicou a ela.
  Ele descobriu então que fazia faculdade de História e vôlei era uma prática desde que ela era pequena, usava outra parte do seu tempo dando aulas de reforço, pensou que o curso escolhido por ela talvez explicaria muito o fato de ela ser uma leitora tão imersiva.
  — Quero lecionar. — Confidenciou a ele. — Amo contar histórias e é algo que não podemos viver sem, porque se fecharmos os olhos para o que aconteceu no passado, somos capazes de reproduzir muitas atrocidades no futuro novamente. 
   conseguia ver o brilho no olhar da garota a cada palavra que ela dizia enquanto devorava as batatas, achando tudo extremamente hipnotizante.
  — Por isso, quando eu pegar o metrô da próxima vez, não vou colocar a bendita bolsa no chão de novo! — Eles riram.
  — Ou você pode simplesmente esperar para ler em casa — sugeriu.
  — Impossível! Quando um livro me pega a ansiedade toma conta e a única coisa que eu penso é como eu queria terminar logo.

  Depois do lanche, nenhum dos dois estava pronto para dizer adeus ainda, então acabaram indo andar pelo Hyde Park, sentando-se depois de um tempo em um banquinho perto do lago enquanto jogavam conversa fora.
  — Não é engraçado que a gente pegue o mesmo vagão todos os dias e nunca se encontre? — ela disse em um momento, ainda encarando o lago. — E justamente quando nossos caminhos se cruzam, dou um jeito de fazer me notar. Parece até destino.
  Ela estaria flertando com ele? não conseguia dizer bem, na verdade ele sempre fora um daqueles garotos lentos que não conseguia entender bem a situação romântica acontecendo à sua frente. A única coisa que era inegável era o lindo sorriso que carregava e de como ela ficava linda com os cachos rebeldes sendo arrastados pelo vento, seu coração estava começando a errar as batidas incansavelmente.
  — Quer saber? Esquece. Acho que ler tantos livros me deixa pensar coisas demais.
  — Não, tudo bem! — ele respondeu rapidamente lembrando que esqueceu de responder da primeira vez. — Sempre que entro no vagão penso exatamente a mesma coisa, quantas vidas diferentes estão presas dentro de um mesmo espaço, passando por situações diferentes. Às vezes quando estou um pouco mais enérgico, fico tentando adivinhar o que as pessoas estarão fazendo quando sair dali. Tipo... — Ele vasculhou o perímetro a procura de um exemplo para o que estava tentando falar, achou o alvo poucos centímetros dali: uma garota levando seu cachorrinho para passear. Ela devia ter uns 15 anos, ele diria, e arrastava a coleira rapidamente. — Aquela menina ali. — Apontou com o queixo discretamente, esperando que identificasse o objeto de estudo antes de continuar.
  — Ela está com bastante pressa para apenas uma caminhada comum com seu cachorrinho. Será que ela está aqui só por obrigação dos pais ou está atrasada para algum próximo compromisso?
  — Hum, entendo o que está dizendo. — A garota passou alguns minutos analisando. — A forma como ela digita freneticamente no celular me faz crer que ela realmente não queria estar fazendo isso.
  — Você tem razão.
  — Gostei desse exercício. — se endireitou e começou a passar o olhar pelo parque em busca de um novo alvo. — Aquele idoso sentado à mesa de xadrez.
  A pessoa em questão estava ao lado esquerdo deles, do outro lado do caminho, mais próximo ao lago.
  — Será que ele é sozinho? Tem esposa? Viúvo? Netos? Por que está sentado sozinho no meio do parque?
  — Gosto de pensar que as pessoas tiram um tempo para si, então diria que veio andar aqui porque o médico o obrigou e aproveitou para apreciar sua própria companhia por alguns minutos antes de voltar para casa.
  — Gosto dessa teoria — afirmou, sorrindo. Ele sorriu de volta dessa vez.
  — Fico feliz que o destino tenha escolhido o vagão que eu estava para fazer você esquecer sua bolsa — disse por fim, voltando ao assunto inicial. — Eu admiro muito quem lê, poucas pessoas no mundo conseguem ter uma visão tão privilegiada do mundo e viajar por ele de tantas maneiras.
  — Você também consegue ter uma visão privilegiada do mundo inventando histórias das pessoas que cruzam seu caminho. — Ela retribuiu o elogio.
  — Inclusive, que livro era aquele que estava lendo que prendeu tanto sua atenção? — questionou rindo e riu juntamente com ele.
  — Era Um homem chamado Ove, do Frederick Backman.
  Ela então explicou como que estava apaixonada pela leitura, os personagens, a narrativa, a escrita, cada detalhe que fez ela se perder dentro daquele mundinho literário, e por mais que não estivesse entendendo quase nada daquele mundo que não vivenciava, ele só conseguia admirar a garota ainda mais. era definitivamente encantadora. Cada palavra que ela dizia entusiasmada, poucas coisas no mundo fazem uma pessoa se iluminar tanto quanto quando se está falando de algo que ama, e percebeu que passaria horas ali só a escutando falar sobre livros.
  Entretanto, a garota foi interrompida pelo toque do celular dela.
  — Meu Deus! Esqueci completamente que preciso ir para casa da minha mãe, prometi a ela que ia jantar lá hoje — disse levantando-se rapidamente e digitando no celular. — Muito obrigada mesmo por devolver minha mochila.
  — Não foi nada! E agradeço também pelo lanche. — levantou-se, ficando de frente para ela.
  — Não deve agradecer por algo que já foi um obrigado — ela disse, rindo.
  — Posso levá-la até a estação?
  — Claro!

  Eles caminharam tranquilos até a estação de metrô mais próxima, descendo as escadas que davam acesso ao subsolo de Londres. Por um instante, pensou que havia esquecido a pressa que o havia tomado minutos antes. Quando chegaram finalmente à plataforma, analisou bem a rota que teria que fazer.
  — Acredito que seguiremos caminhos diferentes hoje. É o mal de ter pais separados, eles se evitam o suficiente para morar em lados opostos da cidade. — Ela deu os ombros e imediatamente entendeu que ela pegaria o metrô no sentindo oposto que ele.
  — Pelo menos um deles está na minha direção, o que significa que posso ter o prazer de esbarrar com você de novo. — Ele sorriu.
  O barulho do vagão que se aproximava passou a ser audível a cada segundo, anunciando que chegaria ali em pouco tempo. A estação de metrô mantinha-se movimentada como de costume, mas ali, encarando-a, por um instante o mundo ao redor parecia não existir além deles dois, e começou a ficar cada vez mais ansioso com o fato de ter que se despedir.
  — Obrigada, de novo, por devolver minha bolsa — disse com aquele sorriso de sempre, dando um passo para a frente, em direção a ele.
  — Obrigado por esquecer ela e me dar o luxo de ter uma tarde em sua companhia. — Ele devolveu.
  Porém, ficou na dúvida se deveria beijá-la ou não. Logo foi silenciada quando o puxou pelo bolso do moletom, colando os lábios nos dele. Mesmo pego de surpresa, não hesitou em colocar a mão na cintura da garota, aproximando-a dele, logo a mesma mão subiu para o pescoço dela, aprofundando o beijo. O sabor dos lábios de era algo inexplicável, uma mistura de doce do cappusccino com o salgado das batatas fritas, que transmitiam uma sensação de insaciável. notou que facilmente viciaria nas sensações que ela lhe transmitia, e quando os dedos da garota se infiltraram entre os fios de cabelo dele, achou que seria o seu fim.
  Mesmo em meio a toda aquela agitação entre as plataformas e dos vagões se aproximando, tinha a sensação de que o tempo havia parado, e que por um breve momento eles se perderam um no outro. Contudo, a magia se quebrou rapidamente com o anúncio do metrô parando próximo deles, indicando que ela precisava partir.
  Se soltaram lentamente, relutantes em se afastar. Um sorriso triste brincou nos lábios de ambos enquanto se olhavam pela última vez antes de se afastarem completamente.
  — Bom, você tem meu número agora, assim não precisamos esperar que o destino cruze nossos caminhos novamente — ela disse dando uma piscadinha no final e entrando no vagão. Então viu as portas de metal se fechando bem na sua frente e o metrô levando para longe da sua localização, mas levando consigo a memória daquele beijo na estação de metrô.

Fim



Comentários da autora


  N/A: Não consigo lembrar exatamente quando que a ideia de A garota do metrô surgiu para mim, mas sei que ela estava dentro da minha cabeça já tem alguns anos e finalmente consegui colocar ela no papel (ou no computador rs) e vasculhando o Pinterest meio que algumas fotos foram me ajudando a criar os cenários, mas no final a história se escreveu sozinha, como se tivesse vida própria. Enfim, finalizar uma fanfic pra mim é sempre uma sensação maravilhosa e espero que vocês gostem do resultado. Beijinhos e até a próxima!

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