Addiction

Escrito por Danielle | Revisado por Mariana

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CATÁLOGO DE AURAS

Vermelha: sensualidade, força, malícia, determinação, raiva.
Preta: seriedade, rejeição, distância, tristeza, infelicidade.
Azul (e variações): tranquilidade, otimismo, constância, boas intenções.
Rosa: empolgação, alegria, felicidade.
Verde (e variações): esperança, harmonia, equilíbrio emocional.
Violeta/Roxo: consciência tranquila, transição entre alegria e tristeza.
Marrom: responsabilidade, foco em cumprir obrigações e atingir objetivos.
Cores pardas (como bege e suas variações): aversão, disposição para discussões e retaliações.
Laranja: curiosidade.
Branco: paz, pureza, amor divino e fraternal.
Cinza: desânimo, tristeza, confusão mental.

Prólogo

  - Eu não posso perder o jogo de amanhã! É a final do campeonato, mãe... – Resmunguei forçando algumas peças de roupa a entrarem na gaveta.
  - É o aniversário de 95 anos da sua bisavó, ! Você participou da animação de todos os jogos até hoje. Não fará mal nenhum faltar a um!
  - Vocês não entendem. Não percebem que isso é importante pra mim? A bisa não vai achar ruim se formos vê-la no dia seguinte. Aliás, ela nem sabe a ocasião que vocês vão comemorar... – rolei os olhos sem acreditar ainda que minha mãe queria mesmo me obrigar a faltar ao último jogo do campeonato estadual por causa do jantar monótono de comemoração do quase um século de vida da avó dela.
  - Nós vamos comemorar.
  - Mãe, seja razoável. Eu sou a líder da equipe. Se eu faltar ao jogo de amanhã, perco a minha posição. Eu me dediquei muito para chegar aonde cheguei. E minha participação nesse tipo de coisa contribui para o meu currículo. Eu vou para a faculdade daqui a dois anos, lembra?
  - Querida, deixa a ir ao jogo dela amanhã. Eu, você e a Emily vamos para a casa da vovó e em outra oportunidade a dá os parabéns à ela. – meu pai interveio ao meu favor, como sempre, dizendo as palavras ao entrar no meu quarto desarrumado.
  - Kevin, o que nós combinamos sobre eu conversar com a sozinha a respeito desse assunto?
  - Desculpe, amor, mas é que eu não suporto ver duas das três mulheres da minha vida discutindo sobre alguma coisa. – ele disse beijando o rosto de minha mãe.
  - Ok, então vá ao seu jogo, . Mas vamos voltar a conversar sobre priorizar a família, tá? – a Sra. Lilian, matriarca da minha pequena família, completou retirando-se do meu refúgio feliz.
  Minha mãe mal saiu do meu quarto com meu pai em seu encalço, e já escutei Emily, minha irmãzinha mais nova, pedindo a eles para levar nosso labrador, Cookie, para o casarão onde nossa bisavó morava há mais de 50 anos. As infantilidades daquela garota sabiam me tirar do sério. Ela já tinha 11 anos! Quando Emily iria crescer? Com essa idade, eu já me preocupava em chamar a atenção dos meninos populares da escola; aliás, eu já tinha até um namoradinho.
  Fui até meu grande guarda-roupa – não tão grande quanto eu gostaria, mas razoável – e admirei meu uniforme azul com detalhes amarelos. Nós seríamos campeões no dia seguinte, e eu definitivamente seria a rainha do baile naquele ano.

***

  O estádio estava lotado! De um lado, as arquibancadas repletas de adolescentes vestidos de vermelho e branco. Do outro, os jovens do meu colégio pintavam o local com seus uniformes azuis... Sacudi os pompons amarelos em minhas mãos levemente sentindo a energia vibrar na minha corrente sanguínea. O dia prometia!
  - ! Nunca vi isso aqui tão lotado! – Kate, minha melhor amiga, gritou para mim pulando de empolgação.
  - Pois é! Por isso, quero ver todo mundo botando pra quebrar, hein? Vamos deixar aquelas barangas animadoras do outro time morreeendo de inveja! – falei lançando um sorriso maligno para as outras garotas da minha equipe que participavam da nossa euforia. Elas sorriram para mim e concordaram com um “é!” animado.
  E assim foi. Cada momento do jogo era acompanhado de gritos, assovios e barulhos de cornetas e tambores. A vitória pelo time do meu colégio foi alcançada, mas nos últimos segundos, e isso pareceu deixar a partida e o campeonato todo em si ainda mais excitantes.
  Depois da entrega do troféu e de toda a vibração da comemoração, uma festa seria dada na casa de – meu namorado e capitão do time, treinado pelo seu pai, o professor . Assim, juntamos todas as animadoras e aproveitamos a carona oferecida por Mel, a única de nós que estava de carro naquele dia.
  Havia refrigerante e comida suficientes para alimentar o colégio inteiro – e quase o colégio todo estava ali mesmo. Não que a minha cidade fosse grande – Beaufort possuía menos de cinco mil habitantes, de modo que a escola devia contar com cerca de quinhentos alunos.
  Depois de dançar várias músicas só na companhia de minhas amigas e de tomar mais Soda do que poderia se quisesse manter minha barriga definida, decidi que já havia comemorado o bastante com seu time e fui procurá-lo.
  - Heey! – cumprimentei meu namorado por trás, provocando-lhe um susto e quase fazendo com que ele derramasse o refrigerante que segurava em uma das mãos em si mesmo.
  - Porra, ! – ele disse e riu divertido.
  - Que tal ir até a sua casinha da árvore? – sugeri falando no ouvido de e imaginando formas de tornar aquela festa mais interessante.
  - Agora não dá, eu tenho que dar atenção aos caras.
  - Mais atenção? Eu já fiquei metade da festa sozinha, . – reclamei sem me preocupar com a altura do tom de voz.
  - Seus pais nem estão em casa e você vai poder dormir aqui hoje, . Relaxa. – ele respondeu seco e friamente, como se me deixar abandonada em uma festa dada na casa dele e sem motivos reais para fazer isso pudesse ser compensado depois.
  - Caralho, , você não pode largar seus amiguinhos aí alguns minutos e aproveitar a distração dos seus pais pra ficar sozinho comigo um pouco? – perguntei ainda mais alterada do que antes; eu não era uma pessoa conhecida pela paciência.
  - Deixa de ser mimada, . Nem pense em fazer cena aqui na frente de todo mundo e aprenda que você não é o centro do mundo, caramba! – escutei meu namorado negar a minha proposta “indecente” e senti a rejeição tomar conta da raiva, o que significava que agora eu tinha lágrimas demais nos olhos e “humilhada” era apelido para como me sentia. Recolhi, então, o que restava da minha dignidade e saí dali, sentindo as gotas salgadas escorrerem pelo meu rosto ao passo que me dirigia ao jardim da frente da casa. E o pior de tudo era que não havia vindo correndo atrás de mim para se desculpar.
  - Pai? – falei ao telefone, ainda aos prantos, quando meu pai atendeu seu celular no quarto toque. Escutei as risadas de Emily e os latidos de Cookie ao fundo e quase me arrependi por escolhido o jogo em detrimento à festinha da bisa. Quase me arrependi, porque, no fundo, eu sabia que não combinava nada comigo deixar minha equipe de torcida e meus amigos da escola para passar várias horas monótonas comendo bolo diet (a vovó e a bisavó eram diabéticas, então nada de açúcar na festa) e ouvindo a bisa perguntar a cada cinco minutos se meu namorado era bonito.
  - Que foi, filha? – ele perguntou preocupado com meu tom de voz.
  - Eu quero ir pra casa da bisa. – respondi e solucei.
  - Mas, meu bem, nós vamos voltar pra casa amanhã na primeira hora do dia. E já são mais de dez horas da noite... – meu pai tentou se explicar, mas eu o interrompi:
  - Então voltem agora. Eu quero ir pra casa. Por favor.
  - O que aconteceu, ? – agora além de preocupação, Kevin também tinha raiva na voz. Provavelmente estava imaginando que havia me machucado, o que eu não tentei negar prontamente porque até queria que meu pai pensasse aquilo mesmo.
  - Pai, por favor, só dá pra vocês voltarem? Eu não quero ficar sozinha, eu não vou dormir na casa do e você sabe que a Kate já vai pra casa da Mel hoje, então eu não tenho mais pra onde ir.
  - , o que houve com você e o ?
  - Custa tanto assim vir pra casa hoje? É quarta-feira, a estrada nem está cheia. Por favor... – implorei caprichando no tom “tenha dó de mim”.
  - Tá, filha, tudo bem. Fique na casa dos só até nós chegarmos, está bem? Já vamos sair daqui. – meu pai se rendeu, por fim, aos meus pedidos e eu sorri para mim mesma brevemente até me lembrar de novo de por que estava tão chateada.
  - Tá. Tchau. – falei e desliguei o telefone.
  E essas foram as últimas palavras que eu troquei com meu pai. As últimas que havia trocado com minha mãe foram antes dela entrar no carro para irem para a cidade vizinha – eu havia dito “mãe, eu não sou mais criança” quando ela me propôs um “beijo de esquimó”, que dávamos frequentemente quando eu era pequena. A última frase que disse para Emily, minha irmã, foi “vê se cresce, garota!” quando ela puxou meu cabelo e correu para entrar no veículo da família antes que eu devolvesse a agressão. E a última coisa que eu falei para o meu cachorro, Cookie, foi “SOME DO MEU QUARTO!” – gritado mesmo, como se ele não ouvisse várias vezes melhor do que eu. Aquela noite, tudo mudou. Eu decidi correr um pouco pelas ruas enquanto chorava e, em um momento de distração tanto minha quanto de um motorista, acabei sendo atropelada por um carro ou outro tipo de veículo, e só me lembrava, antes de apagar, de alguém dizendo perto de mim que a minha família fora avisada e já estavam a caminho, regressando de uma cidade vizinha onde haviam ido visitar parentes. Essa foi a minha última lembrança antes de desmaiar, cercada de pessoas e ouvindo o barulho de uma sirene, provavelmente da ambulância. Aqueles eventos tão rápidos, tão confusos e sem motivos mudaram tudo. Para sempre.

1. Vida nova

  A vida é cruel. Impiedosa, injusta, sádica... Uma lista interminável de coisas ruins e dolorosas. No entanto, todo mundo tem medo de morrer. Talvez seja porque ninguém sabe ao certo o que há depois disso – se é que existe alguma coisa depois disso... O caso é que enquanto você vive, e quanto mais você vive, mais dor você suporta. Eu não gostava de pensar que teria que suportar tanto sofrimento ainda, até porque, já estava completamente esgotada dos últimos meses.
  Levantei-me sem ânimo algum para ir à escola. Algo absolutamente comum – eu geralmente não tinha vontade de ir ao colégio mesmo. Não que eu fosse preguiçosa e achasse estudar uma coisa ruim. O caso é que não é fácil passar um minuto sequer em um lugar lotado de pessoas quando você escuta os pensamentos delas – passar sete horas assim é a pior tortura que se pode enfrentar.
  Sim, eu não sou normal. Eu escuto os pensamentos de todo e qualquer indivíduo num raio de dois quilômetros, mais ou menos. E vejo auras – a essência da pessoa em dado momento reflete em torno dela, em cores. Algo, com certeza, muito perturbador.
  Tomei um banho rapidamente e me enfiei dentro de uma calça jeans aleatória e um moletom cinza – blusas com capuz eram úteis para esconder os fones de ouvido que eu costumava usar quase 24 horas ao dia para abafar os pensamentos a minha volta. No entanto, quando passei pela soleira da porta da casa de minha tia, com quem morava há pouco mais de um ano, e vi o sol iluminando o dia em Seattle, tive que voltar para o meu quarto e trocar o traje do dia. Como eu odiava dias ensolarados! Eles nunca combinavam com o meu humor...
  Entrei no meu carro e verifiquei minha imagem no retrovisor: rosto sem qualquer maquiagem, cabelo esticado e sem graça, a franja grande demais já caindo sobre os meus olhos e a camiseta de alças indicava que eu estava abaixo do peso. Balancei a cabeça de um lado para o outro tentando espantar o pensamento “você está um lixo, ”, e dei a partida.
  Não acredito que me esqueci de fechar a janela antes de sair de casa! E aposto que o Travor não vai se lembrar também. Agora vou ter que passar o dia todo rezando para que nenhum bandido entre lá e pegue as minhas economias escondidas embaixo do colchão! Ótimo! – Alguém pensou freneticamente no carro parado ao lado do meu no semáforo. Instantes depois, outros carros se aproximaram e eu precisaria me concentrar muito para ler os pensamentos separadamente. Como não conhecia a “voz” vinda de cada um, seria impossível identificar os cidadãos donos de cada mente.
  Aumentei o volume do iPod e continuei o caminho até a casa de , meu amigo que sempre ia para o colégio comigo. Pensei em como as coisas seriam diferentes se eu tivesse minha antiga vida. Eu não estaria dirigindo agora – quem estaria ao volante seria meu namorado lindo, charmoso, capitão do time de basquete, tão popular quanto eu, a líder da equipe de torcida do meu colégio. Deixaríamos minha irmã cinco anos mais nova em sua escola e depois seguiríamos para o local onde éramos admirados, invejados e possuíamos o status desejado por todos os demais estudantes na nossa pequena cidade, Beaufort, na Carolina do Norte. O dia seria perfeito, eu e iríamos para a casa dele depois das aulas torcendo, no caminho, para que os pais dele não tivessem chegado ainda e pudéssemos, assim, passar alguns minutos nos agarrando no sofá da sala de televisão da residência. Mas aquele tipo de segunda-feira não existia mais. Minha realidade agora era totalmente diferente. Eu não amava mais a minha vida. Eu pedia pela morte a cada hora que passava.
  A única coisa que havia melhorado para mim no último ano foi a situação financeira. Meu pai era subgerente em um banco em Beaufort e minha mãe não trabalhava – pelo menos, não em um emprego secular com remuneração -, de modo que o salário dele era suficiente para cobrir nossos gastos, mas não o bastante para suprir os luxos e regalias que eu valorizava tanto na época. Assim, eu morava em uma casa de três quartos, dois banheiros, sala, cozinha e varanda nos fundos da propriedade, e possuía o necessário para viver com certo conforto. Eu não tinha um carro, não tinha um closet grande, não viajava para outros estados nas férias e nunca havia dado uma grande festa de aniversário. As coisas eram completamente diferentes com tia Sabrina, no entanto. Minha tia era uma das melhores advogadas do estado de Washington, o que significava um bom status, excelente estilo de vida e dinheiro sobrando. E desde que a minha tia ficou com a minha guarda, quando minha família inteira morreu em um trágico acidente automobilístico, eu também tinha direito a várias mordomias. Tia Sabrina possuía uma casa enorme no melhor bairro de Seattle, contando com sala de estar, sala de jantar, sala de TV, sala de jogos e mais diversos outros tipos de salas, além de muitas suítes e uma piscina incrível nos fundos da propriedade. Meu quarto era gigante, com vários bônus que eu jamais pediria, se tivesse feito isso – como televisão de 42 polegadas e videogames –, e o closet possuía quase o mesmo tamanho do cômodo ostentoso onde eu dormia e passava a maior parte do tempo. O presente de boas vindas que recebi logo que saí do hospital e me mudei para a casa de Sabrina, foi uma Mercedes novinha em folha, e, para me distrair, minha tia me levou para comprar roupas, renovar o guarda-roupa e abarrotar os armários de sapatos, bolsas, vestidos, calças, blusas...
  Durante a minha primeira semana naquela nova vida eu me distraí mesmo com essas coisas, não me culpei de nada e nem pensei direito em ter terminado comigo para ficar com Kate, uma vez que eu estava “estranha”, segundo ele, e os dois também se envolveram durante os 38 dias que passei em coma. Contudo, não demorou muito e todos aqueles bens materiais não significavam mais nada – não se eu estava tão infeliz, e tudo por minha culpa.
  Eu sabia que se não tivesse implorado ao meu pai para voltar para casa ou se ele não tivesse recebido a notícia de que eu fui atropelada enquanto estava dirigindo a caminho de Beaufort, era bem provável que minha família ainda estivesse viva. Ou se eu tivesse obedecido à minha mãe e ido comemorar o aniversário da minha bisavó, eu teria morrido junto com eles e não estaria sofrendo por causa da saudade, do remorso, da dor da perda que eram sentimentos tão vivos em mim que eu quase podia apalpá-los. Mas o que estava feito, estava feito, e eu teria que continuar convivendo com todos aqueles fantasmas pelo resto dos meus dias.

2. Festa

  - Daí ele disse que está gostando da Jane. Da Jane, gente, vê se dá pra acreditar nisso?! – , minha melhor amiga, disse enquanto , ela e eu ainda pegávamos nossos livros no armário, antes da aula. era a única pessoa do mundo que conseguia contar a história de uma noite inteira de papos com o menino por quem estava interessada em questão de minutos.
  - Cara, aquela menina não tem nada na cabeça. Esse garoto é doente? – revirou os olhos e apanhou sua lixa de unhas dentro da mochila. – Mas você devia ver isso como um sinal, . De coração: o Mark vai te fazer um favor se sumir da sua vida.
  - Sou obrigada a concordar com o , . – disse, por minha vez.
  Aposto que o está é despeitado porque o Mark é heterossexual e não gay como ele, e a daria cada um dos fios do cabelo louro dela pra passar pelo menos metade do tempo que eu passei com ele ontem. – Os pensamentos de foram tão pesados e amargos que me atingiram com uma força ruim o bastante para que minha cabeça doesse instantaneamente; sua aura normalmente azul clara ficou marrom como que num piscar de olhos.
  - O Paul que faz Biologia I comigo vai dar uma festa na piscina dele no domingo. – declarou enquanto eu ainda esfregava minhas têmporas com os indicadores e ajeitava seu cabelo no espelho do pó compacto.
  - Para tudo. – disse fechando o estojo e encarando . – O Paul amigo de metade dos atletas do colégio?
  - Exato. Ele disse na sala que estava todo mundo convidado e quem levasse meninas poderia beber o dobro.
  - Nós vamos, né, ? – perguntou segurando meu braço com força e, provavelmente, deixando minha pele branca demais coberta de marcas.
  - Eu não vou poder... – falei sem saber ainda qual desculpa daria daquela vez.
  Festas simplesmente não me agradavam mais. As pessoas pensavam demais, o barulho da música era mais desorientador do que um alívio, e eu já podia ver os atletas e as meninas que eles atraíam destruindo a minha paz interior com suas mentes fúteis e escrotas.
  - Por que não? – e perguntaram ao mesmo tempo.
  - Eu e minha tia vamos visitar um amigo dela em Tacoma. Desculpe, gente, mas eu prometi a ela que iria.
  - Eu aposto que ela não ficaria tão chateada se você falasse que vai a uma festa de amigos do colégio, . – tentou reverter a situação.
  - Deixa ela, . A vive dando bolo na gente mesmo. É só aparecer uma festa que um compromisso brota na agenda dela. – disse amarga e sua aura voltou a adquirir tons pardos.
  - Na próxima eu juro que vou. – falei, mas nenhum dos dois estava prestando a atenção em mim mais. A preocupação deles agora era a festa que Paul daria no final de semana.

3. Convite

  A próxima oportunidade de uma festa surgiu mais rápido do que eu poderia imaginar. No início da aula de Inglês, minha matéria favorita, a Sra. disse que precisava conversar comigo ao término da aula e, é claro, eu já sabia do que o diálogo se tratava sem ser necessário que ela realmente dissesse.
  - Meu filho faz 18 anos no sábado e nós vamos dar uma festa para ele. E eu gostaria que você aparecesse por lá... Acha que seria possível? – Martha , a senhora mais encantadora que eu conhecia, perguntou-me com seu tom de voz afável de sempre e as bochechas coradas.
  - Sra. , muito obrigada. Eu nem sei como agradecer uma consideração dessas. – respondi sinceramente, sem conseguir negar o convite.
  Já não era fácil negar alguma coisa a uma pessoa como ela sem conseguir ler seus pensamentos, saber o que se passava na mente dela - sua esperança de que eu estivesse lá, como ela acreditava que seu filho me adoraria, e todo o carinho que ela nutria mim – tornava uma negação definitivamente impossível.
  - Isso quer dizer que posso contar com a sua presença? – ela questionou com os olhos brilhando.
  - É claro. Que tal uma sugestão de presente?
  - Ele adora jogos eletrônicos.
  - Vou comprar pelo menos três então. – sorri para a minha professora. Ela, por sua vez, me abraçou ternamente e agradeceu mais uma vez por eu ter aceitado o convite.

  Eu havia tido pesadelos com a festa de aniversário de durante a semana toda. Nos sonhos, eu sempre ficava atordoada no meio da multidão e, quando saía de dentro do local e me deslocava para uma colina bem afastada onde só existisse o barulho remoto de alguma estrada no horizonte, o barulho frenético continuava ainda mais alto do que antes, ecoando dentro da minha cabeça. Pensei eu inventar uma dor de dente, cólica, alguma virose ou mesmo simular um acidente de trânsito para ter uma desculpa para faltar à festa, mas quando eu me lembrava da professora me convidando para o evento tão feliz e sinceramente preocupada com a minha presença, eu simplesmente só conseguia me sentir um monstro por pensar em rejeitar o convite de alguma forma.
  Assim, comprei três jogos de PC para o aniversariante e um vestido para mim. Cortei meus cabelos, tirei as teias de aranhas dos meus estojos de maquiagem e passei quinze minutos escolhendo os sapatos de salto alto. Quando cheguei à casa da professora, onde a festa estava sendo dada e onde nunca havia pisado até aquele dia, me arrependi instantaneamente por ter ido. A comemoração sem dúvidas contava com mais de trezentos adolescentes ricos e mimados, e do estacionamento eu já podia ouvir os pensamentos... Coloquei meu carro na primeira vaga que achei e andei a passos lentos para dentro do local, rezando para que a noite fosse uma criança que crescesse rápido, bem rápido.

4. Inesperado

  Já haviam quase duas horas que eu estava naquele lugar procurando meios de exterminar a confusão mental que ouvir tantos pensamentos ao mesmo tempo estava me provocando. Assim, decidi que procuraria minha professora no meio daquela multidão e entregaria o presente ao filho dela para me ver livre daquela festa de uma vez por todas.
  Depois de evitar alguns garotos tarados e ter o desprazer de cruzar com algumas garotas muito semelhantes a determinadas meninas indesejadas do colégio, eu finalmente avistei a Sra. .
  - Sra. ! – gritei a alguns metros de distância dela para fazer com que minha voz fosse mais alta que o barulho ao redor.
  - ! – ela respondeu sorrindo e caminhou até mim. – Eu te vi de longe, mas não consegui ir cumprimentá-la. – disse me abraçando.
  - Tudo bem, professora, eu posso imaginar como deve ser a anfitriã numa festa deste tamanho... – falei com um sorriso. – Parabéns pela casa e pela decoração. Tudo está lindo.
  - Você é um amor. – Martha respondeu corando.
  - Bom, aqui está o presente do . – estendi o embrulho azul para a mãe do aniversariante.
  - Ora, você quem vai entregar a ele, é claro. – ela rolou os olhos e me pegou pela mão. – Vamos procurá-lo.

  Eu já estava quase desistindo da busca ao filho da professora quando alcançamos a piscina aos fundos da casa e o avistamos a alguns metros de distância conversando – ou talvez discutindo fosse a palavra mais adequada – com uma garota.
  - ! – a mãe do garoto gritou e me puxou junto com ela em direção à ele. E quando o rapaz virou-se para nos encarar, eu quase deixei o queixo despencar de incredulidade. Porque a aparência dele me pegou totalmente de surpresa. tinha cabelos de um tom caramelo-escuro lindos e sua pele extremamente branca era diferente, mesmo em Seattle, onde muita gente era pálida graças à falta de sol. Havia ainda outra coisa nele que me despertava o desejo quase incontrolável de tocá-lo, mas eu não sabia ao certo o que era. Os olhos quase dourados dele combinavam perfeitamente com a forma surreal e quase divina que o resto de sua aparência sugeria, e eu poderia passar dias olhando para aquele rosto sem me cansar de observá-lo. era lindo demais, quase irreal de tão lindo.
  - Oi, mãe. – ele respondeu sério e caminhou em nossa direção deixando a garota com quem conversava falando sozinha.
  - Querido, eu quero lhe apresentar a . Ela é...
  - Sua aluna na escola, eu sei. Você tem mais orgulho dela do que de mim. – murmurou provocando-me um sorriso, mas ele mesmo não mudou sua expressão.
  - Feliz aniversário. – eu disse estendendo o presente para ele quando o silêncio se instalou entre nós e percebi que eu era a única que ainda não havia dito nada.
  E foi então que percebi o que eu – apenas eu – havia acabado de pensar. Silêncio. Eu não escutava nada além do barulho do vento contra as folhas da árvore dos fundos da casa e alguns ruídos do som de dentro da propriedade. Não havia mais os pensamentos empolgados da Sra. por tudo estar ocorrendo bem na festa e sua constante preocupação sobre o marido não dar a atenção adequada ao evento nem mesmo naquele momento, quando este estava acontecendo. Eu não enxergava mais a sua aura verde oscilando entre o laranja da preocupação e o rosa do lisonjeio dela. E agora eu percebia que não havia escutado os pensamentos de , nem da moça com quem ele discutia, em momento algum, embora estivéssemos a uma distância suficiente para que eu fosse capaz de ouvir cada coisa que eles imaginassem. Eu não era capaz de ver a aura dele nem a aura da menina que o acompanhava – os dois estavam perfeitamente normais, sem cor nenhuma em volta, assim como a Sra. desde que chegamos àquele lugar. Será que minha habilidade sobrenatural estava desaparecendo? Isso significava que eu estava voltando ao normal?
  - Obrigado, . – disse pegando o embrulho da minha mão e me abraçou brevemente. Quando toquei suas costas, a imagem da garota com quem ele conversava abraçada a outro rapaz quase tão lindo quanto apareceu na minha mente. O vislumbre, semelhante a um slide se acendendo diante dos meus olhos, sumiu assim que nos afastamos.
  - Por nada. – respondi sem graça e me perguntando o que havia sido aquilo agora.
  - Eu vou lá dentro, . Depois conversamos. – a moça que já se encontrava no local quando Martha e eu aparecemos falou e saiu andando a passos rápidos em direção a casa.
  - Desculpe a pressa, , mas eu preciso resolver umas coisas. – o garoto divino disse imediatamente indo atrás da garota.
  - Me perdoe por isso, . Aquela é a Jennifer, namorada do . Eles devem ter brigado... Mas a partir de segunda-feira ele estudará na mesma escola que você, então vocês poderão conversar melhor. Ele é um ouro de menino, você vai ver.
  Olhei de novo na direção de ... Se ele fizer amizade com a , ficará longe de problemas e de pessoas como o Eric e essa menina. – Os pensamentos da Sra. invadiram minha mente então. Sua aura se acendeu na cor laranja como se uma lâmpada tivesse sido acesa. As habilidades haviam sumido momentaneamente então... E, a cada minuto, eu ficava ainda mais perturbada. O que estava acontecendo comigo agora?

5. Confusa

  Cogitei um milhão de possibilidades para não ter escutado os pensamentos de aquela noite, e estava tão desesperada para entender aquilo que o procurei na festa durante vários minutos após entregar-lhe seu presente. No entanto, eu não o encontrei mais entre os convidados, e, portanto, decidi ir para casa.
  Aquela noite sonhei com a imagem que apareceu na minha cabeça quando e eu nos tocamos. No meu sonho, ele brigava com sua namorada por causa do garoto bonito que eu havia visto.
  - Você foi para Londres e ficou por lá durante oito meses, ! Não acho justo que me cobre fidelidade se você não estava aqui para se comportar totalmente como um namorado deve ser. – Jennifer disse aos gritos.
  - Eu fui para aquela droga de escola porque os meus pais me obrigaram, Jenny. Eu faço 18 anos hoje e eles não vão mais ter poder o bastante sobre mim para fazer isso. E eu estar longe não te dá o direito de me trair. Se queria ficar com outras pessoas, por que não foi decente o bastante para me dizer isso? – ele respondeu igualmente exaltado.
  - Você sabe que eu gosto de você e não quero que a gente termine.
   abriu a boca para responder, mas antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, a Sra. gritou o nome dele. E quando se virou para respondê-la, ele observou sua mãe caminhando a passos rápidos até ele com uma moça em seu encalço.
  - Oi, mãe. – disse sério.
  - Querido, eu quero lhe apresentar a . Ela é...
  A garota do sonho que acompanhava a Sra. era eu, e eu estava exatamente como na festa – tudo estava exatamente como na festa. No entanto, era como se eu visse as coisas do ponto de vista de , do modo como ele me via.
  - Sua aluna na escola, eu sei. Você tem mais orgulho dela do que de mim. – ele falou com a mesma feição de antes.
  Senhorita perfeitinha... - Escuto esses pensamentos vindos do filho da professora e, então, passo a enxergar as coisas do meu jeito. A aura de era a mais escura que eu já havia visto – uma mistura de cores fortes impossível de interpretar separadamente. A garota atrás dele pensou em sair dali e disse mesmo que estava de saída, que os dois continuariam a conversa depois - uma cor vermelha bem escarlate rodeava a menina de modo bem perturbador, mais do que o de costume.
  , então, voltou parte da sua atenção a mim e pensou que sua cabeça estava doendo e queria sair logo dali. Quando ele me tocou para agradecer o presente, no entanto, uma onda de alívio preencheu o espaço e seus pensamentos, bem como sua aura, sumiram. No entanto, eu senti que ele estava tranquilo, alegre como se tivesse acabado de se curar de uma dor forte e torturante. se afastou de mim então, e foi neste instante que acordei apavorada.
  Sem dúvida, fora o sonho mais real de toda a minha vida. Eu poderia jurar que havia sido de verdade, que tudo aquilo era quase uma lembrança que ele havia, de algum modo, compartilhado comigo. Mas nada disso fazia sentido! O que faz sentido na sua vida, ? – perguntei a mim mesma e coloquei o travesseiro na cara implorando ao sono que voltasse logo e me impedisse de pensar.

6. Novato

  - Bom dia, galera. E então, , como foi a festa do filho da professora ontem? – perguntou antes mesmo que e eu saíssemos do carro. Sua curiosidade era notável pela cor laranja de sua aura, pelos pensamentos desordenados e porque o “bom dia” mais a pergunta sobre a festa saíram como se fossem uma única frase.
  - Bom dia, . A festa foi... interessante. – respondi trancando a porta da Mercedes e apertei o botão do alarme.
  - Com tantos adjetivos para escolher e você fica logo com o mais complicado. Eu, hein... – disse mais desanimada.
  A definição exata para aquela festa fora exatamente isso: complicada. Passei meu domingo inteiro tentando entender os acontecimentos, mas não havia explicação que não envolvesse coisas como eu estar sofrendo mesmo de esquizofrenia ou enlouquecendo de outra forma parecida.
  - A tem razão, . Explica esse “interessante” aí direito. – comentou e cruzou os braços analisando minha expressão.
  - A casa da professora Martha é incrível. Devia ter uns trezentos convidados na festa e estava tudo muito bem arrumado. Então, foi isso. – dei de ombros.
  - E o aniversariante? – perguntou novamente empolgada.
  Abri a boca para responder ainda imaginando qual palavra seria mais adequada para resumir – lindo, divino, misterioso... Mas me interrompeu antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
  - Para tudo. – meu amigo disse pausadamente deixando seu queixo despencar. Virei-me para observar o que ele encarava e vi saindo de sua BMW preta novinha em folha e passando a mão direita nos cabelos louros bagunçados enquanto pendurava sua mochila no ombro com a outra mão.
  - Quem é esse deus grego? – questionou com os olhos arregalados e brilhantes. Alguma coisa na admiração de meus amigos pelo garoto me incomodou no fundo. Alguma coisa parecida com a raiva que senti de Kate quando soube que ela estava com o meu, até então, namorado.
  Balancei a cabeça de um lado para o outro como se isso fosse afastar a sensação desagradável que me invadiu sem permissão, nem justificativa, e respondi à pergunta de minha amiga com a voz desprovida de emoção:
  - .

  - Você passou uma noite inteira no mesmo ambiente que aquela perfeição e não dançou sequer uma música com ele? – perguntou indignado.
  - Ele... não faz meu tipo. – escolhi as piores palavras possíveis para pronunciar. e gargalharam tão alto que fiquei constrangida.
  - , gata, aquele homem é o tipo de qualquer mulher e de qualquer gay na face dessa Terra, te garanto isso. – meu amigo explicou dando tapinhas de complacência nas minhas costas.
  - Pode ser pra vocês que nunca namoraram uma pessoa assim e receberam um belo par de chifres enquanto estavam na UTI depois de acabarem de perder a família inteira num acidente. – respondi com raiva e bati a porta do meu armário, ajeitando meus livros no braço.
  - Você não pode simplesmente odiar os populares simplesmente porque não deu certo pra você ser uma, . – me repreendeu seguindo-me pelo corredor, embora sua primeira aula ficasse do lado oposto da minha.
  - Eu sei. Mas a última coisa que eu preciso agora, , é tentar ser alguém popular de novo. E acreditem em mim: pessoas como te dão esse status simplesmente por você andar com ele. – É claro que escutar isso bastou para que a empolgação dos dois pelo garoto novo crescesse ainda mais. Os pensamentos de iam de “é claro que ele não é gay” até “definitivamente vou abandonar o estilo gótico personalizado”. imaginava formas de trazer para o seu “time”, caso ele fosse mesmo heterossexual como aparentava.
  - Ele pode ser tipo um auto isolado. Quero dizer, Edward Cullen era o cara mais gato da escola, mas não era nada popular.
  - Edward Cullen era um vampiro, então as pessoas tinham um medo natural dele, . – disse usando seu tom “dã”. Tive que rir da conversa fiada dos dois.
  - Ok, mas a questão é: você odeia os populares, mas nós não. Aliás, eu seria muito mais feliz se fosse popular também. De qualquer modo, você já conhece o novato gostoso e, como nossa amiga, é seu dever e privilégio apresentá-lo a nós. – Meu amigo falou como se estivesse proferindo um discurso à pedido de votos. Suspirei alto e parei de andar, já tendo alcançado a minha sala. O sinal da escola ecoou informando que deveríamos entrar para o primeiro tempo, mas e sequer se mexeram esperando pela minha resposta.
  - Ai, , por favor! – implorou juntando as mãos como se estivesse se preparando para rezar.
  - Eu troquei meia dúzia de palavras com ele durante a festa inteira e duvido que ele ainda se lembre o meu nome, mas ok. Vou ver o que posso fazer. – ganhei um grito animado de cada um dos meus amigos e um abraço rápido como resposta.
  Atravessei a soleira da porta e uma onda de paz invadiu minha mente. O barulho dentro da sala era evidente – vinte e cinco adolescentes conversando ao mesmo tempo era suficiente para dar zumbidos no ouvido. No entanto, ao mesmo tempo, tudo estava silencioso, calmo, normal. Não havia cores ao redor das pessoas, suas emoções eram tão ocultas quanto deveriam sempre ser. Encontrei Mona Smith no meio do caminho e concentrei-me em ler sua mente. No entanto, tudo o que consegui foi um “o que foi, ?” e um rolar de olhos totalmente imprevistos. Antes que eu pudesse questionar a mim mesma se minhas habilidades estavam falhando de novo, vi teclando na tela de seu iPhone e sentado na cadeira vazia ao lado do meu lugar dentro do laboratório de Química.

7. Lembranças

  Ok, não era coincidência – não podia ser coincidência. Minhas habilidades só desapareciam quando estava no mesmo ambiente. Desde o acidente, a maior certeza da minha vida sempre foi que eu não era a mesma pessoa em todos os sentidos possíveis que isso pudesse ter. É claro que enfermeira ou médico algum acreditou em mim quando eu disse que podia escutar o que as pessoas pensavam e ver cores em volta delas. Nem mesmo quando eu disse para o neurologista exatamente o que ele havia acabado de pensar ele acreditou nas minhas palavras – eu sabia que ele estava assustado com essa possibilidade porque eu podia ver o que ele estava pensando, mas também ficou evidente que ele encarou aquilo como um estresse pós-traumático, distúrbio de personalidade e confusão mental passageira. Tentei conversar com tia Sabrina e expor meus medos, dúvidas e toda a realidade que me apavorava, mas ela pensava o mesmo que o médico e aceitou prontamente o conselho dele de me levar a uma terapeuta. A Dra. Foster me perguntou sobre tudo e parecia mesmo disposta a me ouvir, mas sua mente indicava o mesmo ceticismo que o dos médicos e o de minha tia, e, se eu quisesse ficar longe de um hospício, manteria as minhas novas habilidades em segredo.
  Assim, coloquei na minha cabeça que, mesmo que ler mentes e enxergar auras fosse algo normal, as pessoas não gostariam de ficar perto de quem fosse assim. Não que eu estivesse procurando ter popularidade de novo – agora que eu podia ler a mente de Kate, e todas as pessoas com a criação e os objetivos parecidos com os deles, minha prioridade era manter distância de quem quer que fosse assim. Ser assim roubou minha família inteira, tirou a minha paz interior e me jogou em um buraco escuro de desesperança e falta de vontade de viver.
  De qualquer modo, no entanto, eu procurei fazer alguns amigos. Procurei me associar com pessoas verdadeiras, honestas, de quem eu não precisaria ler os pensamentos ou ver a aura para saber se estavam tristes, chateados, felizes ou empolgados. E a maneira como conheci e já indicou que eles eram perfeitos para a vida nova que eu tanto ansiava.

  Flashback On

  - Ok, pausa para descansar, pessoal. – A professora de teatro de quem eu não me lembrava o nome, mas cujo perfume forte e doce demais eu jamais esqueceria, anunciou depois de 40 minutos de aula. A primeira parte foi dedicada a explicar a todos como seria a peça, quando seriam os ensaios, seus critérios para escolha do elenco e qualquer outro detalhe técnico e bem típico de primeira aula de teatro.
  Fechei meu caderno de anotações e me curvei para guardá-lo dentro da mochila que repousava no chão, ao lado da cadeira onde eu estava sentada.
  - Estou encantado. – escutei uma voz de rapaz um tanto afeminada próxima a mim. – Qual shampoo você usa?
  - , você vai assustar a garota.
  Levantei a cabeça para ver se os dois conversavam comigo mesmo – o que era quase evidente porque estava repassando imagens de louras famosas em sua mente e comparando os meus cabelos com os delas. Corei instantaneamente.
  - Você falou comigo? – perguntei como uma idiota.
  - Tem mais alguma loura com cabelo de Firgie por aqui? – ele sorriu com os olhos brilhantes. Os olhos de eram perfeitos. Olhar dentro dos olhos dele dava a sensação de imensidão, tranquilidade, mas, ao mesmo tempo agitação, comparada a de ver o mar. Senti saudades da praia e do calor acolhedor de Beaufort ao fitar os olhos dele.
  - Obrigada. Isso é um pouco exagerado, mas obrigada. – eu ri sem graça com o elogio. – E eu uso um shampoo diferente toda semana. Nunca sei qual é. Mas posso conferir hoje em casa e te conto no ensaio de amanhã.
  Aquilo era totalmente diferente da pessoa que eu costumava ser três meses atrás. Porque há três meses eu sabia exatamente o nome de todos os meus cosméticos, inclusive do esmalte que estava usando. Olhei para as minhas unhas limpas, mas sem cor alguma – nenhum vermelho escarlate, nada de rosa Penélope Charmosa ou de azul bebê -, e suspirei de tristeza por ter perdido completamente a vontade de me cuidar. Toda a minha aparência demonstrava o descaso que eu tinha para comigo mesma, embora a natureza tenha sido generosa comigo em muitos aspectos.
  - Faça isso, por favor. – completou e mudou sua mochila para a cadeira à minha frente.
  - Você é nova por aqui, certo? – a garota vestindo minissaia jeans, blusa preta de mangas compridas com escritas indecifráveis como estampa e com uma maquiagem escura demais para o dia, além das unhas pretas e anéis em quase todos os dedos, perguntou.
  - Sim. Eu morava na Carolina do Norte. Estou em Seattle há pouco mais de um mês.
  - Eu sou e ela é a . Agora, conte-nos a história. Sim, porque sair do lado ensolarado dos Estados Unidos e vir para o lado que conta com 230 dias chuvosos com certeza envolve uma história.
  Desde que riram mentalmente quando eu disse que podia ouvir pensamentos e que todo mundo tinha cores estranhas em volta de seus corpos, eu não era tão boa mais em me abrir, em contar minhas histórias. Mas e me deixaram à vontade o bastante para que eu conseguisse relatar resumidamente que perdi minha família num acidente de carro, que agora morava com minha tia e que sair do sol e ir para a chuva combinava com todas as mudanças que a minha vida sofrera no último verão.
  Pensei que as lágrimas viriam quando perguntou se eu havia deixado algum namorado para trás, afinal, lembrar-me da decepção com Kate e era a gota d’água que transbordava o balde de tragédias da minha vida, mas o surto que deu quando contei essa parte tornou a história tão cômica que, a partir de então, eu sempre ria ao me lembrar dela.
  - Eu teria descido o barraco nos dois! – os gestos escandalosos dele lembravam os da Vera Verão, da Praça é Nossa.
  - Quer saber do que você precisa, ? – disse.
  Por um momento pensei que ela diria “compras” e eu já teria que ser mal educada e negar o convite. Compras não era algo divertido mais. Eu simplesmente havia perdido a paciência em provar um milhão de roupas e aturar os sorrisos falsos das vendedoras. Mas percebi que não era isso que minha nova amiga diria quando li seu pensamento seguinte, o qual ela pronunciou quase que imediatamente:
  - , acho que temos a rainha do baile bêbada perfeita pra peça!
  No início, pensei que se referisse realmente à peça das aulas de teatro do semestre – a protagonista passava semanas se esforçando para ser a rainha do baile de formatura, mas nada disso acabava lhe dando o que ela tanto desejava, algo que a personagem desabafa depois de tomar alguns copos de ponche batizado. Mas, aquela noite, descobri que os planos de meus novos amigos incluíam algo bem mais divertido do que isso. Os pais de saíram para jantar com amigos, e, assim que eles desapareceram da rua, e eu chegamos com as garrafas de Vodca e Whisky – todas compradas com uma identidade falsa que tinha para comparecer aos eventos permitidos apenas para maiores de 21 anos da cidade. Aquela foi a primeira e última vez na vida que bebi tanto, ri tanto sem ter motivos e me esqueci de todo o mundo ao redor. Foi a última ocasião em que tive paz mental – porque não conseguia me concentrar o bastante para ler mente alguma, nem para pensar que era culpada por toda a desgraça que vivia. A última vez até que conheci .

  Flashback Off

8. Primeira briga

  - Com licença. – pedi e me sentei no lugar que estava acostumada a ocupar nas aulas de Química. O lugar ao lado de , a nova sensação da escola.
  - Você não é a garota que minha mãe adora? , certo? - o garoto perguntou enquanto eu ajeitava meus materiais sobre a bancada.
  - . – respondi um tanto irritada. Ele havia dado a entender na festa que eu era assunto corriqueiro em sua casa, mas sequer lembrava-se do meu nome?!
  - Hum. Minha mãe pediu para você se sentar perto de mim na aula, ? – ele questionou.
  Eu não era capaz de ler os pensamentos de , mas seu tom de escárnio e sua expressão de superioridade que me acusava de ser a pessoa mais patética do mundo foram mais que suficientes para me despertar uma raiva profunda. O garoto com certeza se achava o umbigo do mundo, a coisa ao redor da qual todas as outras coisas tinham de girar! Bem típico de todo o seu estilo mimado e tão parecido com a antiga – a idiota que namorou o e chamava Kate de melhor amiga.
  - Como é? – perguntei dando-lhe a chance de deixar a estupidez de lado e se desculpar pela petulância.
  - Eu perguntei se minha mãe te pediu para se sentar comigo nessa aula. – Agora sua cara questionava a minha inteligência também.
  Respirei fundo e contei rapidamente até dez.
  - Esse é o meu lugar de sempre nesta aula. Se não acredita, pergunte a qualquer outra pessoa que esteja no curso há mais tempo que você. – respondi tentando não demonstrar a irritação, mas falhando completamente. O tom trêmulo e resignado estava tão evidente quanto possível em minha voz. Voltei meus olhos aos materiais e os reorganizei sobre a mesa inutilmente.
  - Ei, qual é o seu nome? – escutei perguntando à garota sentada atrás de nós.
  - Lucy. – ela respondeu empolgada como uma retardada. Rolei os olhos.
  - Muito prazer, Lucy. Meu nome é . – Não parei para conferir, mas tinha quase certeza que ele estendeu a mão para apertar a da garota. – Você pode me dar uma informação? – ele perguntou saturando a voz de ainda mais gentileza. É claro que um simples sorriso forçado dele já seria suficiente para fazer Lucy até mesmo matar em sua causa, mas parecia disposto a usar toda a educação que possuía.
  - Cla-claro. – a gordinha de óculos e corretivo demais na face gaguejou.
  - A Srta. sempre se senta nesse lugar?
  Não consegui evitar voltar minha atenção para aquela conversa. definitivamente era o garoto mais estúpido, imbecil, irritante e idiota do planeta!
  - Sim, acho que sim. Quero dizer, ela é boa em Química, então consegue se virar sem um parceiro de laboratório. E a turma era em número ímpar, por isso alguém teria que ficar sozinho. – Lucy respondeu escolhendo as melhores palavras que conseguiu encontrar, provavelmente.
  - Entendo. Parece que ela é boa na maior parte das coisas que faz nessa escola, ou quem sabe na vida, né? – A voz de era tão enfadonha quanto possível ao pronunciar a frase, tornando o que poderia ser um elogio em algo que o incomodava profundamente. – Obrigada pela ajuda, Lucy.
  Pensei em dizer alguma coisa. Talvez xingá-lo por falar de mim como se eu não estivesse por perto ou por ser tão estúpido a ponto de pensar que eu mentiria sobre me sentar com ele na aula. Mas fazer uma cena quando estava irritada com alguém não era tão parecido comigo mais. Pelo menos, fiquei totalmente sem reação naquele caso. Na verdade, eu tive vontade de sair correndo daquele lugar e de bater em alguém, mas não eram opções que pudessem ser escolhidas no momento.
  Antes que dissesse mais alguma coisa idiota ou que eu fizesse alguma loucura, o Sr. Rivers começou sua aula. Felizmente naquele dia só receberíamos as instruções para a aula prática do dia seguinte, portanto, a maior parte do tempo foi teoria e tudo o que precisei fazer foi tomar notas e me esforçar para não pensar em como o garoto do meu lado era estupidamente cheiroso e irritantemente imbecil.
  Dei graças a Deus quando o sinal tocou e recolhi minhas coisas o mais rápido que pude, enfiando tudo dentro da mochila sem me preocupar se estava amassando algo lá dentro.
  - Não está esquecendo nada, apressadinha? – perguntou. Voltei-me para encará-lo e ele tinha meu livro de Química em uma das mãos.
  - Obrigada. – agradeci com má vontade.
  - Está de mau humor hoje? – o garoto teve a cara de pau de me perguntar seguindo-me para fora da sala. Eu ri sem humor algum ainda disposta a ignorá-lo. – Já saquei. Está de TPM. – ele disse e riu como se estivesse se divertindo às minhas custas.
  - Você é engraçado, sabia? Com Lucy Thomas, uma desconhecida, é um cavalheiro. Comigo, que estive na sua festa de 18 anos no sábado, não diz sequer um bom dia e ainda duvida das coisas que eu falo. E eu pensei que eu quem não era normal... – mordi a língua quando percebi que a raiva estava começando a ter seus efeitos e me fazendo falar demais.
  - Eu não tenho motivos para não gostar de Lucy Thomas. – deu de ombros.
  Parei de andar abruptamente e acabei ficando a poucos centímetros de distância dele. Ignorei os efeitos idiotas da aproximação – porque ficar com o coração acelerado, suar nas palmas das mãos e sentir borboletas no estômago não era permitido em relação àquele garoto.
  - E você tem motivos para não gostar de mim? – questionei ultrajada.
  - Até agora tenho vários. Você é muito estressada e não tem um pingo de senso de humor. Além disso, eu e minha mãe temos um esquema que ela não conhece muito bem: os adolescentes de quem ela gosta, eu não costumo curtir. – ele respondeu e sorriu torto. Seria um sorriso de tirar o fôlego se eu não estivesse me sentindo tão ofendida.
  - Você não sabe nada sobre mim, então não fale como se me conhecesse. – falei séria. – E eu prefiro um milhão de vezes mais ser aprovada pela sua mãe do que por você. Portanto, considere a apatia recíproca. – Andei a passos rápidos pelo corredor até a minha próxima aula. E pela primeira vez, fiquei feliz por ouvir os pensamentos de Georgia Wilson, a líder das animadoras de torcida da escola.

9. Compras

  Além de Química, eu também tinha Educação Física e Matemática I com , mas naquele dia nós dois fingimos não nos conhecermos quando cruzamos na sala de aula novamente.
  No intervalo foi possível perceber como o filho da professora já havia sido bem aceito na escola. sentou-se na mesa dos garotos do time de basquete da Seattle South High School e foi coberto de atenções pelas animadoras de torcida. Todos os olhares do refeitório estavam sobre ele, é claro, e o único assunto de e era esse também.
  - E então, , como você vai nos apresentar ao novato-delícia? – perguntou quando nos sentamos à nossa mesa de sempre no extremo norte da lanchonete.
  - Não vou. – respondi desanimada e mordisquei minha pizza.
  - COMO É QUE É? – e gritaram ao mesmo tempo.
  - Eu discuti com ele hoje na aula de Química e não pretendo falar com esse idiota nunca mais na vida.
  - Como assim discutiu com ele? – perguntou confuso.
  - Ele foi um grosso comigo. Sentou-se no lugar ao lado do meu que era o único vazio na aula de laboratório e perguntou todo petulante se a mãe dele havia me mandado fazer isso...
  - E ela mandou? – me interrompeu.
  - Ele se sentou no lugar vazio ao meu lado de sempre nessa aula, . Acabei de falar isso. – rolei os olhos.
  - Mas só por isso você ficou com raiva? – colocou as mãos nos quadris indignado comigo, provavelmente pensando que eu estava sendo muito preconceituosa e infantil. O fato de estar no mesmo ambiente silenciava a mente de todo mundo, e já estava ficando estranho não poder saber o que se passava na cabeça das pessoas. Parecia que eu estava sem um dos sentidos, como ouvir ou enxergar.
  - Não, . Fiquei com raiva também porque ele me disse que não gostava de mim depois. O garoto nem me conhece e já veio falando que eu sou muito estressada e o fato da mãe dele me adorar já seria razão suficiente para ele querer distância de mim.
  - Nossa, por que será que ele disse isso? – disse com a voz tristonha, finalmente parecendo estar ao meu lado.
  - Porque é perturbado, estúpido, mesquinho, metido a revoltado...
  A risada de interrompeu minha lista de descrição de .
  - Se eu fosse você tomava cuidado, . Estou começando a pensar que essa sua raiva do é quase um amor reprimido.
  - Você vive em outra dimensão, ? Não escutou o que eu acabei de falar que o garoto fez comigo hoje, sem razão alguma? – perguntei à com ainda mais raiva.
  - Ok, não precisa descontar sua raiva em mim. Além do mais, é bom que você não queira nada com ele mesmo. Eu pretendo investir pesado nesse gato e não preciso de uma versão loura da Jennifer Lopes como concorrente.
  - Bom, tenho uma novidade pra você, : você não tem a de concorrente, mas tem 90% da população feminina e 100% dos gays da escola com quem competir. – disse.
  - Por isso a tarefa de vocês dois hoje é me ajudarem a mudar radicalmente o estilo.
  - Tarefa de nós dois? - eu e perguntamos ao mesmo tempo.
  - Sim, senhoras. Vocês são minhas amigas ou não?
  - Mas você fica tão bem de gótica, . – comentei não conseguindo imaginar de outro jeito.
  - Pois eu estou orgulhoso de você, amiga. – falou estendendo a mão para tocar. – Estilo gótico saiu de moda há tempos. E eu também estou precisando de uma terapia de compras. Então, está decretado: hoje é dia de shopping!
  Bati palmas junto com e comemorando falsamente a nossa atividade da tarde. Mais uma razão para a lista de motivos para odiar .

  Passei com em sua casa para que ele trocasse os trajes usados para ir à escola; depois passamos na minha casa para pegarmos minha carteira e para que eu também pudesse me trocar.
  - Eu vou escolher suas roupas! – Meu melhor amigo disse correndo para o meu closet. Rolei os olhos exausta demais de brigar aquele dia para tentar impedir de me obrigar a vestir um vestido, minissaia, short super curto ou qualquer coisa parecida com isso que ele com certeza escolheria. Eu nem precisaria ler seus pensamentos para saber que essas seriam suas opções.
  No final, acabei com um vestido branco tomara que caia um palmo acima dos joelhos e sapatilhas rosa choque.
  - Vem cá. Vou fazer uma trança transversal no seu cabelo para completar o look.
  Embora tivesse odiado a escolha do vestido – ok, era uma roupa linda e as sapatilhas deram um “quê” a mais, mas era muito mais desconfortável que meus jeans -, tive que admitir que a trança ficou perfeita. Portanto, agradeci pela gentileza – e mentalmente por ter feito com que eu me sentisse bonita usando nada mais que suas habilidosas mãos e uma fitinha rosa – e prometi lhe comprar a roupa que quisesse no shopping. Assim, seguimos para a casa de ouvindo Coldplay, e passamos as próximas horas da tarde dando trabalho às vendedoras.
  Como havia comprado uma quantidade absurda de roupas – ela com certeza havia refeito o guarda-roupa -, decidimos deixar as sacolas no carro antes de irmos comer alguma coisa. Eu estava carregando quase vinte sacolas, e me atrapalhei com algumas delas enquanto abria o porta-malas da Mercedes, deixando alguns cremes e acessórios caírem e espalharem-se pelo chão do estacionamento.
  - Cuidado com as minhas coisas, ! – me repreendeu. Enfiei as sacolas que ainda segurava dentro do porta-malas sem me dar o trabalho de respondê-la e me agachei para catar o que havia caído. No entanto, quando me abaixei, percebi um par de mãos brancas pegando tudo o que conseguia e reunindo as coisas na sacola. Levantei os olhos para ver quem era, mas a falta de pensamentos já havia dito isso.
  - Obrigada. – Agradeci com um sorriso fraco. Meu coração deu um solavanco quando o sorriso torto e perfeito de preencheu seu rosto lindo.
  - Por nada. – ele respondeu oferecendo-me a mão para me colocar de pé. Sorri para ele mais abertamente como agradecimento de novo. – Então, não vai apresentar seus amigos? – ele perguntou ainda gentil.
  - Ah, sim. , este é o e esta é a .
  - Oi. – os dois responderam encantados e sorriram.
  - Oi. – disse. – Já estão indo embora?
  - Na verdade, viemos guardar as tralhas novas da no carro para ser possível ir comer alguma coisa. – respondeu.
  - Quer ir com a gente? – convidou.
  - Hum, claro. – assentiu e seguiu conosco para o interior do shopping, rumo à praça de alimentação.

10. Dupla personalidade

  O que havia de errado com ? Meus pensamentos poderiam ser resumidos nesta curta frase durante a hora que se seguiu. Porque no decorrer desta hora, , , e eu nos sentamos a uma mesa do McDonalds do shopping, comemos, bebemos e conversamos como se nos conhecêssemos desde sempre. Foi muito estranho vê-lo sorrindo e contando casos sobre sua própria vida, ao passo que e o olhavam tão vidrados em cada coisa que ele dizia que chegava a ser perturbador. Parecia que meus amigos estavam hipnotizados pela pessoa mais bipolar do mundo. Sim, porque não havia outra justificativa para aquilo. De manhã ele dizia que me odiava porque sua mãe praticamente me adotara como filha; à tarde o garoto me ajudava a recolher coisas do chão e comia na companhia dos meus amigos como se nada tivesse acontecido!
  - Então você já morou em Londres? – perguntou fascinada quando comentou alguma coisa sobre o Big Ben. Eu estava distraída demais tentando entender a cabeça daquele garoto para realmente prestar atenção ao que ele dizia.
  - Oito meses. Na verdade, eu quase sempre passo o Natal lá também. Meus pais estudaram na Universidade de Londres, e fizeram muitos amigos, então a primeira opção de viagem sempre é a Inglaterra.
  - E o que você acha de lá? – perguntei casualmente. Era minha primeira participação na conversa, então até e voltaram seus olhos para mim durante alguns segundos.
  - É legal. – deu de ombros.
  - Legal? Você deve ser muito exigente para dar só esse adjetivo à Londres. – comentou. Imaginei que caiu uns dois pontos no conceito dela depois disso. sempre dizia que a alma dela era britânica e já havia tentado falar a maior parte do tempo com sotaque britânico por mais de uma vez. Eu sorri com essa lembrança.
  - Certo, vou ser cem por cento sincero: eu odeio a Europa. Prefiro o espírito livre da América. Além do mais, eu fui para Londres viver em um internato. Definitivamente, se eu puder, nunca mais piso na Inglaterra. – disse firme. E naquele momento fiquei quase tão encantada quanto e estavam antes. O garoto com certeza não se importava com o que pensariam do que ele dissesse. Ele não havia se preocupado em ser sincero comigo mais cedo, e sua primeira opção foi desagradar , se isso significava falar a verdade.
  - Mas por que seus pais te mandaram pra tão longe? – perguntou.
  - Porque eles já haviam esgotado os colégios particulares, militares e internatos que gostavam nos Estados Unidos.
  - Você então é do tipo que dá muito trabalho? – ergueu as sobrancelhas deixando quase evidente o duplo sentido de sua frase. Eu corei de vergonha por ela e quase me enfiei embaixo da mesa.
  - Só quando as pessoas querem que eu seja fácil. – O garoto retribuiu ao sorriso malicioso de e incluiu a ele uma piscadela. A raiva que eu havia sentido mais cedo quando o vi cercado de animadoras de torcida no intervalo voltou a se manifestar e o sanduíche pesou no meu estômago, me provocando náuseas.
  - O papo está ótimo, mas são quase sete da noite e eu preciso ir pra casa. – falei levantando-me e pegando minha bandeja.
  - Ué, por quê? O que tem de interessante pra fazer em casa? – manifestou-se.
  - De interessante nada, mas tem dever de casa. Eu sei que você e a não se preocupam com o de vocês, mas eu ainda quero ir para uma faculdade decente no ano que vem. – respondi jogando o lixo da bandeja em uma das lixeiras próxima de nós. – E então? Ainda vão querer carona?
  - Está passando um ótimo filme no cinema. Se vocês quiserem ir, eu posso dar carona de volta pra casa. – ofereceu. – Se a não se importar, é claro.
  Certo, qual era o plano dele agora? Roubar os meus amigos, me tornar uma completa isolada, e, dessa forma, me fazer pagar por agradar à sua mãe?
  - Eu quero ir ao cinema.
  - Eu também. Está tudo ok por você, ? – perguntou-me, mas seus olhos suplicavam para que eu respondesse que sim, que estava tudo ótimo ser escolhido em detrimento a mim, amiga daqueles dois traidores desde que me mudei para Seattle.
  - Sim, mas as coisas da ainda estão no meu carro.
  - Ah, isso é simples. Você passa na minha casa amanhã antes da escola e deixa tudo lá. – sugeriu.
  - Ok. Bom cinema pra vocês. – Desejei sentindo-me a pessoa mais rejeitada do mundo e me arrastei para o estacionamento deplorando a existência da única pessoa capaz de tornar a minha vida um pouco normal.

  Os pensamentos de estavam tão empolgados que eu podia ouvi-los há quase um quilômetro de sua casa se me concentrasse e tentasse isolar sua voz do resto das pessoas ao redor. Ele havia se divertido muito na companhia de e quase poderia dizer que estava apaixonado pelo garoto. Minha vontade ao constatar isso foi dar a meia volta e seguir de novo para a casa de tia Sabrina.
  - Bom dia. – cumprimentei meu melhor amigo sem realmente julgar aquele dia bom.
  - Maravilhoso dia, ! – sorriu de orelha a orelha e conectou seu iPod ao som do meu carro.
  - Como foi o cinema ontem?
  - Incrível. Sério, é o que eu chamo de perfeito.
  - , eu não quero te desanimar, mas ele parecia dar bola demais pra para ser gay.
  - Eu sei, eu sei. Eu reconheço um gay há milhas de distância e percebi assim que pus os olhos nele que o garoto é hétero mesmo. – ele fez um beicinho, mas ligou o som assim mesmo e cantarolou junto com a Beyonce. – De qualquer modo, tê-lo como amigo será excelente para a nossa reputação.
  - Peraí, peraí, peraí. Eu não sou amiga dele e nem quero ser. E já disse a você e à que eu não tenho a ambição de voltar a ser popular. Aliás, isso é tudo o que eu não quero agora.
E desde quando nós precisamos querer o que você quer? O pensamento de foi tão claro quanto se ele tivesse dito as palavras. Doeu da mesma forma, embora a resposta dele tenha sido outra:
  - Relaxa, . Eu e a não vamos te abandonar só porque queremos ser amigos das pessoas legais da escola.
  Não respondi. Pela primeira vez em mais de um ano me deu uma resposta completamente diferente de seus pensamentos. Pela primeira vez ele foi tão venenoso quanto conseguia ser algumas vezes e como Georgia Wilson e seus amiguinhos eram sempre.
  Eu quis poder culpar o novato lindo e charmoso, capaz de calar as mentes e apagar as auras simplesmente com a sua presença, mas nada tinha a ver com aquilo. preferiria participar do círculo social do time de basquete do que ficar isolado comigo em nossa mesa no extremo norte da lanchonete. E eu poderia mesmo culpá-lo por isso, afinal? Eu mesma era a pessoa que não suportava ficar de fora de uma festa sequer, um ano atrás. Se não fosse o acidente, eu provavelmente ainda seria essa mesma pessoa superficial e mesquinha. Meu melhor amigo ou mesmo só conheciam a realidade que viviam agora – aquela que viveram durante suas vidas inteiras. Querer provar algo diferente não era nenhum pecado, eu sabia bem disso.
  Pensei na família de e de . Os pais de sabiam que ele era gay, mas não escondiam que preferiam o irmão dele, Tyler, aluno da Universidade Columbia e futuro Engenheiro Civil. O irmão de havia sido jogador de basquete na mesma escola em que meu melhor amigo era um gay bonito, mas que passaria despercebido se ficasse de boca fechada. era conhecido pelos professores e pelo diretor como “o irmão do Tyler Fields”, e eu nem poderia imaginar como deveria ser frustrante ser colocado na sombra de alguém dentro de todos os ambientes que se frequentava e durante toda a vida.
   era filha única, mas o fantasma da rejeição pairava sobre ela constantemente. Não era preciso ler os pensamentos de para saber que ela não tinha uma boa base familiar. Sua mãe trabalhava o tempo todo desde que a filha tinha dez anos. O sinal de vida que o pai de dava todos os meses era o cheque de pensão depositado regularmente na conta bancária destinada a isso. Minha amiga não se dava bem com a mãe nos poucos minutos semanais que as duas conversavam, e via o pai uma vez por ano, no Natal, quando era obrigada a ir passar alguns dias na casa dele – e, segundo , ver como os gêmeos e a filha que ele tinha com a atual esposa recebiam todo o carinho que ela jamais teve e nunca teria.
  E então comparei a vida que eu tinha com a vida que os meus amigos enfrentavam. Eu nunca precisei provar nada, e, mesmo assim, me esforcei para isso durante 16 anos da minha vida! Meus pais eram maravilhosos – amáveis, carinhosos, compreensíveis e calorosos -, minha irmã mais nova era exatamente como uma garotinha deve ser, e nunca recebeu mais atenção do que eu simplesmente por ter nascido depois. Eu havia sido criada em um lar respeitoso, que me dava a sensação de segurança, que me permitia ser eu mesma e só isso. Mas precisei perder tudo o que tinha de mais valioso para dar algum valor, é claro.
  Parei o carro em frente à casa de e toquei a buzina. Eu queria chorar, gritar comigo mesma, pegar uma faca na cozinha e olhar para os meus pulsos desejando ter coragem o bastante para me matar, como já havia feito outras vezes. Mas engoli os sentimentos e simplesmente sorri e assenti para os meus amigos conforme eles conversavam animadamente, as auras cor-de-rosa de felicidade, e me contavam como haviam se divertido com na noite anterior.
  Peguei meus livros no armário como sempre enquanto meus amigos ainda tagarelavam.
  - , você é extremamente sortuda! Três aulas com ele é perfeito demais.
  - Eu definitivamente não sou sortuda. E você disse que tem Português com ele. Deve ser muito engraçado ver como a professora se comporta perto do filho e vice-versa. – Respondi a ainda verificando o que deixaria no armário e o que levaria comigo.
  - Na verdade, é mesmo engraçado. – A voz do garoto me sobressaltou, como sempre. Normalmente parar de ouvir os pensamentos é um sinal da aproximação dele, mas acho que eu estava ficando tão acostumada com isso que sequer havia percebido o silêncio. Isso definitivamente não era bom! Eu tinha que ser acostumada a ouvir a mente dos outros; me acostumar com o silêncio novamente me deixaria dependente do único ser capaz de me proporcionar isso, e eu realmente não podia precisar de .
  - Ela te chama de filho o tempo todo e se corrige o tempo todo, tadinha. – riu de leve. sorriu.
  - Eu disse pra ela que não daria certo me trazer pra cá.
  - E por que mesmo ela quis te colocar na escola onde ela leciona justamente no seu último ano no ensino médio, hein? – perguntou.
  - Ela disse que eu precisava conhecer pessoas diferentes. – me encarou por longos segundos ao dizer essas palavras. Felizmente, antes que eu bufasse, desse alguma má resposta ou o mandasse tomar em algum lugar inapropriado, o sinal tocou e mandou a mim e a para a aula de Química em que éramos parceiros.

11. Ncessidades

  - Dispor os tubos de ensaio de maneira paralela a formar duas séries com três tubos cada uma: série A e série B. – Li as instruções no roteiro da aula do dia em voz alta. Olhei à minha frente para realizar a tarefa, como de costume, e tinha os tubos de ensaio em mãos e os enfileirava conforme a instrução.
  - Precisa numerar? – ele perguntou olhando para o roteiro.
  Certo, então ele ainda pretendia manter a paz entre nós e fingir que nunca discutimos no dia anterior, que eu não sabia o quanto ele detestava fazer aquela aula comigo ou até respirar o mesmo ar que eu.
  - Acho que não é necessário. – Respondi e li a segunda instrução no roteiro.
  Preparamos todos os tubos cuidadosamente comentando apenas coisas relacionadas ao que devíamos fazer na prática sobre Soluções Tampão. A tarefa, como um todo, era muito simples: organizar os tubos, inserir tampão em dois deles, adicionar uma gota de indicador em cada tubo e comparar os padrões de pH conforme a escala de cores. Depois adicionamos ácido e base aos respectivos tubos exigidos no roteiro para comparar as faixas de tamponamento.
  Observei o laboratório ao redor enquanto pingava o ácido em um dos recipientes. Vários alunos já haviam feito uma bagunça horrorosa em suas bancadas e a maioria ainda estava colocando tampão nos tubos.
  - Nós formamos uma boa dupla. – A voz perfeita dele disse. Por um momento perguntei-me se ele quem podia ler pensamentos. Se fosse o caso, estávamos em desvantagem porque ele simplesmente era a pessoa mais silenciosa do mundo para mim.
  - Parece que não é tão desastroso como eu imaginava mesmo. – Respondi ainda esperando que ele fosse grosso, esnobe e estúpido comigo de novo.
  - É... Quer colocar o NaOH nos tubos da série B? – Ele mudou de assunto e me passou o conta gostas.

  Meu próximo tempo com foi Educação Física, antes do intervalo. A turma foi dividida em dois times e praticamos vôlei naquela aula. O filho da professora não estava em nenhum dos dois times – ele jogou basquete junto com o time da escola, que competia nos campeonatos estaduais. Adicionei esse detalhe à minha lista de razões para querer ficar longe daquele garoto. Atletas eram algo que eu definitivamente não desejava como amigos mais – principalmente jogadores de basquete.
  Tomei minha ducha de sempre depois da aula, enfiei as roupas da Educação Física em minha bolsa destinada a isso e caminhei a passos rápidos para o estacionamento a fim de guardá-la dentro do carro. Os pensamentos fizeram minha cabeça doer poucos segundos depois que se afastou o bastante para isso. Foi como viver os primeiros dias depois do acidente de novo. A mesma sensação horrível de um peso pendurado nas orelhas, o barulho que impedia que eu pensasse com alguma coerência e a dor de cabeça desnorteante que só passava quando eu adormecia. Peguei o iPod dentro da mochila e enfiei os fones nos ouvidos. Coloquei o volume no máximo e esperei que Metallica abafasse pelo menos uma boa parte dos pensamentos, como de costume. No entanto, isso não aconteceu. Esperei por um pouco de alívio – pelo menos o suficiente para ser possível interpretar o que a música dizia -, mas a agonia não passava de modo algum. E então, como a covarde que era, corri para o refeitório implorando para que já estivesse lá, cercado dos populares e impedindo que alguém pensasse audivelmente perto de mim – ou de nós.

  Era como puxar um som da tomada – o efeito era instantâneo. Assim que cruzei soleira da porta do refeitório não havia mais barulho algum. Dez segundos depois que eu havia entrado, chegou conversando animadamente com Trevor, Richard e outros meninos do basquete. Seria idiotice pensar que ele não entraria para aquele meio. pertencia àquele nicho – ele era esteticamente e provavelmente psicologicamente o mesmo que os atletas, o mesmo que . A única coisa que não fazia sentido era que, de alguma forma, ele era diferente. Sim, porque qual outra explicação haveria para o fato de eu saber tudo o que se passava na cabeça de todas as outras pessoas, mas a mente dele fosse tão impossível de ler para mim como um livro escrito em latim? E era exatamente isso que me intrigava nele – havia algo em que não havia em qualquer outra pessoa.
  - Já estávamos nos perguntando onde a senhorita estava. – acordou-me de meus devaneios provocando-me um susto. – O que foi, ? Estava distraída?
  - É, um pouco. Eu acabei de chegar também. Fui colocar a roupa suja da Educação Física no carro.
  - Hum, ok. Vamos pegar nosso almoço então? – meu amigo sugeriu.
  - Claro.
   e seus novos amiguinhos eram os últimos da fila, de modo que ficamos atrás deles. e logo encontraram assunto para puxar com o novato, e fiquei surpresa ao perceber que ele ainda os tratava com a mesma educação da noite anterior.
  - Eu vou dar uma festa no sábado, galera. Já estão sabendo? – Richard perguntou a e .
  - Não estávamos até agora... – respondeu com os olhos brilhantes.
  - Bom, vocês estão convidados.
  - Nós estaremos lá, com certeza! – respondeu.
  - Você pode passar o seu endereço? – pediu pegando seu celular no bolso.
  - Por que vocês não almoçam com a gente e aproveitam pra pegar? – ofereceu usando seu sorriso e olhar hipnotizantes. Como se isso fosse necessário! A raiva voltou a invadir o meu sistema. Não existia outra explicação: ele estava tentando me deixar completamente isolada. Ele sabia que nada no mundo me faria passar o almoço cercada de atletas e animadoras de torcida, mas já havia percebido que isso era o que e mais queriam em suas vidas. Tive vontade de sair dali calada e matar os últimos horários para ir para casa ou qualquer outro lugar que me fizesse esquecer a escola, esquecer . Mas então me lembrei que me afastar dele significava perturbação mental, e desisti facilmente de fazer isso.
  - Claro! – e responderam ao mesmo tempo.
  Pegamos o nosso almoço e eu segui para a minha mesa de sempre.
  - , o convite se estende a você também. – disse.
  - Pode ir, . Eu vou almoçar aqui, como sempre.
  - Caramba, você é muito ignorante! – ela quase gritou para mim e deu-me as costas. Dei de ombros e fitei minha bandeja procurando a fome que sentia há poucos muitos e que havia desaparecido no instante que convidou meus amigos para comerem com ele.
  - Então você prefere almoçar sozinha a ficar perto dos populares? – questionou puxando uma cadeira ao meu lado.
  - Você convidou meus amigos para comerem com você, mas eu não te chamei para almoçar comigo. – eu disse encarando bem seus olhos, que se arregalaram automaticamente.
  - Bom saber que o preconceito é uma das suas virtudes. – Ele respondeu levantando-se.
  - Preconceito implica dar um conceito a algo que eu não conheça, e esse com certeza não é o meu caso. Já você... Não foi isso mesmo que você fez desde que sua mãe falou sobre mim pela primeira vez? Você não me tachou de “perfeitinha” entediante? – falei lembrando-me do sonho que me disse os pensamentos dele sobre mim, e cujo significado eu ainda não compreendia muito bem.
  - Você tem razão, . – disse depois de pensar por alguns segundos. – Posso me sentar?
  - Para quê?
  - Para conversar. Bom, esse é o único jeito que eu conheço para entender você e não ser mais preconceituoso. Então, posso? – ele perguntou de novo indicando a cadeira. Suspirei e respondi que sim.

12. Amigos

  - Você não tem cor preferida? – Ele perguntou com uma gargalhada me acompanhando até o estacionamento.
  - Eu preferiria enxergar em preto e branco, juro. – Respondi. Se ele pudesse enxergar auras também pensaria como eu.
  - Caramba, mas por quê? – ria daquilo como se fosse a coisa mais engraçada do mundo.
  - Você não gostaria de saber. – Respondi e me arrependi instantaneamente. O sorriso se apagou do rosto dele e suas sobrancelhas se arquearam.
  - Sim, gostaria sim. Você acabou de descobrir mais um dos meus defeitos: eu sou extremamente curioso e teimoso.
  - Isso é mais que um defeito.
  - Você tem razão. Mas eu tenho os dois. E então? Vai querer mesmo que eu descubra por conta própria? Tem certeza de que me quer no seu pé pelo tempo que for preciso até que eu descubra?
  Pensei em como e o resto da população feminina da escola gostariam de ter apenas isso como opção válida. Eu jamais poderia contar a ele que era uma esquisitona que podia ler pensamentos e ver auras ao redor das pessoas. Além disso, como eu provaria as minhas habilidades a ele se eu não podia ler os seus pensamentos e ver a sua aura?
  - Eu acho que coisas coloridas me dão dor de cabeça, é só isso. – dei a desculpa mais deslavada do mundo, embora fosse um pouco verdade.
  - Você mente muito mal, . – disse. – Bom, eu vou indo. Até amanhã! – Ele afagou meu ombro antes de dar as costas, e eu ainda sentia a pele no local formigando deliciosamente e o meu rosto sorrindo como numa foto quando e apareceram conversando freneticamente sobre a festa de Richard.

  Linda, inteligente, divertida, inexplicavelmente atraente às vezes, mas estranha em outras horas. No meu sonho, esse foi o pensamento de enquanto ele se afastava de mim em direção ao seu carro. A sensação na palma de sua mão era semelhante ao que eu senti no meu braço, e ele também não conseguia parar de pensar em como precisava me ver o mais rápido possível de novo.
  Acordei anestesiada por essa ideia. Minha testa estava coberta de suor, e eu havia acabado de ver todo o almoço e toda a aula de Matemática que tivemos juntos de novo – tudo sob a perspectiva dele. Explicações prováveis, . Forcei minha mente a tentar compreender aquilo da mesma forma que consegui associar as cores que enxergava em volta das pessoas aos seus pensamentos e chegar à conclusão de que eram suas auras. Mais tarde descobri a teoria que prega que vivemos em uma dimensão dentre as tantas que existem e vibramos aquilo que pensamos, atraindo coisas ruins quando somos negativos a maior parte do tempo, e coisas boas quando somos otimistas e positivos. Fez sentido na época, e ainda faz. Sempre que eu tentava imaginar como havia concluído aquelas coisas sozinha me lembrava de como me perguntava sempre como aprendi a ler e escrever se juntar as sílabas parece uma explicação tão vaga se dita desta forma.
  Os sonhos vívidos com em que aparentemente eu enxergava as coisas do ponto de vista dele, em que era possível ler seus últimos pensamentos, aconteceram logo depois de passarmos algum tempo perto um do outro. Certo, esta não era a conclusão mais correta possível, afinal, eu não sonhei com na noite em que fui ao shopping e esbarramos no estacionamento e aquele foi o dia que mais passamos tempo na presença um do outro até então. Ele também não passou nem perto dos meus sonhos na noite do dia em que descobri que seríamos parceiros de laboratório. O que havia acontecido de diferente nas duas ocasiões em que sonhei com aquele garoto? Talvez fosse a vontade absurda de saber o que ele estava pensando nos dois casos... Foi então que me lembrei do breve abraço que demos em sua festa de aniversário e o flash da tal Jennifer com o garoto bonito me surgiu na cabeça. Naquela tarde, quando ele afagou o meu braço, a imagem breve que enxerguei foi o meu próprio rosto com um sorriso estampado, mais bonito do que eu me lembrava de ser.
  Pensei e repensei em todas as ocasiões que cruzei com . Repassei os sonhos na minha mente por diversas vezes. Não havia outra explicação. Havia uma forma de ler a mente de , e isso significava que eu precisaria tocá-lo.

  Não consegui pregar os olhos durante o resto da noite. Portanto, quando me levantei no dia seguinte, meu rosto revelava todas as horas que passei insone. Olheiras avermelhadas rodeavam meu globo ocular, e minha pele parecia ainda mais pálida do que o normal. Olhei as horas no relógio do celular e me assustei ao perceber que eu havia passado tanto tempo me olhando no espelho. Preocupar-me com a minha aparência simplesmente não era algo que eu costumava fazer mais. De certo modo, eu me sentia ainda mais culpada pela morte dos meus pais, de Emily e de Cookie quando ficava bonita, ou até quando as pessoas pensavam que eu era. Minha família inteira estava sob sete palmos e eu desfilando por aí em um carro de milhares de dólares, com uma aparência ainda mais invejada. Não, isso não parecia e realmente não era certo. E foi pensando nisso que abandonei o corretivo facial de lado desistindo de arrumar o meu rosto, e fui até o closet escolher as roupas mais sem graça que encontrasse pela frente.
  - Bom dia. – Cumprimentei assim que ele abriu a porta do carro e bocejei.
  - Não venha com essa. – ele disse grosso. Certo, eu deveria estar tão lerda que nem havia percebido que ele estava zangado comigo. Concentrei-me por um instante em seus pensamentos, mas a enxurrada de palavras veio antes que ele realmente as formasse em sua mente:
  - Precisamos ter uma conversa séria sobre a senhorita comendo sozinha no almoço e fazendo eu e a parecermos dois crápulas por isso. Vai abandonar o barco justamente quando estamos melhorando de status naquela escola? – meu melhor amigo soltou alterado.
  - , você sabe a minha opinião sobre...
  - , - ele me interrompeu - eu sei que a sua vida costumava ser perfeita um ano atrás. Eu sei que você namorava o capitão do time de basquete e era animadora de torcida. Eu sei que você odeia tudo isso porque perdeu da forma mais trágica possível. Mas você não vê que se comportando assim está sendo tão egoísta quanto era antes, algo que você lamenta todos os dias? Caramba, eu e a sempre fomos os rejeitados. É bom variar um pouco de vez em quando. E você não pode ler os pensamentos do Richard, do Trevor, nem da Georgia, então como sabe que eles são tão ruins assim? E mesmo que sejam. Veneno tem por todos os lados, não adianta tentar viver fugindo disso.
  Um silêncio horrível pairou entre nós conforme eu pensava na frase “você não vê que se comportando assim está sendo tão egoísta quanto era antes, algo que você lamenta todos os dias?”. Escutar isso foi um tapa na cara. Um merecido tapa na cara, para ser sincera. O pior era ouvir os pensamentos de depois disso e ver que tudo o que ele queria era esquecer como era rejeitado em casa, na escola, e começar de novo, viver de outro jeito. A de um ano atrás sempre procurou a saída mais fácil – aquela que representava fazer a sua vontade, não importa como isso afetasse os outros. Esta tentava ser diferente, em todos os aspectos possíveis. Então, a resposta para aquele debate interno não poderia ser outra: se meus amigos queriam deixar de ser apenas nosso isolado grupinho, mesmo que fosse o que eu menos desejava no momento, era exatamente o que eu deveria apoiar.

  - COMO É? – gritou, mas abaixou o tom de voz quando cutucou seu braço e fez uma careta de “não pareça uma louca”. - Você vai à festa do Richard?
  - Sim, vou. – respondi encarando meu armário.
  - Você sabe que vai ter que usar um biquíni, né? – disse.
  - Sei, . – rolei os olhos.
  - Ok, eu vou parecer uma baleia do seu lado. A partir de hoje inicio a dieta “no food”.
  - O importante é que a vai, e se chover atleta na horta dela significa que eles ficarão por perto de nós. Isso serve pra mim. – falou colocando o braço sobre o meu ombro.
  - É, quem sabe não sobram alguns, né? – comentou desanimada.
  - Eu não vou pegar ninguém, gente. Os meninos da escola são todinhos de vocês.
  Os próximos minutos até que o sinal tocou resumiram-se a e discutindo que garotos pegariam e quais não faziam seu tipo – o assunto mais inútil do mundo, provavelmente. Eu me limitei a escutar a ladainha dos dois aproveitando o silêncio maravilhoso que pairava na escola desde que eu havia descido do meu carro. A BMW de estava em sua vaga de sempre no estacionamento da escola, e eu precisei me conter para não deixar meu carro próximo ao dele. Normalmente eu não chegava tão cedo no colégio – era mais seguro aparecer por lá perto do horário da primeira aula, assim, eu com certeza já teria meu “silenciador de pensamentos” na área. Mas acordei tão ansiosa naquela manhã que vinte minutos antes da aula de Química, eu já estava no corredor próximo a minha sala junto com meus amigos tagarelas.
  Sentei-me no meu lugar de sempre dentro da sala de aula, e nem um minuto depois, cruzou a soleira da porta, com seu visual impecável de sempre. Sua mochila estava pendurada em um dos ombros e ele vestia apenas uma blusa azul manga três quartos – nada de blusa de frio como a maioria dos alunos. Os cabelos estavam bagunçados do mesmo jeito casual e perfeito de sempre, e sua pele parecia ainda mais clara com aqueles trajes escuros por cima.
  - Bom dia. – Ele me cumprimentou tomando seu lugar ao meu lado.
  - Bom dia. – Quase suspirei de alívio ao constatar que ele ainda era o mesmo garoto educado de ontem.
  - Desculpe-me o atraso, turma. Reunião de professores antes da aula. – O Sr. Rivers se justificou. – Hoje a aula será uma revisão sobre...
  Não prestei muita atenção naquela aula, embora a prova fosse no dia seguinte e eu provavelmente precisasse fazer isso. Passei os sessenta minutos de falação do professor tentando inibir o desejo de olhar para o garoto ao meu lado, e sempre que ele me flagrava encarando-o, eu corava intensamente e dizia para mim mesma que não olharia para ele mais – uma promessa que não era capaz de cumprir.
  O sinal me libertou daquela tortura. Recolhi meus materiais que não toquei durante a aula toda em silêncio com a intenção de sair o mais rápido possível do laboratório.
  - Eu soube que você resolveu ceder à pressão dos seus amigos e ir à festa do Richard no sábado. – disse caminhando ao meu lado para fora da sala. Percebi como interagir com ele de um modo tão pacífico e normal ainda era muito estranho para mim, apesar de eu preferir muito mais que as coisas fossem daquela forma.
  - Pois é. O meio que me deu um sermão hoje mais cedo. Ele também acha que eu sou meio preconceituosa, sabe?
   sorriu de leve.
  - Eu descobri que deixar os preconceitos de lado pode ser um sacrifício no início, mas acaba ficando mais fácil depois.
  - É mesmo? Você me detestou tanto assim quando me conheceu que foi um sacrifício começar a falar comigo de um jeito mais civilizado?
  A resposta dele foi apenas uma risada. Nós já havíamos alcançado a sala de aula de e eu precisei correr até o outro lado da escola, onde infelizmente seria obrigada a ouvir os pensamentos de Georgia Wilson.

  Eu imaginei várias coisas para o almoço daquele dia. Imaginei que as animadoras de torcida com quem seria obrigada a almoçar fariam de tudo para me ridicularizar na frente das outras pessoas. Imaginei também que todos eles talvez se levantassem e fossem para outro lugar bem distante quando eu me sentasse à mesa onde estavam. No entanto, eu jamais teria imaginado o que realmente aconteceu.
  Todo mundo estava conversando animadamente sobre várias coisas. e pareciam amigos daquelas pessoas desde sempre, e nem mesmo Georgia torceu a cara quando eu caminhei ao lado de para a mesa dela e me sentei com ele do meu lado direito e ela do meu lado esquerdo.
  - E então, ? Já decidiu se vai mesmo entrar no time de basquete? – Trevor, o capitão do time da escola pelo segundo ano consecutivo, perguntou.
  - Ainda não, cara. – ele respondeu e mordeu sua maçã.
  - Precisa resolver logo, mano. O campeonato estadual começa daqui duas semanas e você no time garante a nossa vitória. Então, pensa direito nisso. – Trevor disse. Fiquei impressionada. Se jogava tão bem a ponto de fazer a diferença em um campeonato, ele poderia facilmente tomar o lugar de Trevor como capitão do time. No entanto, ele não parecia preocupado com isso. Talvez tivesse certeza de que o trinador o manteria como capitão mesmo se fizesse parte da equipe. Ou talvez ele se preocupe mais com o time todo do que consigo mesmo, a melhor parte de mim sugeriu.
   levantou-se junto comigo para deixar sua bandeja na bancada do refeitório destinada a isso. Como provavelmente não teríamos muito tempo a sós naquele dia, decidi perguntar logo o que tanto estava me intrigando.
  - , posso te fazer uma pergunta? – falei relutante esperando pelo não.
  - Claro. – ele disse abrindo uma bala e me surpreendendo de novo.
  - Por que você está tão relutante em entrar para o time de basquete da escola?
  - Por que você acha que eu estou relutante?
  - Porque eu vi você jogando mais de uma vez na educação física, e é evidente que você adora jogar. Você também revolucionou um pouco essa coisa de panelinhas aqui na escola. Eu nunca vi essas pessoas se tratando tão bem, e conversando com todo mundo. Então, acho que ajudar o time é uma coisa que você faria de bom grado. Eu diria que tudo está a favor de você competir no campeonato. Mas você ainda está na dúvida. – expliquei. Ele coçou a nuca.
  - É mais complicado do que parece. É como por que eu te detestei muito quando te vi na minha festa e quando vi que teríamos aula de laboratório juntos... – Certo, aquilo me deixou mais confusa ainda. O que uma coisa tinha a ver com a outra?
  - Eu não estou entendendo. – eu disse sinceramente.
  - Nem eu entendo a maior parte do tempo, . Mas eu acho que vou entrar sim para o time, se você quer saber. Tenho mais razões pra isso do que para não entrar. – Ele falou e sorriu.
  Eu ainda estava confusa e disposta a fazê-lo me explicar aquilo, mas o sinal tocou e o barulho do refeitório tornou qualquer conversa impossível. Ainda assim, passei o resto do dia pensando no que ele disse e odiando ter brechas na minha habilidade por não conseguir ler a mente dele.

13. Caleb Aldrin

  Tirei o notebook de cima da escrivaninha do meu quarto e coloquei meu caderno, minhas anotações avulsas e o livro de química sobre ela. A prova já seria no dia seguinte, e eu pretendia tirar uma boa nota. Daquela vez, ler a mente dos nerds da turma não era opção, portanto, eu precisaria me esforçar mais para aprender o conteúdo.
  Tia Sabrina contava com duas empregadas e um jardineiro. Nossas roupas eram lavadas e passadas em uma lavanderia, e uma das empregadas era responsável por verificar isso regularmente. Assim, escutar o que Joanna, Eva ou Gerald pensavam enquanto faziam suas tarefas era inevitável das três e meia às seis da tarde – horário em que todos nos encontrávamos a poucos metros de distância uns dos outros. Conviver com eles, no entanto, era tão normal que eu nem me incomodava realmente mais. Provavelmente por isso, quando Eva bateu à porta do meu quarto pouco antes de encerrar seu expediente me dizendo que um colega do colégio me esperava na sala de estar da casa, a notícia me pegou de surpresa.
  - Esse colega disse o nome, Eva? – perguntei. Eva era do tipo de empregada que esquecia frequentemente de anotar recados ou mesmo quem ligou durante o dia deixando algum.
  - Ele disse apenas que é da escola, . – ela respondeu corando enquanto tentava se lembrar se o garoto havia se identificado ou não. Eu sorri.
  - Tudo bem, então. Vou lá atendê-lo.
  - Você quer que leve alguma coisa para vocês? – perguntou checando as horas em seu relógio de pulso. Eva estava ansiosa para ir embora, para descansar depois de mais um longo dia. Ainda teria que preparar o jantar e o lanche que a filha de 10 anos levaria para a escola no dia seguinte, mas logo em seguida deitaria no sofá e veria sua boa e sagrada novela.
  - Não, de jeito nenhum. Vá pra casa descansar.
  - Obrigada.
  - Eu quem agradeço. – respondi e corri para o primeiro andar me concentrando nos pensamentos ao redor. E o silêncio entregou-lhe novamente.
  Fiquei incrédula quando vi sentado na ponta do sofá da sala de estar da minha tia, teclando na tela de seu celular. Ele parecia ainda mais irreal quando se comportava de um jeito tão normal. Balancei a cabeça de um lado para o outro como se isso fosse realmente me ajudar a clarear as ideias.
  - Oi. – cumprimentei-o insegura.
  - Ei! – ele disse surpreso guardando o iPhone no bolso e levantando-se.
  - Que surpresa você aparecer aqui... – comentei.
  - É... Desculpe vir sem avisar... – ele coçou a nuca, sem graça.
  - Não, está tudo bem. Eu estava desistindo de estudar química quando me disseram que você estava aqui me esperando. – falei e me sentei em uma das poltronas da sala indicando-lhe o sofá onde estava antes. – Quer beber alguma coisa? Refrigerante, suco, água...?
  - Não, não, obrigado. Na verdade, eu estava aqui por perto e queria te chamar pra dar uma volta comigo. Tipo, caminhar até a sorveteria... – sugeriu colocando as mãos nos bolsos ainda de pé diante de mim.
  - Tudo bem. – concordei.

  Nós andamos alguns metros sem dizer nada. A noite estava fresca, não exatamente congelante, como a maioria das vezes. Assim, observar os carros, sentir a brisa no meu rosto e apreciar o silêncio pareceu o melhor programa do mundo para mim.
  - Eu pedi a minha mãe para ver na escola o seu endereço pra mim. – disse corando.
  - Por quê? – perguntei rindo de nervoso.
  - Eu queria conversar com você. E a ou o fariam perguntas demais se eu pedisse a informação a um deles.
  - E a sua mãe não perguntou demais?
  - Ela vai perguntar, mas eu já aprendi como me esquivar dela. – ele respondeu preenchendo sua expressão com o sorriso lindo de tirar o fôlego que sabia esboçar.
  - Sobre o que exatamente você queria conversar?
  - Primeiro sobre o time de basquete.
  Ótimo, aquele era mesmo um assunto que ainda me atormentava.
  - Certo. Você já decidiu o que vai fazer sobre isso? – perguntei casualmente, imaginando que dessa forma ele não desistira de falar a respeito.
  - Eu realmente estava... Ou estou relutante sobre aceitar. – admitiu.
  - E existe um motivo pra isso?
  - Rotular, . As pessoas adoram usar rótulos. Todo colégio tem os populares, os nerds, os artísticos que fazem teatro, tocam ou cantam... Os auto isolados, os atletas... – ele suspirou. – E se eu aceitar entrar para o time, eu vou receber um rótulo automaticamente. Daí também vem a pressão. Eu adoro jogar basquete, assim como adoro andar de skate, jogar baseball, nadar ou até ver TV e jogar videogame. Se eu entrar para o time, virão os treinos regulares aos quais eu serei obrigado a ir. E eu não vou jogar simplesmente porque gosto. Eu vou jogar para cumprir uma obrigação.
  - Você fala como se já tivesse feito parte de algum time antes.
  - Eu fiz, quando eu morei em Nova York. Eu acabei desistindo no meio do campeonato e atrapalhando o resto da equipe. E eu simplesmente não posso cometer o mesmo erro de novo. Seria muito egoísta da minha parte dar a minha palavra aos caras, e pisar na bola, no final das contas. – ele falou e levou as mãos aos cabelos, bagunçando-os mais ainda. O visual ficou mais perfeito, se é que isso era possível.
   era tão imprevisível e contraditório quanto possível. Eu jamais diria que ele ficaria em dúvida por alguma coisa pensando no bem do próximo. Isso não parecia combinar nem um pouco com o estilo de garoto revoltado que foi expulso de várias escolas para pirraçar os pais. Novamente, a teoria de que ele tinha algum distúrbio de personalidade pareceu explicar muita coisa.
  - Posso ser bem sincera? – perguntei depois de alguns segundos em silêncio pensando em tudo o que ele acabara de me dizer.
  - Deve ser. Por favor.
  - Você tem sérios problemas com compromissos. – soltei sem pensar muito em como a frase soaria. deu uma gargalhada.
  - Ok, você conviveu comigo alguns dias e já está falando como eu. Quero dizer, isso parece o falando da no meu primeiro dia de aula na sua escola. “Você é muito estressada”. “Você tem sérios problemas com compromissos”. Somos farinha do mesmo saco, ! – Ele estava tão certo, que eu também ri.
  - Desculpe. Mas é sério. Ou parece ser. Eu entendo que você não queira repetir o mesmo erro de antes, deixando seus colegas na mão. Mas isso só depende de você. – falei. – Sabe o que eu gosto de fazer antes de decidir qualquer coisa?
   arqueou as sobrancelhas, me incentivando a continuar.
  - Colocar na balança as vantagens e as desvantagens que virão com cada decisão. O que pesar mais, vence.
  - Bastante previsível. – ele disse fazendo uma careta.
  - Garoto, eu pensei que eu fosse complicada, mas você... – nós dois rimos. – Acho que o seu problema é que você gosta de complicar o que não é complicado, e o meu problema é que eu já tenho as complicações de natureza.
  - Ok, agora você vai me explicar por que se diz tão complicada. – disse decidido parando diante de mim com os braços cruzados e me impedindo de continuar andando.
  - Você não vai querer saber. – respondi contornando-o para continuar a caminhada.
  - Deixa que eu decido isso, pode ser? – ele falou plantando-se no meu caminho de novo.
  E então eu lhe contei parte da história. Contei que eu era da Carolina do Norte e morava em Seattle com a minha tia, que ficou com a minha guarda quando perdi minha família em um acidente de carro.
  - Tudo mudou, sabe? Não só viver em outra cidade e apenas com a minha tia. Eu era a Georgia Wilson do meu colégio. Na verdade, eu era pior que a Georgia lá porque a escola era menor, então bancar a rainha de todos era mais fácil. Meu namorado era estilo Trevor, ou também pior porque o Trevor parece se importar com algo além dele mesmo. E eu desprezava quem tivesse o estilo que eu tenho agora. Acho que depois de tudo o que aconteceu, eu só quero que tudo seja diferente mesmo. – confessei.
  - Você se culpa por não ter morrido também?
  - Sim... Mas você acha que eu deveria me sentir assim? – perguntei surpresa. Quando escutavam a minha história, a maioria das pessoas me dava tapinhas nas costas de condolências e dizia que eu era uma vítima. Na minha mente, é claro que essas palavras não faziam o menor sentido. Que vítima tem a sorte de não estar com a família num acidente que mata a todos, sobrevive a um atropelamento com apenas algumas cicatrizes e vai morar com uma tia super tranquila e rica, logo depois disso? Não, eu não era nenhuma vítima.
  - Eu me culparia por não estar com eles. – deu de ombros.
  - Bom, eu tenho reais motivos para me culpar. Era aniversário da minha bisa, e meus pais viajaram para visitá-la. Eu não fui porque era a final do campeonato de basquete e eu era animadora de torcida. Além disso, eu briguei com o meu namorado na festa de comemoração e pedi ao meu pai que voltasse naquela noite... Daí eles receberam no caminho também a notícia de que eu fui atropelada, porque eu fui estúpida o bastante para conseguir isso também, e... Enfim, eles realmente morreram por minha culpa.
  Foi impossível impedir que as lágrimas jorrassem pela minha face conforme eu dizia essas coisas. As memórias que eu tinha de tudo isso eram tão reais e vívidas para mim quanto aquela conversa com , a poucos metros da casa de tia Sabrina.
  Um flash de nós dois abraçados na calçada foi o que me fez perceber que estava me abraçando. A sensação de seus braços ao meu redor fez com que o peso da culpa quase desaparecesse, e um alívio inexplicável preencheu minha mente naquele momento. Precisei reprimir o impulso de agradecê-lo por fazer aquilo.
  - Tragédias acontecem, . Se foi uma negligência do seu pai, você poderia culpá-lo pelo acidente também. Ou se foi negligência de outra pessoa na estrada, essa pessoa quem teria a responsabilidade. Foi simplesmente uma tragédia, e eu tenho certeza de que se a sua família pudesse dizer algo a respeito, eles diriam que estão felizes por você ter sobrevivido, ao invés de colocar a culpa em você por não estarem mais entre nós. – disse e afastou-se de mim segundos depois, quando percebeu que eu estava mais calma. Ficamos em silêncio por alguns minutos até que decidi voltar ao assunto que discutíamos antes.
  - , você disse hoje mais cedo que explicar sobre porque você não queria entrar para o time era complicado da mesma forma que é complicado dizer por que você me detestou quando me conheceu. Eu ainda não entendi o que você quis dizer com isso. – falei enxugando o meu rosto com as mangas da blusa de frio fina listrada que estava usando.
  - Eu tenho, sei lá, um “sexto sentido” muito desenvolvido. – ele fez as aspas com as mãos e riu, como se aquelas fossem as únicas palavras que tivesse encontrado, mas ele não as considerasse muito apropriadas. - Por exemplo, eu tenho a sensação de que uma pessoa é interessante e agradável assim que coloco os olhos nela. Ou que ela é horrível, e eu preciso manter distância. É como você ter um pressentimento ruim... Com certeza é alguma coisa da minha personalidade estranha. O que eu sei é que é difícil não dar ouvidos a isso, sabe? É claro que é um péssimo hábito sair por aí julgando os outros antes de conhecê-los. Isso não foi mesmo justo com você.
  - É, isso é mesmo um pouco complicado. – admiti.
  - Eu vou precisar ignorar o que grande parte da minha mente diz sobre entrar para o time de basquete para conseguir fazer isso. Assim como precisei que você jogasse na minha cara que eu estava sendo preconceituoso para começar a te tratar como deve ser. – ele completou com a expressão preocupada.
  - Mas pense bem: assim como você estava errado sobre mim antes, pode ser que esteja errado sobre fazer parte do time agora. Pense em como você vai ajudar os outros garotos, passar mais tempo com gente nova, e quem sabe ensinar para aqueles meninos que o importante é gostarem de jogar também, não simplesmente vencer. – incentivei-o afagando o seu ombro. A imagem que apareceu no flash daquela vez foi de nós dois saindo de algum lugar rindo, como se estivéssemos num encontro. Corei instantaneamente e retirei a mão por reflexo. Felizmente, não pareceu perceber isso.
  - Sabe que você pode estar certa?! – ele disse relaxando o rosto em um sorriso leve.
  - Viu como eu realmente não sou tão ruim assim? – eu sorri em resposta.
  - Não é mesmo. – falou me encarando. Meu coração bateu mais rápido e mais forte dentro do peito instantaneamente. – Bom, acho que já chegamos à sorveteria. – ele apontou o local, e eu fiquei realmente surpresa por ter andando aquela distância em tão pouco tempo. Ou pelo menos pareceu pouquíssimo tempo para mim.

  Fiquei ansiosa por adormecer aquela noite, para descobrir o que se passara na cabeça de durante nossa longa conversa. No entanto, o sono fugiu de mim de todas as formas possíveis e não consegui sequer cochilar durante toda a madrugada. Levantei-me de manhã transbordando de mau humor, com a cabeça explodindo de dor e tão cansada como se tivesse corrido uma longa maratona sem pausa para descanso.
  Eu dirigia por reflexo para a casa de , tentando convencer a mim mesma de que talvez, por algum motivo, eu não devesse descobrir o que pensou sobre mim na noite anterior. Talvez houvesse alguma explicação estranha para isso também. Ou talvez eu só estivesse tão ansiosa para sonhar com os pensamentos dele que não consegui acalmar meu cérebro o bastante para relaxar e dormir. Bati as mãos no volante com raiva de mim mesma por isso, e então, como se eu tivesse força suficiente para estragar meu carro com um gesto tão simples, o veículo deu um solavanco e apagou. Girei a chave na ignição tentando forçar o motor a ir adiante, mas não adiantou – o carro tremeu embaixo de mim e morreu de novo. Repeti a mesma ação várias vezes, mas o resultado continuou o mesmo.
  Isso não fazia o menor sentido! Meu carro só tinha um ano de uso e nunca me dera trabalho antes! Fechei os olhos e me recostei no banco repetindo para mim mesma que aquilo não era verdade. Passei alguns segundos naquela situação e então começaram a buzinar para mim na rua. Saí do veículo e bati a porta com força atrás de mim. Peguei meu celular no bolso e tentei acender a tela, mas não deu certo também. Excelente! Para completar, eu ainda estava sem bateria!
  Eu não queria abandonar meu carro sozinho na rua e andar de volta para casa, mas não consegui pensar em outra saída. Assim, abri a porta de trás da Mercedes para pegar minha mochila e dei uma última olhada para o carro, como um gesto de despedida.
  - Ei, moça! – Um rapaz me chamou fechando a porta de seu próprio veículo. Ele havia encostado seu carro próximo à calçada atrás de mim e andava na minha direção. – Seu carro estragou? Precisa de ajuda? – ele perguntou parecendo realmente preocupado comigo.
  - Pois é, eu não sei o que houve... Ontem estava tudo normal e hoje ela simplesmente resolveu empacar comigo no meio da rua. – respondi fitando minha Mercedes com pesar.
  - Ela? – o rapaz perguntou e riu. Eu sorri em resposta. – Você já ligou para algum reboque? Eu tenho alguns telefones no meu porta-luvas, se você precisar.
  - Na verdade, eu aceitaria seu celular emprestado. O meu está descarregado. – sorri amarelo.
  - Caramba, isso que eu chamo de falta de sorte! – ele disse impressionado. Bom, isso porque ele não conhecia a história da minha vida...!
  O garoto, que não parecia muita coisa mais velho do que eu, pegou seu telefone e me entregou.
  - Acho que tem alguns números de reboque na memória também. – falou.
  E foi enquanto eu vasculhava os contatos do celular dele procurando o telefone de alguma rebocadora que realmente prestei atenção aos seus pensamentos. As outras pessoas que passavam ao redor haviam me distraído do fato de que o garoto estava interessado demais em mim – ele não estava sendo apenas educado. Isso me constrangeu tanto que senti minhas bochechas esquentando.
  Coloquei o aparelho no ouvido e, enquanto chamava, o garoto pensou que estava atrasado para a escola e conferiu as horas em seu relógio de pulso. Ele calculava mentalmente quanto tempo demoraria para chegar no colégio e... parecia ser a mesma distância que eu estava da Seattle South High! Será possível que...
  - Max Reboques, bom dia! – a voz do outro lado da linha interrompeu meus pensamentos.
  - Bom dia! Eu gostaria de pedir um reboque para uma Mercedes sedan CLS 63... – Passei as informações para o atendente sobre a localização do carro e ele anunciou que eu precisaria estar no local para acompanhar o veículo e informar para qual mecânica ele deveria ser levado. – Certo, eu vou deixar as chaves do carro e os documentos com um empregado.
  - Então em até trinta minutos um carro de reboque chegará ao local, senhorita.
  O atendente pegou, por fim, meu nome, telefone, a placa do carro e me passou o valor do serviço.
  - Ei! Aqui... – chamei o garoto que ainda me encarava a alguns passos de distância.
  - Caleb. Caleb Aldrin. – ele disse seu nome com um sorriso.
  - Certo, Caleb. Obrigada por me emprestar seu celular. E será que eu posso me aproveitar da sua boa vontade e fazer mais uma ligação? – pedi sorrindo sem graça. Eu havia me esquecido completamente como seduzir garotos para convencê-los a fazer minhas vontades, e se soubesse que precisaria recorrer a isso, teria escolhido roupas mais atraentes que uma calça jeans branca, sapatilhas e um bolero também branco sobre uma camiseta rosa.
  - É claro! – ele respondeu e seus pensamentos pareciam indicar que eu fui charmosa o suficiente.
  Liguei para tia Sabrina e ela pegou o endereço de onde eu estava para enviar um funcionário de sua empresa de advocacia para deixar meu carro em alguma mecânica.
  - Obrigada pela ajuda, Caleb. – passei o telefone para o rapaz me lembrando que tinha uma prova de química que começaria dentro de poucos minutos e que eu ainda não sabia muito bem como chegaria à escola à tempo. – Desculpe se eu te atrasei para a faculdade. – emendei sem graça.
  - Eu ainda estou no High School. Faculdade só no ano que vem. – ele respondeu.
  - É mesmo? Em qual colégio você estuda?
  - É meu primeiro dia na Seattle South High School. – Caleb disse.
  - Caramba, esse mundo é muito pequeno! – fingi estar extremamente surpresa. – Eu também estudo lá!
  - Jura? – ele perguntou realmente impressionado com a coincidência. – Bom, se você quiser uma carona para não perder as aulas de hoje... – ele comentou exatamente o que eu esperava e queria que dissesse.
  - Não vou mesmo abusar muito da sua educação? – perguntei piscando os olhos e sentindo-me ridícula por isso.
  - Claro que não! – ele respondeu sinceramente, e eu sabia que ele realmente estava lisonjeado por me levar à escola porque eu podia ouvir seus pensamentos super empolgados.
  - Obrigada, Caleb. Ah, e eu me chamo . . – estendi a mão para ele imitando sua forma de dizer o nome. Caleb sorriu de orelha a orelha e pensou algo como “Putz, como eu sou sortudo!”.

14. Mal entendido

  Caleb parou seu Audi R8 ocupando duas vagas no estacionamento da escola. Se eu não tivesse passado os últimos cinco minutos conversando com ele, diria que o garoto é um otário, espaçoso e egoísta. Neste ponto eu era obrigada a concordar com : nós somos farinha do mesmo saco. Eu também sabia formar opiniões bem sólidas sobre as pessoas antes de realmente conhecê-las. É claro que eu podia ouvir o que estavam pensando, e isso tornava até inevitável não julgar os outros. Mas ter a habilidade de invadir a privacidade mental das pessoas realmente me dava esse direito? Não, eu sabia muito bem que a resposta a essa pergunta era não.
  - Obrigada de novo pela carona, Caleb. – eu disse antes de sair do veículo.
  - O prazer foi todo meu, . – ele respondeu sorrindo. Fiquei grata por não poder escutar o que ele estava pensando não apenas porque era um alívio ser normal por alguns instantes, nem porque isso significava que -Lindo- estava por perto, mas porque o olhar do garoto não sugeria pensamentos muito puros.
   e estavam no estacionamento, a alguns metros de distância de onde Caleb parou seu carro, então assim que desci do veículo do novato, eles correram na minha direção.
  - , onde você se meteu? Estou te ligando há horas! – perguntou me abraçando.
  - Pois é, você arranjou um namoradinho pra te trazer e decidiu nos deixar na mão simplesmente? – questionou sem preocupar-se em falar baixo e quase devorando Caleb com os olhos.
  - Eu não deixaria de buscar vocês sem avisar, . – citei o óbvio. - O problema foi que meu carro estragou no meio do caminho pra casa do e meu celular está descarregado. Aí por acaso o Caleb estava passando e me ajudou emprestando o telefone dele e me trazendo pra escola. É o primeiro dia dele aqui.
  - Puta merda, que sorte a sua, menina! – sussurrou para mim com uma expressão maliciosa na face.
  - Meu carro estraga no meio da rua, meu celular fica sem carga simultaneamente e eu sou sortuda?! – perguntei ultrajada.
  - Você foi resgatada por um príncipe encantado, então eu diria que é mais do que isso. – completou e dirigiu-se para Caleb, cobrindo-o de atenções.
  Eu observava sem piscar caminhando para onde meu pequeno grupo de amigos e eu estávamos. Ele transformava até o estacionamento simples e entediante da escola em um lugar interessante e bem habitado. E então, quando cumprimentou Caleb com um soco no ombro, demorei alguns minutos até assimilar os fatos: os dois conversavam como se fossem amigos de infância.
  - Pensei que você fosse ficar em Londres até o final do semestre, seu viado! – disse sorrindo da forma mais descontraída que eu já havia visto até então. E o sorriso era o mais bonito do mundo.
  - Meu pai teve que voltar para os Estados Unidos antes do planejado. Ele disse que os negócios precisam de mais atenção aqui, essas coisas. Aí eu consegui convencê-lo a me deixar estudar aqui também. – Caleb respondeu. , e eu observávamos a cena apenas tentando entender o que estava acontecendo.
  - E por que você não me avisou antes que tava vindo pra cá? – perguntou.
  - Foi tudo muito rápido, cara. Nem deu. – Caleb disse simplesmente.
  - Um pouco de contexto seria bom, galera. – comentou.
  - Gente, esse é o Caleb. Nossos pais são amigos, então nos conhecemos desde crianças. – disse com um sorriso.
  - Eu sou , mas me chame de . Seja bem vindo, Caleb. – falou abraçando o garoto rapidamente.
  - Eu sou o . – meu melhor amigo se apresentou, e eu sabia o quanto ele estava se segurando para não abraçar o menino assim como havia feito.
  - se enturmou rápido nessa escola. Talvez seja porque não tem a Jennifer escolhendo amigos por você desta vez, né, cara? – Caleb brincou.
  Aquilo me incomodou profundamente de alguma forma. É claro que eu não sabia nada sobre a tal Jennifer, além de que era a ex-namorada de e que o relacionamento dos dois não terminou muito bem. Talvez eu descobrisse mais a respeito dela se perguntasse ao Caleb quando estivéssemos bem longe do amigo dele... Ou talvez eu devesse simplesmente largar essa obsessão idiota relacionada à vida de de lado. Eu definitivamente precisava parar com isso. Não ler pensamentos é uma coisa boa, e, embora eu não pudesse me acostumar a essa realidade, eu devia aprender a conviver com ela enquanto existisse. e eu perderíamos contato no instante que cada um pegasse seu diploma, e eu voltaria a ter perturbação mental de novo. E, por menos que eu quisesse admitir isso, pensar em me afastar dele me deixava deprimida demais para ser saudável.
  - Ok, ok, vocês conversam melhor na hora do almoço. Vou te mostrar onde fica a diretoria. – disse, e ele e Caleb murmuram um “até mais tarde” antes de se afastarem.

   e foram me buscar na Educação Física aquele dia. Caleb também fazia aquela matéria comigo, e, pelo que vi durante a aula, ele era quase tão bom atleta quanto . No entanto, Caleb não ficou o horário inteiro jogando basquete com o time da escola. Depois de quinze minutos de um jogo, ele foi até a quadra de vôlei e jogou junto com os mortais, obedecendo às ordens do professor e tudo mais.
  - Caleb Aldrin é meu. – disse assim que saí do vestiário como se estivesse me avisando de alguma coisa.
  - Ok, . – respondi levantando os braços como quem se rende.
  - Cara, por que eles não podem ter um amigo gay? – reclamou fazendo bico. – Depois vocês mulheres dizem que os caras mais gatos são homossexuais. Eu até hoje não cruzei com nenhum desses! – Ele cruzou os braços sobre o peito.
  - , você é um dos caras que chamamos de desperdício. – eu o lembrei rindo do comentário.
  - Verdade, . Eu mesma pensei em tentar pegar você quando te vi pela primeira vez aqui no colégio. Mas aí você rebolou mais do que eu quando andou até o bebedouro, e eu vi que não teria chances contigo. – disse. transformou o bico de desapontamento em um bico de charme e passou as mãos pelos cabelos da forma afetada que sempre me arrancava risadas. – E agora mesmo se você trocar de time, acabaram suas chances comigo. Eu encontrei minha metade da laranja, gente! – disse empolgada elevando a voz algumas oitavas. – Caleb Aldrin é o genro que minha mãe pediu a Deus. Cabelos pretos, olhos verdes incríveis, cerca de um metro e oitenta e corpo atlético. Além, é claro, de dinheiro para distribuir e jogar de aviãozinho igual o Silvio Santos. Eu googlei o garoto durante a aula de Artes e, adivinha só, ? O pai dele é CEO de uma das maiores companhias do país. Tem empresas de tudo quanto é tipo. Eu sabia que era amor à primeira vista quando o vi... – ela completou com os olhos brilhando.
  - Se eu fosse você, eu ia com calma, . O garoto tava quase comendo a com os olhos hoje no estacionamento. – comentou.
  - Caralho, . Você sempre vem com essa! A não é o umbigo do mundo. Eu sou bonita e interessante também, poxa.
  - Calma, , eu não quis dizer que você não é. Deixa de ser infantil, e abra seus olhos. Eu só citei o óbvio, e não venha falar que você não tinha percebido. E tem mais: esse tal Caleb tem um rostinho tão bonito quanto safado. – disse nervoso.
  - Galera, vamos parar de brigar sobre um menino que nem conhecemos a metros de distância do vestiário onde ele deve estar tomando banho para ir almoçar. – pedi diminuindo o tom de voz. Com sorte, Caleb não teria ouvido a última frase de e conseguiríamos sair dali antes que ele aparecesse.
  - Você tem Educação Física junto com os dois gostosos da escola? – perguntou aos berros.
  - Vamos almoçar antes que “os dois gostosos” apareçam e vejam o quanto vocês conversam sobre eles? – implorei e arrastei aqueles dois loucos atrás de mim.

  - E então, , já se recuperou da surra que levou do meu time no vôlei hoje? – Caleb perguntou sentando-se à mesa ao meu lado. estava sentado do meu outro lado, de modo que se acomodou em uma cadeira na minha frente, e teve de ficar ao lado dele, na frente do novato “amor de sua vida”.
  - Surra? Quem marcou o placar? Até onde eu me lembro, ninguém. – respondi e mordisquei minha maçã.
  - Você não jogou basquete com o time, Caleb? – perguntou medindo cada ação do garoto.
  - Alguns minutos. – ele deu de ombros. – Não tenho interesse em jogar pra valer nas competições e tal.
  - Por quê? – foi a minha vez de perguntar.
  - Não quero roubar o brilho do dessa vez. – ele piscou para mim.
  - Vai tomar no cu, Aldrin. – disse e mordeu sua pizza. Reprimi uma risada.
  - Sério, Caleb, qual é o problema? Não aguenta a pressão? – questionei encarando Caleb e arqueando as sobrancelhas. Ele deu um sorriso safado para a minha expressão, e imaginei o quanto me custaria convencer a depois de que não estávamos flertando.
  - Quando você vai fazer o teste para o time, ? – Caleb perguntou desviando seu olhar para o amigo.
  - Segunda à tarde.
  - O que eu faço para participar também? - o novato questionou, mas não respondeu. Alguma coisa na expressão dele fez com que Caleb também não dissesse mais nada, e o clima na mesa ficou mais pesado do que o tempo em Seattle no período mais rigoroso do inverno. Certo, não poder saber o que eles estavam pensando era pior do que ter a escola inteira berrando dentro da minha cabeça. Eu escutaria os pensamentos de Georgia Wilson e de suas amiguinhas pelo resto da eternidade para conseguir saber o que aquela expressão de e o fato de Caleb ter ficado calado significaram. Mas, infelizmente, não era algo que eu pudesse escolher.

  Quando o sinal tocou liberando os alunos para irem para casa, lembrei-me que eu estava sem veículo. Meu celular descarregado impedia que eu telefonasse para algum táxi, mas eu apostava que havia alguma rua onde poderia pegar um próximo ao colégio.
  - Querem dividir um táxi, gente? – perguntei à e , que já me esperavam no estacionamento movimentado.
  - O deu carona pra gente na vinda. Vamos ver se ele faz isso de novo na volta. – respondeu procurando dentre a multidão de alunos que apinhavam o local.
  - Ou nós podemos pedir carona ao Caleb... – sugeriu sorrindo.
  - , sossega o faixo. O garoto vai achar que você é uma desesperada se você continuar se comportando dessa forma. Acredita que ela saiu da carteira dela na aula de Biologia I para ir até a carteira do menino pra perguntar se ele vai à festa no sábado? – me contou com uma expressão bem “vergonha alheia”.
  - E o que ele respondeu?
  - Siiiiiim! – anunciou saltitante.
  - Na verdade, ele respondeu “Depende, a vai?”, e aí ele respondeu “Siiiiim”. – falou imitando o jeito de dizer “sim”. Não sei se foi o que disse ou o fato dele ter copiado o gritinho chato de que fez com que ela o fuzilasse com os olhos, mas, de qualquer modo, ele não pareceu se importar com isso. Felizmente, apareceu logo em seguida perguntando se estávamos esperando carona para casa.
  - Você quer que eu te deixe em casa também ou vai esperar o Caleb voltar da secretaria, ? – ele perguntou de uma forma tão casual que até pareceu forçada.
  - Se você não se incomodar em me dar carona também, eu aceito. Não combinei nada com o Caleb. – respondi e recebi um olhar aprovador de .
  - Então vamos embora. – disse sorrindo para mim de uma forma quase tão parecida quanto a de .

  O dia tão ansiado pelos meus dois amigos favoritos finalmente chegou – a bendita festa de Richard Paxton. Meu carro ainda estava na oficina, mas tia Sabrina me deixou usar o dela. Eu teria me contentado com um dos veículos da empresa, no entanto ela insistiu tanto que não pude negar a oferta.
  - Você raramente vai às festas dos seus amigos, e eu sei que a maioria deles são bem abastados. Causar uma boa impressão nunca faz mal... Além disso, eu só vou ao SPA hoje. Tenho alguns casos complicados para estudar esse final de semana. – minha tia falou fazendo de tudo para me agradar, como sempre. Novamente me perguntei como alguém poderia me considerar uma vítima.
  Eu havia combinado com que o buscaria às onze, então às nove horas pulei da cama e fui escolher o que usaria. Era um dos poucos dias ensolarados em Seattle, e como Richard morava próximo à praia, imaginei que seria uma boa ideia ir até lá ver as ondas quebrando contra as rochas. É claro que água ainda era gelada demais para que fosse inteligente entrar nela, mas expor um pouco de pele não pareceu uma má ideia. Assim, peguei um biquíni florido no busto e com a parte de baixo em apenas um tom de rosa; coloquei uma canga branca e uma tolha dentro da bolsa junto com um vestido verde também florido, um par de sandálias baixas e um par de chinelos. Reservei o chapéu de praia de lado – ele iria para a minha cabeça assim que eu saísse do carro – e enchi a bolsa com protetor solar para o corpo e facial, creme hidratante para o corpo e creme de pentear para os cabelos, um desodorante, escova de cabelo e brilho labial. Eu escolhia o que vestir para usar na ida quando meu celular tocou.
  - Oi, . – atendi empolgada demais para quem se recusara a ir naquela festa com tanta veemência antes. Eu precisava admitir: saber que estaria por lá e que eu poderia socializar normalmente com pessoas da minha idade sem sentir vontade de explodir meu cérebro por não aguentar mais ouvir tantos pensamentos estúpidos me deixava feliz, fazia com que eu me sentisse bem. Eu sabia que não merecia isso, que sofrer pelo resto da vida devia ser minha recompensa por todos os pecados que cometi, por minha família estar morta por minha causa. No entanto, eu sentia falta dessa normalidade, de ser simplesmente uma adolescente vendo o mar e tomando refrigerante com os amigos.
  - Estamos chegando na sua casa agora. – meu melhor amigo disse. – Na verdade, estamos no táxi saindo da casa da .
  - Ué, pensei que eu quem fosse buscar vocês.
  - Eu quero escolher as suas roupas e a quer assaltar o seu closet. – ele respondeu. – Só pra lembrar: não adianta reclamar que quem manda no que você veste hoje sou eu. Quero babando feito um retardado quando te vir.
  Eu ri alto. Pensei em protestar e dizer que não tinha interesse nenhum em aparecer para , mas nem me dei o trabalho.
  - Ok, ok, , o Caleb também vai ficar passado quando te vir, juro. – murmurou do outro lado da linha. – Anyway, diva, já já baixamos aí na sua porta. Prepare-se para arrasar. Beijo!
  - Beijo! – respondi ainda entre risadas e fui esvaziar a bolsa de novo. com certeza seria muito mais ousado e criticaria minhas escolhas pelo resto do dia.

  Richard Paxton tinha uma casa incrível. Três andares enormes, duas piscinas perfeitas e uma área de lazer digno de um clube excelente me explicaram por que todos na escola sempre falavam tanto sobre suas festas. Alguns garçons com roupas casuais, mas idênticas, serviam os convidados; três bartenders faziam manobras com as garrafas e bebidas no bar – tudo sem álcool, segundo o letreiro anexo próximo ao local. Além de tudo isso, a mansão dos Paxton ainda oferecia estacionamento e manobristas para posicionarem os carros ali.
  - Oi, pessoal. – Richard nos cumprimentou assim que entramos na área onde todos os adolescentes da escola que foram convidados se divertiam. Algumas pessoas já estavam dentro da piscina, as meninas da animação tomavam sol em um canto, alguns meninos do basquete jogavam sinuca enquanto outros se divertiam com um baralho. conversava com Caleb com a expressão não muito boa perto do bar e bebericava o que parecia um suco de morango, mas provavelmente era uma bebida mais elaborada. Seus lábios vermelhos fizeram com que minha imaginação fosse longe e precisou me cutucar para que eu percebesse que haviam me feito uma pergunta.
  - Hein? – perguntei distraída.
  - Esqueça. – Richard riu. – Sintam-se em casa.
  - Ok. Como eu estou? – assim que o anfitrião da festa deu as costas, perguntou ajeitando os cabelos pretos que caíam em ondas pelos seus ombros. Ela vestia um vestidinho vermelho de bolinhas brancas e uma sapatilha também branca. As unhas estavam impecavelmente pintadas também de vermelho e uma correntinha com o símbolo do infinito pendia de seu pescoço. Se tivéssemos perdido contato antes que ela transformasse o estilo, eu jamais a reconheceria. A com os olhos pretos, as unhas escuras, roupas também pretas e cheia de acessórios pesados se fora. E eu deveria admitir que gostava muito mais daquela antiga . Ela era muito mais autêntica e verdadeira quando era uma gótica sem esperanças de se tornar alguém popular. Sim, era bastante maldade da minha parte pensar dessa forma porque aquela antiga também era bem mais triste e deprimida. E exatamente porque ela e pareciam mais felizes agora que eram convidados para as festas que eu também estava ali, completamente deslocada no meio dos riquinhos do colégio.
  - Linda. – Caleb respondeu por ela fazendo dar um pulo de susto com sua aparição repentina, e, ao mesmo tempo, abrir o maior sorriso que era capaz de esboçar. – Vocês estão lindas. – ele completou me encarando.
  De repente, tive a impressão de que o decote do vestido azul florido que havia escolhido para mim estava grande demais.
  - Você gosta de dançar, ? – ele me perguntou.
  - Não realmente. – respondi. – Mas a adora.
  - Certo, vou pegar uma bebida pra você então. – ele disse como se eu não tivesse sugerido nada com relação à minha amiga e andou em direção ao bar deixando todos que ouviram o pequeno diálogo chocados. Pelo menos eu estava chocada.
  - Vou entrar na piscina. Você vem, ? – falou com a expressão chateada.
  Tive vontade de socar Caleb Aldrin no estômago! Como ele podia ser tão idiota e mesquinho? Essa é a recompensa por voltar para este círculo social, uma vozinha no fundo de minha mente sussurrou. E então, como não fazia há muito tempo, deixe que a raiva guiasse meus passos e fui atrás de Caleb. Puxei o garoto pelo braço e o arrastei para um canto mais reservado do jardim. Ele protestou algumas vezes sobre as minhas unhas estarem machucando o seu braço, mas ignorei as reclamações como se fosse um mosquito zumbindo no meu ouvido.
  - Qual é o seu problema? – cuspi as palavras na cara de Aldrin.
  - O quê? – ele perguntou assustado. – Não estou entendendo porque você está brigando comigo, anjo. – o garoto disse com a maior cara de pau do mundo. Respirei fundo e contei até dez na tentativa de manter a calma.
  - Caleb, eu não vou ficar com você nem que todos os seres humanos da Terra entrem em combustão e só sobre nós dois no mundo. Entendeu?
  - Por quê? Vai dizer que eu não faço o seu tipo? – ele questionou arqueando uma sobrancelha e se aproximando tanto de mim que eu podia sentir seu hálito de Sprite entrando pelas minhas narinas infladas de raiva.
  - Se você ainda não percebeu, e a não tem sido nada sutil ao demonstrar isso, a minha melhor amiga está a fim de você. Não estou mandando você corresponder às investidas dela. Você tem o direito de ficar ou não ficar com quem quiser. Mas, por favor, pelo menos não seja um otário. Eu sei que...
  Caleb interrompeu meu discurso com um beijo. Suas mãos firmes seguraram meu rosto e seus lábios macios foram pressionados contra os meus. Empurrei seu corpo com força para longe de mim, mas ele não parecia estar pretendendo me soltar tão cedo. Sua língua invadiu a minha boca e o gosto de limão do refrigerante me provocou náuseas. Mordi a língua de Caleb com tanta força que a única coisa que ele pôde fazer foi me largar e me encarar assustado. Fechei minha mão em um punho e soquei seu nariz com toda a força que consegui implicar ao gesto.
  - AI! – gritei de dor ao mesmo tempo que Caleb.
  - Você é louca? – ele perguntou limpando o nariz com uma mão. Era tarde demais, o sangue já estava pingando em sua camiseta branca.
  - Toque em mim de novo e você vai sangrar muito mais do que isso. – eu disse e saí dali disposta a desaparecer daquela festa de uma vez por todas.

  - , eu estou indo embora. – eu disse massageando meus dedos.
   virou-se para me encarar e então levantou a cabeça – ela estava deitada no colo de nosso amigo até então; seus olhos estavam cheios de lágrimas, o rosto vermelho como um tomate maduro.
  - O que houve? – perguntei assustada.
  - O que houve? – repetiu as minhas palavras com a voz embargada pelo choro, mas claramente cheia de ódio. – Eu vi você beijando o Caleb! – ela me acusou como se eu tivesse acabado de traí-la gravemente.
  - , o Caleb me beijou a força. Eu acabei de quebrar o nariz do garoto por isso! – Eu não podia acreditar que estava precisando explicar isso a ela! Qualquer um que visse a cena perceberia que o idiota me agarrou contra a minha vontade.
  - Eu vi vocês se beijando, ! Eu não sou burra! – gritou nem um pouco preocupada em armar um barraco. E deu certo: quase todo mundo da festa já estava se aproximando para conferir a discussão de perto.
  - Tem razão, você não é burra. Você é uma estúpida! – gritei de volta tentando calcular de quem eu sentia mais ódio naquele momento: de Caleb ou dela. - Uma idiota que só enxerga o que quer ver. Eu nunca beijaria o garoto de quem você gosta, !
  - Eu disse isso pra ela, , mas... – começou a dizer, mas eu o interrompi:
  - Não se dê o trabalho, . – falei cansada. - Amizade de verdade foi uma coisa que nunca existiu entre mim e a . – lancei um longo olhar desapontado para , que ainda me encarava como se fosse a maior vítima do mundo. – Quer saber? Eu vou embora. Peçam ao carona pra casa.
  Entrei no carro de tia Sabrina e fiquei aliviada quando os pensamentos de todas as pessoas em um raio de dois quilômetros invadiram a minha cabeça, afinal, assim eu não conseguiria pensar com clareza em tudo o que havia acabado de acontecer. De repente, aquele inferno todo provocado pelas mentes dos outros não parecia mais tão ruim.

15. Mudanças

  Dirigi a esmo sem saber realmente para onde ir. Eu já estava cansada de ficar afundada na minha cama com os fones de ouvido explodindo meus tímpanos, tentando respeitar a privacidade da minha tia e fracassando completamente quando o barulho até dos rocks mais pesados não era capaz de abafar seus pensamentos. Estava, talvez, mais exausta ainda de olhar para o teto do meu quarto e procurar uma forma de tocar a minha vida sem tantos fantasmas de assombrando. Por que eu simplesmente não tinha coragem de me jogar de uma ponte? Morrer devia ser mais fácil, afinal.
  Parei o carro no acostamento perto de uma das tantas lojas Starbucks que havia na cidade; Seattle era o berço da rede de cafeterias. Pensei em comprar um cappuccino ou algo mais elaborado, mas meu estômago ainda estava dando voltas por causa do beijo nojento de Caleb. Lembrar-me disso me fez concluir que qualquer coisa que deixasse outro gosto na minha língua seria bem vinda, ainda que isso fizesse o enjoo aumentar.
  Sentei-me em um dos bancos de uma praça perto do Starbucks com meu copo de café na mão e deixei que os pensamentos das pessoas me distraíssem.
  Duas semanas para o casamento e eu ainda preciso perder cinco quilos. Jamais entrarei naquele vestido de noiva desse jeito! – Uma moça que parecia quase da mesma idade que minha tia pensou. Ela trajava roupas de academia e corria em um ritmo constante; a expressão estava fechada em uma carranca de seriedade. Quem dera todas as preocupações do mundo fossem essas!
  Um casal de idosos conversava sobre o clima com um pipoqueiro a alguns metros de distância de mim. O vendedor de pipocas sim estava preocupado com coisas relevantes. Ele se perguntava se teria dinheiro suficiente para comprar o leite de seus filhos pequenos no dia seguinte. No entanto, ele mantinha um leve sorriso no rosto e respondia educadamente aos senhores que insistiam que Seattle era muito mais fria vinte anos atrás.
  Eu precisaria ser um monstro para não jogar meu café fora e ir até lá comprar o máximo de coisas que o dinheiro que tinha no bolso pudesse pagar. De repente, comprar aquela bebida em uma multinacional que tornava seu dono milionário a cada dia pareceu o maior erro do mundo – todo o meu dinheiro deveria ter ido para aquele cidadão humilde que tentava ganhar o seu pão e o de seus filhos honestamente.
  - Oi. – cumprimentei o homem e sorri.
  - Olá. – ele sorriu em resposta.
  Olhei para tabelinha de preços pregada ao vidro e examinei a nota de dez dólares na minha mão. Daí, pedi uma pipoca grande, cinco doces e o restante do dinheiro em balas. Ele me olhou desconfiado, provavelmente perguntando-se para onde tanto doce ia se eu era tão magra, mas me deu todos os itens e agradeceu. Antes que os velhinhos me dessem uma lição sobre fracionar o açúcar desde jovem para não ficar diabética mais tarde – e, acredite, os pensamentos deles indicavam que estavam prestes a iniciar o discurso -, corri para o carro de tia Sabrina.
  Dirigi para casa ainda tentando não pensar sobre tudo o que havia acontecido, sobre o que as atitudes de significavam e o que eu faria com relação a ela. No entanto, por mais que eu me esforçasse para fugir do assunto, ele continuava voltando à minha mente e me deixando cada vez mais chateada e nervosa. Agora que o café já havia apagado o gosto de Caleb da minha boca, eu não tinha ódio dele mais. Aquele beijo repentino na verdade só havia servido para me lembrar por que eu mantenho distância dos garotos bonitos e ricos, com o ego maior do que seus próprios corpos. Além disso, os pensamentos dele haviam me avisado há bastante tempo sobre as possibilidades de aquilo acontecer. Como reagira à situação, no entanto, era completamente injustificável.
  Assim que entrei com o carro na rua de casa, o zumbido provocado pelos pensamentos de todas as pessoas ao redor desapareceu por completo. De repente, o único som que eu ouvia era a voz de Jason Mraz cantando I Won’t Give Up. Tive certeza de que estava mesmo por perto quando vi sua BMW parada no acostamento. Ele estava escorado na porta do motorista e analisava as chaves do carro como se nunca as tivesse visto antes. Coloquei o Porshe de tia Sabrina na entrada de veículos da casa, e assim que fechei a porta atrás de mim, me cumprimentou com um “ei” meio relutante.
  - Ei. – respondi. – Não esperava ver você aqui.
  - Eu te liguei algumas vezes, mas acho que você não estava prestando atenção ao celular. Aí resolvi passar aqui pra saber como você está. Sua tia disse que você ainda não tinha chegado, então eu decidi esperar por você aqui fora.
  - Obrigada pela preocupação, mas você pode ficar tranquilo. Eu estou bem. – eu disse e sorri. Eu ainda não tinha certeza se estava lisonjeada ou feliz por ele ter se preocupado comigo. Duas semanas atrás, conversar civilizadamente com ele era algo completamente improvável; tê-lo na porta da minha casa agora, interessado em como eu me sentia, era tão estranho quanto bom.
  - O nariz de Caleb não sofreu grandes danos, se você quer saber. – comentou sorrindo.
  - Que pena. – falei provocando-lhe uma gargalhada. - Você levou a e o para casa? – perguntei. Eu ainda não havia conseguido concluir se havia acabado com a festa para eles também ou se a vontade dos dois de manterem relações com os “populares” era tão grande assim.
  - Na verdade, eles continuaram na festa. Eu levei o Caleb ao hospital e ele também voltou para a casa do Richard depois disso. Daí, eu vim até aqui para tentar encontrar você. Ah, o disse que passa aqui mais tarde.
  Suspirei pesadamente. tentaria concertar tudo entre mim e , como sempre fazia. Mesmo que ela jamais me pedisse desculpas e deixasse claro para ele que nunca faria isso, juraria para mim até a morte que estava completamente arrependida, mas não sabia expressar isso direito. Eu aceitei essa explicação esfarrapada por muito tempo, e talvez meus erros com relação a ela tivessem começado aí.
  - Você não está com raiva do Caleb, nem nervosa pelas coisas que aconteceram. – afirmou.
  - Não estou mesmo. – respondi. Andei até a calçada da casa de minha tia e sentei-me ali, colocando o vestido entre as pernas para ficar mais confortável. – As atitudes do Caleb fazem sentido. Ele é totalmente aquele cara otário que sai pegando o que quer, sem saber se vai passar por cima da vontade de alguém pra isso. Até hoje tem dado certo, por isso ele não muda de atitude. Mas a ... Colocar a culpa em mim para continuar acreditando que o Caleb é o príncipe encantado dela foi a gota d’água.
   sentou-se ao meu lado na calçada, e permaneceu calado por algum tempo. Era tão bom sentir a brisa leve do dia morno no meu rosto, o barulho dos passarinhos cantando em algum lugar e dos carros circulando pelas ruas. O cheiro de preenchia todo o espaço, e o cenário ficou ainda mais perfeito quando ele começou a falar – a voz dele era maravilhosa. me contou uma ocasião em que Caleb havia beijado a melhor amiga de uma namoradinha que teve há uns dois anos e as duas garotas saíram nos tapas por causa daquilo.
  - Foi engraçado na época. – ele riu. Eu ainda não sabia qual era o propósito dele com aquele papo, e esperei que ele dissesse mais alguma coisa, talvez alguma relação sobre o acontecimento e o que houve naquele dia. Mas ele ficou novamente em silêncio, deixando sua história sobre as galinhagens do amigo do ar simplesmente.
  - Eu não consigo entender como uma pessoa como você anda com alguém como o Caleb. – eu disse por reflexo. não parecia do tipo de garoto que fica com a amiga da namorada apenas para fazer com que as duas briguem por sua causa. Mas o que eu sabia sobre , afinal? Ele me confundia mais do que qualquer outra coisa ou pessoa na Terra, e lá estava eu formando opiniões sobre ele e determinando o que ele faria e com quem deveria andar ou não.
  - Uma pessoa como eu? – meus olhos estavam fixos em algum ponto aleatório no horizonte, mas eu podia sentir o olhar de fixo no meu rosto.
  - Você não parece ser do tipo de cara que trai a namorada com a melhor amiga dela para fazer as duas se matarem por sua causa. Aquela Jennifer, por exemplo... – mordi a língua quando percebi a besteira que acabei de dizer. Tudo o que eu sabia sobre Jennifer viera de um sonho que tive sobre os pensamentos dela e de enquanto os dois discutiam na festa de aniversário dele. O próprio jamais falara sobre ela comigo. Na verdade, o único comentário que escutei sobre a garota depois da festa foi quando Caleb falou dela.
  - O que tem a Jennifer? - ele perguntou, é claro. Revirei meu cérebro em busca de alguma coisa que eu pudesse falar para justificar as minhas palavras, mas nada inteligente me vinha à mente. – O que tem a Jennifer, ? – perguntou de novo.
  - Eu não sei muita coisa sobre ela. A sua mãe me disse que você não foi a razão para que vocês tivessem terminado, foi isso. – menti. Se ele perguntasse alguma coisa à professora Martha, eu definitivamente estaria ferrada. – Enfim, eu não consigo mais te enxergar com o bad boy metido, que brinca com as pessoas e só liga para o próprio umbigo. – completei com a mais pura verdade que eu podia formar sobre o assunto.
  - Quer dizer que você já me viu como o bad boy metido que brinca com as pessoas e só liga para o próprio umbigo? – ele perguntou com um sorriso na voz. Voltei meus olhos para o seu rosto e fiquei tonta, automaticamente. Os olhos castanhos dele tinham um brilho incrível e pareciam capazes de enxergar até o cerne da minha alma, embora o sorriso de seus lábios estivesse refletido em seu olhar e ele parecesse mais novo agora.
  - Sim. Mas agora eu acho que não parece que você vá aprontar tão gravemente na escola a ponto de ser expulso e tudo mais. – respondi quando consegui me lembrar de como se respirava.
  - Acho que você está certa. Eu não tenho mesmo vontade de fazer isso nessa escola. – ele disse. – Quem diria, hein? Minha mãe estava certa no final das contas. – sorriu e arqueou as sobrancelhas de surpresa.
  - Como assim?
  Ele voltou seus olhos para os meus e repetiu o que disse para os meus amigos logo que se mudou para o colégio – algo que me irritou profundamente na ocasião, mas me deixou a procura de significados agora:
  - Eu precisava mesmo conhecer pessoas diferentes.

  Depois da minha briga com , pensei que o resto do meu sábado seria um fiasco. No final, eu estava enganada.
  Almocei com num shopping próximo à minha casa, e, à tarde, ele me levou a um lasertag. Há tempos eu não me divertia tanto! Às sete da noite, estava parando na porta da minha casa, e eu sentia dor na ATM por ter passado o dia todo com um sorriso de orelha a orelha pregado na cara.
  - Muito obrigada, . Eu não me divertia assim há séculos!
  - Caralho, eu não sabia que você era tão velha! – ele disse fazendo uma careta de espanto e me fazendo rir alto de novo.
  - Temos que fazer isso mais vezes. – falei automaticamente.
  - Sim, nós temos. Se você concordar em usar uma identidade falsa, eu posso te levar num lugar onde atiramos em alvos, com aquelas armas cenográficas, sabe? Não é bala de verdade, mas é uma imitação bem bacana. – falou.
  - Ok, me ligue para avisar quando você puder. Você já tem meu telefone, certo?
  - É, eu precisei pegar com o hoje mais cedo pra vir ver você. – ele se justificou corando. Eu sorri em resposta.
  - Boa noite, . Obrigada de novo.
  - Boa noite. – ele respondeu e sorriu.
  Parecia que eu pisava nas nuvens, não na calçada da casa de tia Sabrina. Meu coração estava acelerado de empolgação há tanto tempo que tive medo de não conseguir acalmá-lo nunca mais.
  Quando entrei na casa de minha tia, tudo o que eu queria era chegar logo no meu quarto, tomar um bom banho e despencar na minha cama. Estava exausta e louca para sonhar com aquela noite. tocou no meu braço e nas minhas costas várias vezes durante a batalha de lasertag, além de termos nos esbarrado em algumas ocasiões. Os flashs sempre eram de nossas ações ou de suas estratégias no jogo, mas eu tinha certeza que conseguiria conhecer bastante coisa sobre ele se conseguisse sonhar. E eu estava tão exausta que aquela noite de sono certamente não me escaparia. Meus planos de dormir logo, contudo, foram frustrados quando me interceptou no meio da sala.
  - Onde você se meteu, mocinha? Eu te liguei o dia inteiro! – ele disse cruzando os braços diante de mim. Como se eu tivesse apertado um botão, seus pensamentos se acenderam instantaneamente. já devia estar a uma distância suficiente para não conseguir calar as pessoas mais.
  - Se você quisesse tanto assim falar comigo, deveria ter vindo aqui em casa. Mas parece que a festa do Richard era mais importante, né? – respondi passando por ele e subindo as escadas. poderia brigar comigo enquanto eu tirava aquelas roupas suadas.
  - Eu não vim aqui porque o disse que viria. Você estava nervosa demais para dar ouvidos ao que eu vou dizer, e eu pensei que ele poderia te distrair, pelo menos. – meu amigo se justificou enquanto eu tirava as sapatilhas.
  - É melhor você voltar depois então, porque eu ainda não estou bem o bastante para te escutar. – falei desabotoando o vestido e indo para o banheiro.
  - Você por acaso sabe o que eu vou dizer? – ele questionou me seguindo.
  - Você vai tentar me convencer de que a não fez nada por maldade. Vai dizer que alguém precisa ser madura nessa história, e essa pessoa só pode ser eu... Mas eu estou cansada disso, . Eu não nasci pregada na , então não é como se eu precisasse dela para viver. Sabe, eu estou farta de tentar passar por cima dos chiliques dela! Estou farta de perdoar uma pessoa que sequer tem a decência de se desculpar por duvidar de quem eu sou mesmo me conhecendo há tanto tempo. Uma pessoa que brigou comigo por causa de um riquinho filho da puta que ela mal conhece e já consegue chamar de “alma gêmea”. – desabafei.
   ficou em silêncio e a imagem de dançando com Caleb durante a festa de Richard surgiu em sua cabeça. Infelizmente, você não tem mesmo razões para perdoar a , . – Meu melhor amigo pensou pesaroso. Era tudo o que eu precisava para decidir definitivamente me afastar de . Havíamos chegado num ponto em que ela era tão boa companhia quanto Georgia e seu bando de amigas magrelas e metidas.
  - Eu não sei mais o que fazer com a , ! – jogou as mãos para o alto e voltou para o meu quarto, jogando-se na cama.
  - Deixe que a conviva um pouco com as consequências das atitudes dela, meu bem. – eu caminhei até ele e lhe dei um beijo no rosto. – Vou tomar um banho porque estou pregando de suor.
  - Sim, tome seu banho e corra aqui para me contar como foi o seu dia com o -Gostoso-! – ele disse batendo palmas de empolgação e, pelo visto, decidindo deixar minha briga com de lado por enquanto.
  - Como você sabe que nós passamos o dia juntos?
  - Eu mandei uma mensagem pra ele perguntando como você tava e dizendo que você não respondia as minhas mensagens e ligações. Aí o bonitão disse que tava “cuidando de você”. Bom, o Caleb foi útil, no final das contas. – piscou para mim sugestivamente. Senti minhas bochechas queimarem com o rubor.
  - Vou tomar banho! – anunciei e corri para o banheiro, sorrindo da mesma forma estúpida que fizera o dia todo e que ainda não conseguia evitar.

16. Aviso

  - Eu adoro comida japonesa. – disse quando nos sentamos à mesa do restaurante japonês mais digno da praça de alimentação do shopping próximo a casa dela. Sua expressão era semelhante ao de uma criança pequena diante de uma bandeja de doces.
  - Eu também adoro. Sabe, eu acho engraçado como nós, americanos, nos alimentamos muito mais do que os outros inventaram do que da nossa própria comida.
  - O tem uma ótima explicação pra isso. Ele sempre diz que a nossa comida engoooorda. – ela falou imitando ao dizer a última palavra. Nós dois rimos juntos da perfeição da imitação.
  O painel do restaurante indicou que nossos pedidos estavam prontos, o que fez bater palmas de animação. Se ela estava tão faminta quanto eu, certamente aquela não foi uma reação nada exagerada.

  Tirei meu pijama e entrei debaixo do chuveiro enquanto tudo o que eu havia sonhado durante a noite voltava à minha mente aos poucos. Se existia uma forma da minha imaginação adulterar os pensamentos de com relação a mim, eu não sabia e provavelmente jamais saberia dizer. Mas, no sonho, ele me enxergava durante a guerra de lasertag que travamos contra um bando de garotinhos e garotinhas de 13 anos exatamente como eu o via – como a pessoa mais linda e perfeita do mundo. Meu sorriso era tão autêntico, minha expressão tão feliz, que eu cheguei a ter dúvidas se aquela garota realmente era eu. Ela vestia as minhas roupas, tinha a minha pele, meus olhos, meus cabelos, meu nome... No entanto, aquela garota linda e verdadeiramente alegre não combinava com quem eu costumava ser, com quem eu me permitia ser. Quando eu estava com , eu me esquecia de ser amargurada com a vida, me esquecia de me privar de qualquer forma de felicidade por não me considerar merecedora sequer de ainda respirar. Ele fazia com que a culpa se tornasse parte do passado para mim, e era muito mais difícil não sorrir perto dele do que o contrário.
  Parte da minha mente disse que eu não merecia na minha vida – ele era tudo o que eu havia sonhado, e tudo o que eu não deveria ter. Mas eu sabia muito bem que ainda era egoísta o bastante para não me permitir tirá-lo do meu mundo mais.

***

  Os dias passaram rápido e devagar, ao mesmo tempo. Até que meu carro ficasse pronto – o que aconteceu na quarta depois da festa de Richard -, deu carona para mim e para até a escola. Na verdade, ele fazia questão de nos buscar em nossas próprias residências, e até deixava que escolhesse as músicas que ouviríamos durante a curta viagem.
   sequer olhou na minha cara na hora do almoço, e se isolou em uma mesa com Caleb, Richard, dois garotos do basquete, Georgia e algumas animadoras de torcida – as mais insuportáveis, diga-se de passagem. Assim, minha mesa durante os trinta minutos de lanche passou a ser ocupada por mim, , , Trevor e duas ou três outras pessoas que mudavam de lugar todos os dias.
  As aulas de química tornaram-se muito mais divertidas a partir de então. , além de ótimo atleta e um aluno bastante inteligente – ele estava avançado em várias matérias por causa dos outros colégios que havia frequentado antes da Seattle South High -, também era um excelente desenhista, e fez com que eu passasse vergonha na sala com repreensões do professor várias vezes – ele me mostrava as caricaturas que fazia das pessoas que eu detestava, e eu simplesmente não conseguia evitar as gargalhadas.
  Assim, uma semana se passou, e eu me sentia muito mais feliz do que pensei que seria capaz algum dia.
  - ? – me chamou enquanto eu abria a porta do carro. Estávamos revezando na carona do até que os treinos de começassem e e eu decidíssemos se entraríamos para alguma atividade extracurricular. Naquele dia, meu melhor amigo voltaria com para casa, e ele já estava dentro da BMW fuçando freneticamente o som.
  - Oi? – respondi depois de jogar minha mochila no banco do carona.
  - Vai fazer alguma coisa amanhã? – ele perguntou coçando a nuca de constrangimento. De alguma forma, ele ficava ainda mais sexy quando estava sem graça.
  - Não tenho nada planejado... – respondi.
  - O que você acha de ir à minha casa pra gente ver um filme?
  - Você está me convidando pra um encontro? – questionei surpresa e sentindo os cantos da minha boca se repuxar em um sorriso.
  - Sim, eu estou. – ele confirmou me encarando com aqueles olhos incríveis, capazes de convencer qualquer pessoa a saltar de um abismo ou fazer outras loucuras. Como se ele precisasse daquilo para receber um “sim” como resposta!
  - Hum, tudo bem. A que horas eu devo chegar? – perguntei tentando aparentar tranquilidade e fracassando completamente quando minha voz falhou na última palavra. Minhas mãos tremiam tanto que eu podia sentir a porta do carro balançando sob minha palma direita.
  - Quatro tá bom pra você? – questionou sorrindo do mesmo jeito bobo do sonho. E mesmo que aqueles sonhos estranhos me dissessem exatamente o que ele estava pensando, provavelmente eu jamais me convenceria de que ele estava tão encantado por mim. Era perfeitamente normal que qualquer garota do mundo ficasse boba por causa dele; era lindo, divertido, companheiro, misterioso... Mas o que havia de interessante em mim? Certamente traumas familiares e amizades problemáticas não entrariam nesta lista. Se ele soubesse que eu posso ler as mentes e ver as auras de todas as pessoas do mundo, exceto a dele, era bem mais provável que ele fugisse apavorado do que considerasse as minhas habilidades legais.
  - Ok. Até amanhã então! – sorri para ele em resposta. Precisei de alguns minutos sentada diante do volante até conseguir me acalmar o bastante para ligar o veículo e conduzi-lo até a minha casa. Em algum ponto no caminho, os fatos se encaixaram e a minha ficha caiu: eu tinha um encontro com .

  - AAAAH NÃO! Você tem que me deixar te arrumar! – gritou do outro lado da linha revoltado quando eu disse que não deixaria que ele brincasse de Barbie comigo daquela vez.
  - , me perdoe, mas você sempre exagera. Eu não quero que ele pense que eu estou considerando isso grande coisa.
  - O quê? Você vai bancar a esnobe com o cara mais gostoso da escola? - eu não podia ver o rosto de , mas sabia muito bem a expressão calculista que ele deveria estar fazendo naquele momento, avaliando os prós e os contra dos tipos de comportamentos possíveis. – Gostei. A maioria das garotas se embrulharia de presente para ele, mas você não. Você é a versão feminina do bofe, então você pode bancar a difícil. Isso aí, amiga! – se eu estivesse por perto, ele provavelmente teria oferecido a mão para que eu batesse numa espécie de “high five”.
  - Não vou bancar a esnobe ou a difícil. – rolei os olhos. – Vou continuar sendo eu mesma. Nós combinamos que seríamos amigos desde a última briga, e é isso que eu continuarei sendo. Se rolar mais alguma coisa... – dei de ombros, mas meu estômago revirou-se de nervosismo.
  Eu não beijava de verdade um garoto que eu realmente gostasse há mais de um ano. De várias formas era bom me sentir assim de novo – a adrenalina correndo dentro dos meus vasos sanguíneos, fazendo com que meu coração batesse tão forte que chegava a ser constrangedor. E as coisas com estavam sendo tão diferentes de tudo o que eu tive com ... Meu namoro com nunca teve real importância para mim, e eu sabia que se nosso término não tivesse acontecido exatamente quando descobri que toda a minha família estava morta e quando minha mente estava um caos ainda maior que agora, aquilo provavelmente não teria me afetado tanto. nunca me fez falta, e eu nunca pensei mais nele do que na equipe de animação ou em qual maquiagem usaria no dia seguinte para ir ao shopping com as minhas amigas.
  - Cuidado pra não entrar na Friend Zone. – disse seriamente do outro lado da linha.
  - Friend Zone? – repeti o termo confusa.
  - É, fofa. Se você é amiga demais de um cara, ele pode pensar que você só quer amizade com ele. E quando um garoto coloca você na Friend Zone, não tem mais quem tire. Não adianta choro, vela, galinha preta, nome na boca no sapo, encruzilhada, reza braba...
  Eu gargalhei das besteiras de , mas revirei a minha mente em busca de algum pensamento de que me surgira nos sonhos que poderia indicar que ele estava convencido de que eu só queria amizade.
  - A tática da amizade dá certo, mas você tem que dar umas pistas também, diva. Ah, e claro, dar uma provocadinha pra que ele ache impossível ter só amizade com você. Que vocês dois têm química, isso é meio que óbvio pras pessoas ao redor, mas não custa nada deixar o garoto pensando em você no chuveiro depois, se é que você me entende. – riu do outro lado da linha e eu só consegui responder aquilo com uma risada também.
  Duas batidas na porta do meu quarto interromperam a nossa conversa.
  - Só um segundo, . – Deixei meu celular na mesinha do computador e abri a porta para Eva. Ela anunciou que eu tinha visita e, quando me concentrei em seus pensamentos, a imagem de Caleb foi a que apareceu ali. Senti a raiva queimando nas minhas artérias ao passo que eu me perguntava se havia formas daquele garoto ser mais cara de pau e atrevido!
  Não pedi que Eva o dispensasse porque eu tinha certeza de que, se Caleb havia se dado o trabalho de ir até a minha casa para esgotar o resto da minha paciência, ele provavelmente não sairia dali até cumprir seus objetivos. Portanto, despedi-me de por ora e desci as escadas com dez pedras em cada uma das mãos.
  - O que você quer? – eu disse sem me preocupar com cumprimentos e toda a diplomacia que Caleb não merecia.
  - Oi, . Eu estou bem, obrigado. Como você está? – ele respondeu levantando-se do sofá onde estava sentado e colocando um sorrisinho cínico nos lábios. Seus pensamentos, no entanto, indicavam que ele também estava com bastante raiva, e Caleb estava fazendo um grande esforço para simplesmente não começar o diálogo com insultos também.
  - Eu não estou com intenção de desperdiçar meu tempo com você, Caleb. Aliás, você tem sorte por eu não ter conseguido uma ordem restritiva ainda. A minha tia é uma das melhores advogadas de Washington, então isso com certeza não seria difícil. – eu disse disposta a continuar qualquer discussão que ele quisesse. – O que você quer? – perguntei novamente.
  - Você concordou em sair com o amanhã pra chamar a minha atenção. Admita. – Caleb me acusou arqueando as sobrancelhas. O mais triste era que a mente dele indicava que ele estava cem por cento certo disso. Eu ri alto por reflexo. – Qual é a graça? – ele questionou com raiva.
  - Eu estou rindo da sua estúpida presunção. Garoto, eu quase quebrei seu nariz depois do beijo forçado que você me deu. De qual planeta você é? De um em que, se a garota arranca sangue de você, esse é um sinal de que ela está perdidamente apaixonada? – eu ri alto novamente.
  - Você fez aquilo por causa da sua amiguinha . – ele defendeu seu ponto sem tanta convicção agora.
  - Caleb, eu nunca quis nada com você, e continuaria não querendo mesmo que a não estivesse a fim de você.
  - Porque você está apaixonada pelo . – não era uma pergunta, mas ele ainda esperaria por uma resposta, e eu não sabia como definir meus sentimentos por . Eu com certeza sentia mais do que amizade por ele, mas eu poderia mesmo dizer que estava apaixonada? Provavelmente ainda era cedo demais para uma conclusão dessas.
  - Você não faz o tipo de todas as garotas do planeta, sabia? Quanto mais rápido você enxergar isso, melhor pra todo mundo.
  - Mas você está mesmo apaixonada pelo . – ele insistiu. Provavelmente havia percebido que essa parte do que ele disse havia me afetado de algum jeito.
  - Não vejo como isso é da sua conta.
  Caleb riu sem humor algum. Seus próximos pensamentos foram iguais ao que saiu dos seus lábios:
  - Eu e o somos amigos de infância, . Quando você estiver sonhando acordada com ele, não se esqueça que ele é muito mais do que o garoto perfeitinho que você enxerga. Ele tem um passado tão feio quanto o meu. Ou quanto o seu também, certo? A me contou algumas coisas ao seu respeito... E se você quer um conselho: eu não jogaria tantas pedras no telhado dos outros se o meu próprio fosse feito de vidro.
  Eu ainda pensava no que responder quando a porta da sala de entrada da casa bateu com força no batente. Poucos segundos depois, escutei o barulho do carro de Caleb cantando pneus contra o asfalto. Minha mente estava ocupada demais repassando as palavras dele para que eu conseguisse prestar atenção aos seus pensamentos.
  É claro que tudo o que Caleb disse ecoava em minha mente a cada instante que eu a deixava vazia. Eu detestava admitir que as palavras dele estavam me afetando de alguma forma, mas o fato de eu já ser dada a me culpar por todas as desgraças do mundo não ajudava em nada a lidar com aquilo. Será que chegaria um momento em que perceberia que eu realmente era um desastre em pessoa, que eu atraía desgraças e que pessoas espertas mantinham distância de mim? Ou será que em algum instante o atencioso, amigo, generoso e companheiro viraria fumaça e a pessoa arrogante, esnobe e estúpida que ele foi no início comigo reapareceria? Provavelmente, eu estava me deixando envolver demais por alguém que conhecia tão pouco – a pessoa mais imprevisível do mundo. Mas mesmo que eu dissesse para mim mesma que aquele encontro era um erro, que deixar me afetar de algum modo era uma grande loucura, eu sabia que não ligaria para ele e cancelaria nossos planos. Definitivamente, aquele era um risco que eu queria correr.

17. Primeiro beijo

  Toquei a campainha da enorme casa habitada pela família . Minhas mãos tremiam tanto que demorei alguns longos segundos até conseguir atingir o botão realmente. E esse tremor se intensificou quando abriu a porta com um sorriso relaxado nos lábios, trajando uma bermuda simples, camiseta e chinelos de dedo. Ele parecia um modelo preparado para um dia inteiro jogado no sofá. Era impressionante como, mesmo simples e descontraído, a elegância irradiava daquela pessoa!
  - Oi. – ele disse e me deu um beijo no rosto. Fiquei tão atordoada e surpresa com o gesto que nem consegui prestar atenção ao que poderia ter surgido na minha mente como flash daquela vez.
  - O-oi. – gaguejei como uma idiota. abriu caminho e indicou o interior da casa para que eu entrasse. Eu já conhecia a enorme sala de entrada pela festa de aniversário dele, mas o lugar estava bastante diferente agora, com grandes sofás cinza, cortinas verdes, quadros nas paredes e móveis habitando o espaço. Como os donos, a casa dos exalava elegância.
  - E aí? Como estão as coisas? – ele perguntou enquanto andávamos para alguma outra sala no interior da propriedade. Eu o seguia observando admirada a casa impecável em volta. Tia Sabrina era rica, tinha uma bela residência, mas nada como aquilo.
  - Eu estou bem. E você?
  - Tudo bem. – ele murmurou e então entrou no que imaginei ser a sala de televisão. Havia um sofá-cama gigante no meio, alguns puffs e uma televisão enorme, maior do que eu sabia que existia. – O Caleb te procurou ontem, certo? – questionou sentando-se no sofá e me encarando. Relutante, sentei-me ao seu lado.
  - Como sabe disso?
  - Ele esteve aqui depois que saiu da sua casa. – disse e fechou a cara, como se tivesse se lembrado de algo desagradável.
  - Hum. E ele te disse o que conversamos?
  - Ele disse que eu tinha conseguido o que queria. Que você está morrendo de amores por mim. – riu divertido. A única reação que consegui esboçar foi um sorriso sem graça. O silêncio pairou sobre nós por alguns longos segundos então. Eu revirava meu cérebro em busca de algo que pudesse dizer e não me atrapalhar naquela história, mas felizmente ele se pronunciou antes: - Se eu te contar uma coisa, promete não ficar nervosa? – ele perguntou fazendo uma careta.
  - Pode falar. – incentivei-o transbordando de curiosidade.
  - Promete?
  - Prometo não te agredir ou sair daqui batendo as portas atrás de mim. Não te chamar de palavrões ou não colocá-lo na minha lista de inimigos mortais, eu não posso prometer. – ele riu da minha resposta.
  - Assim que o Caleb entrou no colégio, ele me disse que tentaria ficar com você. E nós homens meio que temos uma bobagem de “quem falar primeiro”. – ele me encarou esperando que eu entendesse a situação apenas com aquela informação.
  - Certo, você vai ter que explicar isso melhor. – eu disse tentando imaginar o que aquilo poderia significar e como interferiria no nosso relacionamento.
  - O Caleb falou primeiro, . Então eu não deveria te chamar pra sair nem nada parecido, entende? Por isso ele ficou puto quando a disse pra ele que você viria na minha casa hoje...
  - O e sua língua grande. Eu sabia que ele ia acabar comentando com a . – resmunguei com raiva.
  - Não tem problema, relaxa.
  - Eu sei que não tem, . Eu não pertenço ao Caleb. Posso sair com quem eu quiser. – minhas palavras saíram refletindo o ódio que Caleb e me provocavam, mas isso só fez com quem sorrisse mais abertamente.
  - Bom, o caso é que o Caleb tá puto porque eu te chamei pra um encontro. – ele deu de ombros.
  - E o que ele falou com você ontem? Que estava brincando comigo ainda, então você teria que escolher outra garota da escola pra te distrair? – perguntei ainda com raiva daquela situação.
  - , fica calma, ok? O Caleb é um idiota, e quando ele falou que ia tentar alguma coisa com você, eu só não reagi contra isso porque... – ele se interrompeu e desviou os olhos do meu rosto para algum ponto aleatório na sala.
  - Porque o quê, ? – questionei fitando seu rosto distorcido por tantos sentimentos que eu nem sabia distinguir um do outro mais.
  - Porque eu estava tentando convencer a mim mesmo que eu não queria nada com você. É aquela história que eu te contei de novo. Minha mãe sonha com o dia em que vamos nos casar em uma igreja e depois dar-lhe um casal de netinhos. E... E eu nunca pensei que acabaria abraçando os planos dela pra mim desse jeito. – ele admitiu me encarando, analisando cada reação que eu poderia esboçar. Mas a verdade é que eu nem tinha certeza se havia escutado direito. estava... se declarando para mim? – Pelo amor de Deus, diga alguma coisa! – ele implorou se aproximando de mim no sofá; seus olhos ainda estavam fixos no meu rosto, mas eu provavelmente nem seria capaz de formar alguma sentença inteligível naquele momento. Aliás, como se respirava mesmo?
  - Eu não sei o que dizer. – declarei o óbvio e ri de nervoso.
  - Tudo bem, . – suspirou alto claramente desapontado com as minhas palavras. – Se você me dá licença, eu vou pedir pra Catherine fazer alguma coisa pra gente comer. – ele levantou-se do sofá.
  Um milhão de coisas passava pela minha cabeça naquele instante, e era como se a cena estivesse congelada diante de mim. Algo me dizia que eu simplesmente não poderia deixá-lo sair dali pensando que eu era indiferente aos seus sentimentos. Até onde eu sabia, para ele, havia sido extremamente difícil me dizer aquelas palavras ou mesmo me incluir em sua vida de algum jeito. Mais do que isso, eu não queria que ele pensasse que eu não o correspondia. De muitas formas, eu apenas não queria admitir para mim mesma como ele me afetava, como cada detalhe em sua personalidade me atraía de um jeito até doentio. A quem eu queria enganar, afinal? Eu era simplesmente viciada naquele garoto, e isso estava estampado na minha cara!
  - , espera! – eu disse antes que ele cruzasse a soleira da porta da sala. E então, simplesmente parei de pensar. Levantei-me do sofá como a pessoa mais confiante do mundo, embora estivesse tremendo por dentro, coloquei minhas mãos em sua nuca e posicionei-me nas pontas dos pés para finalmente encaixar meus lábios nos dele.
  Não existem palavras para descrever tudo o que eu senti a partir do instante que nossas bocas se tocaram. Meu coração batia tão forte dentro do peito que chegava a ser doloroso. Deliciosamente doloroso. O hálito dele era frio e quente, ao mesmo tempo. E quando seus braços envolveram meu tronco e suas mãos agarraram a minha cintura, de modo que nossos corpos se encaixaram, todo o fogo que havia se acendido dentro de mim no segundo anterior aumentou de intensidade e eu nem pensei em protestar quando me ergueu envolvendo minhas pernas em seu tronco e me jogou no sofá, cobrindo meu corpo com o seu. Interrompi o beijo para respirar, mas os lábios dele caminharam pela extensão do meu pescoço. Coloquei minhas mãos por dentro da camiseta de e encontrei uma pequena marca que imaginei ser de uma cicatriz. Como será que ele havia adquirido aquilo? mordiscou a minha orelha de um jeito provocante e incrivelmente gostoso interrompendo o pensamento, e a minha resposta foi um gemido involuntário. Então, os dedos de roçaram a base dos meus seios e, contraditoriamente, foi o desejo dez vezes mais forte do que quando nos beijamos que me alertou que as coisas estavam indo longe demais, que eu precisava parar.
  - Ei, ei, ei... – murmurei empurrando de leve seu corpo para longe do meu por mais estúpido e idiota que isso parecesse para boa parte da minha mente. Eu queria continuar. Queria mesmo. Mas algo me dizia que eu não deveria. Pelo menos não agora, na sala de televisão da casa dele, um mês depois de tê-lo conhecido.
  - Desculpe. Desculpe mesmo. – ele pediu levantando-se. Seu rosto estava tão vermelho quanto seus lábios, e precisei me segurar para não beijá-lo de novo ao perceber isso.
  - Não precisa se desculpar. Eu comecei isso, lembra? – eu disse sentindo minha face esquentar com o rubor.
  - E saiba que você pode fazer isso quantas outras vezes quiser. – sorriu para mim.
  - Ok. – eu ri. – Hã... Se você quiser ir falar com a Catherine sobre o nosso lanche, eu posso colocar o filme enquanto isso. – sugeri ajeitando a minha blusa no corpo e tentando arrumar meus cabelos completamente arruinados àquela altura.
  - Certo. Vou fazer isso. - ele respondeu ainda sorrindo e me beijou de leve nos lábios antes de retirar-se do cômodo.
  Fitei o televisor e o home theater por vários longos segundos até conseguir me lembrar o que fazer com eles. Minha imagem estava refletida na tela da TV e um sorriso bobo enfeitava meu rosto – sorriso este que eu nem sabia mais que podia formar. Se eu ainda tinha dúvidas quanto a isso, elas agora não faziam o menor sentido mais. Eu definitivamente estava apaixonada por .

  - A que horas você costuma sair de casa para ir ao colégio? – perguntou caminhando de mãos dadas comigo até a garagem de sua casa, onde o motorista da família havia colocado o meu carro.
  - Por volta das sete e meia. Leva uns vinte minutos pra chegar ao colégio quando eu passo na casa do . – respondi ainda sem acreditar no que acontecera a tarde toda, no que ainda estava acontecendo.
  - Verdade, amanhã é a sua vez de levar o . – ele murmurou.
  Abri a porta da Mercedes e me virei para despedir-me de . Desde o nosso primeiro amasso, aquela era a segunda vez que nos beijávamos realmente, e todas as sensações que me invadiram mais cedo surgiram de novo agora. Imaginei que acabaríamos nos agarrando dentro do meu carro, mas interrompeu o beijo indicando que não pretendia fazer isso exatamente quando a ideia se formou na minha mente de uma forma bastante tentadora.
  - Te vejo amanhã na escola. – ele disse e se afastou de mim com um sorriso.
  - Até amanhã. – respondi sem vontade alguma de ir embora.
  Dirigi para casa no modo automático – minha cabeça não era capaz de se concentrar em mais nada além da tarde maravilhosa que tive com o louro perfeito, filho da minha professora de português. Eu ainda podia sentir seus beijos no meu pescoço e o aperto maravilhoso de sua mão na minha perna. Meu coração ainda estava tão acelerado que tive medo de não conseguir fazê-lo voltar ao normal nunca mais. E mesmo que eu tivesse plena consciência de que jamais conseguiria ser criativa o bastante para inventar aquilo, boa parte de mim ainda se perguntava se tudo realmente acontecera. Parecia perfeito demais para ser verdade.
  Foi somente quando coloquei minha cabeça no travesseiro que parei para pensar nos flashs que poderiam ter aparecido ao longo do dia. Eu me lembrava de ter visto nosso primeiro beijo de novo enquanto assistia ao filme quando colocou sua mão entre os meus cabelos e começou a me fazer cafuné. Lembrei-me também sobre ele ter pensando que estávamos namorando quando pegou minha mão para me conduzir até a garagem de sua casa. Mas eu não conseguia me lembrar de nenhum flash no momento em que estávamos nos agarrando no sofá. Talvez eu estivesse concentrada demais em outras coisas para conseguir prestar atenção a isso.
  Levei algum tempo até acalmar meu organismo o bastante para que fosse possível dormir. Mas então isso finalmente aconteceu, e eu estava dentro da cabeça de novamente.

18. Dúvidas

  - Cara, eu posso ser preso por isso. – Ryle Chandler disse quando Caleb terminou de explicar qual seria sua “loucura de iniciação”. Essa era a regra: para fazer parte do grupo, você precisa demonstrar que é corajoso, que está disposto a passar por cima dos seus escrúpulos às vezes ou simplesmente abandoná-los de uma vez por todas.
  - Essa é a graça, meu caro Ryle: correr o risco. – respondi em nome de Caleb.
  - Roubar dinheiro da diretoria é muito pior do que dormir com a professora de Artes, . Você se deu bem em fazer isso. A única coisa que eu vou conseguir é me fuder. – o possível futuro novato do time falou revoltado.
  - Verdade. A professora de Artes era uma gostosa. – Ian concordou.
  - Além disso, ela quem seria presa se alguém descobrisse alguma coisa, não o aluno que a comeu. – Ryle completou sentindo-se incentivado o bastante pelas palavras de Ian.
  - Cara, nem se você nascesse de novo dez vezes conseguiria levar a professora Sullivan pra cama. – falei sem paciência para aquele lengalenga. – É o seguinte, Chandler: o diretor Marks guarda centenas de dólares num pote dentro do armário de seu escritório. Esse dinheiro vai pagar a bebida da sua festa de boas vindas ao time. Você tem até sábado para conseguir pegar a grana sem que ninguém descubra. Se não conseguir, está fora. Pronto, a instrução é simples e não sofrerá modificações. Ou você faz isso, entra não só para o time de basquete como para a nossa turma também e larga essa vida de nerd rejeitado, ou você continua sendo um otário. E aí? Qual vai ser? – perguntei encarando a expressão indecisa de Ryle.
  - Ok, vamos nessa. – ele finalmente assentiu sendo ovacionado pelos outros caras do grupo.

  Eu estava deitada na minha cama ainda incrédula, sem ser capaz de acreditar que o que eu conhecia era a mesma pessoa que havia narrado essa cena. E o que mesmo comprovava que tudo aquilo não era invenção da minha mente? Um sonho qualquer que surgiu do meu subconsciente, como qualquer sonho estúpido sem nexo algum com a realidade? Mas se era apenas isso, por que eu não havia sonhado com os pensamentos dele daquela vez? Nós havíamos nos tocado muito mais do que em qualquer outra ocasião! Alguma coisa não estava funcionando direito. Ou talvez ter tanto contato com a pessoa capaz de devolver a normalidade ao meu mundo estivesse fazendo com que as coisas voltassem a ser mais normais, e, por isso, eu não havia sonhado com os pensamentos dele então.
  Tentei acreditar nesta última possibilidade por mais tempo, mas foi impossível conforme eu tomava banho e os pensamentos de tia Sabrina pareciam ainda mais altos do que o normal. Para completar, o sonho em que se comportava de uma forma tão horrível quanto Caleb não saía da minha cabeça. O que Caleb dissera sobre o passado do amigo ser tão feio quanto o dele não saía da minha cabeça... E a cada segundo que passava, a vontade de pular do décimo andar de um prédio para fazer com que tudo aquilo desaparecesse só aumentava.
  Passei o domingo inteiro tentando esquecer isso. Minha tia pediu que eu fosse com ela à casa de uma amiga que havia se casado recentemente e estava oferecendo um almoço para os amigos, e eu não consegui negar. Tia Sabrina era tão sozinha e eu tinha tanta pena dela por isso que eu sempre aceitava qualquer convite que ela me fizesse. Além disso, eu lhe devia muito e precisava retribuir de alguma forma.
  Finalmente o dia terminou e tudo o que eu fiz ao chegar em casa foi me jogar na minha cama e dormir até que meu despertador me acordasse no dia seguinte. Mas quando abri os olhos, minha cabeça doía tanto quanto quando me deitei. O sonho voltou a atormentar minha mente e as palavras de Caleb surgiram uma a uma nos meus pensamentos conforme eu me arrumava para ir para a escola.
  Arrastei-me escadaria abaixo e pulei de susto quando o vi observando os retratos sobre a lareira da sala de entrada da casa de minha tia.
  - Ei! – eu disse automaticamente sentindo borboletas no estômago. A dor de cabeça devia ter me distraído do fato de que as pessoas ao redor se calaram quando ele se aproximou o bastante para isso.
  - Bom dia. – sorriu para mim e caminhou em minha direção. – Aqueles na foto com você e sua tia eram seus pais e sua irmã mais nova? – ele perguntou parando diante de mim com as mãos nos bolsos, provavelmente se perguntando se poderia me beijar dentro da sala de minha casa ou não.
  - Sim, eram sim. Nós tiramos essa foto uns seis meses antes do acidente, quando a minha tia foi nos visitar. – respondi e me aproximei dele depositando um beijo leve em seus lábios. A imagem da foto da minha família foi o flash daquela vez. – Veio me buscar pra me levar pra escola? – perguntei colocando um sorriso no rosto. Eu não me permitira remoer um sonho idiota e que nem devia ser verdade durante o dia todo. Mais do que isso, eu não podia deixar que aquelas coisas me deixassem mal com . Não agora que nós finalmente estávamos na mesma página, que tivemos coragem de definir o nosso, desde o início, confuso relacionamento.
  - Sua irmãzinha era a sua cara. – ele comentou pegando a minha mão e me mostrando a imagem de Emily na foto um pouco diferente do que eu me lembrava dela porque estava sob sua perspectiva. Pensei em discordar como sempre fazia quando as pessoas comentavam isso, mas ficou difícil fazer algo do tipo depois de ver a comparação pelos olhos dele. Emily e eu realmente éramos muito mais parecidas do que eu pensava.
  - Exceto pelos olhos. Ela tinha os olhos azuis do meu avô. – lembrei-me e instantaneamente a tristeza inundou a minha alma porque eu jamais veria aqueles olhinhos infantis e travessos de novo. – Bom, vamos mudar de assunto. – falei antes que as lágrimas se formassem nos meus olhos e acabassem com o resto do meu ânimo. - O aniversário do é daqui um mês e eu estava pensando em fazer alguma coisa pra ele.
   deixou que eu falasse sobre a festa surpresa para o meu melhor amigo durante os dez minutos de percurso até a casa dele. Daí quem falou a maior parte do tempo foi – ele ainda fazia aulas de teatro e apresentaria uma peça no final de semana, portanto este se tornou o assunto até chegarmos ao colégio.
  O dia passou rápido. O único evento diferente foi uma prova surpresa de Biologia, mas como fazia Física do outro lado da escola nesse horário, eu simplesmente li as respostas da cabeça de Heather Hastings, uma das garotas mais inteligentes do colégio.
  - O Caleb está matando vocês com os olhos. – sussurrou para mim enquanto andávamos pelo estacionamento até a BMW. mantinha o braço no meu ombro e conversava com Trevor que caminhava ao seu lado.
  - Esqueça o Caleb, . E vê se não sai contando tudo o que eu te digo pra , poxa. Você sabe que ela vai contar pro namoradinho depois. – respondi lembrando-me da petulância de Aldrin quando apareceu na minha casa cobrando satisfações sobre meu encontro com .
  - Ok, eu já me desculpei por isso. – rolou os olhos. – Saiu sem querer, . E, além disso, eu não tinha como saber que o menino ia ser louco o bastante pra ir até a sua casa fazer barraco por causa disso.
  - Eu sei que a culpa foi dele, . E eu também sei que é complicado pra você ficar entre mim e a . Mas não tem nada que eu possa fazer, então só evite falar sobre mim com eles que já será de grande ajuda.
  - Sim, claro. – assentiu e voltou a falar da festa que o elenco de sua peça estava pensando em fazer depois da apresentação. Tentei prestar atenção ao que ele falava enquanto conversava com Trevor antes de sairmos daquele estacionamento lotado, mas fiquei distraída com o olhar que me lançou. Eu ainda não conseguia entender como me engara tanto com ela mesmo sabendo o que se passava em sua mente. E foi daí que me surgiu outra pergunta, porque por mais que eu tentasse evitar esse assunto, ele continuava voltando aos meus pensamentos a cada cinco minutos: se eu fui capaz de me enganar com mesmo sabendo o que ela pensava, o que me impedia de não estar me enganando com agora também?
  Encher minha cabeça novamente com essas ideias fez com que meu humor declinasse ainda mais, e é claro que percebeu isso.
  - Você está muito estranha hoje. Aconteceu alguma coisa? – ele perguntou assim que parou o carro no acostamento de minha casa.
  - Dor de cabeça... E . Ainda me pergunto como ela pode ter mudado tanto. – respondi, e embora aquilo não fosse mentira, ele provavelmente havia percebido que não eram todos os motivos do meu desânimo.
  - As pessoas mudam, . Às vezes pra pior, às vezes pra melhor. Provavelmente a só está encantada com o Caleb, e quando essa paixonite passar, ela vai voltar ao normal de novo. – tentou me tranquilizar.
  - É, você deve estar certo mesmo... Enfim, vou te deixar ir para o seu treino. – eu disse, e quando encarei seus olhos incríveis, um sorriso involuntário se formou no meu rosto. De repente, toda e qualquer dúvida parecia sem sentido e eu só conseguia pensar no sábado que passamos juntos e no quanto estávamos próximos de novo agora. desafivelou o cinto e apertou o botão que fazia o mesmo com o meu. Ele se aproximou de mim mais devagar do que eu gostaria, mas valeu a pena a espera porque a sensação de seus lábios nos meus, da sua língua na minha boca, da sua mão acariciando o meu rosto era a melhor coisa que eu já havia provado na vida até aquele instante. O beijo foi calmo, romântico, lento, mas quando mordeu meu lábio inferior antes de se afastar de mim, precisei me segurar para não agarrá-lo outra vez.
  - Te vejo amanhã. – ele murmurou e voltou a colocar o cinto de segurança.
  - Até amanhã. – respondi sem vontade alguma de realmente deixá-lo ir embora, e saí do carro, ficando parada na calçada feito uma estúpida abobalhada até que os pensamentos das pessoas ao redor voltassem a ecoar dentro da minha cabeça, lembrando-me que já estava distante novamente.

  Coloquei minha mochila sobre a cadeira que acompanhava a escrivaninha do meu quarto e me esparramei na cama. Alguma coisa mais dura que o colchão e os cobertores cutucou as minhas costas, então me levantei para conferir o que era. Quando vi o envelope pardo, a primeira coisa que me veio à mente foram as admissões das universidades. Foi então que me lembrei que todos os formulários, redações ou fichas que eu pretendia enviar para as tais universidades ainda estavam na gaveta da escrivaninha, tranquilamente guardados uma vez que os prazos de envio só iniciariam dali algumas semanas, de modo que eu ainda tinha muito tempo para me preocupar realmente com isso. Peguei o envelope e procurei pelo destinatário, mas não havia nada escrito além do meu nome e endereço.
  - Eva? Joanna? – chamei as empregadas adentrando a cozinha. As duas estavam fazendo o horário de café da tarde, comendo bolo e conversando sobre alguma novela.
  - Sim, ? – as duas responderam juntas deixando suas xícaras sobre a bancada.
  - Quem de vocês recebeu isso? – perguntei indicando o envelope pardo ainda lacrado.
  - Eu recebi. – Joanna disse. – Foi entregue por um rapaz. Ele veio em uma daquelas vans de entrega mesmo, sabe? Eu até assinei um recibo e tudo mais. Mas não me lembro qual o nome da empresa. – ela completou.
  - Certo. Obrigada, Joanna. – eu disse ainda achando aquilo tudo muito estranho. Se veio de uma empresa de entregas normal, por que não havia destinatário?
  - Está tudo bem, ? – Joanna questionou preocupada.
  - Sim. Eu só achei estranho porque não tem destinatário. Mas tudo bem então. Vou deixar vocês comerem... – sorri para Joanna e me retirei da cozinha, voltando para o meu quarto ainda rodando o envelope nas mãos. Eu não sei qual era o meu problema daquela vez, mas algo me dizia que eu não devia abri-lo, que devia jogar fora e fingir que nunca havia recebido. Mas é claro que essa suspeita só fez com que, no final das contas, eu tirasse os lacres do envelope e esparramasse o seu conteúdo sobre a minha cama. E lá estava a prova de que eu deveria ter seguido a minha intuição, não tê-la ignorado descaradamente.
  Havia cinco fotos no total. Uma delas trazia todos os professores da Manhattan High School – uma faixa com o nome e brasão da escola indicava isso -, sendo que uma moça em particular estava circulada em vermelho. Ela era jovem, tinha os cabelos ruivos e os olhos azuis – em geral, muito bonita. Outra foto trazia , Caleb e outro garoto que eu conhecia pelo sonho como Ian. Eles estavam numa sala de aula de Artes – o que deduzi por alguns cavaletes de pintura – e essa mesma professora fazia parte da cena, que não consegui deduzir se era uma aula normal ou uma conversa. As outras três fotos fizeram com que meu estômago revirasse tanto que precisei me conter para não vomitar sobre elas. beijava a tal professora em uma, estava deitado seminu ao lado dela – parte dos corpos dos dois tampados por um lençol – em outra e a última foto eu precisei tirá-la da minha frente assim que vi o que eles estavam fazendo e fora registrado ali. Um bilhete acompanhando as fotos me explicou quem estava tão interessado em me contar aquilo, mas não colocara seu nome no envelope porque sabia que eu jamais olharia o conteúdo se soubesse quem enviara o pacote.

  Conheça de verdade o seu tão perfeito .
  Com amor,
  Caleb.

19. Respostas

  Abri a porta do meu quarto para um sorridente e super bem humorado. Ele se aproximou de mim para depositar um beijo nos meus lábios e, embora ainda estivesse pensando em qual seria a minha abordagem, deixei que ele fizesse isso. Por que ela não está vestida para ir para o colégio? – A pergunta surgiu junto com a minha imagem vestida de pijamas e com pantufas nos pés. Como se eu precisasse de mais novidades! Normalmente eu só via as coisas que apareciam na mente dele, e o resto dos pensamentos surgiam nos meus sonhos. Mas desta vez eu havia escutado exatamente o que ele havia pensado no instante que sua pele tocou a minha. Será que as minhas habilidades estavam se aprimorando? De certa forma isso era mesmo possível. Quanto mais tempo a voz de uma pessoa era conhecida para mim, maior era a distância que eu conseguia ficar dela e ainda ouvir seus pensamentos. Provavelmente alguma coisa parecida estava acontecendo com relação à , como se eu precisasse de mais isso para confundir a minha cabeça.
  - Não vai à escola hoje? – ele perguntou conseguindo a minha atenção.
  - Não. Eu já liguei para o e avisei que você não vai dar carona pra ele hoje também. – respondi caminhando até a mesinha de cabeceira e retirando da gaveta o envelope do dia anterior.
  - Vamos matar aula pra fazer outra coisa mais interessante? – um sorriso empolgado se formou no rosto dele acabando totalmente com as chances de eu usar a abordagem “estou com ódio da sua cara”, embora eu soubesse no fundo que não brigaria com ele por causa daquelas fotos, do sonho ou do que quer que fosse.
  Sentei-me na cama e dei três tapinhas no colchão diante de mim, indicando que eu queria que ele se sentasse ali. obedeceu imediatamente vincando a testa de preocupação.
  - Eu não dormi nada essa noite, então realmente não tenho condições de ir à escola hoje. – fiz uma pausa para respirar fundo e ele abriu a boca para dizer alguma coisa, mas o impedi: - E eu queria que você me explicasse isso. – Falei com a voz arrastada de cansaço e sem qualquer traço de acusação, e tirei as fotos de dentro do envelope, espalhando todas elas no espaço entre nós sobre o colchão da minha cama. arregalou os olhos de surpresa e fez o mesmo que eu fiz ao ver a pior das fotos com todas as três em que ele estava com a tal professora de Artes.
  - Quem te deu isso? – ele perguntou com a voz embargada, e eu não soube dizer pela sua expressão qual sentimento estava causando aquilo.
  - Isso importa? – perguntei com o mesmo tom de voz que demonstrava o quanto eu estava exausta de viver.
  - Foi o Caleb. – afirmou com a voz transbordando ódio e levantou-se da cama.
  - Se quiser quebrar a cara do Caleb depois por isso, eu realmente não me importo. – eu disse segurando seu braço quando ele pegou na maçaneta da porta. E imaginei que ele estava tão cego de raiva que nem conseguia formar nenhum pensamento, porque absolutamente nada além de uma sensação esmagadora de raiva surgiu quando minha pele tocou a dele. – Mas eu preciso que você me conte essa história antes. – continuou parado com a mão na maçaneta, provavelmente tentando decidir se conseguiria simplesmente conversar comigo sobre aquele assunto. – , eu sei que isso foi antes de me conhecer. Eu também não me orgulho da pessoa que eu era um ano atrás. Quero dizer, eu não vou te julgar por isso. Eu entendo. – eu disse e isso pareceu convencê-lo de que era melhor ficar ali e me passar sua versão dos fatos, em vez de correr para onde quer que Caleb estivesse naquele momento para arrancar-lhe alguns dentes.
  Aquela noite insone foi de grande ajuda para mim porque, quando o dia amanheceu, eu não tinha medo mais. Não importava se tinha um passado horroroso. Não importava se ainda existia muito daquela pessoa horrível dentro dele. Porque da forma que era agora, ele era tudo o que eu queria, tudo o que eu precisava. Porque eu já estava farta de desconfiar de alguém que sempre foi tão transparente comigo, que se preocupou com o meu bem estar quando ninguém mais deu importância para isso, que transformou as pessoas na minha escola em jovens melhores simplesmente por chamar os isolados para comerem junto com os populares.
  - Todo mundo já fez coisas na vida das quais não se orgulha. Eu mesma... Realmente não tenho o menor direito de julgar Georgia Wilson ou quem quer que seja. – eu ri sem humor algum me lembrando de como eu tratava as garotas que não se enquadravam no meu padrão de beleza na minha antiga escola.
   andou novamente até a minha cama, então me sentei diante dele da mesma forma que havia feito minutos antes.
  - Eu dormi mesmo com a minha professora de Artes, há três anos. Foi a minha “loucura de iniciação”. – ele suspirou alto. – Um dos alunos da Manhattan High School, Kyle Paxton, era o capitão do time de basquete e quem inventou essa bobagem. Você até poderia entrar para o time porque quem decidia isso era o treinador. Mas você só faria parte do grupo mesmo se cumprisse o desafio que eles inventavam. E o meu foi dormir com a professora. – disse e então olhou no meu rosto novamente.
  - O que o Caleb teve que fazer? – perguntei colocando minha mão sobre a dele e vendo o meu rosto refletido nos seus pensamentos.
  - Colocar maconha no armário de um dos nerds que se negou a fazer alguns trabalhos para o Kyle.
  - E quando você passou a ser o capitão do time e a pessoa que dava as ordens?
  - Como você sabe dessa parte? – ele perguntou confuso. A verdade era que eu sabia pelo sonho, mas eu já havia inventado uma boa desculpa para dar com relação a isso.
  - Eu sabia que você foi capitão do time de basquete em Nova York, então deduzi que a responsabilidade passou para você. – ele assentiu acreditando perfeitamente.
  - O Kyle sofreu um acidente de carro dirigindo bêbado, e perdeu uma das pernas, do joelho pra baixo, em um acidente. Daí ele virou outra pessoa. Largou a vida de festas, confusões, e conheceu uma garota bacana no período que passou na casa dos tios no interior do estado de Nova York. Ele acabou se mudando pra lá e há mais de um ano que não o vejo, mas eu sei que ele está bem agora, levando a vida de uma forma correta.
  - Como você largou essa vida também? – perguntei colocando um sorriso fraco nos lábios, mas a expressão de se fechou ainda mais, como se sorrir fosse o pior gesto possível para aquele momento. Ele ficou em silêncio pelo que pareceu uma eternidade e, quando voltou a falar, sua voz era quase chorosa.
  - O último garoto que quis entrar para o time enquanto eu estava na Manhattan High se chama Peter. Ele tinha asma e outros problemas respiratórios, mas ele nadou por muito tempo e fez outros tratamentos, então tinha uma saúde boa. Boa o bastante para jogar basquete muito bem. E nós fizemos com que ele entrasse na piscina do colégio em pleno Halloween. Ele teve uma parada respiratória, hipotermia, enfim... Ele ficou em coma por cinco dias. E esses foram os piores dias da minha vida. A ideia tinha sido minha, e se ele morresse... – balançou a cabeça de um lado para o outro tentando se livrar do pensamento, e então eu o abracei por impulso. Havia um rapaz hospitalizado em seus pensamentos, o rosto tampado por um tubo de oxigênio e seu corpo imóvel sobre um leito, e imaginei que aquele fosse o Peter. – Eu rezei, . – quase soluçava agora fazendo com que eu me arrependesse profundamente por não ter ignorada aquelas fotos, embora saber todas aquelas coisas diretamente por ele estivesse aliviando a minha alma. - O Peter fez com que eu chegasse no meu extremo, que foi prometer a Deus que, se ele sobrevivesse, eu mudaria.
  - Acho que ele sobreviveu então, certo? – perguntei, porque realmente não era mais aquele garoto, e ele havia dito que o rapaz “se chama Peter”, não “se chamava”.
  - Sim. Mas ele nunca me perdoou por isso, e eu não posso culpá-lo, né? – ele se afastou de mim e limpou o rosto com as mãos. – Daí eu saí do campeonato de basquete no meio da temporada, e depois fiz com que me encontrassem com bebida dentro da escola à noite pra que me expulsassem de lá e eu pudesse ir para outro lugar.
  - Por que você simplesmente não pediu aos seus pais para te trocarem de colégio?
  - Meu pai não permitiu na época. Ele tinha negócios em Nova York e não queria sair da cidade. E eu precisava de um recomeço. Qualquer outro colégio em N.Y seria tão ruim quanto aquele. Por isso, ser expulso era a única forma de conseguir o que eu precisava. O Caleb se juntou a mim e nós fomos juntos para Londres. Eu o fiz prometer que ele não voltaria a fazer essas coisas também, mas nunca interferi nos namoros dele, nem nada disso. Agora ele deve estar pensando que pode passar dos limites comigo porque eu passei dos limites com ele. Eu fiquei entre ele e você, né? De certa forma, ele não cometeu nenhum crime por ter te enviado essas fotos. – ele disse como se estivesse concordando com a atitude de Caleb, e, bem, se ele não tivesse feito isso, eu e não teríamos aquela conversa tão cedo.
  - Mas você ainda vai quebrar alguns dentes dele, certo? – perguntei fazendo a carinha mais “Gato de Botas” que pude. sorriu.
  - Você ainda é minha namorada? - ele parecia mesmo preocupado com ter me perdido.
  - Eu sou sua namorada? – provoquei. – Não me lembro de alguém ter me pedido em namoro aqui, sabe? – completei tentando parecer ofendida por isso, mas sem conseguir convencer ninguém. riu alto e pegou meu rosto com as duas mãos, cobrindo meus lábios com os seus e fazendo com que nenhum pensamento ocupasse minha mente enquanto estivéssemos juntos daquela forma.

  - Olá, crianças! – Tia Sabrina nos cumprimentou com um sorriso no rosto. e eu estávamos deitados no sofá-cama da sala de TV vendo todos os filmes estúpidos que estavam passando em um dos canais. Já devia ser mais de seis horas da tarde – tia Sabrina nunca chegava do trabalho antes disso.
  - Oi, tia! – respondi me levantando. – Que bom que já chegou. Eu queria te apresentar o . – sorri para tia Sabrina.
  - Muito prazer, Srta. . – falou estendendo a mão para que ela apertasse.
  - Me chame de Sabrina, por favor, . E o prazer é todo meu. A quase nunca fala sobre as coisas que acontecem com ela, mas você deve mesmo tê-la impressionado. Você foi o único assunto dessa menina nas últimas semanas. – ela disse com um sorriso malicioso no rosto.
  - Meu Deus, que grande mentira, tia!
  - Se é mentira, por que você está tão vermelha, meu anjo? – Sabrina perguntou fazendo com que eu corasse intensamente. riu alto e eu o acompanhei automaticamente. – Me desculpe por não te dar a atenção que merece, , mas eu preciso de um banho. Você vai ficar para o jantar?
  - Não posso. Jantar em família é uma das regras da minha casa. Mas podemos marcar algum dia. Assim, eu aviso a minha mãe com antecedência.
  - Está certo! Bom, espero te ver aqui com frequência, ok? – minha tia acrescentou andando até a porta da sala.
  - Eu também espero. – respondeu pegando a minha mão.
  Três segundos depois que minha tia nos deixou a sós, e enquanto eu ainda pensava nos pensamentos de – que incluíam uma forma de ser silencioso ao me jogar no sofá da minha própria sala -, ele pegou minha mão, me puxou para junto de si e me abraçou apertado, afundando seu rosto nos meus cabelos e me erguendo do chão alguns centímetros.
  - Ei! – protestei com uma risada. simplesmente me abraçou mais apertado ainda. – Tá me esmagando, ! – reclamei quando o aperto machucou um pouco as minhas costelas.
  - Eu sou muito sortudo, não sou? – ele disse se afastando de mim minimamente. Levei minha mão até o seu rosto perfeito e afundei os dedos nos cabelos sobre uma de suas têmporas. Eles eram tão macios quanto aparentavam ser.
  - Não, eu sou muito sortuda. – respondi sinceramente.
  - Mesmo depois de tudo o que descobriu sobre mim e sabendo que aquilo não é tudo, você ainda acha que é sortuda? Eu não sou perfeito, .
  - Eu também não sou perfeita, .
  - Prove. – ele me desafiou. E por um instante cogitei a possibilidade de contar-lhe tudo. Desde os meus pseudocrises em Beaufort na época em que eu era uma grande vadia, até minhas habilidades assustadoras.
  - Minha família morreu por minha causa. – falei em vez de ser verdadeira como ele e expor minhas fraquezas.
  - Essa é a sua opinião. – ele respondeu me lançando um olhar reprovador.
  - Eu sou uma bagunça ambulante.
  - Eu não gosto de nada certinho. – fez uma cara de desdém, como se ser certinha fosse a pior coisa do mundo. Eu ri alto novamente. – ? – ele murmurou o meu nome enquanto eu ainda ria.
  - Sim?
  - Quer namorar comigo? – sussurrou aproximando seus lábios dos meus quase a ponto de tocá-los. Seu hálito era de refrigerante e pipoca, provavelmente como o meu, mas sentir sua respiração na minha face daquela forma foi o bastante para que eu ficasse desnorteada. Todos os meus sistemas pareciam fora de controle então, e meu coração quase saía pela goela de tão forte que batia.
  - S... – foi tudo o que consegui pronunciar, porque os lábios dele tocaram os meus interrompendo a palavra.
  Sim, eu definitivamente era a pessoa mais sortuda do mundo.

***

  - Não é estranho que o Caleb tenha faltado de aula a semana inteira? – comentou comigo enquanto estávamos no colégio, na fila para pagarmos o almoço. conversava com suas novas amigas animadoras de torcida em uma mesa próxima a nossa, mas estava com uma cara de poucos amigos já há alguns dias. Novamente, agradeci a Deus em pensamento por meu antídoto contra auras e mentes frenéticas estar sentado a três metros de distância de onde eu estava naquele instante procurando uma música para me mostrar em seu iPad.
  - A não te contou o porquê do sumiço dele? – perguntei tirando o dinheiro do bolso para pagar pela pizza.
  - Ela disse “Para quê você está perguntando, ? Para contar para a depois?”. – fez uma imitação quase perfeita da voz de arrancando-me uma gargalhada. – Daí eu mandei ela pra puta que pariu e saí de perto. – ele deu de ombros fazendo-me rir mais ainda.
  - Quando o Caleb voltar ela melhora esse humor.
  - Só espero que ela esteja na minha peça amanhã. Porque se a não for, eu juro que deserdo essa garota de uma vez por todas, . – disse e parecia mesmo estar falando sério.
  - Relaxa, . É claro que ela não vai perder a sua peça! E você vai arrasar! – pisquei para o meu melhor amigo e ele jogou os cabelos, que já estavam caindo sobre os olhos, de lado.
  - Obrigado pela força, amiga. Você é a mais diva de todas! – ele me deu um beijo no rosto e caminhou até o caixa para pagar sua comida.
  Paguei meu almoço, e então me sentei ao lado do meu namorado. pegou o pedaço de pizza da minha bandeja comprada para ele e virou seu iPad na minha direção.
  - Essa música te descreve completamente. – ele falou depois de engolir o que estava mastigando e deu play no reprodutor. A voz de Bruno Mraz soou baixo no refeitório barulhento, mas foi alto o bastante para que eu entendesse cada frase da música.

When I see your face
There's not a thing that I would change
'Cause you're amazing
Just the way you are
And when you smile,
The whole world stops and stares for a while
'Cause girl you're amazing
Just the way you are

  Essa parte, o refrão, foi a que mais me chamou a atenção porque, bom, era exatamente assim que eu enxergava .
  - O nome é Just The Way You Are. – disse pausando a música na metade. Balancei a cabeça em negação dizendo para mim mesma que não, não era possível que ele me visse daquela forma. – O que foi? Não gostou? – ele perguntou com o cenho franzido.
  - Você não existe, sabia? – sorri para ele e beijei de leve os seus lábios. A sensação de alegria foi a única coisa que consegui perceber ao tocá-lo, o que me fez imaginar que sua aura estaria rosa choque se eu pudesse enxergá-la.
  - Existo. E você terá que me aturar por um bom tempo ainda, Srta. .
  - Espero mesmo que sim, Sr. . – copiei sua forma de dizer “Srta. ” ao falar o “Sr. ”, e então fiquei submersa no sorriso perfeito dele até que meu estômago se contorceu de fome fazendo com que comer se tornasse a minha prioridade no momento.

  O dia seguinte chegou, e com ele a apresentação tão esperada por . Assim, duas horas antes do início da peça, liguei para uma floricultura e pedi que entregassem dezenas de tulipas – as flores favoritas do meu melhor amigo – em seu camarim no teatro onde a apresentação aconteceria, e corri para me arrumar. Eu havia separado um vestido azul marinho curto tomara-que-caia e scarpins pretos para usar naquela noite, tirado as teias de aranha dos meus estojos de maquiagem e ressuscitado minhas habilidades tão exercitadas antes para deixar o rosto perfeitamente pintado. Fiz babyliss nos cabelos e prendi algumas mechas nas laterais deixando a franja de lado, do jeito que havia me ensinado alguns dias antes.
   chegou para me buscar quando eu terminava de descer as escadas.
  - Uau! – ele disse arregalando os olhos quando me viu. – Mil vezes uau!
  - Você leu meus pensamentos? Eu ia dizer o mesmo sobre você! – E, bom, eu ia mesmo.
estava incrível metido em um terno preto perfeito, com uma camisa também preta por baixo e uma gravata azul da cor do meu vestido. O terno era exatamente do tamanho do corpo maravilhoso dele, e mesmo sobre 10 centímetros de salto, eu ainda ficava mais baixa. – O te deu essa gravata, não deu?
  - Deu sim. – ele riu. – E me ameaçou caso eu não a usasse. Agora eu entendo o motivo. – disse medindo-me dos pés a cabeça de novo.
  - Bom, então vamos, né? – ele ofereceu seu braço para mim e eu estava muito mais exuberante em seus pensamentos quanto o espelho havia me mostrado.

  A peça de foi fantástica. Ele atuou ainda melhor do que eu me lembrava das aulas de teatro que tivemos juntos no ano anterior. Observei todo o auditório do local da apresentação por várias vezes buscando ali no meio, mas não a encontrei.
  - Você estava incrível! – eu disse adentrando o camarim do meu melhor amigo. As tulipas estavam espalhadas por todo o local e abriu um sorriso enorme assim que o elogiei.
  - Obrigado, ! – respondeu me abraçando. – E muito obrigado pelas tulipas! Me senti uma celebridade quando entrei aqui e vi esse tanto de flor.
  - Você será uma celebridade logo, tenho certeza disso.
  - Você viu a ? – perguntou pegando seu celular dentro do bolso do roupão que estava usando provavelmente para cobrir o figurino da peça.
  - Hã... Eu não procurei por ela. – menti, e não fui nada convincente daquela vez. me encarou com o ceticismo estampado na cara.
  - Certo. Vou esperar alguns minutos aqui pra ver se ela aparece para falar comigo. Vocês podem ir para a festa já, se quiserem.
  - Não, nós vamos esperar você. – falei e fui para o corredor do lado de fora do camarim para esperar junto com enquanto se trocava e não aparecia.
  Esperamos por quase uma hora até que um triste e com os olhos marejados apareceu no corredor dizendo que estava pronto para irmos para a festa.
  - ...
  - Deixa pra lá, . Eu devia ter feito como você há mais tempo e me afastado da de uma vez por todas. – disse esfregando de leve seus olhos. – Bom, temos uma festa para curtir, então vamos indo. – completou forçando um sorriso.
  Agora sim havia passado dos limites! E por menos que eu quisesse olhar na cara dela ou lhe dirigir a palavra, ver meu melhor amigo deprimido por causa do seu egoísmo me fez sair da minha casa minutos depois de ter me deixado ali após a festa para ir até onde morava dizer-lhe algumas verdades.
  Assim, parei meu carro no acostamento da casa de e bati a campainha. Ela não atendeu na primeira vez, mas continuei batendo a campainha a cada três minutos porque eu estava decidida a não sair dali antes de conversar com ela. Finalmente, ela abriu a porta para mim e seu rosto estava tão vermelho e seus olhos tão inchados que só pude deduzir que ela havia passado boa parte da noite chorando.
  Eu tinha de confessar: aquilo me desarmou. Talvez tivesse alguma boa justificativa para ter faltado à peça de , afinal.
  - ? Não está um pouco tarde para você vir até aqui?
  - Eu sei que está tarde, , mas eu preciso falar com você. É sobre a peça do ... Ele ficou muito chateado porque você não foi. – falei bem mais calma do que pretendia quando decidi ir até ali. - Mas acho que você teve seus motivos, certo? – completei porque ela apenas ficou me encarando como se estivesse processando aos poucos as minhas palavras.
  - Se você puder entrar, eu te explico o que houve. – disse para a minha surpresa abrindo caminho e indicando o interior de sua casa.
  - Você não precisa me contar nada se não quiser. – respondi imaginando que provavelmente eu não era exatamente a pessoa para quem ela gostaria de contar seus problemas.
  - Eu preciso contar, . Quero dizer, eu acho que preciso que você escute. – seus olhos agora me imploravam para ficar. E eu nunca tive mais compaixão de em todo o tempo que a conhecia quanto daquela vez.

20. Tempo

  - Então, o Caleb chegou de viagem ontem. Ele esteve aqui e nós ficamos sozinhos. As coisas evoluíram um pouco, mas eu não tive coragem de continuar. Você sabe, seria a minha primeira vez e eu só o conheço há um mês. Pareceu meio precipitado. O Caleb ficou um pouco frustrado no início, mas disse que entendia, que estava tudo bem. Daí nós dormimos abraçados, mas não aconteceu nada de verdade. – contava a história olhando para o nada, constrangida demais para me olhar nos olhos. Seus pensamentos me mostravam as cenas que ela ainda se lembrava e eu gostaria de ter por perto para evitar tantos detalhes. Além disso, não precisaria que ela chegasse ao final para saber que as coisas não haviam acabado bem. – O Caleb foi pra casa de manhã dizendo que não iria para a escola porque não estava a fim, mas que voltaria aqui depois do colégio para conversarmos. Daí ele trouxe vinho e tudo mais, eu bebi um pouco e já estava um pouco alterada. Ele falou que eu devia me lembrar que várias garotas fariam de tudo pra ficar com ele, mas não disse com grosseria nem nada... Enfim, acabou que nós transamos. Ele disse que foi incrível e tudo mais, só que precisava ir embora. Daí, eu estava indo para a peça do e decidi passar na casa do Caleb antes, porque ele mora perto do teatro mesmo. A empregada me atendeu e eu fui até o quarto dele... – parou um instante para secar as lágrimas que esparramaram pelo seu rosto antes de continuar: - E Georgia Wilson estava com as pernas no pescoço do meu até então namorado. – ela sorriu para mim sem humor algum. Ver em sua mente a imagem de Caleb com Georgia foi tão perturbador que minha cabeça começou a doer intensamente. A lembrança também tornou a aura cinza claro de em um tom grafite, bem próximo do preto.
  - ... – comecei a dizer aproximando-me dela no sofá da sala de sua casa. – Eu nem posso imaginar o quanto isso está doendo em você agora, mas tenha certeza de uma coisa: quem cometeu um grande erro foi o Caleb. Porque ele não soube valorizar uma pessoa que claramente faria qualquer coisa por ele. – chorou por alguns instantes e então eu a abracei, esperando reconfortá-la de alguma forma.
  - Pensei que a primeira coisa que você diria seria “eu te avisei”. – ela riu baixinho.
  - Eu jamais diria isso a você. Eu até esperava que o Caleb seria um idiota com você, mas não pensei que ele chegaria tão longe... – falei sinceramente.
  - Eu deixei que ele chegasse tão longe, né? – se afastou de mim e voltou a secar seu rosto.
  - Flor, vou te dizer uma coisa que talvez não te ajude tanto, mas acho que é uma forma diferente de ver as coisas. – me encarou esperançosa, atenta ao que eu diria em seguida. – Tire sexo do pedestal. Nós idealizamos tanto a primeira vez que quando ela acontece assim, nós desmoronamos. Eu sei que você se sente usada agora, mas tente pensar que não é o fim do mundo. O cara certo pra você não vai se preocupar se você é virgem ou como ou com quem você perdeu a sua virgindade. Seu príncipe encantado que, acredite em mim, ainda está lá fora esperando o momento certo de vir te resgatar, vai te amar de qualquer jeito. Arrependimento é o pior sentimento do mundo, principalmente quando não há mesmo como concertar as coisas. Então, não se arrependa mais. Pense que foi uma experiência que você precisava viver e que te ensinou a ser uma pessoa mais madura depois.
   sorriu largamente para mim e me abraçou de supetão. Ela não disse nada, mas eu podia ler seus pensamentos aliviados e ver sua aura ficar levemente verde. Se a minha aura pudesse ser vista por alguém naquele momento, certamente ela estaria cor de rosa, porque eu realmente estava feliz por ajudar de alguma forma.

   voltou a sentar-se conosco na hora do almoço e simplesmente passou a ignorar Caleb e sua nova peguete, assim como , e eu.
  Quatro semanas se passaram e a época de preencher as fichas para as universidades chegou junto com o campeonato estadual de basquete. Por isso, estava treinando muito mais que o normal e eu estava dirigindo até a escola todos os dias porque não podíamos depender da carona dele mais.
  - No Brasil, eu poderia encher a cara nesse sábado. Não sei por que nossa maior idade precisa ser 21 anos. – resmungou enquanto andávamos no estacionamento até a Mercedes. me lançou um olhar de soslaio, provavelmente querendo dizer que estava louca para ver a cara de quando visse a festa surpresa fantástica que estávamos planejando para ele.
  - Bom, nós podemos beber de qualquer modo. Tia Sabrina vai viajar nesse final de semana porque foi convidada para ser madrinha de casamento de uma amiga no Montreal, então a casa estará livre para uma festinha do pijama. – anunciei.
  - Jura? Essa é uma ótima ideia, ! O não vai ligar mesmo se roubarmos você em pleno sábado? – meu melhor amigo perguntou com os olhos brilhando de alegria.
  - É como eles mesmos dizem, : “Brows antes de... namorados louros lindos”. – e riram do meu improviso.
  Coloquei a chave na maçaneta da porta do carro e então a mão de no meu braço e a sensação de raiva que senti quando ele me tocou fez com que eu interrompesse o que estava fazendo.
  - Posso ir embora com você hoje? – ele perguntou com a voz estranha.
  - O quê? Mas você veio no seu próprio carro hoje, . O que aconteceu?
  - É, você tem razão, mas eu não estou em condições de dirigir. – ele completou com a mesma expressão e o mesmo tom alterado. Alguma coisa havia acontecido desde que nos despedimos na aula de Matemática no penúltimo horário até aquele instante. E algo me dizia que havia o dedo de Caleb nessa história.
  - Hum, ok. Cadê as chaves da BMW? – pedi e ele as tirou de um dos bolsos depois de ponderar alguns segundos no que eu disse.
  - e , algum de vocês quer dirigir hoje? – perguntei e os dois começaram a discutir sobre quem levaria o carro de , enquanto o dono do veículo ficava cada vez mais esquisito ao meu lado.
  - Gente! Tirem par ou ímpar, ou sei lá. Aqui estão as chaves. Cuidado com o limite de velocidade ou vocês dois quem vão pagar as multas, ok? – avisei e eles assentiram. – Mais tarde nós vamos até a casa de vocês pegar o carro. Tchau! – eu disse aos meus amigos e então indiquei o carro para que entrasse. Segundos depois, estávamos deixando o estacionamento do colégio enquanto ele respirava fundo na tentativa de se acalmar.

  Havia uma eternidade que estávamos sentados no sofá da sala da casa de tia Sabrina. continuava encarando o teto com um copo de água nas mãos, e a curiosidade já estava me consumindo. Toquei seu braço, suas costas, seu rosto várias vezes, mas ele parecia estar tentando não pensar porque nada aparecia além da sensação de angústia que era provavelmente uma expressão de sua aura invisível.
  - Está mais calmo? – perguntei pela enésima vez.
  - É, acho que tô. – ele respondeu colocando o copo sobre a mesinha de centro. Bom, finalmente algo além de “não” escapou dos lábios dele.
  - O que houve, ?
  - Nós saímos da aula de Física porque o treinador do time disse que precisava da gente mais cedo na quadra. – ele falou e respirou fundo. – Ele nos reuniu para dizer que Felix Carter estava fora do time porque encontraram droga no armário dele. Adivinha quem o treinador recrutou para substituir o Felix? – a pergunta era retórica, mas ele pausou um instante para respirar fundo de novo. – Caleb Aldrin.
  - O quê? Mas o Caleb nem é do time! Ele não deveria pegar algum dos meninos que ficaria de reserva?
  - Segundo o treinador, o Caleb está mais bem preparado do que os outros meninos. Ele fez um teste com o Caleb de manhã, antes das aulas do dia, e chegou a essa conclusão.
  - Ok... Se o Caleb joga tão bem, será bom para o time então, não?
  - Foi o que eu tentei pensar a princípio. Mas nós saímos da reunião e fomos para o vestiário porque o treino começava em alguns minutos. Daí o Caleb veio falar comigo. E resumindo a conversa: ele armou essa confusão para tirar o Felix do time. – levou as mãos aos cabelos e colocou a cabeça entre as pernas, como se estivesse tentando conter um ataque. – Vai começar todo o inferno de novo, ! Eu já posso ver isso acontecendo. Eu nunca deveria ter entrado pra essa droga de time! Eu arrasto essas merdas atrás de mim! – ele quase gritou e aquilo me surpreendeu muito. Eu nunca tinha visto tão alterado.
  - Você tentou fazer o Caleb mudar de ideia? – perguntei sem saber o que dizer exatamente.
  - Eu enfiei um soco na cara dele quando o filho da puta disse que tinha dado o jeito dele de entrar no time. Os meninos nos seguraram antes que ele devolvesse a gentileza. E o treinador me suspendeu dos treinos por dois dias para que eu “esfriasse a cabeça”. Por sorte eu não sou capitão do time. Se fosse, teria perdido a posição com certeza.
  - Caramba, ver você batendo no Caleb definitivamente é uma coisa que eu não queria ter perdido. – falei com uma risada tentando aliviar um pouco o clima. sorriu de leve, mas sua expressão logo ficou dura de novo. – ... Relaxa. – eu disse sentando-me no seu colo. – Eu sei que o Felix provavelmente vai ter grandes problemas agora, mas vamos pensar num jeito de mostrar que a culpa é do Caleb, não dele. E as coisas não vão ser como na Manhattan High nunca novamente, porque você não é aquele e jamais será outra vez. – Olhei bem no fundo dos seus olhos querendo poder imitar a sua forma de transmitir toda a paz e segurança do mundo simplesmente através de um olhar.
  - Você tem razão. – me abraçou apertado e senti a sensação de raiva se esvaindo aos poucos. Depois de alguns segundos, tudo o que ele irradiava era carinho. E então meu namorado começou a cantar Just The Way You Are no meu ouvido, fazendo-me sorrir como uma idiota e rir alto a cada vez que ele forçava uma imitação o Bruno Mars nas entonações.

  Alguns dias se passaram, e estava mais mal humorado a cada vinte quatro horas que se passavam. Não que ele estivesse descontando suas frustrações em mim, mas eu percebia que ele estava se esforçando muito para manter o controle. E foi por isso que decidi fazer um piquenique para nós no final de semana antes da festa de e 15 dias antes do início do campeonato.
  - Você sabe que eu odeio surpresas, né? – resmungou ao meu lado dentro do carro.
  Eu dirigia minha Mercedes até uma das reservas naturais da cidade próxima à praia. O dia não estava quente, mas a temperatura não estava tão baixa assim. Além disso, aquele lugar era tão lindo que até compensava o vento gelado.
  - Eu juro que você vai adorar esta aqui. – respondi e afaguei seu joelho por um instante.
  - Precisava mesmo dessa venda chata? – meu namorado reclamou mexendo no lenço que eu havia usado para tampar seus olhos.
  - Nem pense em tirar isso, mocinho. – avisei usando meu tom de voz mais ameaçador. Ele levantou as mãos como quem se rende e respondeu com uma risada.
  Passamos os próximos cinco minutos em silêncio com apenas a música que tocava no rádio, e que eu não conhecia, preenchendo o espaço. Finalmente, chegamos ao estacionamento do parque, então parei meu carro na primeira vaga que encontrei e tirei o cinto de segurança, desafivelando o de logo em seguida.
  - Já chegamos? – ele perguntou parecendo se dar conta de que não estávamos mais em movimento.
  - Já. Mas não tire a venda ainda.
  Saí do carro e peguei no porta-malas a cesta de piquenique, a toalha xadrez vermelha e os cobertores que havia separado para o caso da temperatura estar mais baixa do que o planejado. Posicionei tudo em um dos braços e abri a porta do carona para o meu namorado. Ele deixou que eu o guiasse até o lugar onde deixei as coisas, e então eu o arrastei para o meu ponto preferido daquele lugar – porque dali era possível ver o mar de um lado e a silhueta de Seattle se projetando do outro. Posicionei-me atrás de e fiquei nas pontas dos pés para tirar a venda de seus olhos.
  - Pode abrir os olhos agora. – sussurrei ao pé de seu ouvido e sorri automaticamente quando um “uau” escapou de seus lábios.
  - A viagem foi curta... Nós não saímos da cidade. – ele concluiu depois de ponderar por alguns segundos.
  - Não. Estamos em Seattle ainda. – respondi.
  - Que lugar incrível, . – se virou de modo que ficamos frente a frente um do outro.
  - Pois é. E hoje ele é todo nosso. – sorri para ele e o beijei de leve nos lábios, apontando a cesta de piquenique e os cobertores, no lugar onde eu esperava que passássemos o resto do dia abraçados.

  - Qual foi o melhor dia da sua vida? – perguntei olhando nos olhos do meu namorado que tinha a cabeça sobre o meu colo. Eu acariciava seus cabelos louro-escuros lisos demais e fazia desenhos aleatórios na pele de sua testa e de suas bochechas. Pele esta tão perfeita que não contava com sequer uma mancha, pinta ou marca.
  - O dia do nosso primeiro beijo. – ele respondeu me encarando de uma forma que só consegui ficar vermelha de vergonha.
  - Jura mesmo que eu não te assustei?
  - Por que você teria me assustado? – sua testa vincou-se ao fazer a pergunta.
  - Porque eu te agarrei, ué. – ele riu alto deixando-me ainda mais constrangida.
  - , eu acho uma pena que você não tenha feito isso novamente até hoje.
  - Certo. Agora me conte uma das suas lembranças de infância.
  - Não, não. Primeiro me diga você qual foi o melhor dia da sua vida. – ele pediu levantando-se do meu colo, mas mantendo uma de suas mãos junto com uma das minhas.
  - Hoje. Hoje está sendo o melhor dia da minha vida. – sorri para ele.
  - Por quê?
  - Você não me disse por que o dia do nosso primeiro beijo foi o melhor para você. – devolvi estreitando os olhos e recolhi minha mão só para colocá-la novamente em uma de suas pernas. Você sabe por que foi o melhor dia para mim. – Não sei não, . Por que o dia do nosso primeiro beijo foi o melhor para você? – questionei sorrindo.
  - O quê? – ele perguntou com a expressão meio chocada, meio surpresa, meio assustada. E foi então que percebi que eu havia lido os pensamentos dele quando o toquei e foi a esses pensamentos que respondi, não ao que ele havia falado. – ... – ele começou a falar, mas se interrompeu parecendo sem saber o que dizer.
  - Vamos. Responda à minha pergunta. – eu disse, mas minha voz estava tão estranha que ele obviamente perceberia só pelo meu tom que eu estava apenas tentando parecer natural.
  - Bom... – ele disse e ficou calado por alguns longos segundos. Pensei em tirar minha mão de sua perna e tocá-lo de novo para saber o que estava passando por sua mente, mas uma das mãos de estava sobre a minha, impedindo que eu fizesse isso sem parecer ainda mais esquisita. - Você beija muito bem. – ele completou com um sorriso e acariciou meu rosto, beijando-me de leve logo em seguida. – Será que tem banheiro por aqui? Eu preciso de um. – murmurou varrendo o local com os olhos.
  - Hã... Tem um banheiro perto do estacionamento. – respondi quando me lembrei como fazer isso.
  - Ok. Vou lá então. Já volto! – ele beijou minha testa e então se afastou, deixando-me ali com meus pensamentos que me se resumiam a “você é uma estúpida, ”.

  Aquela noite, novamente, eu passei em claro. Parecia ainda mais evidente agora que, quando eu queria desesperadamente sonhar com os pensamentos de , eles fugiam de mim e levavam meu sono junto. Assim, quando ele chegou à minha casa no domingo de manhã para preenchermos as fichas das faculdades juntos e conversarmos sobre as questões que precisávamos responder para as universidades, eu estava um caco.
  - Discorra sobre uma experiência difícil pela qual passou durante a sua adolescência e o que lhe ajudou a passar por essa situação. – leu a questão para mim, mas tudo o que fiz foi continuar olhando para o seu rosto lindo sem articular nenhuma palavra. – , o que foi? Não dormiu essa noite? – ele perguntou colocando uma das mãos na minha testa como se estivesse verificando a minha temperatura. Seus pensamentos se resumiram a um quadro mental onde eu dormia em seu colo na minha cama.
  - Não, não dormi. Eu tenho essas crises às vezes. – bocejei pensando que eu não podia desejar saber o que ele estava pensando de novo. Eu até conseguia aguentar uma noite insone, mas duas já era demais para quem não dormia mais que trinta horas por semana.
  - Vem cá, então. – ele disse pegando-me pela mão e fazendo com que eu abandonasse minha escrivaninha à frente da qual estávamos sentamos a menos de uma hora e fosse me deitar na minha cama. posicionou-se ao meu lado, deixando que eu abraçasse o seu tronco e apoiasse a minha cabeça em seu ombro.
  - Essa pergunta é fácil. – murmurei depois de algum tempo de olhos fechados e sentindo o melhor cafuné do mundo: o cafuné feito por . – Eu vou falar sobre a morte da minha família. Essa foi a experiência mais difícil da minha adolescência.
  - Acho que eu poderia escolher facilmente um episódio da minha vida também. Falar de experiência difícil será mamão com açúcar... – ele disse, mas eu já estava com a mente distante, quase submersa no inconsciente.

21. Motivos

  Eu tinha quase cem por cento de certeza de que estava sonhando, mas algo no fundo da minha mente ainda me fazia questionar este fato. Era muito estranho que eu estivesse no meio daquela avenida sozinha, em uma noite escura e tão fria, vestida apenas com um short jeans curto e uma camiseta fina. Andei por ali pelo que pareceu muito tempo até que avistei uma garota que parecia ter a minha idade. Ela tinha cabelos avermelhados, a pele era tão branca quanto a minha e ela estava usando as mesmas roupas que eu, exceto por um lenço rosa enrolado em seu pescoço – eu não estava usando nenhum acessório. Abri a boca para cumprimentá-la e perguntar se ela sabia onde estávamos, mas a moça se pronunciou primeiro:
  - Olá, . – ela disse sorrindo para mim.
  - Oi... – respondi relutante. – Eu te conheço?
  - De certa forma. – a garota deu de ombros. – Meu nome é Perséfone. Eu sou sua “anja da guarda”. – ela fez as aspas com as mãos e contorceu o rosto bonito em uma careta ao se denominar desta forma. – Não gosto de me referir a mim mesma dessa forma, mas vocês seres humanos não tem uma compreensão muito boa sobre o que somos para inventar um termo mais apropriado.
  - Minha... anja da guarda? – questionei confusa. Perséfone rolou os olhos, mas assentiu. – Então a sua função é me proteger? Cuidar do meu bem estar? – perguntei com o ceticismo estampado na cara.
  - A minha função é te dar a direção certa.
  - Isso faz mais sentido. Eu definitivamente não tive ninguém me protegendo nos últimos tempos. – falei um tanto amargurada. Eu não sabia se acreditava na história de anjo da guarda, mas me lembrava de já ter culpado o meu muitas vezes pela minha falta de sorte.
  - Você pensa assim porque não faz a menor ideia do que é ser protegida ou mesmo do que significa ter sorte. De verdade, , você é a pessoa mais mal agradecida que eu já vi neste mundo.
  - Mal agradecida? – perguntei irritada pela acusação dela.
  - Sim. Você só sabe se lamentar por ter perdido sua família, porque o te traiu com a sua melhor amiga, porque é capaz de ler os pensamentos das pessoas e ver auras...! Se eu pudesse resumir a sua mente em uma palavra, esta seria reclamações. – minha anja da guarda ou o que quer que aquela garota fosse falou em tom de repreensão.
  - E eu deveria fazer o quê? – quase gritei para ela. Aquilo não era justo! – Agradecer a Deus por ter tirado a minha família de mim? Saltitar de felicidade porque meu ex-namorado me traiu com a pessoa em quem eu mais confiava na época? Achar um máximo viver com um monte de vozes na minha cabeça?!
  - Deveria sim. Deveria agradecer a Deus porque você sobreviveu. Deveria agradecer porque você ficou livre de dois belos Judas Iscariotes. O e a Kate te fizeram um favor quando saíram da sua vida! E acho que você nunca entenderia sozinha o propósito de ser capaz de ler mentes. – Perséfone respondeu.
  - Propósito? – eu ri sem humor algum completamente cética quanto a isso. A garota ruiva que parecia menos humana a cada segundo que passava, o que estava quase me convencendo de que ela realmente era algum ser designado nem que fosse para me dar respostas, suspirou alto.
  - , você ainda não está pronta para saber tudo o que realmente está envolvido na morte da sua família, nas suas habilidades, no fato de ser a única pessoa cuja mente você não pode ler e ainda ser capaz de calar as demais...
  - Você sabe os motivos pra tudo isso? Você tem uma explicação pra essas coisas? – interrompi Perséfone e minhas perguntas quase suplicavam para que ela me dissesse tudo o que sabia. Me aproximei dela pensando em agarrar-lhe pelo braço e sacudi-la até que ela me desse explicações, mas ela se afastou no mesmo instante que caminhei em sua direção.
  - Eu sei. E vou te dizer no momento certo. – ela me lançou um olhar que parecia pedir que eu não a interrompesse mais no mesmo momento que abri a boca para implorar que ela me falasse naquele instante tudo o que sabia sobre mim. – Hoje eu quem quero respostas.
  - Como é? – eu não esperava que a conversasse tomasse este rumo. Como eu poderia ter respostas que ela já não possuísse?
  - Eu sei tudo sobre a sua vida. Eu te observo a maior parte do tempo. Eu posso ler seus pensamentos. Mas eu não consigo entender por que você não confia em .
  - Quem disse que eu não confio nele?
  - Você já lhe contou sobre as suas habilidades? Já falou com ele sobre a vez que você pegou o dinheiro dos seus pais para se divertir com as suas amiguinhas? Já contou sobre Tess Williams? – as palavras me Perséfone foram um belo tapa na cara. Um forte e merecido tapa na cara.
  - Eu... – foi tudo o que eu consegui murmurar e então me calei por completo.
  - , você ainda tem dúvidas de que o é diferente das demais pessoas? Sim, porque parece que o fato dele ser o único que é tão normal quanto poderia ser para você não parece convencê-la o bastante disso.
  - Mas o que eu devo fazer? Simplesmente dizer “, sente aqui que eu preciso te contar sobre os podres que já cometi na minha vida. Ah, e a propósito, eu posso ler mentes e ver auras de todo mundo, exceto a sua”? E se ele não entender... E se... – me calei apavorada por sequer dizer em voz alta o que eu mais temia: que me olhasse como se eu fosse louca e nunca mais aparecesse no meu campo de visão novamente.
  - É como dizem, : confiança é simplesmente confiar. Não existe receita pra isso. Você só aprende a confiar em alguém confiando. – Perséfone disse com um tom condescendente. Ela então deu as costas para mim e começou a andar.
  - Ei! – gritei andando atrás dela. – O que a minha confiança no tem a ver com as explicações sobre a loucura que é a minha vida?
  - Quando você aprender a confiar nele, você terá as respostas que tanto deseja. Mas não pense que simplesmente abrir o jogo com ele vai me dizer que você confia de verdade no garoto. Você sabe que existe muita coisa envolvida em um pensamento. – ela piscou para mim e sorriu. Então, Perséfone desapareceu no horizonte. Um vento gelado soprou em seguida fazendo com os pelos do meu braço se arrepiassem. Junto com o vento, o lenço cor de rosa que estava no pescoço da garota ruiva que dizia ser meu anjo da guarda voou na minha direção. Peguei o pedaço de pano no ar e fiquei encarando-o até que despertei.

  Abri os olhos e meu quarto já estava escuro. Por quanto tempo eu havia dormido? O braço de estava sobre o meu tronco, o que fez com que eu ficasse com medo de mexer na cama – eu não queria acordá-lo. Levantei um pouco a cabeça para olhar ao meu redor, procurando conferir se eu estava mesmo na casa de tia Sabrina, não em uma estrada no meio do nada. Foi então que vi o lenço rosa repousando sobre a minha cadeira da escrivaninha e fiquei tão arrepiada quanto se outra onda de vento frio tivesse passado por mim.
  - Hmmmmm... – murmurando atrás de mim foi o que me fez voltar à realidade. – ? – ele chamou o meu nome com a voz de sono mais fofa que eu já havia escutado na vida.
  - Oi?
  - Acordou faz muito tempo? – ele perguntou tirando o braço de sobre mim. Virei-me para encarar seu rosto lindo e lá estava eu sorrindo feito idiota só por ver a expressão relaxada dele.
  - Não. Acabei de acordar também. – sentei-me na cama e vi que o céu já estava escuro lá fora. – Nós dormimos a tarde toda. – concluí e senti meu estômago contorcer-se de fome.
  - Agora vamos ter que passar a noite toda resolvendo as coisas das faculdades. – riu.
  - Tudo bem. Mas primeiro... – aproximei-me dele tentando colocar uma expressão bem ambígua na cara. Beijei de leve seus lábios macios e quentes antes de concluir a minha frase: -...vamos comer alguma coisa. – afastei-me de e saltei da cama. – Estou morrendo de fome!
  Pedimos uma pizza para o jantar. Eu comi dois pedaços e finalizou o restante da comida. Tia Sabrina não estava em casa – e eu não fazia ideia de onde ela poderia ter ido. Depois que terminou de tomar o quarto copo grande de Coca, voltou a olhar para mim, percebendo que eu havia passado os últimos minutos admirando a sua comilança.
  - O que foi? – ele perguntou passando a língua sobre os lábios vermelhos.
  - Nada. – sorri. – Estava admirando o seu banquete. Eu te fiz mesmo passar fome hoje, hein?
  - Ah, não se preocupe com isso. Eu não tenho limites quando a pizza é tão boa.
  - Hmm... Acho que nós temos sorvete. – eu disse e me levantei. Nós estávamos sentados à mesa da cozinha, eu do lado de . Então, quando me coloquei de pé, ele se levantou também e me abraçou por trás. No segundo seguinte, seus lábios frios por causa do refrigerante já estavam no meu pescoço fazendo com que eu me arrepiasse por completo e só pensasse no mesmo que seus pensamentos revelaram: na minha cama no segundo andar.
  “Eu não consigo entender por que você não confia em .” As palavras da garota ruiva do meu sonho, que eu ainda não sabia se fora só um sonho mesmo, ecoaram dentro da minha cabeça. Eu confiava de verdade nele? Se não, qual era o motivo, afinal? Eu sabia que perder a minha família e descobrir que as pessoas são muito piores do que imaginamos quando conhecemos a mente delas fez com que eu endurecesse. Sim, eu sabia disso. A aberta, receptiva a novas coisas, livre de amarguras, foi enterrada junto com a minha mãe, meu pai, minha irmã mais nova e meu cachorro, mais de um ano atrás. Eu só não havia me dado conta ainda do quanto isso me prejudicara.
  Uma das mãos de repousou sobre o lado direito do meu quadril, e ele me apertou com força. Foi neste instante que desisti de ser durona e decidi me deixar levar. Assim, pus-me de frente para ele, coloquei minhas mãos em sua nuca e puxei seu rosto para mim, beijando-o com toda a vontade que eu sentia. Sem dificuldade alguma, ergueu meu corpo e me colocou sobre o balcão da cozinha. Envolvi seu tronco com as minhas pernas e continuamos nos beijando como se o mundo fosse acabar na próxima hora.
  - Você quem vai decidir até onde isso vai, ok? – disse quando nos afastamos para recuperar o fôlego. Minha resposta foi erguer sua camisa, de modo que ele entendesse que eu queria que ele ficasse sem ela.
  - Eu ainda não sei até onde isso vai... – falei e depositei um selinho demorado em seus lábios. – Mas podemos continuar no meu quarto? – perguntei. Ele sorriu para mim e me pegou no colo.
  - Você vai conseguir subir as escadas segurando 50 quilos?
   não me respondeu. Ele simplesmente continuou andando, e pouco tempo depois, estava me jogando na minha cama e empurrando a porta do meu quarto com o pé. Antes que eu parasse para pensar em qualquer coisa, cobriu meu corpo com o seu e voltou a me beijar. Ele limitou-se a apertar minha cintura com uma de suas mãos e manteve a outra nos meus cabelos, pouco acima da nuca. Eu ainda não havia decidido até onde me deixaria levar, mas meus instintos pediram que eu colocasse a mão dele na minha perna e foi o que fiz; em resposta, ele me apertou com força e pude sentir um sorriso se formando em seus lábios antes que ele se afastasse para recuperar o fôlego. Desta vez, eu quem mantive minha boca na pele dele e fiz um rastro de beijos com mordidas, desde a base de sua mandíbula até seu ombro nu – a camisa de já estava abandonada no chão da cozinha.
  - Eu estou tentando me comportar... – ele murmurou com a voz tão afetada que me senti ainda mais encorajada a continuar beijando seu peito bem definido. – Mas você está tornando isso muito difícil. – completou com uma risada.
  Levantei meus olhos para os dele e, naquele momento, pareceu muita tolice da minha parte ter qualquer dúvida sobre colocar-me nas mãos dele de todas as formas possíveis. Pare de pensar um pouco e faça o que quer, . Você só aprende a confiar confiando.
   sentou-se na cama, mas continuou me encarando. Levantei-me para sentar-me em seu colo, as pernas abertas, meu peito colado com o dele. Posicionei minhas mãos em sua nuca novamente e me aproximei tanto dele que cada centímetro de nossos corpos pareciam se encaixar perfeitamente.
  - Eu não quero que você se comporte. – falei não mais alto que um sussurro olhando dentro de seus olhos castanho-dourados incríveis, que pareceram queimar de empolgação com as minhas palavras.
  - Eu amo você, . – disse quase tocando meus lábios.
  - Eu também amo você. – respondi antes que ele me beijasse de novo, apertando-me contra si daquela forma que me dava tanta certeza de que eu não precisaria pensar para ter certeza de que o queria, de todas as formas possíveis. De que eu confiava nele, muito mais até do que me permitia admitir.

  Eu sabia como era fazer sexo. Teoricamente. Já haviam me contado como era a mecânica da coisa e alguns filmes que assistira, mesmo sendo censurados, demonstravam basicamente o que acontecia. Não, eu não era nenhuma puritana, mas também não havia assistido a nenhum pornô. E nenhum demonstraria a primeira vez de alguém, de qualquer modo. Bom, pelo menos eu pensava que não. Provavelmente, não importaria mesmo o quanto eu soubesse sobre sexo. A primeira experiência com certeza lhe ensina muito mais do que ler enciclopédias sobre o assunto.
  - É a sua primeira vez, né? – perguntou, já nu diante de mim. E eu ainda estava tão encantada admirando seu corpo perfeito, e tão apavorada com o que aconteceria a seguir, que nem tinha certeza se estava lhe escutando direito.
  - Uhum. – foi tudo o que consegui responder.
  - Tem certeza de que quer mesmo continuar?
  - Por quê? Você não tem? – questionei, embora nada do que ele dissesse agora fosse me convencer do contrário.
  - Eu quero você. – ele falou e me deu um selinho antes de puxar a minha calcinha finalmente. fez uma expressão de gula tão fofa, que de repente me senti a pessoa mais linda do mundo.
  Enquanto ele abria a camisinha, no entanto, ouvi o barulho de minha tia subindo as escadas e conversando ao telefone. congelou onde estava, a expressão provavelmente tão assustada quanto a minha.
  - O que a sua tia pensaria sobre isso? – ele perguntou procurando sua boxer branca pelo chão do meu quarto.
  - Eu não sei. Nunca conversei com ela sobre isso.
  - Ela não deve se importar... – ele começou a dizer, mas mesmo assim vestiu sua roupa de baixo.
  - Talvez não... Mas talvez sim. – respondi desculpando-me com os olhos. – Acho que não era pra isso acontecer hoje.
  - Ok. – ele engoliu em seco, mas sorriu para mim. Catei minhas roupas também e comecei a me vestir. Quando terminei, percebi que estava somente de shorts e chinelos.
  - Onde está a sua camisa? – meu namorado abriu a boca para me responder, e então ouvimos duas batidas na porta do meu quarto.
  Nós nos encaramos por um segundo antes que eu atendesse. Tia Sabrina segurava a camisa de em uma das mãos, mas sua expressão estava relaxada e ela tinha um sorriso nos lábios.
  - Encontrei isso lá embaixo. – ela disse passando-me a peça de roupa. – O vai dormir aqui hoje? – perguntou casualmente. Não sei se ela podia ver o choque estampado na minha cara, mas eu não estava tentando disfarçar minha surpresa com a naturalidade dela.
  - Ele poderia? – questionei.
  - Claro. Eu só preciso falar com você por um instante. – tia Sabrina completou, mas não havia nada de ameaçador em seu tom.
  - Tudo bem. – respondi depois de refletir por um momento e joguei a blusa de para ele.
  Pela primeira vez na vida, eu queria muito poder ler a mente de tia Sabrina!

22. Surpresa

  - Tia, me desculpe por isso. Eu juro que... – comecei a dizer assim que Sabrina fechou a porta de seu quarto atrás de nós.
  - Não precisa se desculpar, . Você faz dezoito anos daqui pouco tempo, está namorando o há tempo suficiente para que algumas coisas aconteçam e eu já esperava mesmo por isso. Vocês chegaram a...
  - Não. Não. Isso ainda não aconteceu. – respondi imaginando que sua pergunta seria “Vocês chegaram a transar?”.
  - Certo. Bom, acho que você sabe que precisa usar camisinha e vou te passar uma lista de nomes de ginecologistas para que você escolha uma. Acho que seria bom se você tomasse algum remédio também.
  - Ok. – eu disse assustada com a naturalidade com que ela estava tratando aquele assunto. Minha mãe era completamente diferente de tia Sabrina com relação a essas coisas.
  - , você parece apavorada. Eu não me importo com o que você faz com o seu namorado. Só não quero que você engravide agora, e acho que você é muito inteligente para isso, então não é exatamente uma preocupação minha.
  - E está tudo bem se o dormir aqui e tudo mais? Mesmo?
  - Claro. Quero dizer, peço que vocês evitem camisas no chão da cozinha, mas não me importo se ele dormir aqui. – tia Sabrina sorriu para mim.
  - Tia, eu nem sei o que dizer...
  - Não precisa dizer nada. Não faz muito tempo desde que tive sua idade, sabe? E eu gostaria que minha mãe tivesse sido menos rígida com relação a essas coisas na ocasião.
  - Entendo.
  - Pode voltar para o seu namorado, se quiser. Eu preciso tomar um banho. – minha tia disse. Assenti e andei até a porta de seu quarto, mas, antes de sair, decidi perguntar o que eu já havia me questionado tantas vezes e nunca tivera coragem de falar para ela.
  - Tia? – Sabrina me olhou incentivando-me a prosseguir. – Você sabe que pode trazer quem quiser aqui também, né? Quero dizer, eu sei que a casa é sua, mas eu sempre pensei que você tivesse receio de ter namorados por minha causa.
  - Em primeiro lugar, a casa é nossa. E em segundo lugar, eu realmente evitei algumas coisas por sua causa, mas não se preocupe. Há algum tempo que não me proíbo mais de namorar por isso. Acho que só não apareceu um para mim ainda. – tia Sabrina disse, piscou as pestanas como uma adolescente boba, e então rolou os olhos.
  - Tudo bem. – falei com uma risada. – Boa noite!

  - Tem certeza de que não quer ficar? – perguntei à antes que ele entrasse em seu carro para ir embora.
  - Eu gostaria muito, mas eu não preparei minha mãe emocionalmente pra isso ainda. Além do mais, amanhã é segunda, temos escola e eu tenho treino, e eu ainda não tenho roupas aqui na sua casa. – ele respondeu como se estivesse se desculpando.
  - Ok. Mas agora que a tia Sabrina disse que está tudo bem termos alguma privacidade não supervisionada... – senti minhas bochechas se esquentando pelo rubor ao dizer isso.
  - Ou seja, agora que a sua tia disse que não se importa se nós transarmos debaixo do teto dela... – traduziu com uma risada. Dei-lhe um tapa no braço, mas ri também.
  - Enfim, como eu estava dizendo, talvez nós tenhamos algum dia com a casa só pra gente.
  - E então vamos terminar o que começamos hoje? – ele perguntou me lançando um olhar que me deixou quente instantaneamente.
  - Essa é uma boa ideia. – falei e me coloquei nas pontas dos pés para beijá-lo como despedida. murmurou um “até amanhã” para mim, e entrou em seu carro, deixando-me com a difícil tarefa de dormir depois de um dia em que tanta adrenalina correu nas minhas veias.

xx

  A atarefada semana que se seguiu passou rápido – provavelmente porque eu tinha tantas coisas para fazer. Sexta-feira era o prazo final para o envio de alguns formulários e cartas de admissões para certas universidades, tivemos duas provas surpresa na quarta-feira, e a festa de aniversário de era no sábado, de modo que eu ainda tinha vários detalhes para acertar. Assim, quando chegou à minha casa no sábado às seis horas da manhã, eu ainda estava de pijamas e drenando o segundo copo de café do dia.
  - E então? Quando o pessoal da decoração chega? – perguntou enquanto eu me trocava.
  - Daqui duas horas. Depois vem o DJ e o pessoal dele montar a boate. O buffet, o pessoal que vai montar o bar e aquela cartomante que você contratou chegam um pouco mais tarde para ajeitar a parte deles. Você acha que vai ter espaço suficiente? – perguntei terminando de abotoar a blusa cor-de-rosa que havia vestido. Então, vi o lenço da garota ruiva do sonho ainda abandonado sobre o encosto da minha cadeira e percebi que o tecido era da mesma cor.
  - Claro. A sua casa é gigante. E a sua tia deixou liberar as salas que precisássemos, então acho mesmo que vai ficar tudo bem. – disse retomando a minha atenção.
  - O vai chegar aqui por volta das nove, né?
  - Isso. Eu disse pra ele que você compraria a bebida, então ele não precisava trazer nada. O pobre ainda acha que vamos só beber e falar de homens. – riu.
  - Tomara que ele goste da fantasia que escolhemos pra ele.
  - , vai por mim. Ele vai adorar. Aliás, acho que ele nem precisaria se fantasiar pra adorar a sua ideia. Festa à fantasia é muito a cara do !
   não estava por perto, então eu sabia que estava sendo sincera. Sua aura rosa choque demonstrava que ela realmente estava feliz e empolgada, e seus pensamentos indicavam que não havia nem um traço de inveja em sua mente. Pelo visto, eu não havia me enganado tanto assim com ela. precisava das decepções que sofreu com Caleb apenas para recobrar o que sempre fora. Egoísmo faz parte da essência humana; a única coisa que muda, no final, é o quanto deixamos que este sentimento nos domine.
  - É bom ter você de volta, . – falei sinceramente dando-lhe um abraço.
  - É ótimo estar de volta. – ela respondeu tão honestamente quanto possível.

  A partir das sete da noite, os convidados da festa de começaram a chegar. Recepcionei algumas pessoas enquanto terminava de se arrumar no meu quarto, e então ela assumiu o posto de anfitriã para que eu me trocasse. ficou linda vestida de Cleópatra – ela não era tão bronzeada, mas o cabelo preto liso comprido combinado a uma boa fantasia e a maquiagem certa lhe deixaram divina o bastante para que sua pele clara não atrapalhasse o look. Eu me vesti de Lady Gaga em homenagem à – já havia perdido as contas de quantas vezes ele havia me dito o quanto pensava que eu ficaria perfeita numa fantasia dela, dado meu cabelo louro comprido. Portanto, eu estava trajando um macacão vermelho, sandálias pretas de 15 centímetros de salto e a minha franja estava armada. O cabelereiro conseguiu fazer alguma coisa para deixar meu cabelo mais claro sem ser necessário utilizar tinta, de modo que voltaria ao normal quando eu o lavasse. A maquiagem escura nos olhos e o batom vermelho fizeram com que eu parecesse um escândalo, e adoraria isso, definitivamente.
   chegou cedo para me ajudar a organizar as “atrações” da festa – além da cartomante contratada por , haveria também a apresentação de uma banda com quem havia estudado em Washington. Os meninos tocavam covers de várias bandas que adorava (Coldplay, Green Day, Nickelback são alguns exemplos) e até conseguimos montar um palco para eles próximo à piscina da casa de tia Sabrina, na parte de trás da propriedade. Portanto, se arrumou no meu quarto enquanto eu recebia os convidados, e quando o vi descendo as escadas vestido de Edward Cullen, me apaixonei novamente por ele.
  - Eu não acredito nisso! – falei assim que ele se aproximou de mim. Ele estava exatamente com as roupas que o Edward usou em Crepúsculo: a típica jaqueta azul, até os mesmos sapatos! O cabelo estava penteado da mesma forma, e ergueu um pouco a manga da blusa para me mostrar o bracelete com o brasão da família Cullen. – Você não teve essa ideia sozinho! – acusei quando fez uma careta e ficou intensamente vermelho.
  - me disse que você até me pediria em casamento se eu aparecesse assim, então... – ele deu de ombros e sorriu.
  - Você está perfeito. – falei e pulei em seu pescoço para lhe abraçar o mais apertado que eu conseguisse. – E nem pense em sair de perto de mim hoje, hein? Não quero que as piriguetes sequer olhem pra você por mais de cinco segundos. – eu disse em seu ouvido arrancando-lhe uma gargalhada.
  - Sim, senhora.

  Alguns minutos antes das nove horas da noite, apagamos quase todas as luzes da casa, deixando somente a do meu quarto e da sala de entrada, bem como as luzes do jardim, acesas. Havia um estacionamento na quadra debaixo à casa da minha tia, que alugamos para que os convidados colocassem seus carros lá e não percebesse qualquer movimentação estranha. Ele chegou dez minutos depois das nove, uma sacola em cada uma das mãos, fones no ouvido e mascando chiclete.
  Joanna atendeu à porta – ela estava recebendo hora extra para ajudar com os detalhes naquele dia.
  - Joanna, minha filha, trabalhando até agora? Pode deixar que vou brigar com a . Escravidão foi abolida há muito tempo, que palhaçada é essa? – comentou usando seu tom revoltado.
  A pobre Joanna riu nervosamente dele, então apaguei a luz da sala de entrada, onde eles estavam.
  - Que isso, gente? Black out...?
  - SURPRESA! – o grito de quase duzentos convidados fizeram com que desse um pulo de susto e começasse a gritar também de felicidade e empolgação. O DJ começou a tocar no instante no seguinte, e então os convidados que não eram amigos tão próximos se dispersaram para dançar, beber, comer...
  - Não tô acreditando nisso! – gritava comigo e me admirava, sem me abraçar. – Você tá maravilhooooosa, diva!
  - Feliz aniversário, best! – eu disse e então ele me abraçou.
  - Obrigado, ! Você não existe, juro. – respondeu derramando algumas lágrimas.
   e abraçaram e lhe deram os parabéns logo em seguida. Ele chorou mais um pouco até que disse que ele ficaria a noite toda sem fantasia, o único no meio de todos sem estar caracterizado, se não parasse de chorar.
  , definitivamente, era o mais bem vestido dentre todos. Tive minhas dúvidas se ele teria coragem de se vestir como Britney – o nome drag Queen que arranjamos para ele -, mas lá estava , se saindo melhor do eu sobre saltos altos e jogando os cabelos da peruca loura de um lado para o outro.
  Passei a primeira hora da festa arrastando atrás de mim enquanto conferia se estava tudo em ordem. Felizmente, havia bebida de sobra (sem álcool, embora eu soubesse que alguém conseguiria batizar alguma coisa no decorrer da festa e por isso havia posicionado seguranças por todos os ambientes), muita comida, o DJ era incrível e a banda já estava se organizando para começar a tocar a partir das onze da noite, havia uma fila de vinte garotas para falar com a cartomante de e até a cabine de fotos estava recebendo atenção.
  - Tudo está perfeito, . A festa está um sucesso. – disse ecoando meus pensamentos. – Agora você pode, por favor, relaxar um pouco? – pediu. Só então que percebi que ele estava usando até as lentes de contado douradas que os vampiros vegetarianos de Stephenie Meyer usavam em Crepúsculo.
  - Você está de lentes de contato? – perguntei mesmo já sabendo a resposta.
  - Sim. – ele respondeu e rolou os olhos.
  - Você se importaria em tirá-las?
  - Por quê?
  - Porque eu prefiro seus olhos de verdade.
  - Eles são mais escuros que os olhos do vampiro gay lá. – disse e eu ri.
  - Se você acha que ele é gay, por que se vestiu como ele? – questionei ofendida cruzando os braços sobre o peito.
  - Porque você gosta. – declarou como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
  - Depois você ainda diz que não é perfeito. – falei e puxei meu namorado para o beijo que eu estava louca para lhe dar já há muito tempo.

  Dancei várias músicas com e então parei para descansar meus pés. Àquela altura, eu já estava cogitando a possibilidade de ficar descalça pelo resto da festa.
  - , , ! A Cacilda finalmente ficou livre. – chegou gritando.
  - Cacilda? – perguntei imaginando quantos drinks batizados aquela garota já havia tomado.
  - A cartomante. – respondeu, mas manteve a empolgação e me puxou pelo braço quase me derrubando da cadeira.
  - Eu não quero ir em cartomante nenhuma, . Pode ir, mas eu vou ficar aqui deixando meus pés respirarem.
  - Ah não, , poooor favor. Por favorzinho, vem comigo! – juntou as mãos e fez bico enquanto implorava.
  - Tá bem. – rolei os olhos odiando ceder tão fácil quando se tratava dos meus amigos. – Eu volto já, ok? – dei um selinho em , que sorriu para mim assim que me afastei.
  A cartomante era o mais cartomante possível – uma perfeita atriz com todas as parafernálias necessárias. Ela olhou a mão de e falou todas as coisas mais lindas que uma pessoa poderia querer ouvir: que ela encontraria um namorado maravilhoso quando fosse para a faculdade no próximo semestre e que a vida dela teria uma transformação magnífica quando mudasse. Até a bola de cristal ela olhou para e alegou que Caleb iria atrás dela de novo quando ela estivesse bem o bastante para dar o fora nele. ficou radiante, é claro.
  - Agora vamos dar uma olhada no seu futuro. – a cartomante disse me lançando um olhar guloso, como se estivesse louca para ver o que estava por vir na minha vida. Rolei os olhos automaticamente.
  - Eu não quero saber meu futuro. Eu só vim acompanhar a . – respondi me negando a sentar na cadeira diante dela para a consulta.
  - Não seja medrosa, . – me cutucou lançando-me um olhar de reprovação. – Você é bonita, rica, tem um namorado perfeito... O que pode aparecer de ruim?
  - Centenas de coisas. – declarei.
  - Você vai querer saber para se preparar então, não é mesmo? O futuro ainda pode mudar. – Cacilda disse.
  - Ok, ok. – cedi, embora eu realmente não acreditasse que ela tinha mesmo a habilidade de prever o futuro. Infelizmente (ou felizmente, eu ainda não sabia dizer), estava perto demais, então eu não podia ouvir os pensamentos de ninguém.
  Cacilda admirou a palma da minha mão por alguns segundos e então fechou os olhos.
  - Você tem um futuro muito nebuloso pela frente, querida. Na verdade, não consigo ver bem se virão coisas boas ou coisas ruins.
  Certo, eu precisava admitir: as palavras dela me deram medo.
  - Como assim? – perguntei preocupada.
  - Você vai perder tudo o que você tem agora. Menos a beleza. O dinheiro, seu namorado, a vida que você tem hoje. Tudo isso vai mudar. Mas você vai ter coisas que valorizava no passado de volta. – a cartomante abriu os olhos assim que finalizou a última frase e soltou a minha mão. Eu ri alto. Nunca tinha ouvido tanta besteira na minha vida!
  - A única coisa da qual eu sinto falta na minha vida antes é da minha família. E todos estão mortos agora. E eu não acho que a medicina esteja avançada ao ponto de conseguir trazer cadáveres há mais de um ano em decomposição de volta à vida. – falei revoltada com aquilo e me levantei da cadeira nervosa.
  - ... – chamou me pegando pelo braço.
  - Estou bem, . Vou ficar com o . – disse e andei às pressas rumo à piscina, onde nossa mesa estava localizada e de onde nunca deveria ter saído.
  Quando cheguei novamente ao lugar onde havia deixado , ele não estava lá mais. Olhei nos arredores, mas não o encontrei, então decidi procurar por ele, embora eu soubesse que provavelmente seria inútil. Procurei meu celular nos bolsos e me lembrei que ele estava no meu quarto, no segundo andar da casa, a uma distância grande demais para percorrer com aqueles sapatos. De qualquer modo, provavelmente seria mais sábio tentar ligar para o meu namorado do que ficar procurando por ele no meio de duzentos adolescentes.
  Assim, tirei os sapatos dos pés novamente e fui até o meu quarto. Fechei a porta atrás de mim depois de acender as luzes, e corri para o closet, onde me lembrava de ter deixado o iPhone mais cedo. Antes que eu colocasse as mãos no aparelho, no entanto, ouvi a porta sendo fechada atrás de mim.
  - Boa noite, . – a voz de Caleb me cumprimentou. E eu não sabia dizer exatamente por que, mas algo me dizia que eu deveria ter medo.

23. Problemas

  Se você não pode ouvir os pensamentos dele, quer dizer que o está por perto. Foi o que assegurei a mim mesma assim que meu sexto sentido me disse para ficar cautelosa porque Caleb era perigoso – provavelmente muito mais do que eu imaginava. Pode ser também que minhas habilidades tenham se aprimorado ao longo do tempo e minha casa não era tão gigante assim que impusesse uma distância grande demais entre mim e qualquer outro convidado. Talvez estivesse distraído em algum dos ambientes que fizemos dentro da propriedade pensando que eu ainda estava na cartomante com a . Talvez ele só percebesse que fazia tempo demais que eu estava longe quando de fato fosse tarde demais...
  - Me desculpe por isso... – Caleb dizia enquanto trancava a porta do meu closet. Ele guardou a pequena chave dentro do bolso de sua calça, que compunha a fantasia de pirata que estava usando, e me encarou antes de concluir a frase: - Mas eu duvido que conseguiria falar a sós com você de outro jeito.
  - Pra que você quer falar comigo, Caleb? – perguntei tentando aparentar toda a segurança do mundo, mas minha voz falhou quando eu disse o nome dele acabando com toda a credibilidade do fingimento.
  - Pra tentar abrir os seus olhos! – ele quase gritou e eu pulei de susto. Caleb havia passado de calculadamente calmo para nervoso de um segundo para o outro. Isso era razão suficiente para que eu me assustasse, certo?
  Ele andou três passos na minha direção, e eu andei a mesma distância para trás, tentando manter o espaço que havia entre nós anteriormente. No entanto, quando completei o terceiro passo, minhas costas encostaram no armário atrás de mim e agora eu não tinha como fugir mais – eu estava encurralada, de todas formas possíveis. Procurei meu celular com os olhos ao redor, mas não o encontrei. Caleb poderia fazer o que quisesse comigo, e provavelmente ninguém me escutaria gritar.
  - Você pensa que o é perfeito, , mas ele não é! Ele é exatamente como eu, e o que eu não entendo é porque ele te interessou e eu não! Eu sou mais rico do que ele. Eu jogo basquete melhor do que ele. Eu sou muito melhor do que ele. Por que você o escolheu e não a mim? – Caleb perguntou sem mudar o tom de voz vários décimos acima do normal. A cada frase que ele dizia, parecia que estava ainda mais perto de mim. Quando fez a última pergunta, eu já podia sentir o cheiro forte de bebida alcoólica vindo dele. Certo, eu estava mesmo ferrada.
  Eu poderia cuspir na cara de Caleb todas as razões para que fosse a pessoa mais desejável do mundo e tentar fazê-lo perceber que não havia uma semelhança sequer entre os dois. Pelo menos não mais. Mas eu sabia que as minhas chances de sair dali inteira, sem qualquer dano, seriam muito pequenas se eu fizesse isso. Ele só ficaria ainda mais descontrolado, e sabia-se lá Deus o que um Caleb alterado pela raiva e pela bebida era capaz de fazer.
  - Caleb, você nunca entendeu o que aconteceu. – falei usando o tom de voz mais sereno que eu tinha. Ele franziu o cenho em dúvida; bom, eu havia conseguido sua atenção. – A disse que queria ficar com você logo na primeira vez que te viu no colégio. Por isso eu decidi que seria apenas sua amiga. Eu só te afastei naquele dia da festa na piscina do Richard... – continuei olhando para Caleb embora estivesse prestes a dizer uma mentira que tinha o potencial de estragar muita coisa na minha vida: - ... porque magoaria à . Daí o foi me procurar naquele dia e depois você começou a ficar com a minha melhor amiga. Você precisa entender que você sempre foi a minha primeira opção. Mas nós acabamos nos desencontrando.
  Caleb me encarou por longos segundos, provavelmente buscando a mentira dentro dos meus olhos. Eu esperava que mais de um ano como uma bela atriz, escondendo de tudo e de todos boa parte do que eu era, me servisse de alguma coisa agora. E pareceu servir quando ele relaxou a expressão e sorriu para mim.
  - Mas agora você gosta do , né? Eu não sou mais a sua primeira opção.
  - O problema não é que eu goste do agora. O problema é que eu não consigo mais gostar de você pensando no que você fez à . – falei tentando me colocar no lugar de de novo e deixando a mágoa tingir a minha expressão.
  - Eu jamais faria isso com você, . – ele respondeu se aproximando o bastante para colocar a mão no meu braço. Não o impedi, mas também não consegui evitar o arrepio de medo que se seguiu a isso. – Eu gosto de você. Mesmo. Eu só fiquei com a porque, sei lá, eu queria te afetar de algum jeito.
  - Difícil acreditar nisso, Caleb. Me desculpe, mas você usa as pessoas como se elas fossem objetos. Como se nada valessem e fossem completamente descartáveis depois que você consegue o que quer delas. Como você espera que eu pense que sou diferente pra você se as suas atitudes não colaboram?
  Caleb tirou a mão do meu braço e ele realmente parecia afetado pelas minhas palavras. Aproveitei sua distração para abrir a gaveta na qual eu havia me lembrado de ter deixado meu celular e acendi o display na frente dele. Eu queria que Caleb visse que, para mim, estávamos conversando numa boa, que nem passara pela minha mente imaginar que ele quisesse me fazer algum mal.
  - Eu preciso voltar pra festa. Sou a anfitriã, lembra? Tenho que resolver os pepinos que aparecem. – sorri para ele novamente. Ele me respondeu com outro sorriso e andou até a porta para destrancá-la para mim.
  - Desculpe por ter invadido sua festa. Já estou indo embora.
  - Como você conseguiu entrar?
  - Você permitiu que os convidados trouxessem acompanhante, esqueceu? Então eu vim com aquela menina presidente do clube do livro. – ele fez uma careta tentando lembrar o nome da garota.
  - Você veio com a Carly.
  - Isso!
  - Não precisa ir embora, seu bobo. Fique e aproveite a festa. Só não arranje confusão, pelo amor de Deus.
  - Eu não quero trazer problemas pra você, não se preocupe. – Caleb me assegurou e, por um segundo, eu acreditei mesmo nas palavras dele.

  Encontrei conversando com os amigos da banda que havia chamado para tocar na festa, e quando perguntei por onde ele havia andado, meu namorado disse que estava ali desde que saí de perto dele para ir à cartomante com .
  - Como foi com a cartomante? – perguntou enquanto caminhávamos de volta para onde estávamos sentados antes.
  - Como eu imaginava: ela me disse uma porção de besteiras. – riu da minha resposta ou da minha cara de desdém.
  - E para a ?
  - A ficou satisfeita. Ouviu tudo o que gostaria de ouvir.
  - Peraí. Pensei que a cartomante também tinha te dito que você teria um futuro conto de fadas e por isso você está tão revoltada. – disse confuso. – O que foi que ela te falou, ?
  Suspirei alto.
  - Ela falou que vou perder tudo o que tenho agora na minha vida, exceto a minha aparência. Que vou perder o dinheiro, que vou perder... você. – engoli em seco ao imaginar isso. me abraçou, puxando-me para mais perto de si. – Mas que vou ter coisas que valorizava no passado de volta.
  - Como o que, por exemplo?
  - Não sei. Eu só consegui pensar na minha família quando ela falou isso, mas joguei na cara dela que meus pais, minha irmãzinha e meu cachorro estão em decomposição há um ano, então trazê-los de volta seria impossível.
  - Essa mulher é uma louca. – disse, por fim. – Esqueça isso, está bem? Nada do que essa charlatona disse faz sentido, então não vale a pena ficar triste por causa disso. – ele sorriu para mim e eu forcei um sorriso em resposta para ele.
  Eu realmente não conseguia pensar numa forma da cartomante Catilda (que porra de nome era esse?) estar certa, mas eu provavelmente ficaria com aquilo na cabeça por um bom tempo. Havia tantas coisas que não faziam sentido na minha vida... De onde minhas habilidades vinham, por exemplo? Por que somente conseguia fazer com que elas desaparecessem simplesmente por estar a alguns metros de distância? Seguindo a lógica dos meus “poderes”, trazer minha família de volta se isso custasse minha vida de agora não parecia mesmo a coisa mais impossível do mundo. Se eu tivesse de trocar meu conforto com tia Sabrina e, principalmente, se eu tivesse de dar para ter minha família de volta, o que eu faria?

xx

  A semana que seguiu a festa de passou e com ela chegou a abertura do campeonato estadual de basquete. O evento aconteceria na escola campeã do ano anterior, portanto, as aulas foram dadas como encerradas às uma da tarde e o colégio encheu cinco ônibus de quarenta lugares para deslocar os alunos do Senior Year para o estádio da Seattle West High School. Os alunos que tinham veículo próprio poderiam utilizá-los, desde que arcassem com os transtornos referentes a estacionamento – não era permitido estacionar dentro do colégio que nos receberia porque não haveria vagas suficientes para todos. E como Trevor morava perto do local, deixei minha Mercedes em seu jardim, assim como todos os garotos de seu time.
  - Tenho certeza que o Trevor está interessado em você. – cochichava com quando saí da casa do capitão do time para andar os cinquenta metros restantes até a West High.
  - Como é que é isso aí? – perguntei com um sorriso malicioso enquanto ruborizava.
  - Como você sabe, eu faço Bio II com a perfeição que é o capitão do time da nossa amada escola. E hoje ele estava cheio de assuntos para o meu lado perguntando qual era o status da nossa aqui.
  - E você disse o quê? – questionei empolgada porque se tinha alguém que seria uma boa coisa para , essa pessoa seria Trevor.
  Meus amigos não sabiam que Trevor teve quase a mesma história que tivera com Caleb, mas no caso dele a heartbreaker foi Georgia Wilson, e essa era mais uma das razões para que eu odiasse a presença da garota. Ela tinha prazer em enrolar metade do time e boa parte dos nerds da escola, ao mesmo tempo, e por algumas semanas ela pagou mesmo de namoradinha do Trevor, andando de mãos dadas pelos corredores do colégio e tudo mais. Imaginei que Trevor descobriu os podres da garota e por isso terminou com ela, porque houve ocasiões em que vi que ele estava puto simplesmente porque ela estava por perto e Georgia se arrastou aos pés dele por alguns dias. Até que então Caleb ficou disponível... E os dois realmente faziam um belo casal. Se foi Trevor quem terminou com ela ou não, essa informação não consegui obter com precisão graças ao meu silenciador de pensamentos e auras.
  - Que desde que o Caleb foi um escroto com a , ela está sim descomprometida.
  - E a conversa parou por aí? – fiquei decepcionada.
  - Bom, o Trevor disse “hmmmm”, e falou uma coisa que eu não sei se deveria falar na presença da ...
  Na verdade, eu não precisava que falasse. Já tinha lido em seus pensamentos que a exata sentença de Trevor foi: “Não sei mesmo como o Caleb é com as mulheres, além do fato de que ele gosta de algumas vadias,” (provavelmente esse “algumas vadias” era referência à Georgia) “mas ele é um cara legal. Capaz de levar uma pelo time, se for preciso”.
  - Ele não sabe que o Caleb tirou Felix Carter do time implantando drogas no armário do menino?! Por que se ele souber, sinceramente, como pode pensar que o Caleb é um cara legal e “capaz de levar uma pelo time”? – falei revoltada. E só então as caras e os pensamentos chocados de e me fizeram perceber que ela ainda estava insistindo para que ele lhe (ou nos) contasse o que Trevor disse.
  - ... Como você sabe o que o Trevor disse se o nem falou ainda? – perguntou. Em sua mente, ela imaginava se a cartomante havia feito alguma coisa comigo, como me dado poderes ou algo assim.
  - Vou melhorar a pergunta da : como você sabe exatamente o que o Trevor disse, tipo com todas as letras, se eu ainda não falei uma palavra? – não estava bolando nenhuma teoria, e acho que isso era ainda mais assustador. Os dois me encaravam com os braços cruzados, as mentes confusas, mas nada que me fizesse pensar que sairiam correndo se eu contasse a verdade. E eu realmente estava cogitando essa possibilidade quando meu celular começou a tocar.
  - Salva pelo gongo. Pode atender que vamos ficar esperando. – meu melhor amigo disse.
  - Oi. – atendi ao celular e minha voz foi capaz de falhar em uma palavra de uma sílaba! e provavelmente podiam ver o quanto eu estava tremendo.
  - Não estou vendo você na arquibancada. – disse com uma voz pseudo-magoada.
  - Já estamos chegando. – respondi sorrindo. Só mesmo pra fazer com que eu sorrisse numa situação daquelas...!
  - Só consigo segurar os lugares que consegui por mais cinco minutos, amor. Se apressem aí.
  - Ok. Vamos correr. Beijo.
  - Beijo. – meu namorado despediu-se me liberando da ligação para encarar dois amigos que exigiam explicações que eu ainda nem fazia ideia de como dar.
  Olhei para e com medo de dizer qualquer coisa e parecer que eu estava fugindo do assunto porque, desta vez, eu não queria fugir. Não conseguia pensar numa forma de consertar o erro que havia cometido, e provavelmente seria um erro ainda maior se eu continuasse adiando para lhes contar a verdade sobre mim. Eu queria contar para primeiro, mas eu conhecia e há muito mais tempo... Fazia mais sentido falar com eles antes, certo?
  - Gente, o disse que só consegue segurar nossos lugares reservados por mais cinco minutos. Vamos para o jogo e assim que sairmos de lá eu juro que vamos pra minha casa e eu explico tudo o que quiserem. – praticamente uni as mãos naquele gesto de implorar durante uma oração para que os dois atendessem ao meu pedido.
  - Tudo bem, . Nós confiamos em você e você sempre cumpre suas promessas. – disse olhando para , que assentiu de leve com a cabeça. – Agora vamos correr porque não podemos perder esses gostosos suados por nada nesse mundo! – completou e puxou e eu, uma por cada mão. Corremos às gargalhadas para a escola que já estava próxima, e em três minutos estávamos adentrando o estádio e ocupando nossos lugares na primeira fila.

24. Verdades

  Nosso time ganhou o jogo com uma vantagem de mais de 20 pontos em cada um dos tempos. Caleb e ainda estavam brigados, mas se comportaram como dois profissionais. E todo mundo tinha que admitir: eles tinham uma sincronia perfeita. Sabiam exatamente qual seria o próximo passo do outro, o que nem sei se seria mesmo necessário uma vez que ambos jogavam muito bem. Caleb era melhor em lances de três pontos, mas não errou uma cesta sequer de falta. Nunca pensei que fosse pensar dessa forma, no entanto, fiquei feliz de vê-los se entendendo dentro da quadra, comemorando os pontos e a vitória, no final do jogo. Quanto ao treinador Fitz... Acho que nunca vi o homem tão feliz em toda a minha vida.
  - Por que você não vai? – perguntou quando eu disse que não iria à comemoração da vitória que Trevor faria em sua casa aquela tarde.
  - Eu preciso conversar com a e com o . Daí vou pegar meu carro e nós vamos pra minha casa.
  - Conversar sobre o quê?
  - Problemas familiares deles. – menti. A culpa me atingiu com a força de um canhão, mas o que eu poderia fazer? Eu precisava contar a verdade para também, eu sabia disso. O que eu não sabia ainda era como faria uma coisa dessas. Na verdade, eu não conseguia imaginar nem como abordar o assunto com meus amigos há mais de ano... De muitas formas eu ainda não tinha certeza se os sentimentos de por mim iriam tão longe.
  - Certo. Bom, espero que fique tudo bem.
  - ! Vestiário! – o treinador chamou conduzindo os outros garotos do time para o local onde tomariam banho e provavelmente receberiam elogios pelo desempenho acima do esperado.
  - Sim, senhor! – respondeu e se aproximou de mim para me beijar. – Me avise quando seus amigos forem embora pra eu passar na sua casa, tudo bem?
  - Tudo bem. Juízo na comemoração.
  - Sim, senhora. – ele assentiu e correu para o vestiário, dando um tapa na bunda de Richard quando passou pelo garoto. Richard fez alguma ameaça e correu atrás de até que os perdi de vista.

xx

  - Eu consigo ler a mente das pessoas.
   e só me encaravam assustados. A mente dos dois parecia uma página em branco, talvez ocupadas demais pelo choque para serem capazes de formar algum pensamento.
  - E posso ver a aura delas também.
  - Aura? – perguntou tentando imaginar um significado para isso.
  - Aura é a essência dos sentimentos da pessoa em determinado momento. Eu as enxergo como uma luz colorida em volta do corpo da pessoa.
  - Qual é a cor das nossas auras agora? – perguntou.
  - Laranja, que representa curiosidade. E tem alguns traços cor de rosa na sua, .
  - Rosa representa o quê? – questionou.
  - Empolgação, alegria...
   encarou confusa.
  - Por que você está empolgado quanto a isso? – ela perguntou cruzando os braços sobre o peito.
  - Porque se a pode ler mentes, minha cara , nós estamos com nossas vidas feitas. Vamos saltar de renegados para populares em dois tempos! – bateu palmas de empolgação e então sua aura se tornou apenas rosa.
  - Tá, vamos com calma aí. Você ainda precisa explicar essa história pra nós direito, .
  - Você tem razão, . Bom, vou começar pelo começo...
  Então eu contei a verdade para os meus amigos. Contei que quando despertei do coma, após a morte da minha família, eu estava com aquelas habilidades. Os pensamentos das pessoas dentro do hospital eram um zumbido insuportável, e eu falei com os médicos e com a minha terapeuta sobre isso. É claro que como meus exames estavam perfeitos, ninguém me deu atenção, e meus “poderes” foram considerados estresse pós-traumático e confusão mental passageira.
  - E foi por isso que eu parei de contar às pessoas. Minha tia ainda acha que eu nunca mais ouvi os pensamentos de ninguém, e eu não vou insistir com ela para acreditar nisso. Não contei a vocês antes pelo mesmo motivo. Quero dizer, vocês teriam o direito de achar que eu sou louca e nunca mais falar comigo.
  - Nós nunca te acharíamos uma louca, . – afagou minha mão.
  - Prove pra gente então que você pode mesmo ler nossas mentes. – me desafiou.
  - , não seja idiota. Estamos tendo essa conversa com a exatamente porque...
  - Tudo bem, . – concordei interrompendo .
  - Certo. O que eu estou pensando agora? – perguntou. Esperei dez segundos até que ela interrompesse o pensamento que formava e arqueasse as sobrancelhas para mim.
  - Você está imaginando o futuro que a cartomante te disse que teria. Está pensando que foi aceita na Universidade de Los Angeles e que fará Dança, que o Trevor irá com você e vocês ficarão juntos por lá.
  - Está certo, ? – perguntou e soltou uma gargalhada quando a expressão de ficou tomada pelo choque.
  - Cara, isso é muito bizarro!
  - Mais uma coisa pra você invejar a , ! – falou ainda rindo.
  - Rarararará! – “riu” sarcasticamente.
  - Vai por mim, , ela jamais invejaria isso. Ninguém invejaria isso. – eu disse fazendo com que ele parasse de rir abruptamente.
  - Você escuta a mente de todo mundo que está por perto ao mesmo tempo? – perguntou com um tom de voz condescendente.
  - Todo mundo num raio de dois quilômetros, mais ou menos. No caso de vocês, a distância pode ser até um pouco maior se eu conseguir isolar os pensamentos de vocês no meio da confusão. É como uma caixa de abelhas. Imagine tentar isolar um zumbido específico...
  - Caralho. – falou.
  - As auras também são perturbadoras porque elas afetam o meu humor. Eu não apenas as vejo; elas me atingem também. Então imagine ficar no refeitório da escola na hora do almoço. Setecentos adolescentes pensando e mudando de sentimentos a cada dez segundos, todos ao mesmo tempo... – balancei a cabeça de um lado para o outro tentando esquecer a memória porque desde que entrou na minha vida aquilo era apenas uma lembrança.
  - Desculpe por ter te arrastado praquelas festas, . – me abraçou.
  - Tudo bem, vocês não sabiam. Além do mais, minha vida melhorou bastante nos últimos três meses, desde que o apareceu.
  - O é um fofo mesmo, mas deve ser estranho escutar os pensamentos do seu namorado. – fez uma careta ao imaginar isso. – Quero dizer, seria legal durante a paquera, mas se ele achasse uma menina bonita, por exemplo. Eu ficaria mal, com certeza. – completou abrindo a lata de refrigerante que Joanna havia trazido logo que subimos para o meu quarto e bebericou parte do líquido.
  - É, eu já pensei nisso. Mas o é um alívio não só porque ele é um namorado fofo. Eu não sei o que há de diferente nele, mas ele consegue fazer com que eu perca minhas habilidades quando ele está por perto.
  - Hein? – perguntou. engasgou-se com o refrigerante e precisou de vários tapinhas nas costas para parar de tossir.
  - Desde que eu vi o pela primeira vez na festa de aniversário dele, eu percebi que os pensamentos e as auras simplesmente desapareceram por alguns instantes. Daí ele se afastou de mim, e as minhas habilidades voltaram. Quando ele entrou para a nossa escola, eu percebi que realmente é a presença dele que normaliza as coisas. Então, eu nem posso ouvir a mente dele nem a de mais ninguém quando ele está perto. Bom, eu até vejo o que ele está pensando, mas só quando eu adormeço.
  - Ai, , isso está muito complicado de entender. – fechou a cara e esfregou as têmporas.
  - Imagina como deve ser pra ela que vive essa situação, né, ? – rolou os olhos. – Olha, se for ficar mal humorada, pode ir embora. não está por aqui e a não é obrigada a aguentar isso não.
  - Desculpa, desculpa. – pediu erguendo as mãos como quem se rende. – Mas eu realmente não entendi o lance dos sonhos. – ela falou, mas eu sabia que estava mesmo interessada nos salgadinhos à sua frente, servidos também por Joanna junto com os refrigerantes.
  - Quando o e eu nos tocamos, eu sempre vejo quadros do que ele está pensando no momento. Depois, quando eu durmo por algumas horas, eu sonho com coisas que ele pensou quando estava comigo ou com memórias dele. Eu ainda estou tentando entender isso também...
  - E o já sabe sobre isso tudo? – perguntou. – Digo, sobre você ler mentes e não ler a dele e tudo mais?
  - Não, ele não sabe. – suspirei alto. – Eu não sei como contar isso a ele. Tenho medo que ele saia correndo na hora que eu abrir a boca e disser que leio as mentes das pessoas.
  - Mas você precisa confiar nos sentimentos do por você, . – falou. – Vocês estão juntos há pouco tempo, é verdade, mas já dá pra saber que ele não é qualquer pessoa na sua vida.
  - Sim, vocês formam um casal tão perfeito. Não tem como ele te rejeitar por isso agora. – disse, mas seus pensamentos estavam carregados de sarcasmo.
  - Já esqueceu que eu posso ler sua mente, ? – perguntei nervosa com a frase “cheia de boas intenções” dela. me encarou assustada por um instante.
  - Já começou com a inveja de novo, ? Não é possível! Desisto de você. Juro. – falou mais estressado ainda.
  - Não, gente, não é nada disso. Me desculpe, . Eu realmente acho que o não vai reagir mal a essa notícia. Talvez ele reaja pior a ser o último a saber do que ao fato de você não ser normal.
  - Caralho, mas só sai merda da boca dessa garota! - rolou os olhos.
  - Gente, mas o que eu falei de mal agora?
  - Não falou nada de mal, . Quero que você seja sincera comigo. Eu sei o que você está pensando de qualquer modo. E você não está errada. O precisa saber isso através de mim.
  Àquela altura minha cabeça já estava pesando mil toneladas. Eu precisava descansar. Precisava apagar por algumas horas, ficar fora de órbita por um bom tempo.
  - Bom, diva, você claramente precisa descansar. – disse e agora parecia que ele quem podia ler minha mente. – Vamos indo pra casa. Quer fazer alguma coisa amanhã ou você já tem planos pro final de semana?
  - Não sei ainda, . Minha tia viajou esse fim de semana e vou ver se o vem pra cá. Nos falamos pelo telefone de qualquer modo, pode ser?
  - Claro. – respondeu com um sorriso e me abraçou.
  - Vou pegar as chaves do carro pra levar vocês em casa...
  - De jeito nenhum! Nós pegamos um táxi. – disse, mas pensou que uma carona não seria nada mal. Mesmo assim, ela não disse nada. Apenas me deu um abraço também e os dois foram embora. A primeira coisa que fiz quando eles saíram pela porta da frente da minha casa foi ligar para .

  - Dorme comigo hoje? – pedi assim que entramos no meu quarto.
  - Nossa, como dizer não pra isso? – ele comentou me abraçando. – Só vou precisar ligar pra minha mãe e avisar que não vou pra casa. Está tudo bem mesmo pela sua tia?
  - Ela viajou a trabalho.
  - Ela só avisou isso hoje?
  - Na verdade avisou ontem, mas eu não quis te dizer antes pra não te desconcentrar do jogo. Ela só volta na segunda.
  - Hmm... Interessante. – falou colocando os lábios no meu pescoço. Eu estava tão cansada e distraída por tê-lo perto de mim daquele jeito que não prestei atenção a falsh algum. Mas estava tudo bem, quando adormecesse com certeza descobriria o que a sua mente estava me dizendo naquele instante.
  - O quanto você gosta de mim, ?
  - Que pergunta é essa agora? – ele se afastou de mim e encarou meus olhos por um instante.
  - Tenho uma coisa complicada pra te contar.
  - Certo, agora estou mais preocupado ainda. O que está acontecendo?
  Puxei pela mão até nos sentarmos frente a frente na minha cama. Pensei por um instante se deveria mesmo ter aquela conversa exaustiva pela segunda vez na noite...
  - Eu estou pronta. – mudei de assunto imaginando que ele se distrairia com a ideia de termos nossa primeira vez e pensaria que desde o início era só nisso que eu estava pensando.
  - Espera... Você estava falando de...
   tinha um sorriso tão lindo no rosto que não fui capaz de permitir que ele terminasse a frase. Me aproximei mais ainda dele sobre a minha cama e colei nossos lábios em um beijo cheio de carinho e paixão.

25. Confiança

  Se eu pudesse, congelaria o resto da minha vida naquele instante. Uma das mãos de estava nos meus cabelos me fazendo cafuné; a outra estava na minha barriga, simplesmente repousando ali. O cenário era tão perfeito que eu não queria mover nenhum músculo, não queria fazer nada que pudesse mudar alguma coisa.
  - Você jura que gostou? – perguntou e eu sorri.
  - Juro.
  - Mas doeu, não doeu? – sua voz ainda era preocupada. Levantei-me da cama só para deitar de novo, desta vez sobre ele.
  - Toda primeira vez dói, amor. Isso é normal. – disse e depositei um beijinho no rosto dele. – E eu sei que não foi perfeito pra você também.
  - Eu não consigo descrever de outra forma.
  - Teimoso.
  - Sempre.
  As mãos de deslizaram sobre as minhas costas nuas e ficaram na minha bunda. Só aquilo já foi suficiente para deixar todos os meus sistemas em alerta. Já haviam me dito que sexo aumenta a química em milhares de vezes, mas eu nunca imaginara nada como aquilo. Coloquei meus lábios sobre os do meu namorado e iniciei um beijo não tão calmo, mas também não completamente desesperado. Quando me dei conta, todo o meu corpo estava se mexendo sobre o dele.
  - Certo, vamos de novo. – ele disse ofegante no meu ouvido enquanto eu beijava seu pescoço e então me virou na cama para ficar sobre mim novamente.

  Passamos mais uns trinta minutos na cama até o estômago dos dois roncar de fome. Então, pedimos uma pizza e enquanto a entrega não chegava, avisou à professora Martha que não dormiria em casa aquela noite. A conversa demorou uns 10 minutos. Na verdade, a senhora falou por esse tempo todo porque eu estava ao lado do filho dela e ele só disse “aham” a maior parte do tempo.
  - Meu Deus, o que ela tanto disse? – eu ri, mas fiquei com medo de ter perdido a aprovação da sogra depois disso.
  - Ela ficou falando sobre a minha tia... Não tem nada a ver com você. Até porque ela pensa que vou dormir na casa do Trevor.
  - Ah. – Certo, passei 10 minutos preocupada por nada.
  - Ela ia vir com discurso de como evitar filhos se eu dissesse que ia dormir aqui.
  - É, com certeza. Mas eu tive que encarar essa conversa com a minha tia, sabe?
  - O que quer dizer com isso? Está me chamando de medroso? – me lançou um olhar ameaçador. O sorriso em seu rosto, porém, tornava a expressão muito mais engraçada do que qualquer outra coisa.
  A campainha tocou enquanto eu ria e pensava no que responder.
  - Salva pelo gongo. – ele disse, me deu um beijo na testa e foi até a porta pagar pela pizza.

*****

  Aquele fim de semana foi o melhor da minha vida.
  A única coisa que fizemos foi comer, ver TV e passar o dia todo na cama. Conversei com pelo telefone no sábado enquanto tomava banho, e ele surtou com o último acontecimento, é claro. Perguntou também até a cor do material do meu namorado, o que me deixou muito desconfortável, mas aquilo era simplesmente a cara de e mesmo sem poder ler seus pensamentos, eu devia ter previsto que comentaria algo do tipo. Então, fui para a aula na segunda-feira feliz da vida.
  - Então você contou pra ele sobre... Você sabe? – perguntou enquanto íamos juntos para o interior da escola. estava em reunião com o resto do time de basquete, portanto eu não podia ouvir os pensamentos das pessoas, mas ele também não estava participando da conversa.
  - Não, não contei ainda.
  - , ele não vai sair correndo para as colinas. – afagou as minhas costas. A voz estava carregada de piedade.
  - Eu não tenho certeza disso ainda.
  - O que mais precisa acontecer pra que você tenha?
  - Eu... Eu não sei. – levei as mãos ao rosto. – Eu vou contar a ele.
  - Se eu fosse você faria isso logo, diva. Quanto mais você demora, mais corre o risco dele não ficar sabendo por você.
  - Só você e a sabem disso, .
  - E eu não vou contar nada a ele, é lógico. Mas não sei se confio tanto na .
  - O quê? – questionei incrédula.
  - Nunca confiei plenamente na , e se você lê meus pensamentos, sabe disso. Sei lá, ela tem falhas de personalidade demais. Eu adoro aquela vaca, mas temos que ser realistas.
  Ótimo, agora eu tinha mais isso com o que me preocupar! Das duas pessoas que sabiam da parte mais obscura da minha vida além de mim, cinquenta por cento delas poderia me passar a perna a qualquer momento. Era exatamente disso que eu precisava.

*****

  O segundo jogo do campeonato de basquete seria no dia seguinte às quatro da tarde, na Seattle West High School. Depois deste, o jogo seguinte aconteceria na sexta-feira. Portanto, decidi que no sábado conversaria com e contaria tudo – desde as minhas escrotices juvenis, ou a parte principal delas, até as minhas habilidades perturbadoras. tinha razão: se ele não descobrisse por mim, se ficasse sabendo por outra pessoa, isso não seria nada bom. E há dias eu não conseguia tirar o sonho com a garota ruiva da minha cabeça.
  Quando parei para analisar o que Perséfone, minha dita anja da guarda, disse fiz questão de manter o lenço rosa diante de mim porque ele era a única prova concreta de que aquilo não passou de um delírio, um grito desesperado da minha mente em busca de explicações. Sobre tudo o que ela falou, resumi o que eu já sabia em uma pequena lista: 1. Perséfone sabia tudo sobre a minha vida e tinha respostas sobre a origem das minhas habilidades; 2. Minha confiança em estava intimamente relacionada a isso; 3. Se eu aprendesse a confiar de verdade nele, Perséfone me contaria o que sabia sobre o fato de eu ler mentes e ver auras porque ela provavelmente estava envolvida nisso.
  Tudo isso parecia mentira. Se alguém tivesse me contato, eu provavelmente teria dificuldades para acreditar. E foi então que tive medo de novo de falar a verdade a . Eu poderia tocá-lo e tentar ler o quadro em sua mente, mas isso já havia falhado outras vezes, principalmente quando nos tocávamos demais.
  Passei a semana toda estressada com essas coisas. teria percebido se não estivesse estressado também com os jogos, com os estudos e com Caleb no time. O campeonato estava me saindo melhor que a encomenda. Bom, foi isso o que pensei até o jogo de sexta-feira.
  A escola onde a partida aconteceria – uma particular que tinha o nome de algum presidente – era abastecida com som, telão, quadra e arquibancadas enormes, de modo que todo o nosso colégio mais as pessoas da escola anfitriã estavam ali dentro confortavelmente. Música tocava antes de o jogo começar e continuou até os meninos entrarem na quadra, quando foi interrompida para que o pessoal do rádio do colégio anunciasse os times e tudo mais no microfone. Então, quando deveria iniciar-se a partida depois do grito de apresentação das animadoras de torcida das respectivas escolas, a minha voz preencheu o estádio.
  - Caleb, você nunca entendeu o que aconteceu. A disse que queria ficar com você logo na primeira vez que te viu no colégio...
  Procurei em todos os cantos de onde vinha aquilo, e percebi que estava em todos os autofalantes do local. No telão, estava eu, vestida de Lady Gaga e parecendo super convincente. Caleb havia nos filmado no meu closet no dia da festa.
  - Por isso eu decidi que seria apenas sua amiga. Eu só te afastei naquele dia da festa na piscina do Richard... porque magoaria à . Daí o foi me procurar naquele dia e depois você começou a ficar com a minha melhor amiga. Você precisa entender que você sempre foi a minha primeira opção. Mas nós acabamos nos desencontrando.
  Eu parecia convincente até para mim mesma, e eu sabia que havia usado todo o meu talento para atriz para dizer aquelas coisas! Eu só não sabia até então que meu talento iria tão longe.
  - , o que significa isso? – me perguntou com os olhos cheios de lágrimas.
  Estava prestes a respondê-la que não era nada aquilo, que tudo era um mal entendido enorme quando o olhar de cruzou com o meu. Não sei o que me doeu mais: a tristeza inicial impressa no rosto dele ou a raiva que tomou lugar no instante seguinte.
  Trevor cochichou alguma coisa no ouvido dele, mas apenas balançou a cabeça em negação e não voltou a olhar para mim.
  - , eu vou atrás da ... – disse se desculpando com os olhos e saiu de perto de mim.
  Não sei quanto tempo havia se passado, mas o vídeo de 15 segundos continuava se repetindo no telão, até que o uma alma abençoada conseguiu desligá-lo. Então, a partida de basquete foi iniciada e saí da arquibancada atrás de e .
  Pelo visto, havia decidido terminar a partida e resolver o problema depois, mesmo que isso significasse jogar no mesmo time que o cara que havia aprontado toda aquela confusão. Tentei me convencer de que isso era o melhor, de que ele havia amadurecido muito e não poderia ter tomado uma decisão mais sábia. Mas parte de mim termia que ele tivesse decidido que eu não valeria a pena uma briga daquelas.
  Quando cheguei à parte externa da quadra coberta, estava sozinho com o celular no ouvido.
  - Conseguiu falar com ela? – perguntei ofegante.
  - Ela disse que não queria conversar, que precisava ir para casa.
  Se eu pelo menos pudesse ouvir o pensamentos de e de naquele instante! Seria difícil dissociá-los de mais de mil adolescentes, mas eu faria o máximo de esforço possível para conseguir isso, para saber a extensão dos danos causados por Caleb e pela mentira que escolhi contar no dia que ele nos trancou no meu closet.
  - , eu juro que eu não falei nada daquilo porque eu quis. – tudo em mim suplicava que ele acreditasse nas minhas palavras.
  - Eu sei, amor, eu sei. Com certeza o Caleb armou uma emboscada. Isso tudo cheira a treta de Aldrin.
  - Foi na sua festa de aniversário na minha casa... Ele me prendeu no meu closet e eu acabei soltando essas mentiras porque fiquei com medo do que ele poderia fazer. Mas eu juro que é tudo mentira. – continuei me explicando.
  - , eu sei. – me abraçou. – Calma, tá? Se o conhece o Caleb direito, ele sabe disso também. Não se preocupe. – meu melhor amigo me tranquilizou. Ele tinha razão, é claro, mas eu não tinha tanta certeza assim se encararia tudo com tanta racionalidade.

  O jogo pareceu durar um século. Não me atrevi a voltar à arquibancada. Ao invés disso, fiquei no estacionamento perto do carro de esperando para falar com ele.
  Quase todos os carros já haviam sido retirados do local e provavelmente havia poucos alunos na escola àquela altura. Mas eu não sairia dali antes de falar com o meu namorado.
  - , o porteiro disse que você precisa tirar o seu carro. Só vão permitir as placas cadastradas a partir de agora, que acho que devem incluir apenas as dos meninos do time e dos professores. – me avisou. Ele estava ali comigo fielmente, tentando me fazer rir vez por outra.
  - Tudo bem, . Aqui está a chave do meu carro. – tirei as chaves da Mercedes de dentro da mochila e entreguei a ele. – Pode deixar na sua casa. Eu peço a minha tia para ver se algum funcionário dela busca pra mim amanhã.
  - Tem certeza? – a preocupação estava estampada na cara dele.
  - Tenho.
  - Diva... – ele afagou meu braço por um instante antes de prosseguir: - E se o estiver nervoso e não quiser conversar?
  - Eu converso depois, mas preciso que ele veja que eu não fui embora simplesmente, sem querer esclarecer as coisas.
  - E se... – abriu a boca algumas vezes para falar, mas acabou não dizendo nada.
  - E se o quê, ? está por perto, não posso ler seus pensamentos agora.
  - E se ele estiver tão nervoso e não quiser te levar pra casa? – os olhos dele transbordavam piedade.
  Então os meus olhos se encheram de lágrimas. Talvez ele tivesse razão e a coisa estivesse ainda mais feia do que eu pensava.
  - Eu tenho dinheiro aqui, não se preocupe. Dou um jeito de pegar um táxi. – sorri forçado para o meu amigo, que me deu um abraço antes de ir embora.

  - ? – a voz de me chamou e tocou meus cabelos. Eu estava sentada no meio fio que delimitava a vaga do estacionamento ao lado da vaga em que ele estacionara. Havia cochilado naquela posição horrorosa, abraçando minhas pernas e com a cabeça baixa.
  - Oi? Oi, . Eu fiquei te esperando... Precisava falar... – eu dizia transtornada esfregando os olhos, mas me interrompi quando olhei para o rosto dele. O canto da boca tinha um corte do lado esquerdo e a testa estava com um “galo” enorme e roxo. Parecia que havia acabado de sair de uma luta, não de uma partida de basquete. – O que aconteceu? – perguntei com os olhos cheios de água e levei uma mão ao rosto dele. Ele segurou minha mão no meio do caminho e a soltou do ar.
  - O que você acha que aconteceu? – falou abrindo o porta-malas do carro para colocar a bolsa com as coisas que sempre carregava para os jogos, como uniforme, tênis, toalha...
  - Você brigou com o Caleb?
  - Briga é apelido.
  - ... – suspirei.
  - O que você queria que eu fizesse? – ele disse um pouco alterado e esfregou as têmporas com os polegares. Com certeza estava com a cabeça doendo. – Não vou discutir isso agora. Preciso ir pra casa, tomar um remédio e dormir... Até Dezembro. – murmurou.
  - Tudo bem. – falei e me virei para andar para fora da escola e procurar um táxi por perto. Talvez o porteiro tivesse alguma informação a respeito.
  - Onde está indo? – perguntou.
  - O levou o meu carro. Vou pegar um táxi pra casa.
  - É lógico que não. Eu te deixo lá.
  - Você precisa tomar um remédio e dormir até Dezembro, esqueceu? – meu tom de voz era cansado porque, de repente, eu me sentia como se eu tivesse acabado de sair de uma briga.
  - Depois de te deixar em casa. – falou e abriu a porta do carona de sua BMW para mim.
  Não tenha muitas esperanças, . Ele só está sendo . Isso não quer dizer que já te perdoou. – Foi o que lembrei a mim mesma.

  Não trocamos nem meia palavra no percurso até a minha casa. Precisei me segurar para não chorar durante todo o tempo e já estava mais calma quando ele parou o carro no acostamento para que eu descesse. No entanto, eu não queria sair sem dizer nada. Não queria que ele passasse o resto da noite com a ideia de que eu havia feito uma coisa tão horrível. A fantasia de Lady Gaga indicava a data do acontecimento, e naquele dia havia se vestido de Edward por minha causa. Eu me sentiria extremamente mal se estivesse no lugar dele, imaginando que a pessoa que dizia que me amava na verdade havia sido a segunda opção desde o início.
  - , eu sei que você não quer conversar. Não vou insistir nisso nem agora, nem amanhã, nem nunca. Vamos falar de hoje quando você quiser. Mas não se esqueça que o Caleb é sujo e que tudo o que ele arma só tem o objetivo de disseminar mentiras.
   riu, mas não havia humor algum na risada.
  - Quer dizer então que aquele vídeo é mentira?
  - Não é mentira, mas também não é o que parece.
  - Me desculpa, . Eu só estou com muita dificuldade de acreditar em você agora. – ele disse e apertou o botão que soltava o meu cinto de segurança. Os olhos dele estavam à frente, observando a rua adiante, e foi então que percebi que desde o olhar que trocamos na quadra enquanto o vídeo cortado rodava, ele não havia olhado nos meus olhos.
  Não falei nada, não fiz nada. Não adiantaria, afinal de contas. Pelo visto, Caleb havia vencido aquela batalha.
  Saí do carro de e me arrastei para dentro de casa, desejando também dormir até Dezembro.

26. Normalidade

  Aquele final de semana foi o mais lerdo de toda a minha vida.
  Liguei para no sábado de manhã, deixei cinco mensagens em sua caixa de voz e enviei uma dúzia de mensagens de texto me desculpando, pedindo que ela me retornasse e, por fim, explicando que tudo aquilo era um grande mal entendido aprontado por Caleb. Não adiantou. Ela retornou sequer uma das minhas formas de contato, e na hora do almoço eu já havia desistido de tentar falar com ela por enquanto. Talvez quando estivesse mais calma, ela finalmente me escutasse.
  Lutei contra a vontade de ligar para ou ir até a casa dele durante o sábado todo. Telefonei para pedindo conselho e ele me disse que achava mais inteligente deixar a poeira abaixar. me procuraria quando quisesse conversar sobre o assunto. Então o que me restou foi cuidar da minha vida, por mais que aquela situação estivesse acabando com a sanidade que me restava.
  As inscrições nas universidades que me interessavam já haviam sido encaminhadas. Eu ainda não tinha certeza do que cursaria, portanto os planos eram garantir boas notas e iniciar o programa com matérias genéricas, que não exigissem a escolha exata do curso ainda. Terminei meu dever de casa e me deitei, fechei os olhos e fiz um exercício que me ajudou muito a conseguir isolar os pensamentos mais conhecidos no início, quando a mistura de vozes era tão intensa que eu não conseguia ouvir nem minha própria mente. Estava super concentrada escutando Joanna, uma de nossas empregadas, cantarolando mentalmente no andar de baixo enquanto passava as roupas, quando bateu à porta do meu quarto e chamou meu nome.
  - Oi, ! – atendi direcionando minha concentração para a aura cinza dele. Os pensamentos do meu melhor amigo eram preocupados e a primeira frase mental que ele formou foi com relação aos meus cabelos que indicavam que não haviam visto escova ainda naquele dia.
  - Como você está, linda? – ele perguntou me abraçando.
  - Aconteceu alguma coisa? – devolvi sem respondê-lo.
  - Eu tenho uma notícia chata pra dar.
   não terminou de falar, provavelmente porque sabia que seria desnecessário. Quando ele pensou no assunto, já descobri do que se tratava sua visita.
  - e Caleb estão fora do campeonato. – falei. Não era uma pergunta. A informação estava bem clara na mente de .
  - Eles brigaram feio no vestiário ontem. O treinador não teve outra escolha.
  - Quem te contou isso?
  - O Trevor. O coitado está arrasado. Disse que sem os dois é impossível ganhar a competição.
  - Por que o Trevor te procurou?
  - Pra pegar o endereço da . Ele disse que queria conversar com ela.
   certamente gostaria da visita e talvez Trevor fizesse com que ela ficasse mais calma. Era egoísta esperar que ele a convencesse a me dar ouvidos, mas eu estava desesperada com aquela situação.
  Sentei na minha cama sem saber o que fazer. estava passando por tudo aquilo por minha culpa. Eu havia lhe incentivado a participar da porcaria do campeonato e agora era a responsável para que ele fosse expulso da competição.
  Quando pensei que as coisas não poderiam mais piorar, lá estava a prova de que eu estava errada de novo.
  - Eu não sei o que fazer! – falei desesperada. – Preciso conversar com o , mas não posso obrigá-lo a me dar ouvidos.
  - Ele só está nervoso porque está tudo muito recente, . O Trevor me disse que conversaria com ele também. Todo mundo que conhece o Caleb sabe que foi armação dele.
  - Só que está bem difícil de acreditar que seja porque eu realmente falei aquelas coisas.   Minha vontade era de desaparecer do mundo. Se tivesse morrido junto com a minha família no ano anterior, nada daquilo estaria acontecendo agora.
  - Fica calma, diva. – disse e se ajoelhou na minha frente. – Vamos fazer alguma coisa pra você se distrair. Tenho certeza que logo, logo o aparece para vocês conversarem.
  - Espero que sim porque, sinceramente, eu já estou ficando ainda mais louca do que sou sem nada disso para atormentar a minha vida. – desabafei juntando os cabelos num coque. andou até o meu closet e voltou com uma escova, fazendo com que eu me virasse na cama para que ele se sentasse por trás e penteasse meus cabelos.
  - Posso perguntar uma coisa? – ele questionou e antes que eu pensasse que era sobre , Caleb ou meus poderes vi a pergunta em sua cabeça: ele queria saber por que Joanna estava trabalhando em pleno domingo.
  - Ela precisava de folga amanhã para acompanhar a irmã que está doente ao hospital e propôs à minha tia fazer o trabalho de amanhã hoje. – eu só sabia disso porque havia ouvido a conversa das duas na cabeça de minha tia. – Tia Sabrina queria dar o dia de folga pra ela, mas a Joanna insistiu em vir. Eu não deveria saber do que vou dizer agora, mas li os pensamentos de Joanna contra a minha vontade: o marido dela está bebendo muito e, pra ela, ficar fora de casa é um alívio.
  - Nossa, , que barra. Coitada da Joanna.
  - Essa é uma das piores partes em ler a mente dos outros: você fica desesperada porque não pode resolver os problemas de todo mundo. Você nem deveria saber dos problemas de todos, né? Quem aguenta uma coisa dessas? – suspirei.
  - Você está aguentando muito bem, diva. Se quer saber o que eu acho... Eu acho que Deus dá o frio conforme o cobertor. Se você recebeu esse fardo pra carregar é porque você é forte o bastante pra isso.
  - Ninguém deveria receber uma maldição dessas, isso sim – ri sem humor algum.
  - Bom, pode ser que tudo tenha uma explicação no final. Sua vida só está começando, né?
   provavelmente tinha razão. Nada costuma acontecer por acaso. Nenhum evento é isolado na vida de ninguém, no fim. Tudo o que você faz e tudo o que te acontece acabam formando a pessoa que você é, dando sentido ao que você vive. É claro que pensar isso me lembrou Perséfone, me lembrou a cartomante, me lembrou a minha família, e com tantas lembranças, minha dor de cabeça dobrou de intensidade.
  Paz. Por que tinha que existir e me lembrar como era sentir isso se agora ele iria desaparecer da minha vida sem nem me preparar antes para este fato?

   ficou o restante do fim de semana na minha casa. Fui com ele até sua própria residência para que pegasse suas coisas para irmos para a escola juntos na segunda de manhã. Quase não dormi aquela noite, assim como de sábado para domingo. A cada dez segundos eu olhava a tela do meu celular para me certificar de que nem nem haviam ligado, mandado uma mensagem ou o que quer que fosse. O domingo mais longo da minha vida passou, contudo, porque por mais que o relógio pareça lerdo, as horas passam.
  Desci do meu carro no estacionamento do colégio. Ainda não tinha guardado a chave dentro da mochila quando soltou um assovio. Seus pensamentos haviam silenciado alguns metros antes da escola, portanto eu sabia que havia decidido ir para a aula naquele dia. Qualquer sinal de alegria que eu pudesse ter com relação a isso, no entanto, desapareceu quando acompanhei o olhar do meu melhor amigo para ver sobre o que ele havia assoviado e vi junto com , os dois sorrindo perto da BMW do meu namorado.
  - Eles só estão conversando, . – disse provavelmente analisando a minha expressão.
  - Eu sei. – respondi, engoli o choro e pendurei a mochila no ombro.
  - Você vai lá falar com eles?
  - Pra quê? Pros dois fingirem que eu não existo e não estou tentando resolver o problema? O fato de terem ignorado as milhares de mensagens e ligações que fiz ao longo do final de semana já demonstraram isso. – respondi com raiva. – Vamos pra sala. Não quero me atrasar. – concluí e caminhei para o interior da escola. Se e me viram passar, não sei. Mas eu já estava farta daquela situação. Se apesar de tudo ainda preferiam acreditar em Caleb, o problema era dos dois. Eu não havia feito nada de errado; só tentei me defender da melhor forma que existia num momento em que as opções não eram muitas.
  Eu tinha mania de me culpar por tudo desde que meus pais morreram já que o acidente deles nunca teria acontecido se eu não fosse tão mimada e cheia de caprichos. Mas eu havia passado o último ano batalhando para não cometer erros mais – pelo menos, não cometer erros que magoassem as pessoas. Só que não dá pra ser perfeita, nem quando você sabe o que se passa na mente dos outros.
  Parei alguns instantes diante do meu armário para trocar os livros das aulas de sexta – literatura inglesa e história – pelos livros das aulas de segunda – química, biologia e matemática. Pulei de susto quando a mão dele tocou o meu ombro.
  - Desculpa, não queria te assustar. – Caleb me lançou um sorriso que me deu vontade de rir. O lábio superior esquerdo dele estava inchado e um dos olhos estava roxo. Precisei me concentrar muito para me lembrar da merda que ele havia feito na minha vida e fazer cara de brava pra ele.
  - Isso foi o menor dos problemas que você me causou, Caleb. – respondi dando as costas para ele para trancar o meu armário.
  - Você disse aquelas coisas ou já se esqueceu disso? Eu só divulguei o que saiu da sua própria boca.
  - Porque você adora uma intriga, já sei. – cuspi. - Eu menti na sua cara aquele dia porque eu tenho medo do que você, no seu auge de loucura e “psicopatisse”, é capaz de fazer. Por isso eu menti que você já foi do meu interesse algum dia nessa vida. Mas agora eu sei que você é tão doente que não acreditou em nada, mas atuou o contrário com perfeição pra mim, pra me causar esse inferno agora.
  O sinal tocou me dizendo que eu tinha uma aula de Química pela frente e o meu namorado – ou ex-namorado, eu ainda não tinha certeza – era meu parceiro de laboratório.
  - Eu nunca quis que as coisas tivessem chegado nesse ponto. Mas você não me deixou alternativas, . – Caleb disse com o que pareceu um pequeno traço de tristeza no olhar. Isso, claro, se sociopatas eram capazes de sentir alguma coisa.
  - Espere pelo advogado com a ordem restritiva na sua casa. Quero você bem longe de mim. – lancei minha melhor expressão de desprezo para ele e andei em direção à sala. Felizmente Caleb me deixou ir para a minha aula sem mais discussões.
  Sentei-me à minha bancada de sempre e estava retirando meu material distraidamente de dentro da mochila quando a voz insuportável de Georgia me fez dar o segundo pulo de susto do dia. Dois dias sem para calar os pensamentos e eu já desacostumada com tanto silêncio.
  - O que você disse? – pedi que Georgia repetisse porque a única coisa que eu já havia registrado até então era que ela estava usando perfume e maquiagem demais, como sempre.
  - Eu disse que graças a você vamos perder o campeonato feio. Ficar só com um dos atletas não era suficiente para você, né senhorita perfeitinha?
  - Em primeiro lugar, quem já dormiu com quase metade do time da escola foi você, não eu, querida. – devolvi. – Em segundo lugar...
  - Georgia, você pode dar licença do meu lugar? – disse interrompendo a segunda verdade/agressão que eu pretendia jogar na cara daquela vaca abusada.
  - Pra você, qualquer coisa, querido. – ela abriu um sorriso que mostrava todos os seus dentes consertados pelo aparelho para e jogou o cabelo louro oxigenado de lado desnecessariamente.
  - Só saia do meu lugar. Não quero mais nada além disso. – respondeu fazendo uma careta. Sorri involuntariamente. Georgia não disse nada, apenas rebolou para o seu lugar na bancada dos fundos, onde ela se sentava para colar das nerds que se sentavam à sua frente.
  - Bom dia – disse e sorriu para mim.
  - Bom dia – respondi relutante. Ler os pensamentos dele seria tão mais fácil...
  O professor deu bom dia logo em seguida, emendando um “desculpe o atraso e abram os livros no capítulo seis em silêncio porque a aula de hoje é grande e chata e não quero interrupções”.
   me passou um bilhete por debaixo da mesa e manteve a mão apoiada na minha coxa.
  O bilhete dizia: “Me desculpe, eu sei que exagerei. Podemos almoçar juntos hoje e conversar sobre o que houve depois? Por favor (: ”
  Respondi apenas suspirando de alívio e afagando sua mão que ainda estava repousada sobre a minha perna.

  Entramos no refeitório de mãos dadas e a primeira coisa que reparei foi sentada ao lado de Trevor na nossa mesa. conversava com um dos amigos dele do clube de teatro também sentado a nossa mesa e depois de varrer o local com os olhos, não encontrei Caleb Aldrin ali, embora e eu tivéssemos chegado atrasados porque passei na biblioteca antes de descermos para o almoço.
  - Sanduíche natural? – perguntou. Eu tentava seguir uma dieta diária para cada dia da semana porque meu intestino não reagia bem a radicalizações. já havia decorado meu cardápio, o que classifiquei como bobo e fofo ao mesmo tempo.
  - Sanduíche natural – respondi. Ele me deu um beijo na testa e foi para a fila comprar nossa comida. Trevor perguntou o que queria e afagou a mão dela antes de se retirar, seguindo .
  - Oi, – eu disse sem graça, sem saber exatamente como ela reagiria, embora ela estivesse com um sorriso enorme no rosto. Além do sorriso reparei também nos jeans e na camiseta preta dos Beatles, os dedos da mão esquerda com três anéis que eu me lembrava da sua coleção de “itens de gótica” e o cabelo dela parecia mais escuro do que estava na última vez que eu a havia visto. As unhas também estavam pretas e a única coisa diferente do estilo dela que eu havia conhecido um ano atrás era a falta dos piercings e a maquiagem leve. Agora sim ela parecia a que se tornou minha amiga. Que me recebeu bem, apesar de tudo, naquela escola que há pouco tempo era tão cheia de panelinhas.
  - Ah, oi, ! – ela me cumprimentou de volta e mudou de lugar para se sentar ao meu lado. – E aí, está tudo bem?
  - Bom, eu quem deveria perguntar isso, né? – eu ri.
  - Ah, sobre o Caleb. Bom, esqueça isso. Conversei muito com o e o Trevor sobre o assunto e eles estão certos... Não vou deixar que um idiota como o Caleb, com todas as mentiras dele, abale nossa amizade. – sorriu de novo para mim.
  - Nossa, você não tem noção de como estou aliviada em ouvir isso! – confessei. – E quanto ao Trevor, hein? – perguntei com a voz carregada de segundas intenções.
  - Ele pegou meu telefone e me ligou do nada, você acredita? Nós saímos no sábado e ontem ele me convenceu a ir até a casa do pra nós conversarmos sobre o que aconteceu na semana passada. Estou começando a pensar que a cartomante estava certa, viu – sorriu como uma boba apaixonada. Um arrepio percorreu o meu corpo e senti um calafrio quando imaginei aquilo. A cartomante estava certa.
  - Que bom, . Fico feliz de verdade. O Trevor é um cara muito legal – falei ignorando a sensação ruim que a menção à cartomante me provocou.
  - Legal mesmo? Pensamentos sempre legais e tudo mais? – ela perguntou parecendo mesmo preocupada com o meu julgamento.
  - Juro. Pensamentos sempre legais – afirmei porque era verdade. Se havia alguém ideal para ela naquela escola, essa pessoa era o Trevor.
  - Um sanduíche natural de frango e um suco de laranja – disse colocando a bandeja à minha frente. Nela também tinha uma lata de Coca e uma pizza. – Bom apetite – emendou me dando um beijo no rosto e mordiscando sua pizza. Trevor chegou dois minutos depois com o almoço dele e de e me perguntou como eu estava.
  - Estou bem, Trevor. – respondi. – Você parece ótimo, apesar do lance do campeonato e tudo mais. – comentei. Olhei para o rosto de analisando o curativo no alto da cabeça dele e um de seus olhos meio arroxeado, embora não estivesse com a aparência tão ruim quanto o rosto de Caleb.
  - Quer saber uma coisa? Eu estou é aliviado. – Trevor sorriu para mim e bebericou seu refrigerante.
  E lá estava ela. A paz que eu havia desejado tanto algumas horas antes.

  Combinei de encontrar na minha casa às quatro da tarde, já que ele não tinha mais treino algum para ir e nós precisávamos conversar. Tomei um banho fazendo minha respiração de ioga e ouvindo música, vesti um short rosa e uma blusa branca e assim que os pensamentos se calaram, desci para a sala de casa porque já deveria estar chegando.
  Abri a porta assim que ele tocou a campainha e me dependurei no pescoço dele para lhe dar um beijo, ficando na ponta dos pés.
  - Senti saudades – ele disse me abraçando.
  - Muita – concordei.
  - Eu quero que você saiba que eu jamais deixaria o Caleb acabar com o que nós temos. Mas eu queria que você tivesse me contado sobre o que aconteceu aquele dia no aniversário do . Teria evitado tanta coisa... – suspirou.
  - Sim, eu sei. E é por isso que nós temos muito que conversar hoje. Eu quero que você saiba cada detalhe sobre mim. Não quero esconder mais nada de você – falei olhando nos olhos de .
  - Te garanto que você continuará sendo perfeita pra mim – ele disse e me deu um selinho longo de novo.
  Eu não tinha certeza sobre isso, mas já estava passando de hora de descobrir. Estava passando de hora de deixar minhas inseguranças de lado e deixar que conhecesse tudo o que estava envolvido em ficar comigo.

27. Esclarecimentos

  Sentei-me de frente para no sofá da sala da minha casa. Ella já havia ido embora, Joanna não havia trabalhado naquele dia. Portanto, nós dois estávamos sozinhos, e por mais que eu não quisesse ter uma conversa tensa naquele momento, mas preferisse agarrá-lo no sofá e matar de verdade a saudade, nós precisávamos falar sobre tudo o que eu havia escondido dele até aquele dia.
  - Primeiro sobre o Caleb – falei tentando organizar as ideias na minha cabeça, ter um marco por onde começar. continuou apenas com os olhos fixos no meu rosto e com as mãos entrelaçadas nas minhas. Recolhi minhas mãos para ajeitar inutilmente os cabelos e voltei a tocar as mãos de , uma tentativa boba de ter um flash da mente dele naquele momento. Tudo o que consegui foi uma sensação de alívio quando toquei a pele, e não poderia dizer se esse alívio era o que eu estava sentindo ou se vinha de também. – Eu fui até o meu closet pegar meu celular, naquele dia da festa à fantasia do , pra poder te ligar porque depois de ir na cartomante com , não conseguia te encontrar em lugar algum. Daí, quando eu entrei no closet, o Caleb estava lá. Ele nos trancou lá dentro e não tinha uma cara nada boa. Eu fiquei com medo e inventei aquelas mentiras para ele me deixar ir embora. Eu sei que... – comecei a dizer, minha voz ficando esguelada porque ele precisava entender que eu não tinha outra alternativa, ou não consegui pensar numa melhor que esta no momento que me vi trancada com Caleb sem condições de sequer pedir ajuda.
  - Ei, eu acredito em você. É a cara do Caleb tudo isso. Mas não se preocupe que eu já soquei a cara dele por causa disso – sorriu pra mim, ele próprio com o rosto meio desfigurado.
  - E o que foi que isso provocou, hein? – comentei tocando de leve o curativo que unia as duas pontas do corte na cabeça dele. Ele segurou a minha mão por reflexo.
  - Foi melhor assim, . O Trevor só estava se colocando tanto neste campeonato por pressão dos pais dele. Não é fácil ser filho de um treinador de liga profissional de basquete. E como o Trevor quer fazer medicina, não ser atleta, e medicina é uma carreira que o pai dele vai se orgulhar de qualquer modo... – deu de ombros. – A relação dos dois não vai ficar perdida para sempre. Estava matando o Trevor ter que sustentar um A em todas as matérias e treinar quatro horas por dia.
  - Você não provocou a segunda briga, que tirou você e o Caleb do time pra livrar o Trevor do campeonato, provocou?
  - Na verdade, meio que sim. Mas só o jogo de amanhã que vai eliminar os garotos mesmo ou não. De qualquer modo, não tem nada certo ainda. – faz uma pequena pausa antes de continuar: – Bom, o lance do Caleb... Vamos esquecer. Eu não quero nem pensar nesse idiota mais.
  - Eu me sinto culpada porque vocês eram amigos...
  - Nós nunca fomos amigos. – disse com certa raiva na voz. – Você disse que tem mais alguma coisa pra me contar? – ele mudou de assunto sem discrição alguma e sorriu para mim.
  - Pode ser que você saia correndo daqui feito um desenho animado – avisei.
  - Você tá grávida? – ele perguntou com o choque estampado no rosto.
  - Claro que não! – eu ri dando-lhe um tapa no braço. – Eu pareço grávida? – questionei olhando para o meu próprio corpo.
  - Estou brincando, é claro! – ele disse me puxando para um abraço.
  - Acho que chega a ser pior que isso. – falei quando ele me soltou.
  - , não tem nada que você me disser que vai mudar o que eu sinto por você. Te garanto isso.
  Decidi acreditar em e respirei fundo antes de falar o que deveria ter dito desde que admiti para mim mesma que eu gostava dele. Gostava de verdade.
  - Eu posso ler a mente das pessoas.
  Um sorriso se formou no canto dos lábios dele.
  - Estou falando sério, ! – dei-lhe um soco leve no braço e me afastei dele. – Não ria!
  - Tá bom, tá bom. – ele disse sorrindo. – Explica isso direito. Você leu a minha mente esse tempo todo? Desde que nos conhecemos na minha festa de aniversário mil anos atrás?
  - Você é a única exceção. E a sua presença também silencia a cabeça de todo mundo ao redor.
  - Por que eu sou a única exceção? Você tem certeza disso? Que eu faço seu poder sumir?
  - Não chame de poder porque faz parecer que é uma coisa legal e não é nada legal. Isso é muito mais carma, maldição, sei lá. E tenho certeza, sim. Antes eu conseguia ver o que você estava pensando ou alguma coisa do seu passado nos meus sonhos, quando eu dormia, depois de te tocar por algum tempo. Mas isso está sumindo nos últimos tempos. Acho que quanto mais eu me apaixono por você, mais difícil fica ler a sua mente.
  - Então você parou de ler a minha mente depois que se apaixonou por mim?
  - Não, eu nunca li a sua mente. Na verdade eu li uma frase que você formou quando nos conhecemos e você me cumprimentou, no seu aniversário mil anos atrás – copiei o exagero dele.
  - O que eu pensei naquele momento?
  - “Senhorita perfeitinha...” Carregado de sarcasmo. Foi exatamente isso que você pensou.
  Os olhos de se arregalaram de surpresa no mesmo instante.
  - Eu realmente pensava isso de você antes – ele confessou.
  - Você me detestava, né?
  - Não era detestar. Era uma espécie de repulsa.
  - Uou. – fiquei magoada por um instante.
  - Era, . Não sinto nada nem próximo disso mais. – me garantiu.
  - Continue me explicando como era.
  - Bom, parecia um sexto sentido que me dizia para ficar longe de você. Mas eu queria entender o porquê disso. O que tinha de tão péssimo em você que alguma coisa no meu cérebro me mandava manter distância. E depois que eu descobri que eu não tinha motivos pra isso... Bom, parece que o mesmo instinto que mandou ficar longe antes de nos aproximarmos me fez desejar ficar por perto quando eu vi como você era de verdade.
  Puxei o rosto de com as duas mãos e o beijei. Estávamos conversando sobre o que eu mais temia que o afastasse de mim e ele, além de não parecer nem um pouco assustado comigo, ainda estava me dizendo as coisas mais fofas que eu já havia ouvido sair de sua boca. Ele retribuiu ao meu beijo até que nos separamos e ficamos com as testas encostadas, recuperando o fôlego.
  - Então você ouve os pensamentos das pessoas. – retomou o assunto.
  - E vejo a aura delas também.
  - Aura é daquela teoria que diz que a energia que você exala pode se projetar em cores, mas nós humanos não somos capazes de ver.
  - Isso, tipo isso.
  - Deve ser bizarro. – ele riu.
  - Mais que bizarro. As auras das pessoas influenciam meu humor. Então se alguém estiver exalando tristeza e eu sequer passar por perto, além de provavelmente ouvir o que está preocupando a pessoa, eu vou absorver sentimentos da aura dela também.
  - Você não pode ver a minha aura. – não era uma pergunta.
  - Não, não posso. Ultimamente eu consigo sentir um pouco do que você está sentindo quando eu te toco. Mas isso pode ser só impressão minha.
  - Vamos testar. – sugeriu e se afastou de mim. – O que você sente ou ouve? – ele perguntou e tocou o meu rosto de leve, retirando a mão em seguida.
  - Eu sinto que você está feliz, aliviado. Mas pode ser apenas o que eu estou sentindo com você aqui, reagindo tão bem a essa estranheza toda que me rodeia. – eu ri.
  - Não sei, mas eu realmente estou aliviado e feliz.
  - Deveria estar assustado, apavorado, querendo fugir para as colinas. Agora eu quem vou pensar que tem algo de errado com você! – brinquei.
  - , você está demonstrando que confia em mim de verdade. E não é nada com o que eu não possa conviver. É claro que eu estou curioso... De onde foi que saíram os seus poderes? – lancei um olhar reprovador para a palavra. Ele percebeu no mesmo instante. – Certo, de onde saiu esse carma? – disse a palavra com o máximo de escárnio possível, rolou os olhos e riu.
  - Eu realmente não sei. – falei depois de uma risada. - A única pista que tenho é um sonho que eu tive, que não tenho certeza se foi mesmo um sonho.
  Então contei para ele sobre Perséfone, sobre o que ela falou a respeito de eu ter respostas depois que confiasse nele o bastante para lhe contar essas coisas, sobre o que eu havia concluído sobre aquele sonho: que o fato de ser o único cuja mente eu não era capaz de ler tinha um motivo. Ele não era apenas uma pessoa aleatória com um cérebro estranho; havia alguma razão específica para que ele fosse a pessoa capaz de silenciar o mundo todo para mim. Falei também sobre o lenço rosa que eu nunca havia visto na vida e agora estava sobre a cadeira da minha escrivaninha, me lembrando todos os dias que eu não havia inventado aquela coisa toda. Ou tentando me provar, pelo menos.
  - É difícil de acreditar. Ela meio que deu a entender que é “meu anjo da guarda”. – fiz as aspas com os dedos e bufei ao concluir o relato sobre o “sonho” com Perséfone, a garota ruiva com cara de tédio que me considerava a pessoa mais mal agradecida da face da Terra.
  - Bom, pode ser mesmo que ela seja. Parece que agora você vai ter essas respostas, né? – sugere. Bom, se a tal anjo da guarda cumprir sua promessa, ele deve ter razão. – Você começou a ouvir a mente das pessoas quando seus pais morreram?
  - Sim, foi assim que acordei do coma induzido que me colocaram depois do acidente. Os médicos e terapeutas diagnosticaram como estresse pós-traumático. Eu cheguei a dizer o que eles estavam pensando com todos os detalhes, mas daí eles simplesmente aumentaram a minha medicação. No primeiro mês foi ótimo ficar dopada, mas isso não fazia os pensamentos das pessoas sumirem, só ficarem mais confusos. Assim como os meus, pra ser sincera. – falei.
  Relembrar aqueles dias me provocaram uma dor aguda no fundo do peito, como sempre provocavam sempre que eu me permitia trazer algo à tona. Foi me abraçando que me fez continuar com a expressão neutra, sem me desmanchar em lágrimas.
  - Você é de longe a pessoa mais forte que eu já conheci, – ele disse depois de um instante. Eu ri. – Estou falando sério. Apesar de tudo isso, você consegue sair da sua cama todos os dias e viver a sua vida. Consegue ser uma amiga maravilhosa para o e para a . Consegue ser uma ótima sobrinha pra sua tia. Eu nem acredito que tive coragem de ser tão idiota com você algum dia!
  - , isso está super no passado agora. Você também não chegou aqui no seu melhor estado.
  - Aprontar na Europa depois de uma vida aprontando nos Estados Unidos e talvez ter levado um par de chifres de uma das namoradinhas que eu gostei um pouco mais com um dos idiotas que eu pensei que fosse meu amigo. É, realmente eu tive problemas maiores que os seus. – ele ironizou. Era a primeira vez que ele mencionava a garota que vi em seu aniversário. Então realmente a cena foi o que parecia. Pensei em perguntar algo sobre isso, mas achei a oportunidade boa para emendar meu passado de “vadia mor da escola”.
  - Você acha que eu era uma santa antes da minha família morrer e minha vida mudar por completo? - dou uma risada sem um traço sequer de humor. – Por minha causa uma garota da minha escola que se chama Wendy cortou os próprios pulsos e ficou quase um mês no hospital. De lá ela foi direto pra uma espécie de casa de repouso. Quando eu saí de Beaufort, ela havia voltado pro colégio há poucos dias. Hoje em dia eu não sei exatamente como está, mas com certeza melhor do que quando eu frequentava aquela escola.
  - O que você fez pra menina tentar se matar? – perguntou com a expressão mais chocada que eu já havia visto em seu rosto. Talvez agora sim ele saísse correndo de perto de mim.
  - Eu a humilhei na frente da escola inteira dentro do refeitório. – suspirei. – Wendy era gordinha, usava óculos, aparelho nos dentes... Enfim, ela era o maior clichê de nerd que você pode imaginar. E eu era...
  - O maior clichê de popular, líder das animadoras de torcida, namorada do capitão do time de basquete. – completa o raciocínio por mim.
  - Exatamente.
  - Bom, sua aparência condiz realmente com isso.
  - Minha personalidade na época também condizia. Todas as meninas da escola queriam ser como eu era. Elas eram muito idiotas. – rolei os olhos.
   sorriu, mas ficou em silêncio.
  - E eu não mudei depois da Wendy, como você mudou depois do Peter. – falei lembrando-me do menino que quase morreu quando teve a brilhante ideia de fazê-lo nadar dentro de uma piscina praticamente congelada no Halloween em Nova York. – Eu não parei de pisar nas pessoas e de me preocupar só com maquiagens, roupas, bailes e em continuar sendo a garota mais popular do colégio. Wendy foi para o hospital, mas eu simplesmente disse para mim mesma “ela cortou os pulsos porque quis e não será uma grande perda para a humanidade se ela não conseguir sair dessa”. Eu só mudei quando todo mundo que eu amava de verdade morreu. E daí eu saí da UTI e meu namoradinho perfeito estava pegando a garota tão vazia quanto eu que na época eu chamava de melhor amiga. – pensar em tudo isso me fez sentir náuseas.
  - Isso deve ter sido a gota d’água, hein? – afagou minhas mãos.
  - Eu mereci tudo o que eu passei, . Eu confesso que me vitimizo muito. Não digo que foi justo minha irmã, meus pais e meu cachorro terem morrido para que eu pagasse pelos meus pecados. Neste caso, quem deveria ter morrido sou eu. Todos os dias eu tenho certeza disso: que eu quem deveria ter me arrebentado inteira naquele acidente. Mas hoje em dia, como eu sei como dói, não sei se eu desejaria a dor que eu passei para eles, sabe?
  - , o justo seria todos terem sobrevivido e você ter aprendido de outros modos como ser uma pessoa melhor. – meu namorado falou. – Mas talvez a Perséfone esteja certa... As coisas acontecem por uma razão. E, bom, quem disse que a vida é justa e nos ensina pelos meios mais fáceis, né?
  Assenti. Eu também pensava dessa forma. Pelo menos com a parte de que o mundo é cruel posso concordar perfeitamente.
  - Bom, eu fiz muitas outras piranhagens, como diz o , além dessa, mas o caso da Wendy foi a pior. Se você não quer manter distância de mim por isso, acho que o resto vou te contando aos poucos. – sorri para .
  - Só pra saber... Ainda há tempo de fugir, né?
  Soltei uma gargalhada porque pela sua voz, estava na cara que não iria a lugar algum.

  Jantamos um macarrão a bolonhesa que fiz aquela noite – uma das cinco coisas que eu sabia cozinhar. elogiou várias vezes, e agradeci por todos os elogios embora soubesse que ele estava exagerando.
  - Se você está falando tão bem da minha comida só pra ganhar sexo... – comecei a dizer depois de limpar minha boca com um guardanapo. Rodeei a mesa para me sentar no colo dele antes de continuar: - Saiba que deu certo. – concluí beijando de leve o pescoço do meu namorado. Ele riu e nós nos beijamos por um instante.
  - Eu não vou poder dormir aqui. Tudo bem por você?
  - Tudo bem por mim. Aconteceu alguma coisa na sua casa? – achei a pergunta apropriada porque a expressão dele era de que havia algum problema lhe obrigando a voltar para lá.
  - Meus pais brigaram ontem e já deixei minha mãe sozinha por tempo demais. – coça a nuca do jeito que sempre faz quando está preocupado.
  - Acho melhor você ir embora agora então, . – eu queria que ele ficasse, é claro, mas sabia que me sentiria culpada por “roubá-lo” da senhora Martha. Já estava tudo bem entre nós, afinal. O resto poderia esperar, e por mais que eu não quisesse fazer isso, era o mais sensato.
  - Minha tia ficou boa parte da tarde com ela. Não preciso ir embora agora.
  - , eu não quero me sentir culpada por te tirar da sua mãe.
  - , por favor, podemos parar de perder tempo discutindo essa bobagem? – ele pediu com um sorriso e apertou meu quadril.
  - Okay – eu disse e o beijei de novo, deixando que ele me pegasse no colo e subisse até meu quarto comigo em seus braços.

28. Felicidade

  Duas semanas se passaram. O time de basquete da escola foi eliminado no dia anterior e uma parte de mim esperava que o clima estivesse péssimo no colégio. Mas tinha razão: o fim do campeonato melhorou as coisas, não o contrário. Trevor era a pessoa mais feliz de todas com aquele resultado. Ele e não anunciaram um namoro, mas já andavam de mãos dadas na escola, e eu tinha certeza que nunca havia visto minha amiga tão feliz nos quase já dois anos que nos conhecíamos.
   estava saltitando de alegria pelos corredores porque havia sido nomeado presidente do comitê de formatura. Isso significava que nada relacionado ao baile escaparia de seus olhos, e nunca o vi tão dedicado a alguma coisa – nem o teatro parecia tão importante na vida dele.
  As provas finais começariam na semana seguinte e provavelmente dali alguns dias as cartas de admissões começariam a aparecer em nossas casas. Eu só conseguia pensar nisso 24 horas por dias porque, surpreendentemente, minha vida nunca esteve tão tranquila. e eu estávamos ótimos. Ignorávamos as provocações de Caleb no intervalo e eu fingia que não o conhecia nas aulas que tínhamos em comum. Agora ele era algo tão insignificante que eu mal percebia sua presença quando ele estava por perto.
  - Tenho uma notícia chata – disse fazendo uma careta quando cheguei na quadra de tênis da escola. Tínhamos aula de educação física juntos e aquele dia faríamos dupla para jogar tênis, o único esporte que eu jogava bem.
  - O que houve?
  - Vou pra Inglaterra amanhã e volto na segunda. É aniversário de casamento dos meus padrinhos e eles vão fazer uma festa enorme, essas coisas. Alguma chance da sua tia te deixar ir?
  - Acho que ela até deixaria, , mas não sei se eu posso ir. A gente tem prova de física na terça, eu não sei praticamente nada e ler os pensamentos dos nerds não é mais uma opção, né? – ri.
  - Caramba, vou sentir demais a sua falta. – ele coçou a nuca chateado.
  - Quando você voltar nós matamos a saudade. – falei e lhe dei um beijo no rosto.
  Lamentei mentalmente também porque eu teria que aguentar os pensamentos frenéticos da escola inteira na sexta e na segunda porque ele não iria à aula nesses dois dias, mas não verbalizei minha frustração com isso. Não queria que ele pensasse que seu papel fundamental na minha vida era como silenciador das mentes alheias. faria falta por centenas de motivos mais importantes do que isso.
  Provavelmente eu não teria aceitado meu carma se não tivesse ele para me livrar disso a maior parte do tempo. Mas talvez o tempo também estivesse me ajudando a aprender a dar mais valor às coisas boas que me cercavam. Nunca deixaria de me queixar pela morte dos meus pais, da minha irmã e do nosso cachorro. Nunca deixaria de pensar que aquele havia sido um preço alto demais a pagar pelos meus pecados anteriores ou para que eu aprendesse a ser menos mesquinha. Se alguém tinha que ter morrido naquele acidente, eu ainda acreditava que essa pessoa deveria ter sido eu. Eu quem fiz da vida de muita gente um inferno. Eu quem deveria sofrer as consequências dos meus atos, não a minha família.
  Mas a vida não é justa, certo?

  Depois da aula, me deixou em casa e fui fazer o dever de casa. Duas horas depois, decidi que poderia tirar alguns minutos para descansar. Deitei na minha cama e deixei minha cabeça vagar.
  Nosso vizinho de frente estava limpando o jardim e pensando na formatura da filha enquanto seu filho pequeno abria todas as torneiras da casa – e provavelmente ele só se daria conta do estrago depois que a bagunça estivesse muito feia. Sorri para os pensamentos do menininho que nem passavam perto de calcular o tamanho da bronca que levaria. Eu estava concentrada lendo a mente da minha vizinha da casa ao lado – tentando ignorar os demais pensamentos para entender os dela – quando ela falou meu nome e me levantei estupefata.
  - Oh meu Deus! – reclamei levando a mão ao coração que deu uma guinada dentro do meu peito com o susto.
  A garota ruiva simplesmente rolou os olhos.
  - Vejo que você guardou o lenço – Perséfone comentou. O lenço rosa que ela me deixou como presente da sua última aparição ainda estava sob o encosto da minha cadeira. – Certo, eu já sabia disso, não vou mentir. Te observo todos os dias, né? – sua expressão era de alguém que estava com preguiça.
  - Acho que você me deve algumas explicações. – falei com a voz trêmula. Levantei-me da cama e parei diante dela. Queria tocar seu cabelo ou seu braço para ver se ela era da mesma matéria que eu, mas não tive coragem. Alguma coisa nela me intimidava.
  - Devo mesmo. Você finalmente tomou vergonha e contou a verdade ao , hein? Perdi uma aposta por causa disso.
  - É mesmo? Você apostou com quem que eu mentiria para sempre sobre mim para o meu namorado? Deus?
  Perséfone riu alto.
  - Deus tem problemas maiores que você, . Por favor, não seja tão presunçosa.
  - Você vai me dizer alguma coisa relevante ou devo fingir que você não existe? Até porque, talvez você não exista mesmo, né?
  Eu não sabia até onde poderia acreditar no que ela me dizia, até porque ela não dizia coisa com coisa. Da última vez, deu a entender que era minha anja da guarda. Bom, só desgraçadas me aconteceram depois de sua primeira e única visita. Não era como se eu realmente confiasse nela.
  - , existem muitas coisas que eu posso te contar, mas duvido que você vá acreditar em alguma delas. Então vou resumir algumas coisas em termos simples e te dizer o que você quer saber.
  Parecia bom demais para ser verdade, mas fiquei calada esperando que ela continuasse. Ela deu dois tapinhas na minha cama, num espaço diante dela, e se sentou de modo a ficar de frente para mim.
  - Eu morri dois séculos atrás. E depois que as pessoas morrem, elas recebem tarefas, muitas vezes relacionadas com se redimir dos erros que cometeram em vida. Nós recebemos um treinamento e quando estamos prontas, somos designadas como guias espirituais ou anjos da guarda das pessoas. Use o termo que você quiser. É assim que a vida funciona após a morte. Geralmente poucos de nós conversam de verdade com aqueles que estão sob sua “tutela”. Mas nós temos o poder de alterar pequenas coisas na vida dos humanos para que eles cumpram seu destino aqui na Terra. Até que esses humanos morram e entrem no ciclo também.
  Tudo aquilo me parecia pura besteira, mas o que eu sei da vida depois da morte, não é mesmo?
  - Outra coisa importante, , é que o mundo é regido pelo tempo e o tempo é mutável. Já ouviu falar da Teoria dos Múltiplos Universos Paralelos?
  - Hã... A que diz que existem vários universos, não comunicantes, e em cada um deles talvez nós sejamos pessoas com vidas diferentes?
  - Mais ou menos isso. Bom, o caso é que, nós, os guias, podemos alterar algumas coisas para levar vocês, humanos, ao caminho certo.
  - Ok. – eu disse tentando entender onde ela queria chegar com aquilo, mas acho que minha expressão devia indicar o quanto eu estava confusa.
  - Existe um universo em que sua família está vivíssima. E em que você é exatamente aquela garota egoísta que fazia da vida de algumas pessoas um inferno. Bom, em outras palavras, você vai voltar para o que era antes, . Mas você vai voltar com todas essas memórias de agora. Você aprendeu muito ao longo desses quase dois anos, certo? E este era todo o objetivo de te colocar neste universo, em que seus pais, sua irmã e o Cookie não existem, e onde você tem todo o dinheiro e liberdade que gostaria quando vivia em Beaufort.
  - Eu vou ter minha família de volta? – minha voz falou em cada uma das palavras. Meus olhos já estavam transbordando lágrimas e eu podia sentir cada célula do meu corpo tremendo.
  - Vai. Mas isso aqui, que existe hoje, vai desaparecer assim que você voltar para Beaufort.
  - ... – sussurrei. Eu perderia .
  - , , , Trevor. Eu sinto muito. – Perséfone tocou minha mão, e eu vi seus dedos sobre a minha pele, mas só senti cócegas, como se vento tivesse soprando no meu punho.
  Fiquei em silêncio. Eu precisava perguntar quando isso aconteceria. Queria saber se teria a chance de me despedir. Mas, antes que eu dissesse algo, ela voltou a falar:
  - Você agora tem direito a escolha.
  - Você quer dizer...
  - Você quer continuar aqui, vivendo esta vida? Ou você quer ter sua família de volta? – Perséfone me perguntou.
  Seis meses atrás, eu nem pensaria para responder. Mas agora, com o sorriso dos meus amigos – com o sorriso de – na minha cabeça, meus desejos vacilaram. Eu morreria de saudade de todos, todos os dias. Sofreria fisicamente pensando em como teria sido o baile de formatura organizado por . Meu coração arderia no peito sempre que eu me lembrasse das loucuras de . Agora eu conseguia ver como ela se parecia com Emily, minha irmãzinha. E mais do que tudo, eu choraria todas as noites pensando em . Ele me tocou de uma forma tão íntima e verdadeira, que apesar de ter uma vida inteira pela frente, eu duvidava que alguém no mundo seria capaz de repetir isso. Talvez eu sentisse falta até de Caleb, afinal de contas.
  - Eu quero minha família de volta. – falei para Perséfone, a voz firme e convicta. Porque por mais amor que eu deixasse em Seattle, e por mais saudade que eu carregasse para sempre comigo, eu não sacrificaria minha vida com a minha família nunca mais. Nada no mundo doeria mais que perdê-los pela segunda vez.

****

  Eu voltaria para casa no dia do baile de formatura, quando o relógio marcasse meia noite. Essa foi a informação que recebi de Perséfone. Isso significava que eu tinha vinte e seis dias para aproveitar a vida que tinha agora. A ruiva, minha guia/anja da guarda, não me disse o que aconteceria comigo ali, no mundo que eu deixaria para trás. Ela simplesmente falou que quando eu morresse e recebesse minhas obrigações, eu descobriria. Não insisti. Provavelmente eu não gostaria de saber mesmo.
  O fim de semana sem foi rápido. Na verdade, cada dia parecia estar passando mais depressa agora.
  Tentei marcar planos com meus amigos, mas todos já tinham o que fazer – estava atolado com a organização do baile, visitaria o pai contra sua vontade, mas precisava ir, e todas as minhas colegas das atividades extra curriculares já tinham seus próprios planos. Portanto, decidi recorrer a tia Sabrina. Eu devia muito a ela, por ter me acolhido quando era uma órfã e assumido uma responsabilidade tão grande ao aceitar cuidar de mim.
  - Me desculpe, querida, mas eu tenho um encontro hoje. – ela disse sem graça colocando sua bolsa sobre o sofá e tirando os sapatos. Eu a havia interceptado assim que ela pisou em casa, às sete da noite da sexta-feira, depois de um dia longo no trabalho. Seus cabelos estavam escovados, caindo pelos ombros. Eu sempre a via de rabo de cavalo, coque ou trança. Ela parecia dez anos mais nova agora.
  - Sério? – gritei empolgada.
  - Sim. – ela sorriu.
  - Quem é ele? É bonito? É advogado também? – perguntei tudo de uma vez. Tentem entender: era a primeira vez em dois anos que eu via minha tia tendo um encontro.
  - Sim, eu acho que sim. Ele é médico. Cirurgião plástico. Formou na Universidade do Estado de Washington no mesmo ano que eu. Na verdade, nos conhecemos na época em um evento estudantil. Nós saímos, tomamos alguns drinks, mas não foi pra frente. Eu tive uma consulta com a dermatologista da clínica onde ele é sócio ontem, e daí nos vimos. Acabamos tomando um café. E então ele me chamou para sair. Vamos ver o que acontece, certo?
  - Nossa, tia, estou tão feliz por você! – falei e saltei sobre ela, para dar-lhe um abraço. O brilho nos olhos dela só me fizeram ter vontade de ver se tudo aquilo daria certo. E mesmo que eu não estivesse presente, já era grata por estar presenciando um evento assim.
  - Bom, não sei se vai dar em algo, mas estou feliz também. – ela disse, o rosto vermelho pelo rubor.
  - Vocês marcaram pra que horas? Você tem que se arrumar!
  - As oito ele vai passar aqui. Mas podemos fazer planos para amanhã. Que tal um dia mulherzinha no SPA?
  - Claro, está marcadíssimo!
  Tia Sabrina estava saindo da sala quando eu disse que não esperaria por ela acordada. Ela ficou mais vermelha ainda e riu, os pensamentos indicando que ela estava nervosa com a possibilidade de acontecer algo físico entre ela e o médico.
  Então passei o sábado todo no SPA com minha mãe. Troquei algumas mensagens com a tarde – ele não estava super empolgado com a festa e reclamou um pouco sobre as implicâncias do pai.
me ligou a noite para falar mal dos palpites das meninas que estavam na comissão de formatura e, como sempre, ri até meu abdome doer.
  Segunda-feira então chegou e apesar das minhas aulas agora se resumirem a revisões infinitas, nunca fui tão feliz em ir para a escola.
  - Você e o terminaram, foi? – Caleb perguntou quando o professor de Educação Física o designou como minha dupla para o jogo de tênis do dia.
  - Não, para a sua infelicidade, Caleb. – respondi e rolei os olhos.
  - Eu soube que a Jennifer esteve nos eventos familiares dele este final de semana e que ela vai fazer faculdade nos Estados Unidos.
  - Que bom pra Jennifer. Agora, se você terminou de tentar plantar intriga, eu vou dar o saque. – falei erguendo a bolinha e sorri para ele.
  - À vontade. – Aldrin sorriu de volta para mim. Eu poderia gostar de Caleb, poderia mesmo. Mas quando ele dizia coisas como “a ex-namorada do seu namorado vai voltar para o país e eles passaram o fim de semana na mesma festa” ficava difícil não imaginá-lo com a cara ensanguentada.
  É claro que eu não ficaria com a cabeça cheia de caraminholas, imaginando que fez algo com Jennifer que pudesse me machucar. Mas agora meus dias com ele estavam contados, era difícil não deixar que isso me afetasse. E se eu morresse no mundo dele para ter minha família de volta? Ou se nós fôssemos para lugares completamente diferentes para a faculdade. Eu não entendi exatamente o que aconteceria quando eu voltasse dois anos no tempo e estivesse então em Beaufort. Mas uma coisa eu teria que aceitar: não faria mais parte do meu universo, mas ficaria carimbado na minha memória pelo resto dos meus dias.

  O carro preto dele estava parado em uma das entradas de veículos da casa de tia Sabrina – minha casa pelos próximos 23 dias. Ele estava sentado na calçada digitando distraidamente no telefone, os cabelos grandes demais caindo em seus olhos e fazendo com que ele os afastasse a cada trinta segundos. Assim que pus o pé na calçada, se levantou e andou até mim, os olhos castanho-claros brilhando. E lá estava o sorriso que fazia eu me sentir a pessoa mais sortuda do mundo.
  Dei uma corridinha estúpida para pular em cima dele. Ele me ergueu até meus pés estarem há muitos centímetros do chão e minha cabeça ficou um pouco mais elevada que a sua. Dei-lhe um beijo leve e mantive os olhos fechados enquanto ele me voltava para o chão. segurou meu rosto com as duas mãos e então me beijou de verdade. Seus lábios frios e macios contra os meus e o gosto de Trident de menta da sua língua – ah, eu podia ter certeza de que jamais esqueceria isso, mesmo que tentasse.
  - Senti tanto a sua falta – ele disse assim que nos separamos e me abraçou de novo, afundando o rosto nos meus cabelos.
  - Conheço o sentimento – respondi. – E então? Vamos entrar para você me contar tudo sobre a festa?
  - Vamos entrar – piscou para mim.
  Não conversamos sobre nada por mais de uma hora. Bom, nada que fizesse sentido, pelo menos. Eu poderia simplesmente dormir a tarde toda com aquele aroma bom dos nossos perfumes misturado ao nosso suor no ar.
  - Você só foi ao SPA com sua tia, mas garanto que teve um fim de semana muito melhor que o meu. – disse fazendo desenhos com o dedo nas minhas costas nuas. Eu estava deitada de bruços, o rosto virado para ele, uma das minhas mãos acariciando seus cabelos molhados nas pontas.
  - Tem certeza? Caleb disse que sua ex estava por lá. Jennifer, certo?
   nunca havia me contado de verdade o que houve. Só sei que Jennifer o traiu com um de seus “amigos” e depois de muita briga, os dois se afastaram completamente e ele voltou para os Estados Unidos.
  - Caleb pratica as artes negras, só pode. – riu. – Ela estava. Ela é sobrinha da minha madrinha. Não é como se eu realmente pudesse evitá-la por completo para sempre, por mais que eu queira fazer isso.
  - Isso é escolha sua, . Eu realmente não me importo. – sorri para ele.
  - Nem um pouco? – ele arqueou as sobrancelhas.
  - Você teria que ser muito burro para terminar comigo e voltar com aquela menina.    riu e assentiu.
  - Mas não pode ter sido tão ruim assim. Pelo menos a bebida estava boa, fala sério – comentei.
  Então ele comentou algumas coisas sobre a festa – que o lugar era lindo, que qualquer dia prepararia para mim um coquetel que serviram e ele adorou e outras coisas que confesso que não prestei exatamente atenção. Eu estava distraída olhando para aquele rosto perfeito. E que eu estava prestes a perder.

29. Despedidas

  Fiz um “x” sobre o dia antes do dia do baile, que estava circulado no meu calendário. As aulas haviam acabado na semana anterior e hoje era o dia da colação de grau na escola. Minha beca azul celeste estava pendurada no cabide, dentro do meu closet. Eram seis horas da manhã e eu havia desistido de dormir depois de revirar na cama a maior parte da noite. Às dez horas tia Sabrina me levaria para a escola, assistiria à cerimônia sentada entre os pais dos demais alunos, enquanto eu ficaria ao lado de no gramado da escola, esperando o diretor Erikesen chamar meu nome e me entregar o diploma. Depois disso, nós comemoraríamos a formatura com nossas respectivas famílias – nosso dia de comemorar juntos era amanhã, sábado, no baile black tie organizado por .
  Fui aceita em três das cinco universidades para as quais me candidatei. e eu decidimos ir para a mais conceituada delas: a Universidade da Califórnia. Ele estudaria Engenharia e eu Direito – eu não tinha certeza da minha escolha, mas decidi fazê-la pensando em tia Sabrina. Ainda teríamos a possibilidade de cursar disciplinas diversas antes de tomar uma decisão definitiva, mas, para a minha tia, eu tinha certeza de que Direito era o que eu desejava para a minha vida. Ela ficou super feliz e orgulhosa com a novidade, três semanas atrás, quando anunciei isso. É só o que importava para mim.
  Uma pequena parte de mim duvidada de Perséfone e de tudo o que ela me dissera. E se aquilo tudo fosse alucinação minha? Parecia bem provável que tudo não passasse de fruto da minha imaginação quando eu estava com – os pensamentos desapareciam, eu não enxergava auras, o mundo era bom desse jeito. Só que eu tinha certeza absoluta de que realmente meus dias estavam se esgotando quando todos os pensamentos reapareciam ecoando dentro da minha cabeça e me provocando dor de cabeça e vontade de gritar de raiva daquilo. Porque sim, eu estava mais conformada agora, eu até conviveria com isso até minha morte... Mas não ficar mentalmente em silêncio continuaria sendo desagradável. Ver cores brilhando sobre as pessoas e sentir seu humor me atingindo como um soco no estômago também não era exatamente divertido. Eu poderia viver assim, mas não era uma situação ideal.
  Peguei a foto da minha família que jazia sobre a escrivaninha do meu quarto. Emily tinha dez anos naquela foto e estava ao meu lado, agachada, acariciando o pêlo do nosso labrador, Cookie. Lembro-me de ter gritado com ela para ficar de pé e agir como gente pelo menos para a foto. Sorri quando me veio à mente a expressão dela rolando os olhinhos antes de me mostrar a língua como resposta. Eu abraçaria todos eles de novo, certo? Deixaria meu cachorro entrar no meu quarto de vez em quando. Faria cosquinhas naquela pestinha até ela reclamar que estava com dor na barriga de tanto rir. Ajudaria minha mãe com o jantar, a dobrar as roupas limpas e passar o aspirador de pó na nossa casa simples, mas aconchegante na pequena ensolarada cidade de Beaufort. Iria com meu pai à Filadelfia para assistirmos ao jogo de baseball que eu odiava na época, mas adorava agora – eu aprendi a adorar revivendo as memórias do meu pai tomando cerveja e venerando os Yankees. Ter silêncio na minha própria mente era a última das minhas ambições agora, porque eu aprendi a conviver com isso, aprendi a abraçar essa desgraça. A perda prematura e trágica de toda a minha família, contudo... Eu não pularia do penhasco por isso – essa ideia me passou pela cabeça, mas nunca tive coragem de executar -, mas esse fato eu não podia superar sabendo que havia uma chance de reverter as coisas. Não precisei pensar em tudo isso para dar uma resposta à Perséfone 22 dias atrás, não precisava pensar agora. Não existia opção.
  E hoje eu começaria a me despedir de todos.

  O gramado da escola estava lotado de alunos com becas azuis. As meninas ocupavam a primeira metade de fileiras, os meninos a segunda. O diretor abriu a cerimônia fazendo um discurso sobre como todos nós fazíamos parte da história da Seattle South High School e sobre o que esperava que tivéssemos aprendido com o tempo que passamos na escola. Não ouvi muita coisa do ele disse – eu estava nervosa demais olhando para todos os lados, tentando memorizar os rostos de todo mundo com quem havia convivido de alguma forma.
   foi eleito o orador representante dos alunos. As eleições para isso aconteceram na última semana de aulas, e como já havia conquistado basicamente a todos – quem não morria de rir com as palhaçadas dele? –, a decisão dos estudantes foi quase inânime.   O diretor Erikesen passou a palavra a e desceu do palco, montado no gramado diante do prédio da diretoria do colégio. Meu melhor amigo deu um toque no microfone, ajeitou o papel com suas anotações para o discurso e acenou na minha direção e de antes de começar:   - Ensino médio é uma droga. – ele começou. Todos nós rimos, não só pela frase super apropriada, mas também por causa do tom de voz dele. – A verdade é que tudo é uma droga. Desde a parte de acordar cedo demais todos os dias, até o almoço da cantina e a obrigatoriedade de fazer pelo menos uma disciplina de escrita em todos os anos. Desculpe, senhora e demais professores de literatura e whatever, mas – ele enfatizou a palavra. – escrever é um saco. Você sabe o que é se esforçar quatro anos da sua vida para ser aceito? Sabe o que é ganhar um olhar torto porque você tem um estilo diferente, uma opção sexual diferente, uma religião ou até um corte de cabelo diferente do resto das pessoas? Sabe o que é ser considerado um fracasso simplesmente porque alguém diz no primeiro ano ou em algum momento que você é, e como a escola é uma droga, você vai continuar com essa fama até o dia da formatura? Pois é, senhoras e senhores, acredito que todos aqui já estiveram no colégio algum dia em suas vidas, e vamos encarar os fatos: não é um playground, nem um parque de diversões, nem faz ninguém ter orgasmos múltiplos de prazer. – Todos rimos quando o diretor se levantou de sua cadeira e chamou a atenção de . Não consegui ouvir o que o diretor disse de onde estava, mas pela sua cara vermelha como um tomate, não era um elogio. – Desculpe, senhor Erikesen, eu sei o que nós combinamos. E acredite, estou seguindo o combinado porque meu objetivo não era dizer “droga”, era “porra”, então já censurei muita coisa aqui. – Até os pais dos alunos riram com essa. O diretor disse algo a novamente. – Tá bom, tá bom. Pra quem não ouviu, gente, ele disse que vai interromper meu discurso se eu não voltar a falar como se estivesse discursando pra crianças, então reclamem com ele depois se isso aqui ficar uma merda. – rolou os olhos. já estava rocha de rir ao meu lado. – Bom, retomando... – ele disse. – Nós passamos o tempo todo tentando ser aceitos na escola. Eu passei a maior parte do meu tempo aqui fazendo de tudo para que alguém me enxergasse, para demonstrar que eu tenho potencial para realizar muitas coisas. E hoje o meu único arrependimento é esse. Não são os porres que eu tomei. Sim, me desculpa, mãe, mas eu já fiquei bêbado e chapado algumas vezes. Nada preocupante, mas é verdade. Sou um contra a lei. Não me arrependo dos micos, dos F que recebi em provas surpresa porque não sabia porcaria nenhuma e só dormia nas aulas. Não me arrependo de não ter me empenhado mais, de ter matado aula, de ter escondido roupas dos meus colegas atletas gatíssimos pra ver uns machos de cueca no vestiário por mais tempo. Vocês têm um espaço no meu coração, rapazes – mandou um beijo para os meninos. Quando olhei para trás para olhar, Trevor e estavam de pé mandando beijo para ele também. Eu só pude rir daquilo. – Eu não me arrependo de ter errado. Erros fazem parte da vida. Nós estamos na fase de cometer erros. Não existe melhor forma de aprender o que serve ou não pras nossas vidas, certo? Eu me arrependo de ter tentado demais acertar diante dos outros. Me arrependo de ter sido menos eu para ser o que eu achava que agradaria mais às pessoas. Hoje eu sei que nada disso tem valor. Se você não agrada aos outros porque é diferente, então mande que eles se fodam e continue sendo você. Não subestime o poder do foda-se, e principalmente, não subestime o seu valor. No final do dia, quem estiver ao seu lado apesar das suas peculiaridades, é quem importa. E acredite em mim: por mais desajustado e quebrado e estranho que você seja, existem aqueles que vão te amar, apesar de tudo. E pra finalizar, quero ler um quote de um livro maravilhoso para vocês. Antes de ler, explico a escolha dessas palavras. Eu escolhi esse quote para representar esse momento das nossas vidas porque esse período aqui é um pequeno infinito que marcou nossas existências e ficará nas nossas memórias de alguma forma para sempre. Vamos contar algumas histórias sobre o que vivemos aqui para os nossos filhos. Vamos ver pessoas próximas a nós vivendo os conflitos, que vivemos aqui nos últimos anos. E vamos ser gratos por isso, sem arrependimentos. Então, aí vai, e devo essas palavras lindas a John Green, o autor incrível de “A culpa é das estrelas” e tantos outros livros divos e destruidores: “Não sou formada em matemática, mas sei de uma coisa: existe uma quantidade infinita de números entre o 0 e o 1. Tem o 0,1 e o 0,12 e o 0,112 e uma infinidade de outros. Obviamente, existe um conjunto ainda maior entre o 0 e o 2 ou entre o 0 e o 1 milhão. Alguns infinitos são maiores que outros. (…) Você não imagina o tamanho da minha gratidão pelo nosso pequeno infinito. Eu não o trocaria por nada nesse mundo. Você me deu uma eternidade dentro dos nossos dias numerados e sou muito grata por isso.” – Todos os alunos se colocaram de pé para aplaudir . Ele tinha os olhos marejados e esperou que parássemos para dizer de fato sua última frase: - A todos vocês que fizeram parte do meu período aqui nesse lugar, muito obrigado por esse pequeno infinito.
  E neste momento me dei conta de que era exatamente a frase que eu gostaria de dizer a todos que entraram na minha vida quando me mudei para Seattle, completamente quebrada, quase dois anos atrás. Obrigada por esta eternidade em dias numerados.

****

  Depois da entrega dos diplomas, todos os alunos se reuniram no palco para jogar seus chapéus de formatura e tirarmos fotos. Então, a senhora Martha e seu marido Leonard , os pais de , convidaram minha tia e eu para almoçarmos todos juntos. O pai de não parecia tão ruim quanto ele pintava. Todas as vezes que cruzei com ele em sua casa, apesar de não terem sido muitas, ele me tratou com uma educação impecável. No almoço não foi diferente.
  - poderia ter escolhido uma das universidades da liga Yale. Tenho certeza que a também, certo, senhorita ? – Leonard disse para a minha tia enquanto esperávamos um garçom nos atender. Estávamos em um dos restaurantes mais granfinos da cidade.
  - Sim, eu posso arcar com os estudos da . – minha tia sorriu para mim. – Ela sabe disso.
  - Nós vamos pra Universidade da Califórnia, gente. Não é exatamente um lugar muito inferior a Yale. Vai sair caro pra vocês, não fiquem tristes. – falei.
já havia rolado os olhos três vezes ao meu lado.
  - Você trabalha com qual segmento do direito mesmo, senhorita ? – o pai de retomou a conversa.
  - Me chame de Sabrina, por favor. – tia Sabrina retribuiu o sorriso e começou a falar de trabalho.
  Aquele assunto durou até estarmos com uma travessa de lagosta à nossa frente. E, bom, com certeza aquele almoço custaria uma fortuna, mas pelo menos a comida estava divina. Os adultos conversavam enquanto comia uma lagosta grande por minuto e eu me segurava para não rir e fazer comentários a respeito disso. Ele tentou de todas as formas parecer mal educado comendo, mas sua aparência simplesmente não permitia que suas atitudes não parecessem elegantes.
  Meia hora e doze lagostas depois, começamos a trocar mensagens pelo celular enquanto tia Sabrina e o senhor ainda falavam de trabalho e a senhora sorria educadamente, fazendo um comentário vez ou outra.

  Estou pensando em uma forma de escaparmos daqui, mas tudo o que eu disser, meu pai vai pensar que foi rude e vamos começar uma briga aqui mesmo.

   me enviou depois de fazer uma piada maldosa sobre a peruca de um senhor da família de idosos que estava sentada à mesa ao nosso lado no restaurante.

  Quer que eu peça pra nos libertarem? - Respondi.

  Pelo amor de Deus! – Ele mandou no segundo seguinte.

  - Desculpe, tia Sabrina – falei interrompendo o que quer que minha tia falava. – Nós combinamos de encontrar nossos amigos as três no colégio para comemorar a formatura juntos também. – menti com naturalidade porque, afinal, aquela mentira não prejudicaria a ninguém. - Vocês se importariam se a gente se retirasse? – Pedi fazendo a melhor cara de pidona que tinha.
  - O dia é de vocês. Por mim está tudo bem! – ela respondeu.
  - Divirtam-se, crianças. – A mãe de disse.
  - Juízo. – O pai dele emendou.
  E depois de assentirmos felizes com a libertação, saímos do restaurante o mais rápido que pudemos.
  Andamos de mãos dadas até o colégio rindo ao fazer uma retrospectiva do que havia acontecido nos últimos oito meses, desde que nos conhecemos.
  - Você me odiava também, fala sério!
  - Como eu não te odiaria?! Você errava meu nome de propósito, tratava a todos super bem, mas a mim como se eu fosse um saco de lixo. E aquele ar de superioridade... Sério, depois do Caleb, você foi a pessoa mais insuportável que já conheci, !
  - Tão insuportável que agora você não vive mais sem mim – ele me cutucou na cintura, no meu ponto de cócegas, e eu rolei os olhos, mas sorri.
  - Convencido.
  - Eu também não vivo sem você mais, . Não é unilateral, se te serve de consolo. – emendou me puxando para um abraço.
  - Serve um pouco. – admiti.
  Ainda bem que somente eu sentiria sua falta e sofreria com sua ausência. Se eu soubesse que também se machucaria com a minha escolha, teria sido muito mais complicado abandoná-lo. Mas ele, , e todas as outras pessoas que eu amava neste mundo não se lembrariam de mim. Você não pode sofrer por algo que nem se lembra de já ter tido.
  Pensar isso me fez ficar deprimida. Assim, quando ele me soltou e comentou sobre nossa discussão na aula de Química eu sorri, mas nem tanto assim.
  - O que foi, meu amor? Você ficou séria de repente... – perguntou me fazendo parar de andar para encará-lo.
  Eu queria contar pra ele o que estava acontecendo. Queria me despedir de verdade, que ele sentisse essa despedida porque, afinal, ele se esqueceria dela no instante que eu desaparecesse. Mas ele tentaria me impedir. E mesmo que não tentasse, que entendesse a minha decisão e me apoiasse, ele sofreria com isso até que de fato acontecesse e eu fosse apagada de sua memória. Então eu disse o que havia planejado dizer caso aparentasse tristeza perto dele:
  - Vou sentir saudade do e da . Eu sei que vamos nos ver nas férias de verão sempre, e nos natais e dias de ação de graças. Mas vai ser um pouco estranho, sabe? – menti.
  - Tem certeza que é apenas isso?
  - Apenas isso? Você acha pouco? – ri de nervosismo. sorriu e balançou a cabeça em negativa.
  - Não, não é pouco. Vai ser uma grande mudança. Mas vamos estar tão distraídos com a faculdade e todo o lance de se virar sozinho que vai ser excitante, não triste. Bom, é o que eu acho. – deu de ombros.
  - Sim, você tem razão. – assenti e sorri.
  Então nós chegamos à escola e andamos pelo estacionamento, contornamos a fachada, passamos pelo gramado onde funcionários da limpeza tiravam as cadeiras da cerimônia da formatura que acabara de ser realizada, chegamos ao ginásio que estava trancado, assim como os outros prédios.
  - Agora sim, adeus ensino médio! – disse e suspirou de alívio.
  - Vou sentir falta disso aqui.
  Meu namorado me encarou com os olhos arregalados, como se eu tivesse dito a coisa mais estranha do mundo.
  - Não amanhã ou semana que vem ou mês que vem. Mas daqui algum tempo eu vou, e você também! A vida sempre fica mais complicada e a gente sempre quer correr para o passado. Tivemos bons momentos aqui também.
  - Ok, talvez daqui uns dez anos eu pense assim. – ele riu.    me ligou antes que eu ficasse chateada novamente. não sabia o que aquela formatura realmente significava, nem saberia jamais, então seria estupidez ficar triste com ele por estar feliz em ver a escola pela última vez e dizer em alto e bom som que não sentiria saudades dali.
  A ideia do meu melhor amigo é que fôssemos todos para a casa de aproveitar que a mãe dela estava trabalhando para beber a vodka ilegalmente adquirida por ele.
  - Vamos fazer um “Before party”. O que vocês acham?
  - Você não tem mil coisas do baile de amanhã para terminar de ajeitar? – perguntei.
  - Ahh, meu amor, já está tudo no esquema. Você me conhece: sempre está um passo à frente! – disse.
  - Ok, ok. Vou falar com o e a gente vai praí. – respondi e desliguei o telefone.
  - E então? Quer arrumar encrenca em pleno dia de formatura? – meus olhos deviam estar brilhando de empolgação.
  Havia um bom tempo que eu não me metia em problemas do tipo ficar bêbada, passar da hora fora de casa ou ser pega em local proibido com meus amigos. Desde que meus pais morreram, fiz de tudo para ser o mais impecavelmente correta possível. Tia Sabrina não tinha a obrigação de aguentar nada, e eu me sentia culpada demais para ousar fazer algo de errado de novo.
  Mas hoje era diferente. Dali pouco mais de 24h minhas atitudes seriam irrelevantes. E tudo o que eu mais queria agora era me despedir devidamente dos meus amigos e da vida que eu tinha em Seattle.
  - Você pretende se meter em encrenca? – questionou chocado.
  - Despedida do high school – dei de ombros.
  - Eu vou aonde você for. – ele piscou para mim. E pelas próximas horas eu realmente podia ter cem por cento de certeza de que ele iria.

***

  Cheguei em casa rindo feito uma hiena e carregada por um policial. Eu só me lembrava de ter virado vários shots de tequila no corredor da escola.
, Trevor, , e vários rostos conhecidos do colégio também estavam lá – todo mundo rindo e participando de jogos que incluíam shot de tequila como penitência se você errasse.
  - O que aconteceu? – minha tia perguntou chocada.
  - Ela foi pega junto com vários outros alunos da Seattle South High School dentro da escola, com bebida alcoólica e, bom, nesse estado.
  - Oh meu Deus...
  - Não se preocupe, nenhum deles foi fichado. Eram muitos alunos, hoje foi formatura deles, os filhos de metade dos policiais do condado estavam lá também, então não compensaria mesmo. – o policial que tinha o escrito Stewart no uniforme disse. Eu estava agora deitada no sofá, onde ele havia me deixado. Ou no tapete. Não tinha como ter certeza. Os dois eram muito macios...
  Os adultos trocaram mais algumas palavras e então minha tia veio até mim, tentando me fazer abrir os olhos. Quando olhei para ela, vestida com um roupão de seda, os cabelos soltos e o olhar preocupado, comecei a chorar.
  - O que foi, ? O que aconteceu? – ela perguntava repetidamente, mas eu só conseguia continuar chorando abraçada a ela.
  - Eu vou sentir taaaanto a sua falta. – falei, por fim.
  - Meu amor, nós vamos nos ver sempre que você quiser.
  Talvez ela tivesse razão. Não teríamos a mesma relação, mas tia Sabrina sempre seria tia Sabrina, a mulher que aceitou a responsabilidade de criar a sobrinha órfã, que me ofereceu um colo, tudo o que tinha de material e de emocional quando fiquei sozinha no mundo. A mulher que poderia ter me rejeitado porque não tinha como lidar com tanta responsabilidade tão jovem, mas que preferiu estar ao meu lado. E eu estava grata porque não me esqueceria disso.

***

  Acordei no dia seguinte com minha tia me trazendo café na cama. Eu havia enchido a cara e invadido a escola no dia anterior e ainda ganhava café na cama. Tia Sabrina realmente era o oposto de seu irmão, meu pai.
  - Como está se sentindo? – ela me perguntou.
  Meu estômago estava péssimo, minha garganta queimava, mas o pior de tudo era minha cabeça explodindo de dor. A dor era tão grande que eu nem conseguia ouvir os pensamentos das pessoas... Ok, eu não conseguia ouvir os pensamentos das pessoas?! Isso era impossível!
  - Tia, está aí?
  - Não, por que?
  - Hmm, nada, eu só... Enfim, eu preciso ligar pra ele. Tenho certeza de que os pais dele não o receberam com tanto carinho em casa.
  - , tome um café antes, beba uma água. Hoje a noite é o baile de formatura e já são onze da manhã.
  - JÁ SÃO ONZE HORAS? – perguntei aos gritos, chocada, e me arrependi instantaneamente. Precisava de um analgésico. Felizmente tia Sabrina havia acrescentado isso a minha bandeja de café da manhã.
  Tomei o remédio com um gole de limonada e mordisquei uma torrada para que ela saísse do quarto e me deixasse sozinha. Liguei para assim que minha tia fechou a porta atrás de si.
  - Bom dia, amor – disse ao atender o telefone.
  - Bom dia. Você está em casa? – falei tão rápido que tudo pareceu só uma palavra.
  - Sim, por quê?
  - Hmm, nada. Só queria saber como seus pais reagiram ontem. – menti.
  - Ah, eu me lembro vagamente do meu pai me enfiar debaixo do chuveiro e me dar um sermão sobre como eu era uma criança e essa coisa toda. E me lembro de acordar hoje com a minha mãe me chamando pra tomar café. Eu acabei de comer agora e já ia te ligar.
  - Entendi.
  - E você? Como foi com sua tia?
  Contei que ela havia sido muito legal, que também me deu banho depois que vomitei horrores enquanto ela segurava meu cabelo.
  - Acho que estou mesmo enferrujada para porres. – comentei.
  - É, eu também já aguentei mais. – respondeu e riu.
  Então me despedi dele porque eu precisava cuidar da vida. Precisava cumprir o roteiro que havia planejado para o dia e a minha primeira tarefa nele era ir até a casa de ter uma última conversa séria com ela.
  Apesar disso, porém, uma coisa não saía da minha cabeça por mais que eu tentasse: por que os pensamentos haviam sumido? Será que era um sinal de que a normalidade estava me alcançando? Um aviso para me lembrar que meu tempo aqui estava se esgotando? Ou será que Perséfone havia me enganado e eu não teria minha família de volta – só teria o silêncio novamente?
  Eu não tinha tempo para descobrir. Não podia passar o dia distraída com isso. Mesmo assim, numa tentativa ridiculamente desesperada de obter respostas, fechei meus olhos e sussurrei pra mim mesma o nome da garota ruiva que se dizia meu anjo da guarda.
  - Você disse que tem as respostas pra tudo, que é por sua causa que a minha vida mudou tanto nos últimos dois anos. Então… Por que os pensamentos sumiram?
  Abri os olhos e nada ao meu redor havia mudado. Não havia resposta porque, talvez, eu não tivesse mesmo que saber. Foi o que pensei a princípio, até entrar no meu banheiro e ver escrito no meu espelho manchado de vapor - o que não fazia o menor sentido porque ninguém usara o chuveiro desde a noite anterior: Aproveite suas últimas horas.

***

  Parei meu carro na porta da casa de e respirei fundo antes de descer. Eu havia pensado muito sobre dizer a verdade para ela e para e optei por ser sincera com os dois. Eu havia escondido muitas coisas deles por muito tempo, por medo de não acreditarem em mim, de acharem que eu era estranha demais para terem por perto. Não sei se eu conseguiria conviver com uma pessoa que lesse meus pensamentos o tempo todo, então não fazia sentido esperar isso deles. Mas agora eu sabia que minhas habilidades sobrenaturais, para eles, não significavam absolutamente nada. E hoje, pela primeira vez, estaríamos juntos em privacidade total - eu havia ganhado algumas horas de normalidade com eles, afinal.
   me abraçou apertado assim que entrei em sua casa. já estava lá esperando por mim; seus olhos encheram-se de lágrimas no instante que me viu.
  - Ah não, , o que foi que a gente combinou? - reclamou, mas sua voz era de choro também.
  - Eu sei, eu sei - disse, fungou e balançou a cabeça de um lado para o outro. Meu melhor amigo respirou fundo e olhou para mim com sua cara de “ok, moving on”.
  - Assim que se faz, gente! - falei e sorri. Eu ainda não queria chorar. Estava ansiosa para ver a reação dos dois aos presentes que eu havia trazido, e já havia prometido para mim mesma que chorar não era uma opção até que isso se tornasse de fato impossível. - Eu tenho uma coisa pra cada um de vocês!
  Os olhos dos dois brilharam igualmente e nos dirigimos para o sofá.
  Eles provavelmente não teriam a chance de manter meus presentes uma vez que eu nunca teria existido em suas vidas a partir do dia seguinte. Mas se tinha uma coisa que eu havia aprendido é que o que de fato vale é a intenção, é ver no rosto do outro o quanto seu gesto significou. Isso era tudo o que eu queria ter pela última vez.
  Entreguei os embrulhos para os meus amigos e deixei que eles olhassem os itens e lessem no cartão o significado de cada um dos três objetos que coloquei na caixa.

  ,
  Eu gostaria muito de estar com você todos os dias nos próximos anos, que eu sei que serão bem confusos pra nós duas. Mas como eu não posso - e não vou ficar falando sobre isso incansavelmente aqui porque não é o objetivo, certo? -, quero que você tenha essas pequenas lembranças de mim. Espero que você se sinta cuidada por mim quando olhar pra elas.
  1. Um apanhador de sonhos - para capturar os seus pesadelos e guardar as boas coisas que saírem do seu subconsciente.
  2. Um diário - e não venha me dizer que isso é brega! Escreva aqui o que você gostaria de lembrar para sempre. A vida é corrida, curta e nós somos tão falhas que deixamos as grandes coisas se tornarem pequenas com muita facilidade. Então, para te ajudar a não correr esse risco, aqui estão páginas especiais para você manter suas memórias intactas.
  3. Uma bolsa nova para a sua coleção! (Agradeça à tia Sabrina pela ostentosa Louise Vitom).

  ,
  Vai me doer fisicamente não ver o seu sorriso todos os dias. Não conseguirei te explicar jamais o quanto seu sorriso foi o que me fez sair de casa para ir à escola tantas vezes ao longo desses últimos dois anos, o que foi o seu sorriso que me fez continuar com cada um dos meus pedacinhos em seu devido lugar. Você vai longe, meu amigo, e mesmo que eu não esteja fisicamente lá, eu sempre estarei te aplaudindo de pé.
  1. Uma câmera - para você registrar todos os momentos que quiser desta nova etapa da sua vida.
  2. Um relógio de bolso (que também é uma bússola!) - porque você uma vez me disse que achava isso a cara da elegância, e, principalmente, porque te ajudará a recuperar o rumo sempre que você se sentir perdido.
  3. Sapatos novos - porque você ama sapatos e porque, quotando você mesmo, regra número um da vida: assim como homens, sapatos NUNCA são demais!

  - Ai, amiga, assim fica difícil não borrar a maquiagem! - disse colocando seu cartão sobre o sofá e me puxou para um abraço.
  - Digo exatamente o mesmo! - se juntou a nós.   Alguns segundos depois - e quando eu já estava prestes a abrir o berreiro também - ela disse que eles também tinham algo pra mim e saíram da sala juntos.
  A caixa era média, cor de rosa e quando abri o laço, cheirava a orquídeas - minha flor preferida, o cheiro da minha casa em Beaufort porque minha mãe amava orquídeas e tinha dúzias delas espalhadas pelo jardim e em jarros pela sala e na cozinha. Dentro do embrulho encontrei várias coisas, cada uma delas com um bilhetinho pregado. Havia um espelho com uma moldura prateada; seu bilhete dizia: “para você nunca esquecer o quanto é linda/maravilhosa/diva/perfeitamente esculpida pelos anjos de Deus”. Um álbum com provavelmente todas as fotos que tiramos juntos ao longo do tempo que passamos juntos, e praticamente todas elas tinham legendas - por exemplo, uma que tiramos no carro indo para a festa na casa do Caleb, no dia em que e eu brigamos, dizia: “Estávamos lindas e felizes indo para a casa do Aldrin, sem nem imaginar o barraco que aconteceria”. A foto ao lado, era uma que tiramos no meu aniversario e emendava: “Porém, nada abala nossa amizade, e tudo voltou a ser como era antes! :D #chupaAldrin #bestfriends4ever”. Além disso havia uma blusinha cropped estampada “S.S.H.S”, e o bilhetinho dizia: “Pra você se lembrar de onde conheceu a gente quando for exibir sua barriga linda na Califórnia”. O penúltimo item era uma caixa dos meus chocolates preferidos, cujo bilhete falava: “ sugeriu colocar ‘para adoçar o início da sua nova vida’, o que é muito brega, então saiba que minha sugestão foi ‘coma isso de uma forma erótica com seu namorado gostoso’”. E o último, um CD da Beyoncé e um do Maroon 5 com os bilhetes iguais: “Para o bom gosto te acompanhar sempre”.
  Meus olhos estavam cheios de lágrimas quando acabei de ver todos os presentinhos cuidadosamente preparados por eles. estava chorando ao meu lado e se encontrava no mesmo estado que eu - prestes a desabar.
  - Amiga, nós queríamos ter escrito uma carta também, mas pareceu muito triste e melancólico, e como você viu, tentamos manter seu presente alegre na medida do possível. - disse com a voz rouca de choro. - Você já teve muito sofrimento na sua vida, principalmente pra alguém tão jovem. Se despedir da gente não tem que ser outro evento traumático porque não é. Nós vamos nos ver sempre, nos falar sempre, manter o máximo de contato! - ele me abraçou.
  - Claro que vamos! - emendou, e então lá estávamos nós, dividindo um abraço triplo de novo.
  E foi neste instante que eu desisti de contar a eles a verdade. Eu acabaria com o baile de formatura dos dois aquela noite se lhes dissesse o que eu acreditava que estava prestes a acontecer. Eles passariam cada minuto vigiando o relógio esperando pelo instante que eu desapareceria. Isso não era justo com eles.
  Portanto, por mais que eu quisesse abrir meu coração e ser cem por cento sincera com eles daquela vez, por um motivo que não era egoísta - como ser aceita, não ficar sozinha, não parecer louca ou afastá-los de mim -, para não fazê-los sofrer por minha causa em um dia que devia ser para comemorar uma de nossas primeiras vitórias na vida, eu apenas me permiti chorar e disse:
  - Vamos estar juntos sempre.
  E, bom, pelo menos no meu coração, isso era uma verdade absoluta.

***

  Passei duas horas na casa dos meus amigos e segui para a casa de . Eu tinha três horas com ele antes de ter que voltar para casa, onde uma equipe de duas cabeleireiras, manicure e maquiadora me esperavam para me prepararem para a formatura. e se juntariam a mim nessa missão - nosso último momento de beleza juntos.
  Meu namorado me esperava na entrava de veículos da casa. Portanto, quando pus os pés para fora do carro, ele me puxou para me abraçar apertado e encheu meu rosto de beijos.
  - Por que tão carinhoso? - comentei rindo quando ele me soltou.
  - Senti uma saudade descomunal de você hoje. Acho que ainda estou me convencendo de que vou mesmo passar os próximos anos perto de você, sabe?
  Eu queria chorar só de ouvir isso, mas eu não podia, e havia jurado que aproveitaria aqueles últimos instantes com ele sem melancolia.
  - Sim, eu entendo perfeitamente. - assenti e sorri.
   me puxou para os fundos da propriedade e quando perguntei o que estava acontecendo, ele apenas disse que tinha uma surpresa para mim. Passamos da piscina e estacamos embaixo de uma árvore grande que havia perto da cerca-viva, composta de arbustros, que separava a casa dos de outra mansão localizada na rua de trás do mesmo bloco. Ao redor do tronco da árvore, uma casinha de madeira havia sido construída.
  - Você tem uma casa na árvore?! Não acredito que nunca me trouxe aqui antes! - falei empolgada.
  - Eu costumava pensar que isso aqui era triste. Meu pai mandou construírem, ao invés de construir junto comigo, como pais normais fazem. Mas então eu aprendi com uma pessoa nos últimos meses que por mais quebradas que as pessoas sejam, eu preciso ser mais grato por tê-las por perto e pelo que elas fazem por mim. Parar de focar no lado ruim, sabe como é?
  - Sei exatamente. - sorri o maior sorriso que eu era capaz de formar no rosto.
  - O que acha de ser minha visitante hoje, senhorita ?
  - Hmm, não sei. - brinquei.
  - Eu tenho doces…
  - Hmmm, então não posso recusar! Eu adoro doces! - arregalei os olhos e bati palminhas.    riu a risada gostosa do mundo e escalou a árvore primeiro para me mostrar o caminho.
  A “casinha” na árvore de parecia um pequeno chalé. Nós dois cabíamos lá dentro de pé, havia um sofá cama, um frigobar, uma TV e uma estante com vários carrinhos e outros brinquinhos, como o Mike de Monstros S.A, pokémons, um Buzz Lightyear e uma réplica do robot Wall-e. Fiquei tão encantada com os itens da infância de que nem percebi que o sofá estava cheio de pétalas de rosas e haviam velas acesas em alguns cantos do espaço.
  - Meu Deus, e eu pensando que você queria que eu tivesse um contato com sua criança interior - eu disse sacudindo a cabeça em negação, mas me deitei sobre ele, e antes que respondesse, eu o beijei.
  Por aquelas próximas três horas, eu fiz o máximo que pude para esquecer que seria nosso último dia juntos. Conversamos, rimos, nos beijamos, fizemos amor à luz das velas sobre as pétalas de rosa. Éramos só e eu, e nada mais importava naquele momento.

***

  O salão de festas estava maravilhosamente decorado. Havia uma parte com mesas, um bar grande ao fundo, garçons impecavelmente vestidos. Haviam luzes de todas as cores na pista de dança, onde um DJ escolhido a dedo por tocava músicas para alunos que já estavam ali vestidos com trajes formais e dançando.
   estava ao meu lado trajando um smoking moderno preto, com o cabelo desgrenhado como sempre, parecendo o Robert Pattinson como Edward no final de Crepúsculo - comparação esta que verbalizei para ele e recebi uma careta em reposta. Eu estava metida num vestido vermelho, sem alças, com o decote em formato de coração e as costas trançadas. A peça era justa ao longo da minha cintura e se abria no meu quadril, com o tecido caindo solto até os meus pés, que estavam adornados com escarpins creme e dourados de 10 centímetros de salto. Tudo fora escandalosamente escolhido por , e tia Sabrina - os três se uniram contra mim aproveitando-se da minha promessa de que eu os deixaria escolher meu look para a formatura. Meu cabelo estava preso do lado direito, em um coque baixo com alguns fios soltos, e minha franja jogada para o lado esquerdo. Minha maquiagem estava incrível - cílios postiços, olhos pretos e dourados, batom nude. E, bom, por mais que no fundo eu estivesse me sentindo chamando a atenção demais, eu estava me sentindo poderosa de um jeito que não me sentia há tanto tempo que nem sabia mais que era capaz de nutrir essa sensação.
   estava lindo, fantasiado de hetero, como ele mesmo se caracterizara. estava maravilhosa, com um vestido preto frente única, longo, e os cabelos ondulados soltos. Trevor não parava de olhar para ela.   Chegamos ao baile antes das oito da noite, o que significava que eu ainda tinha pouco mais de quatro horas para curtir a noite. Paramos vinte minutos no bar para beber as bebidas sem-álcool - sucos e coqueteis deliciosos, apesar da reclamação dos alunos - e conversar. Então a música de - “Who run the world? (Girls!)”, da Beyonce - começou a tocar e e eu fomos para pista de dança acompanhá-lo. Alguns segundos depois, Caleb colocou a mão nas minhas costas e sussurrou algo que não pude entender. Inicialmente pensei que havia sido algum comentário maldoso, mas a expressão dele não parecia ser de quem estava brincando ou me provocando. Puxei Caleb Aldrin pelo braço para onde eu pudesse ouvi-lo.
  - Aconteceu alguma coisa, Caleb? - perguntei. Geralmente eu diria “o que você quer agora, Aldrin?”, mas ele estava com os olhos de uma pessoa que parecia ter chorado o dia todo.
  - Vocês venceram. Eu não estarei aqui muito tempo pra incomodar mais. - a voz dele picou duas vezes ao dizer as duas frases.
  - Do que você esta falando, garoto?
  - Eu estou com câncer.
  Pensei em dizer que ele era mesmo louco se pensava que alguém havia desejado esse tipo de “vitória” sobre ele em algum momento na vida. Pensei em dizer que sentia muito, que se eu pudesse fazer algo para ajudar, eu faria. Pensei em várias coisas em questão de três segundos, até meu cérebro me dizer que nada do que eu falasse ajudaria de verdade ou o faria acreditar que eu nunca desejei algo do tipo a ele. Então, como nada do que eu dissesse faria diferença, eu apenas o abracei. Ele chorou no meu ombro por um instante e então apareceu na minha frente, de costas para Caleb, com o rosto vermelho de raiva prestes a armar uma briga. Balancei a cabeça de leve para o meu namorado e pelos meus olhos provavelmente ele viu que não devia fazer nada. Caleb me soltou depois de um longo instante, enxugou o rosto com as mãos e disse:
  - Não precisa ter pena de mim.
  - Eu não tenho. Você já me provou que é forte o bastante pra encarar algo assim.
  - Você acha que eu mereço. - ele deu de ombros.
  - Não, Caleb. Apesar de você ser um ser humano horrível, assim como eu era um tempo atrás, eu não acho que você merece isso, talvez da mesma forma que eu não acho que mereci perder a minha familia. O que eu acho é que o que não nos mata nos deixa mais fortes. Sei que isso vai acontecer com você.
  - Como você tem tanta certeza?
  - Porque nós somos farinha do mesmo saco. Talvez por isso nós nunca tenhamos sido amigos. A gente se parece demais.
  Caleb sorriu de lado e virou-se para . Esperei que ele ignorasse a presença do meu namorado e fosse embora, porque eu não acreditava que ele tinha energias suficientes para provocar uma confusão naquele instante. Mas, para a minha surpresa, Caleb abraçou por três segundos, sussurrou algo em seu ouvido e, antes de ir embora, disse:
  - Desejo vocês sorte na Califórnia. De verdade.
   se aproximou de mim com os olhos arregalados e me perguntou o que havia acontecido. Contei o que Caleb me dissera, o que fez fechar os olhos e esfregar as têmporas com os dedos.
  - Isso explica um pouco as coisas. - falou.
  - O que ele te disse?
  - Ele disse: “Espero que um dia você me perdoe, irmão”.

***

  A noite passou tão rápido quanto eu já sabia que passaria. O relógio marcada dez minutos para a meia noite, todos dançavam alegremente ao redor, assim como e Trevor ao meu lado na pista de dança. Eu estava prestes a puxar meu namorado para um abraço sufocante e cheio de lágrimas porque havia chegado ao meu limite e nosso tempo estava prestes a acabar, quando o DJ anunciou o momento música de casais da noite e sugeriu que todos que não estavam juntos de verdade aproveitassem a chance.
  A música Hello, da Adele, encheu o espaço. envolveu minha cintura e pôs a cabeça no meu ombro. Balançamos de um lado para o outro juntos, acompanhando o ritmo da música. Quando o refrão começou, eu comecei a chorar silenciosamente no ombro dele.

  Hello from the outside
  (Olá do lado de fora)
  At least I can say that I've tried
  (Pelo menos eu posso dizer que tentei)
  To tell you I'm sorry
  (Te dizer que sinto muito)
  For breaking your heart
  (Por quebrar o seu coração)
  But it don't matter, it clearly
  (Mas isso não importa, isso claramente)
  Doesn't tear you apart anymore
  (Não te deixa em pedaços mais)

  Porque de várias formas, cada palavra era tão verdadeira quanto possível.
  Quando a música acabou, outra começou a tocar, mas eu nem sabia qual era e nem me importava. Peguei o rosto de com as mãos e ele encarou meus olhos vermelhos pelas lágrimas - pensei por um décimo de segundo na minha maquiagem borrada, mas não importava também. O som estava muito alto para que ele me ouvisse, então ele me puxou para um canto, apesar dos meus protestos para não sair dali.
  - , o que está acontecendo?
  - Eu só quero te dizer que eu te amo. Eu nunca vou esquecer você. Você foi uma das principais razões para que eu acreditasse que era possível ser feliz num mundo onde eu não tivesse minha família. Me perdoe. Eu queria ficar com você, mas eu não posso.
  - , do que você está falando?
  Não respondi. Apenas colei meus lábios nos dele. O gosto de menta do Trident que ele estava mascando, sua boca macia e quente contra a minha e suas mãos no meu rosto são as últimas coisas das quais me lembro.

30.

  Acordo e latidos de cachorro são a primeira coisa que escuto. Estou deitada na minha antiga cama king-single, no meu quarto de papel de parede cor-de-rosa com flores desenhadas. Meus ursinhos de pelúcia estão espalhados ao meu redor e o ar cheira à orquídeas. Levanto-me vagarosamente e vejo meu reflexo no espelho da penteadeira. Meus cabelos estão alguns centímetros mais curtos, minha franja tampa a minha testa, estou trajando os pijamas amarelos do exato dia do acidente. Pareço cinco anos mais nova, não dois. Sinto-me dez anos mais velha, porém. Ouço os latidos de Cookie novamente e então as risadinhas de Emily também entram pela fresta da porta do meu quarto. Esse barulho que me faz escancarar a porta e descer as escadas da casa correndo. Chego à sala e lá está ela, esparramada no tapete, nosso cachorro lambendo seu rosto. Quero chorar, quero gritar, quero dizer que morri de saudades dela, mas ela não vai entender nada, então apenas ando até os dois - minha irmã e nosso labrador - e os abraço. Faço cócegas em Emily e acaricio o pelo de Cookie ao mesmo tempo. Ela ri alto me mandando parar - um pedido para que eu continue, na verdade, é claro.
  - Que bagunça é essa aqui? - minha mãe aparece na soleira da porta trajando um avental e sorrindo. Tão linda, tão dedicada, tão amorosa. Minhas memórias foram injustas com ela porque nem nos meus sonhos mais lindos ela era tão perfeita.
  Levanto-me, deixando Emily e Cookie felizes no chão, rindo e latindo, respectivamente, e abraço minha mãe apertado.
  - Eu te amo, mãe - digo com a voz embargada e com os olhos cheios de lágrimas.
  - Também te amo, filha. Está tudo bem?
  - Sim, eu só tive um sonho. Agora está tudo mais que bem.

  Aquela noite, vamos todos juntos para a casa da bisavó comemorar seu aniversário de 95 anos. Se tivéssemos que morrer num acidente agora, morreríamos todos, nem que eu me enfiasse no meio das ferragens do carro.
  Felizmente, fomos e voltamos em segurança.
  Ignoro as ligações das minhas “amigas” do colégio, incluindo Kate, e de , meu atual namorado, durante todo o fim de semana. Sei que estão todos putos comigo porque faltei ao jogo final sem dar qualquer explicação ou sinal de vida, mas definitivamente não me importo.
  - Tem certeza de que está tudo bem, ? Pensei que esse jogo fosse a coisa mais importante da sua vida e você simplesmente não foi ontem. Agora não quer atender ao namorado e as suas amigas… - meu pai diz enquanto assistíamos ao jogo de baseball e comíamos pizza. - E, bom, desde quando você gosta dos Yankees?
  - Na verdade eu prefiro os Mets, mas vou ficar com os Yankees pra te fazer feliz, paizito.
  Ele balança a cabeça de um lado para o outro, sorri e voltou a concentrar-se no jogo.
  Meu plano era me comportar do jeito que eu era em todos os aspectos possíveis, para que eles não estranhassem demais a diferença. Agora posso voltar a me arrumar sem sentir que sou uma escrota por me importar com minha aparência enquanto todos que eu mais amo no mundo estão sendo engolidos pela terra um pouco mais todos os dias. Minha família está de volta, eu não tenha motivos para me odiar tanto mais. Agora há tempo para deixar pessoas como Kate e no passado, para conhecer os “Brians e Annas” e da minha escola, para ser diferente. E isso com certeza eu começaria a fazer o quanto antes.

  Chego na escola na segunda-feira e assim que entro no corredor, Kate vem perguntar onde eu havia me metido.
  - Você deixou o time na mão! - ela diz três vezes depois de vários minutos reclamando.
  - Então eu suponho que os meninos tenham perdido.
  - Eles ganharam, mas não graças a você, ne ? Você só pensa em você!
  Kate abre a boca para continuar, mas eu a interrompo:
  - Em primeiro lugar, fofa, diminui o seu tom pra falar comigo que eu não sou suas negas. - só depois que digo a frase me lembro que aprendi aquela sentença com e tenho que me segurar para não rir. - Em segundo lugar, eu não ajudei ao time, e você tampouco. Eles venceram porque são bons, não porque tem um grupo de garotas bonitinhas pulando no ar e balançando a bunda com pompons na mão antes de cada jogo pra fazer com que se sintam mais competentes. E quer saber? Eu estou pouco me lixando se eles ganharam, perderam ou o que quer que seja.
  - Belo discurso vindo da capitã das animadoras de torcida! - Kate responde. Neste instante me lembro que estou praticamente diante do meu armário e que nele está um dos meus uniformes e a braçadeira do time que eu tinha tanto orgulho de enfiar no braço e desfilar por aí usando.
  Ando até meu armário, cato o uniforme e todas as outras porcarias do time que estão lá dentro, incluindo a porcaria de uma foto minha vestida com o uniforme das animadoras que está pregado na porta do armário, e atiro tudo aos pés de Kate.
  - Ex-capitã. Pode ficar com o cargo se quiser. Ah, e aproveita e me faz um favor: fique com o também. Sei que você está louca pra fazer isso já faz tempo. Aproveite a sua vidinha vazia. Duvido que você vai subir mais nada vida que isso. - falo com todo o desprezo que verdadeiramente sinto por ela e dou as costas para uma Kate perplexa.
  O sinal toca no instante seguinte, enquanto caminho em direção as salas de aula. me puxa pelo braço quando estou a dez passos de me refugiar na aula de história.
  - Onde você se meteu o final de semana inteiro? Eu fui até a sua casa duas vezes e sua mãe não me deixou entrar porque disse que você estava dormindo! Você perdeu o jogo, ignorou todas as minhas ligações…
  - , me deixe te interromper bem aí, antes que você se humilhe mais ainda. - falo e ele me encara perplexo. - Já que você não entendeu a dica, vou explicar pra você: eu não te quero mais.
  - O quê?
  - Acabou. Não quero te namorar mais.
  A boca dele está aberta e os olhos arregalados, como se eu tivesse acabado de dizer que comi filhotinhos de cachorro para o cafe da manhã.
  - De onde… de onde saiu isso agora?
  - Não importa. Eu não quero mais.
  - Você está me dispensando? Eu sou o cara mais bonito da escola. Eu sou o…
  - Capitão do time de basquete, blábláblá… Eu sei. Aproveite isso e arranje outra namorada! Seja feliz!
  - Você ficou louca?!
  - Não, querido. Pela primeira vez, eu estou pensando direito. Boa sorte pra você! Agora, se você não se importa, eu tenho aula.
  Dou dois capinhas na cara de e entro na sala de História. Ele volta pelo caminho de onde veio, pisando alto e resmungando. Rio comigo mesma e vou me sentar atrás de Luana Johnson, uma das meninas do jornal da escola, rezando para que ela não me odeie tanto e possamos nos tornar amigas.

Epílogo

  Três meses depois…

  Alguns dias são mais difíceis que outros.
  Não me arrependo da decisão que tomei. A cada dia que passa e vejo meus pais felizes, a paz reinando em nossa casa agora que não sou mais uma dor de cabeça, minha irmãzinha crescendo e tendo a chance de ter um futuro, tenho mais certeza de que não tive escolha.
  Mas não posso negar: eles fazem falta.
  A alegria, as boas vibrações que transpira, seu carinho e apoio incondicional… Como isso faz falta!
  A empolgação de , a forma como ela se parecia com Emily - teimosa, inocente, vulnerável - também me fazem querer chorar todos os dias.
  … Pensar no nome dele já faz meu peito se retorcer de dor.
  Como será que eles estão? O que aconteceu com eles? Será que eu realmente não deixei nenhuma lembrança que os machucasse para trás?
  Bom, eu sabia que um dos preços a pagar pela volta da minha familia era nunca descobrir isso. E estou bem conformada com este fato. A saudade, porém, continuaria sendo uma constante na minha vida. E como já dissera Clarisse Corrêa: “A saudade só é bonita na poesia. Na vida real, ela arde”.

***

  Chego em casa as seis da tarde, depois de passar três horas no jornal da escola, ajeitando tudo para a edição da semana que seria impressa no dia seguinte pela manhã. Quando entro, vejo meus pais e minha irmã sentados no sofá esperando por mim, todos com os rostos sérios, inclusive Emily.
  - Boa noite - digo cautelosamente deixando minha mochila no chão.
  - , sente-se. Nós temos uma notícia pra dar. - meu pai responde. Cada poro do meu corpo se arrepia. Não gosto mais de receber notícias sérias.
  - O que aconteceu? - pergunto preocupada.
  - Eu recebi uma proposta de emprego que vai melhorar bastante nossa renda.
  Respiro aliviada e deixo meu corpo relaxar no sofá. Todos estão bem. Ninguém está doente ou algo do tipo. Estamos bem.
  - Mas o emprego é em Seattle. - ele emenda.
  Meu pai continua falando sobre a proposta de trabalho, tentando me convencer a nos mudarmos, sem saber que não era preciso dizer nada com esse objetivo.

  Vou voltar para Seattle.

***

  Estou sentada com e no refeitório da escola. Faz sete meses que me mudei para Seattle com a minha família. Estamos morando no bairro ao lado da casa de tia Sabrina - o que significa que gasto praticamente o mesmo tempo que antes para ir para a escola. Dirijo um Corolla - presente de aniversário da minha tia - e busco meus amigos em casa sempre que possível - não todos os dias como antes. Eles são exatamente o e a que sempre conheci. As vezes me sinto num deja vu eterno, com várias cenas que lembro de já ter vivido se repetindo vez após vez ao meu redor. Se eu me importo com isso? Nem um pouco. Estou feliz por estar de volta.
  Olho ao redor procurando por algo como sempre faço. Esse algo tem nome e sobrenome, e uma parte de mim ainda tem esperanças de vê-lo novamente, apesar de eu já ter esgotado minha cota de sorte com o universo e saber que não posso pedir da vida mais nada.
  O sinal toca nos mandando de volta para a aula. Tenho educação física, então vou ao meu armário guardar os livros e pegar os tênis que deixei lá dentro. A mão de alguém toca o meu ombro e quando me viro para ver quem é, posso jurar que meu coração para de bater por um instante.
  - , certo? - ele diz. A mesma voz, o mesmo corte de cabelo, vestindo uma blusa azul marinho e jeans como eu já havia visto diversas vezes antes no que parecia agora outra vida.
  Faço que sim com a cabeça, incapaz de pronunciar uma palavra.
  - Meu nome é e aparentemente você está responsável por me mostrar a escola, essas coisas. Sinto muito. - ele sorri de lado e coça nuca.
  Fazia parte da política da escola designar um aluno veterano para mostrar as coisas para alunos novos quando o ano letivo já estava em andamento, então fazia sentido.
  - Prazer em te conhecer, . Acabou de se mudar pra cidade? - consegui dizer depois de limpar a garganta duas vezes e gaguejar três.
  - Na verdade eu moro aqui há mais tempo… Estava estudando em Londres no último semestre. Longa história. - ele dá de ombros. - Eu sinto que te conheço de algum lugar… - emenda e me olha com os olhos em fenda, como se estivesse me analisando.
  - É mesmo? - sorrio.
  - Isso é estranho. - ele balança a cabeça e sorri. - Enfim, quando começamos? Estou tentando ficar responsável uma vez na vida.
  Parte de mim quer contar a ele toda a história que eu me lembro que vivemos juntos. Talvez algum dia eu tenha a chance mesmo de fazer isso. está aqui, assim como e , assim como meus pais, minha irmã, meu cachorro…
  De alguma forma, eu havia andado em círculos e parado exatamente onde estava. Eu havia recebido de fato uma segunda chance, e desta vez eu faria diferente de fato.

FIM!



Comentários da autora


N/A: Oi, meninas!

Bom, finalmente Addiction acabou! Foram três anos sofridos, mas aqui estamos! Minhas amigas autoras que leem a história sabem o quanto eu amadureci ao longo dela. Pensei em desistir várias vezes porque senti que eu não sabia escrever essa personagem principal mais - eu tinha uma cabeça quando a imaginei no meu cérebro pela primeira vez e agora nem reconheço a de antes mais. Mas, de alguma forma, consegui retomar as coisas e usar essas mudanças em mim mesma de uma maneira em que consegui ficar satisfeita. Espero do fundo do meu coração que vocês também tenham ficado!
Sei que muitas de vocês talvez questionem esse final, mas eu sempre tive esses fatos principais bem claros na minha mente. Quem leu a série Os Imortais talvez tivesse uma dica (eu me inspirei em Lua Azul nessa questão da principal ter a oportunidade de voltar para casa, etc.). Há diferenças super significativas, é claro; minha versão é só um “reflexo embaçado” dos livros da Alisson Noel. E sei o quanto é arriscado “reinventar” algo que já existe também. Porém, Addiction foi uma daquelas ideias que só me deixou em paz agora que consegui terminar de escrevê-la - sim, quase não foi uma opção não produzir essa fim haha
Enfim, obrigada a todas que não desistiram da história apesar dos meses sem atualização e das surpresas sinistras hahaha Obrigada principalmente às lindas que me cobraram no grupo das pages de fanfic no face e no meu próprio grupo pessoal para as minhas fanfics (se você ainda não faz parte do grupo, use o link abaixo e venha fazer parte!).
Marcella Ribeiro (Mah), Emily Vasconcellos, Luana Menegace, Emanuelli Horst, Jamilly Lacerda, Luisa Camargos e várias outras lindas: obrigada pelo carinho desde sempre! Mari e Marii Luck, minhas betas lindas: milhões de obrigadas também!
Foi uma jornada incrível, de muito aprendizado, bloqueios, horas diante do PC e quase 70 mil palavras/125 páginas (a maior história que já escrevi até hoje!). Obrigada a todas vocês que fizeram parte disso!

Milhares de beijos, suas maravilhosas! <3

Quer fazer parte do meu grupo de fanfics? Aqui está o link.
E pra quem tem tumblr, me sigam lá que eu sigo de volta, haha: danniaquino.tumblr.com

Beijo grande!

Nota permanente: Addiction é uma fanfic baseada no livro Para Sempre, da autora Alisson Nöel. O que eu peguei da história foi que a protagonista perde a família num acidente automobilístico, e a partir de então passa a ler pensamentos e ver auras, e somente um garoto é capaz de voltar todo o universo dela ao normal. A garota vai viver com a tia e ganha dois amigos na cidade nova: um rapaz que tem os meninos como opção sexual e uma moça meio "inimiga" às vezes. A intenção desta fanfic é retratar o que eu imaginei sobre Para Sempre quando li o livro, sem as conotações sobrenaturais e místicas que existem no livro.