A Bendita Sorte
Escrito por Nicole Manjiro
Era quarta-feira quando entrei em um avião sozinho pela primeira vez.
Minha mãe poderia estar certa quando disse que eu já era um homem crescido - 32 anos - e que poderia muito bem ir para a República Dominicana sem a presença de outra pessoa conhecida; o problema é que meu medo de voos faz com que o pequeno medo de uma pessoa normal seja estratosférico dentro de mim.
Ainda assim, eu fui.
Meu melhor amigo, Jonas, estava para se casar e havia me escolhido para ser o seu único padrinho - sua noiva, Amanda, tinha muitos amigos e amigas, e ele foi gentil em somente exigir uma pessoa na lista; no caso, eu. Quando ele falou deste resort incrível com o mar azul do caribe, eu sabia dos desafios que vinham pela frente. Tentei por meses trabalhar meu medo de voos, mas minha psicóloga disse que o medo só diminuiria quando eu o enfrentasse.
Foi uma merda, e só de pensar em todo o processo da volta me causa vertigens.
– Ah… - suspirei, deixando a brisa salgada do mar curar meu mal-estar.
Eu havia decidido chegar alguns dias mais cedo para o caso de passar extremamente mal no avião e precisar de tempo extra para me recuperar. Mas já era quase sete da noite e eu estava quase novo em folha. Caminhei pela orla projetada do resort e me deixei levar até o final do caminho que, coincidentemente - ou não - dava em um enorme bar, onde diversas pessoas se divertiam como se não fosse um dia útil para a maioria das pessoas no mundo.
Sentei em um canto de um balcão enorme e fui logo atendido por um dos baristas treinados a ser super simpáticos com os hóspedes do hotel; como o sistema é tudo incluso, apenas perguntei qual bebida era boa para curar um mal estar causado por um trauma de avião. O homem riu e não se demorou a fazer uma mistura que disse ser local, e que curava até um elefante. Decidi não o questionar e sorri, aceitando a sugestão.
Enquanto ele preparava o drink - achei melhor não olhar cada bebida que ele colocava ali dentro do copo -, passei a observar as pessoas no local; a maioria já estava alegre, talvez pelo fato de estarem onde estavam, ou talvez fosse mesmo o álcool. Em um breve momento, vi um cara empurrar uma mulher perto de onde eu estava; sem tomar conta dos meus modos, fui até ela para ampará-la e pedi ao homem que fosse mais cuidadoso ao andar. Enquanto o desajeitado se desculpava, percebi que não havia ajudado uma pessoa qualquer, mas a única pessoa que eu absolutamente não queria encontrar em um lugar apropriado para encontros e romance.
– … - murmurei, vendo-a escutar e virar seu rosto para finalmente me ver.
– .
e eu tivemos um breve relacionamento. Na verdade, não passou da fase da paquera. Eu era apaixonado por ela quando mais novos e ela… bem, ela foi gentil em responder às minhas investidas.
Mas a verdade era que não sentia nada por mim e no fim a relação acabou não dando em nada - só em um trauma na minha vida.
– Você veio para o casamento… é claro que sim. - ela disse, dando uma risada sem graça. – Esqueci que você e Jonas é como carne e unha.
– Agora estamos mais para unha e alicate. Nos encontramos de vez em quando, mas não vivemos sem o outro.
riu e inclinou a cabeça levemente para trás. Exatamente como há cinco anos.
Suspirei e bebi um gole do drink que o barista havia preparado, e por pouco não coloquei para fora tudo o que havia comido no voo. Olhei para o homem chocado e ele me mandou um joinha com um sorriso de quem havia feito um bom trabalho.
– Deixa eu adivinhar… não sabia o que pedir e deixou que o barman escolhesse.
Limpei a garganta sem graça e olhei para o lado, ouvindo mais uma vez ela rir.
– Tem coisas que realmente não mudam… ei!
Me levantei no mesmo momento em que outra pessoa esbarrou na . Troquei de assento com ela, mas percebi que não solucionaria o problema por muito tempo, já que um DJ começava a tocar música e mais pessoas chegavam para se divertir.
– Quer ir para outro bar? - perguntei.
– Tem outro bar? - arregalou os olhos.
– Tem… - olhei o mapa do resort que o recepcionista havia me entregado no check-in – cinco.
ficou encarando o mapa enorme aberto no pequeno espaço entre nós dois e então riu mais uma vez.
– Você está andando com um mapa?
Ergui os ombros.
– Eu sei que tem outros cinco bares espalhados por este resort. - ergui o mapa quase todo dobrado e a vi revirar os olhos enquanto sorria.
– Tudo bem, vamos lá, sabichão.
Foi quando eu parecia estar
Indo pra nenhum lugar
Numa noite eu te encontrei
Mas não sabia o que falar
Sugeri um outro Bar
Você riu e disse ok
Seguimos para o bar mais afastado daquele em que estávamos, porque simplesmente quis assim; eu, na verdade, não tive tempo nem cabeça para questioná-la porque estava absorto demais em sua aparência.
Depois que ela me disse que não estava dando certo há cinco anos, nós simplesmente saímos da vida um do outro, mas não por querer. Tanto ela, quanto eu, tínhamos estilos de vida diferentes, com pessoas diferentes. O trabalho de exigia muitas viagens, enquanto eu evitava entrar em um avião como o vampiro evita a luz solar.
–... e a lua aqui é muito maior.
– Uhum - murmurei, vendo que, na verdade, ela era ainda mais bonita do que a lua. Vestia um vestido longo de alças e cada passo que dava eu podia ver uma parte de sua perna através da fenda que havia em um dos lados.
Eu percebi quando um grupo de homens passou ao nosso lado e alguns deles viraram o rosto para vê-la mais uma vez. Dei um passo discreto para mais perto dela, apenas porque sou imaturo demais para deixar aquilo passar.
Sua beleza agora era a de uma mulher madura. Se antes eu gostava dela por ser engraçada e tagarela - algo que eu não sou -, agora o seu charme era seus traços de mulher. Não que se espere alguma infantilidade de uma pessoa de 32 anos, mas havia algo em seu olhar… uma segurança que antes não estava ali.
Andamos sem perceber
E numa esquina qualquer
Envolta da gente o céu
E a lua como um farol
Mas você brilhava mais
E toda a cidade
Acordou só pra te ver passar
Naquela noite nós conversamos sobre nossas vidas.
Em como as coisas encaminharam enquanto estávamos longe um do outro.
viveu três relacionamentos sérios com três homens totalmente diferentes um do outro, e também de mim. Eu, por outro lado, namorei uma pessoa só por três anos e fui quase deixado no altar porque ela teve uma crise. Quando minha ex decidiu que agora sim estava pronta para casar, eu falei que o tempo de nós dois havia passado.
– Você? Noivo?
– Eu me apego fácil - ergo os ombros e a vejo rir.
E então, por um momento, ficamos em silêncio. Olho para ela e a pego me encarando com um sorriso que transmitia carinho.
– Não dê esse sorriso.
– Que sorriso? - ela perguntou sem desfazê-lo.
Apontei para o rosto dela.
– Este. Ele é problemático.
– O que há de errado com um sorriso, ?
Suspirei.
– Era o meu sorriso favorito.
Aquilo, de alguma forma, pareceu mexer com ela. O sorriso saiu do rosto, mas não pareceu incomodada com minha confissão.
Passamos o resto da semana fazendo companhia um para o outro. contou que havia conhecido a noiva através de Jonas em um dia que os dois foram visitá-la na agência de viagens em que era dona. Ela havia aberto sua própria empresa dois anos depois de "terminarmos". Desde então, o casal sempre entrava em contato com ela e, com o convite de casamento, pediram para que ela organizasse a lua de mel e as passagens e hospedagens de suas famílias.
– Ainda com medo de avião? - ela perguntou enquanto estávamos na sala de espera para a chamada. Não havia muitos voos da República Dominicana para o Brasil, então foi fácil estar no mesmo voo que ela; mais fácil ainda foi ela usar seus pontos para fazer um upgrade em meu assento, me levando consigo na classe executiva.
Abro um sorriso nervoso e pego o remédio que meu médico havia me indicado para dormir no voo.
– Isso não faz bem para a saúde, .
– Qualquer coisa é melhor para a minha saúde do que eu enfrentar um voo inteiro são.
Ela abriu um pequeno sorriso e me deu a mão, cruzando nossos dedos.
O efeito foi imediato e mais eficaz do que o remédio.
Olhei para ela em choque, e tudo o que fez foi levantar e me puxar para a fila da prioridade quando nosso voo foi anunciado.
ficou de mão dada comigo a maior parte do voo. Além disso, havia algo nas classes executivas - talvez a possibilidade da cadeira se tornar uma cama - que me trazia mais tranquilidade. Foi a primeira vez que eu viajava sem o efeito do remédio.
– Não foi tão mal - ela disse quando saíamos do portão de desembarque, empurrando nossas malas. – Você só tremeu duas vezes.
– Ha-ha. - falei, ouvindo-a rir. – Está de carro?
– Vou chamar um Uber.
– Eu te levo.
– Está tudo bem, .
– Deixe-me pagar pela ajuda. - disse e ela não pode me questionar.
No início da viagem foi como se ainda estivéssemos no resort. Falamos sem parar sobre o casamento, o destino da lua de mel de Jonas e sua esposa, o que teríamos de trabalho no dia seguinte…
Mas, de acordo com que fomos chegando perto de seu endereço, a conversa foi morrendo e a tensão tomou conta.
Será que voltaríamos a nos falar?
Será que continuaríamos nos vendo?
Os últimos dias significaram alguma coisa?
– É aqui - ela apontou para um prédio. - Obrigada.
– Por nada. - respondi.
Ajudei a tirar sua mala do carro e deixei ser abraçado por ela, sentindo o calor de seu corpo e o perfume adocicado, característico dela.
E então ela se foi.
Os dias que se passaram foram um pesadelo.
Tudo o que eu queria era voltar para a semana anterior e ter como visão o combo caribe + . Porém, tudo o que eu via eram clientes pedindo mudança no projeto e engenheiros fingindo que sabiam projetar.
Nos momentos de pausa, me perguntava se para estava sendo a mesma coisa. Se estava sendo insuportável viver a realidade após ter passado cinco dias em um sonho.
Durante todos aqueles dias ela me lembrou, com detalhes, dos motivos que me fazia gostar tanto dela. Suas brincadeiras, seus gestos, os sorrisos e os olhares. A preocupação e o jeito mandão com carinho que ela tinha.
– Merda! - falo, quando sinto o café transbordar da cafeteira e queimar minha mão.
– De novo, ? - Raquel, minha colega de trabalho, me deu uma toalha e me ajudou a limpar a sujeira. – Você está bem distraído esses dias.
– Precisamos de uma cafeteira com pausa automática.
– Disse a pessoa que comprou esse modelo dizendo que era mais custo-benefício. - ela murmurou. – Anda, fala qual o problema. Encontrou uma sereia?
Abri a boca. Havia alguma coisa nas mulheres, um sexto sentido que me chocava.
– Um fantasma. - respondo.
– Uau. Esses são os piores. Trouxe alguns gatilhos no bolso?
– Vários.
– E estava acompanhada?
– Não. Ela está… - limpo a garganta - solteira.
Raquel olhou para mim como se eu fosse um pateta. Talvez eu fosse mesmo.
– E o que diabos você está fazendo distraído? Ela está te esperando nua na sua cama?
– Sua sensibilidade é comovente. Não sei como Diana consegue suportar você.
Raquel riu e bebeu um gole do próprio café.
– É o que dizem, o amor é cego. Mas estamos falando de você. Qual o problema?
– Ela… bem. Não aconteceu nada.
– Ah. Este é o problema. Você ligou pra ela?
– Não.
– Mandou mensagem?
– N-não…
Minha colega riu.
– O problema não é não ter acontecido nada, . O problema mesmo é você. Como quer que algo se desenvolva, se você não toma uma iniciativa?
– Bem, eu…
– Não venha com papo de que estava esperando por um sinal dela. O maior erro das pessoas é achar que deve respeitar a outra justamente quando o que mais precisa é tomar a iniciativa. Você e a Diana são iguaizinhos neste aspecto.
– Você foi até ela?
– Ela veio até mim, é claro. Eu estava sofrendo com o término com a minha ex, lembra? Como poderia enxergar ela?
Fazia sentido.
– A questão é: você precisa se fazer presente. Estar na vida dela, entende. Ficou longe por 5 anos e agora quer esperar mais 5 para poder tentar algo? A sorte não bate na mesma porta duas vezes não, . Você precisa abrir ela e agarrá-la enquanto é tempo.
Abri um sorriso e dei um abraço na minha colega.
– Sai dessa toca!
Dei risada e peguei meu casaco enquanto corria para o corredor dos elevadores.
Com pressa, saí com meu carro em direção à agência de viagens dela. Jonas havia me passado o contato e era melhor que eu aproveitasse o momento de coragem e falar com ela pessoalmente, ao invés de apenas telefonar e chamá-la para jantar.
Quando cheguei lá, estava se aprontando para sair. Como dona, era a última a deixar o lugar e desligava todas as luzes antes de se encaminhar para a porta e acionar o alarme de segurança.
– Oi - disse, fazendo-a sobressaltar com o susto –, desculpe.
– Não, eu… acho que já fechamos, .
– Eu vim ver você.
– Ah… - ela olhou para mim e então colocou o cabelo imaginário para atrás do ouvido. Provavelmente havia se esquecido que eles estavam presos em um coque justo atrás da nuca.
– Você tem programação? Quer jantar?
Ela olhou em seu relógio e então voltou a olhar para mim.
– Tudo bem. Estou faminta, ia passar no mercado e comprar um congelado.
Abri um sorriso e segui para o meu carro. Abri a porta para ela entrar.
– Você não vem de carro?
– Não tenho carro. Vendi o meu quando abri a agência. Eu moro perto, então vou a pé ou de Uber. E você? Ainda não trabalha no escritório da Haddock? É bem longe daqui.
– Não muito. - menti.
Fingi não estar nervoso com sua presença. Ela continuava bonita como quando estávamos na viagem, o que às vezes me pegava pensando que talvez eu fosse o esquisito que não a tirou da cabeça quando voltou pra São Paulo.
Fomos a um bistrô que havia ali por perto e comemos conversando sem parar, não dando tempo para um silêncio constrangedor ou uma troca de olhares sem graça. No fim, era quase uma da manhã quando eu a deixei na porta de seu prédio.
– Foi ótimo, , obrigada.
– Espera! - segurei seu braço quando ela abriu a porta do carro. – Podemos nos encontrar de novo?
sabia que não era uma pergunta inocente. Ninguém surge numa sexta à noite sem avisar e a chama para jantar. Eu não faria isso.
– Por quê?
Abri a boca, mas nada saiu. Esperei que ela me ajudasse, mas só suspirou.
– , se você quer isso, precisa dizer em voz alta. Dessa vez terá de ser diferente. Dessa vez terá de ser você a pessoa que tomará a iniciativa.
Visualizei a porta que estava entreaberta. A sorte estava ali, prestes a me deixar, mas eu não poderia. Raquel disse que dificilmente ela voltaria a bater.
Então eu só agi.
Puxei de volta para o assento e a beijei.
Não foi uma iniciativa que ela esperava, mas pelo menos foi boa. Sua mão imediatamente veio ao encontro de meu pescoço e sua boca se abriu para permitir a passagem da minha língua.
Nos beijamos por sei lá quanto tempo e, quando nos separamos, estávamos ofegantes.
– Uau. - ela disse. – Você… eu não… esperava.
– Não posso deixá-la escapar de novo.
– Bem… essa foi uma boa maneira de me segurar. - ela sorriu e me fez rir sem graça.
– Isso quer dizer que…
– Primeiro você vai pegar meu telefone, algo que deveria ter feito no domingo passado - ela disse e eu logo me atrapalhei para pegar meu celular no painel do carro –, amanhã você vai me ligar e me chamar para almoçar. E passaremos o dia juntos em um encontro. E então você irá me trazer para casa e eu irei perguntar se você quer tomar um café.
– E eu passarei a noite aqui.
riu.
– Veja só, cinco anos foram o suficiente para você conseguir dar um passo para frente. - ela brincou. – E aí no domingo…
. – Eu irei dizer que você é linda e que agora estamos em um namoro de verdade.
Vi o sorriso que eu adorava surgir em seu rosto.
– Me parece bom.
Beijei-lhe mais uma vez.
– Até amanhã então. - disse, meus lábios ainda grudados nos dela.
– Até…
Observei ela entrar no prédio e então olhei para frente.
Sorri como nunca havia antes. Então olhei para a sorte e abri a porta por completo para ela, que entrou saltitante.
Ela seria uma moradora permanente da minha casa.
Contanto que também fosse.