24 Horas

Escrito por Kelly Oliveira | Revisado por Mariana

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  Já faziam, exatamente, 24 horas...
  Com certo impulso levantou o corpo. Levantou, mas seu ânimo não ficou de pé também. Seu estômago doía como se houvesse levado vários chutes e socos. Uma dor de louco, também conhecida como a dor de fome. Aquela que parece revirar as tripas, as laçando até não sobrar nenhuma ponta. Fora o estômago, o coração também doía, mas de uma forma diferente. A dor parecia alcançar a alma, o espírito que habita seu corpo, que o faz humano. Ele era mesmo humano?
  Em meio a sede da madrugada, fez força para levantar de uma vez da cama. Abriu os braços para dissipar todo o mau humor acumulado dentro de si.
  Droga de pesadelos. Já faziam, exatamente, 24 horas que seus breves cochilos mais pareciam a porta de entrada para o inferno.
  Foi tateando a parede, que conseguiu achar o interruptor. Após a luz acesa, revelando o quarto pequeno, suas paredes descascando, o rapaz visualizou o corpo de sua namorada. A moça se encontrava em um sono profundo. Ele poderia gritar, bater panelas umas nas outras, no entanto, seu corpo não se moveria. “Tão dorminhoca”, ele costumava dizer. No fim, adorava admirá-la dormir.
  A olhou uma última vez antes de deixar o quarto. Os degraus rangiam com o peso de seu corpo, mesmo com a diferença de quase 3 quilos. Os perdeu na última semana que se passou. Mal comia, às vezes chegando a fazer uma refeição, qual não passava de macarrão instantâneo, por dia.
  Tomou a tão almejada água, que até parecia limpar a podridão que entrava por seus poros e centravam em seus ossos, para depois trilhar caminho aos principais órgãos assim tomando todo seu organismo. se sentia podre por dentro. Mas havia , e tê-la o fazia se sentir limpo, mesmo que por breves segundos.
  Deixou o copo, de forma desengonçada, na mesa. As paredes da cozinha pareciam mais apertadas e feias do que as do quarto. A diferença estava no calor. O quarto do casal era frio. Um frio que ia além do clima lá fora.
  O corpo debaixo do cobertor continuava parado. O cabelo negro e curto jogado para o lado, dando a visão de seu pescoço tão delicado, tão magro e gelado. notando a temperatura corporal da namorada, cobriu ainda mais seu corpo, abraçando-a de forma cuidadosa.
  Amanheceria em breve. O rapaz precisaria estar de pé o quanto antes.

  Raios de sol adentravam o cômodo por meio de algumas frestas na madeira velha da persiana. Os filetes de calor batiam diretamente no olho esquerdo de , o fazendo retrair os olhos, ainda fechados, algumas poucas vezes. Foi levado a encarar o teto de madeira, algumas teias de aranha se arranjavam pertinho uma da outra nos cantos, descendo pela parede. Malditas aranhas. Se estivesse acordada, pularia no pescoço de e não o soltaria até ele dar um fim em todas.
  Ratos e aranhas. A mulher detestava.
  “Limparei tudo mais tarde”, o jovem de 25 anos idealizou em sua mente. Naquele momento, o café o esperava. Seu estômago roncava a ponto de tirar da cabeça a ideia da dieta-instantânea. E ao pensar em sua alimentação à base de macarrão, acabou por lembrar do vazio que esbanjava ao abrir a porta da dispensa. Estava na hora de pôr o corpo para fora de casa, cumprimentar os vizinhos, encarar ruas movimentadas; precisava respirar. Já faziam, exatamente, 24 horas que não saía de casa. não se importaria, caso ele passeasse um pouco em busca de comida. Com sorte, ao voltar, ela ainda estaria deitada.
  A preparação do café teria de esperar um pouco mais.
  Tomou impulso, arrancando de vez seu corpo do colchão. Com um beijo delicado, se despediu da namorada apenas para seguir rumo ao banheiro e fazer sua higiene matinal. Foi com um banho rápido que despertou para si próprio. teria que conversar com as pessoas. Não que fosse uma tarefa difícil, mas parecia haver um século que não conversava face a face com outra pessoa, a não ser , claro.
  Suspirou algumas vezes. A visão que tinha do espelho era um mais velho, muito mais velho do que a idade indicava. Mas ter 25 anos não o fazia um velho... fazia?
  Balançou a cabeça, dando movimento aos fios negros, apresentando o que, um dia, havia sido um corte. A franja estava empapada de água, que escorria por suas sobrancelhas, suavizando as cascatas ao chegarem perto de seu nariz. Ao todo, não gostava do que via. Não gostava dele. Porém, gostava. Ela costumava falar de sua beleza, dos seus olhos pequenos e em como seu cheiro era bom. gostava dele, da forma que era. Era o que importava.
  - !
  Seu nome foi proferido por uma voz feminina, uma voz ligeiramente aguda, ao menos naquele momento. O rapaz não reconheceu de cara quem o chamava, apenas quando notou a silhueta da menina em meio aquele tumulto de gente, que se formava toda manhã na padaria principal da cidade, pôde trazer à mente seu rosto.
  - Pensei que estava morto. Você não olha as mensagens no celular? Estou tentando entrar em contato faz quase mil dias. Juro que pensei que algo grave havia acontecido. Não faça mais isso! – e completou a reprovação com um tapa leve em seu ombro. – Aonde está a ? – era a única que a chamava pelo nome.
  - tem andado bastante cansada. Um dos motivos da minha ausência.
  - Wow... Você é tão legal. Gostaria muito de alguém como você. – brincou, arrancando um riso falso por parte do rapaz em sua frente. – Diga que estou com saudades. Preciso ir.
  E depois de um abraço rápido, acenou baixo com a mão.
   era a melhor amiga da , contudo, as obrigações da vida para com o trabalho, estudos e relacionamento acabaram distanciando as duas. Na maioria das vezes, só se falavam por meio do celular.
   era enfermeira; voluntária em um abrigo de animais, estava à quase um passo de se formar e ser uma veterinária. namorava um bancário; um fotógrafo. já passou por tantos empregos... A fotografia nem era profissional.
  - Dois pães doces e uma caixinha de suco de uva.
  Recebeu os pedidos por cima do balcão, soltando um suspiro pesado. Até mesmo aquele bonequinho, que enfeitava a sacola de papel personalizada, conseguia ser mais bonito que ele.
  Em seu rosto alguns cravos estavam aparentes, como os pelos faciais ainda curtinhos. Mas quem se importaria? Andava tão desanimado, que não faria diferença estar barbudo ou com a pele do rosto parecida com um bumbum de bebê.
  - Olha... Se não é meu amigo !
  A voz alta, e nenhum pouco inibida, se propagou pelo ar de forma a chamar atenção das pessoas presentes na padaria. “Aqui virou um ponto de encontro?”, se perguntou mentalmente.
  - Como tem andado sumido. Por sua culpa perdemos o último jogo. Não olha suas mensagens?
  - Foi mal, pensei que o jogo estava cancelado por conta da chuva forte. – arrumou as sacolas entre os braços.
  - Não falo daquele jogo no campo. Falo de videogame. Reuni todo o pessoal para um campeonato de futebol. Copa-, esqueceu?
  - Ah, Copa-... Claro.
  Todo fim de mês, e os amigos se reuniam na casa de algum deles para realizar a tal copa, uma série de jogos, qual um leva a taça de campeão que não passava de cerveja e um mangá qualquer. “”, pelo fato de seu namorado sediar a tal copa.
  - Você precisava ver. Acho que mando melhor em jogos de campo. – afirmou, olhava para o céu como se pudesse repassar nas nuvens as cenas do jogo de dois dias atrás.
  - Uma pena ter perdido. – queria ir embora. Já fazia quase uma hora que deixou a casa, não queria deixar ainda mais sozinha.
  - Como está a ?
  - está bastante ocupada esses dias. Você sabe...
   não sabia, mas estava apressado demais para dar continuidade naquela conversa.
  Se despediram com dois tapinhas na bochecha de . O rapaz observou dobrar a esquina e sumir.
  Mais um suspiro.

  - Amor, cheguei!
  Suas palavras ecoaram, passeando pelo cômodo escuro. As janelas se encontravam fechadas, uma cortina de tecido grosso pendia acima dela até o chão. A sala dispunha apenas de um sofá espaçoso em frente a uma TV enorme. Talvez o único eletro mais novo que a casa abrigava.
  Com alguns passos já estava habitando a cozinha. Deixou as sacolas no balcão, indo guardar o suco no congelador. Se havia algo que detestava, além de ratos e aranhas, era líquido quente - quando ficava melhor geladinho.
   encostado na geladeira, suspirou pela décima terceira vez na manhã. O estômago continuava doendo. Seu coração continuava doendo. Tudo doía. Precisava de .
  Partiu rápido para o quarto. Se jogou na cama, fazendo a moça remexer no colchão. Ainda dormia. Parecia não querer abrir os olhos.
  - Comprei pães doces e também suco de uva, o seu preferido. Não quer levantar... – engoliu a saliva, tirando o cabelo do rosto da namorada, aproximando a boca de sua orelha, e era como se a sentisse se arrepiar, seus pelos da nuca sempre se eriçavam – Levantar e comer lá embaixo? Sei... Sei que está cansada. Eu...
  Não continuou. Deslizou a mão pela lateral do corpo esguio, mas não desprovido de curvas, da moça. Sentiu sua mão sobre a camisola de seda que ele a presenteou duas semanas atrás.
  Se pegou lembrando do momento.

   voltava do trabalho, uma sessão de fotos em uma praça, tendo como modelos uma senhora e seu gatinho. “Guardo fotos de todos os meus bichanos”, era o que a senhora dizia, enquanto ria abertamente para . Click Click. Ao passar em frente a uma loja, que apenas ao olhar sua fachada já se poderia ter uma ideia do quão caras poderiam ser suas vestimentas, notou uma bela camisola na vitrine. Sua cor era vinho, e rendas detalhavam o busto do vestido-de-dormir. Ele teria que levar. Precisava ver vestida naquilo. Ficaria tão sexy em seu corpo, conseguia até visualizar.

  E ali, no quarto pequeno, ele constatava o quanto estava certo. ficou mais que bonita usando a camisola. O rapaz alisava seu corpo em movimentos de ida e vinda em sua cintura, sentindo o tecido em brincadeira com a pele de sua mão.
  Já faziam, exatamente, 24 horas que ficou sabendo daquele presente, e dormia o usando. O presente que pagou tão caro. O que valeu tanto a pena.
  - Tudo bem. Nada de fazer essa careta. Você vai levantar, sim. Vem. Ajudo levando você para o banho. – sorriu, puxando a mulher da cama. – Já sei o porquê dessa manha toda. A princesa quer ser pega no colo, não é? – e o ato a seguir fez com que a boca de se abrisse minimamente. – Querida, você está fedendo. – sorriu, engolindo a saliva para molhar o máximo sua garganta.
  O peso em seus braços não era um dos mais leves, se dava ao fato do corpo da garota não ser um dos mais magros, mas não significava que estava muito acima do peso.
  - Vem, segura em mim. – Dividindo o peso entre um braço e outro, colocou o braço esquerdo da garota envolta de seu pescoço. Podia até vê-la rir do ato.
  A banheira foi escolhida. Ele a deixou lá para tomar seu banho sossegada, e desceu para a cozinha.

  O sofá de couro preto sustentava dois corpos.
  Com o controle da TV em mãos, passava os canais impaciente. estaria da mesma forma, com os neurônios borbulhando por causa da indecisão do namorado.
  - Juro que vou encontrar um canal bacana.
  Passou e passou os canais e nada de se sentir satisfeito. Nada de interessante era transmitido por aquela tela. Um casal não pode sentar no sofá e ter um momento divertido em frente a televisão? Que saco! Acabou optando por um desenho animado antigo.
  Banhada e perfumada, perfume qual fez questão de escolher, se encontrava ao lado dele, os olhos abertos para o desenho: um gato correndo atrás de um rato. Qual era mesmo o nome? Não lembrava.
  A audição de captou barulhos vindo da escada acima.
  - Fique aqui.
  Seu coração acelerou um pouco. Em passos lentos, tentando não fazer muito barulho, se encaminhou para os degraus, conseguindo ouvir perfeitamente o toque do celular em cima do criado mudo.
  Já faziam, exatamente, 24 horas que não parava de chegar mensagens em seu celular.
  Enxugou algumas gotículas de suor que acumularam devido ao ar abafado da casa, subindo os degraus. A cama estava bagunçada assim como, provavelmente, estaria o guarda-roupas do casal. Quase escorregou na poça de água que havia deixado depois do banho tomado.
  Com o celular em mãos, checou a caixa de entrada. As mensagens se resumiam em 20 pequenos textos. “Podemos marcar outra sessão? Adotei um novo gatinho”, “Querido, estou com saudades, quando vem visitar sua mãe? Mande um beijo para a !”, “Ei, cara! Jogo na sexta, se não cair um mar d'água”, “Mudei de número. – ”, “Não rolou no campo. Copa- na casa do às 23h. Vamos arrasar!”, e muitas outras sem importância alguma.
  Deletou as mensagens, abrindo a gaveta do criado mudo. Jogou o celular lá dentro, mas antes de fechá-la, atentou para a tela acesa do celular de . Um celular antigo, sem todo aquele aparato tecnológico a ver com internet.
   engoliu a saliva, como se estivesse engolindo um litro de pimenta. Sua garganta ardia. De repente sua respiração ficou mais acelerada do que devia, até mesmo suas mãos tremiam. Se aquele aparelho lhe desse choque até poderia entender o medo em pegá-lo, mas longe disso. Choque mesmo foi o que sentiu quando o pegou um dia atrás.
  Fechou a gaveta com tamanha força resultando na queda do abajur, que recebeu como presente de sua mãe. Um presente mais para do que para ele próprio. A garota amava aquele artigo de luxo. Vai ver era o único objeto mais luxuoso da casa. o mataria quando desse a falta.
  Foi juntando os pedaços da porcelana que adquiriu um corte raso no dedo mindinho. Droga. Droga de celular! Aquele aparelho zombava dele. Zombava de sua cara, o chamava de otário.
deveria se livrar daquela merda, mas não o fez durante os últimos dias.
  - Era apenas meu celular. Agora que vi, minha mãe mandou um beijo... Ou foi um abraço, não lembro. – proferiu, descendo as escadas.
  Batidas na porta da frente. encarou a porta como um cachorro encara um movimento suspeito no meio da madrugada.
  - Você deve estar com frio. – não fazia frio. – Se cubra um pouco, vou atender a porta. – deixou um beijo rápido em sua testa, puxando o cobertor para seus ombros, enquanto ela ainda mirava a televisão, o programa infantil chegando ao fim.
  Estalou o pescoço, deixando escapar uma lufada de ar por seus lábios.
  - Entrega.
  Foi o que ouviu do senhor rechonchudo ao abrir minimamente a porta. O senhor olhou diretamente nos olhos de , parecia não ser simpático.
  - Eu não estava esperando nada.
  - Aqui diz que é para Duntsaeng. Errei a casa? – perguntou sem muito ânimo.
  - Oh, não. É minha namorada.
  O homem, com a bolsa de lado, olhou meio desconfiado para quem lhe falava. No entanto, assentiu com a cabeça, entregando uma prancheta que exibia um papel de recibo. prontamente o assinou.
  - Você... – o senhor de bigode branco cheirou perto de . Sentia um cheiro estranho. – Verifique sua casa, algum animal deve ter morrido. Malditos ratos.
  Com a encomenda em mãos, confirmou com a cabeça dando um meio riso.
  Mal esperou o homem descer para a rua, e já fechava a porta de sua residência. O embrulho que visualizava não era grande. Parecia mais um cartão. Um cartão gordo. Gordo de dinheiro. Uma quantia considerável se achava dentro do envelope, junto a um pequeno bilhete: “Estação de trem, 19h”.
  Uma súbita raiva invadiu o seu corpo. Rasgou todas as notas como que se rasga simples papéis. Amassou, cuspiu, embolou e jogou direção à namorada. Ao bilhete, deu o destino mais grotesco: a boca da amada.
soltando fumaça pelo nariz, com os olhos parcialmente marejados, enfiava a bolinha de papel na boca de , que não teve ação para nada.
  - VOCÊ ESTÁ VENDO? ESTÁ VENDO O QUE ME FEZ FAZER? – cuspia as palavras contra o rosto dela. Imóvel, os olhos da garota estavam no nível da boca de , encarava aqueles lábios secos, lugar de pequenos cortes. – ARGH!
  Enroscou a mão no cabelo, já frágil, da garota, puxando-o com certa força. O bastante para levá-la ao chão. A expressão no rosto de brigou entre raivosa e o arrependida. Se formaram poças de lágrimas em seus olhos. O remorso ganhou vida em um córrego salgado que trilhava por sua face.
  - Me perdoa. Eu não deveria ter feito isso. Me perdoa. Me perdoa. – pedia perdão não somente por tê-la agredido. Pedia perdão pelo que fez, de verdade, a ela.
  Com beijos pesados, os lábios tremendo, confortava a amada, segurando-a em seus braços. Segurava o seu mundo. Era o que achava. sempre fora tão amável, mesmo quando estava em seus piores dias.
se sentia amado por aquela mulher. Se sentia aceito.
  - Nunca farei isso novamente. Não me odeie, meu amor. – falou após cessar, não por completo, as lágrimas. – Você sabe que amo você. E... Bem, você sabe por que da minha raiva, não é? Mas não se preocupe.
  A boca de abriu um pouco, os seus olhos, agora, mirando os de .
  – Não precisa dizer nada, amor. Eu perdoei você, já disso isso. – e espalhou milhões de beijos secos por todo o rosto da namorada. Seu rosto tinha um cheiro forte de perfume, como se houvesse virado todo o frasco em cima daquela pele que exibia algumas veias azuladas. – Vamos, você deve ter abusado esse desenho. Não se preocupe, limparei a casa sozinho... Hoje... Você lembra? Hoje é o nosso dia. Apenas descanse. Teremos uma bela noite.
  Subiu com ela para o quarto, fechando a porta após vê-la acomodada na cama.

  Já faziam, exatamente, 24 horas que não se punha em frente ao fogão. Era muito fácil apenas preparar o macarrão instantâneo e meter goela abaixo. Mas aquele dia pedia algo mais. e faziam três anos juntos. Ele lembrava como se fosse ontem, quando a conheceu. Será que lembrava de tudo? De cada detalhe que vivia dentro da mente dele?
  Ah, ele lembrava.
  Lembrava da cafeteria da tia, um lugar pequeno ao leste da cidade.

  Muitos trabalhadores encostavam lá para um rápido, e forte, café. Pessoas que não tinham tempo de sobra para montar a mesa do café da manhã, ou aquelas que viviam sozinhas e não viam precisão do ato. Soube mais tarde que se encaixava na segunda definição.
  Desde que se entendeu por gente a garota queria ter o próprio sustento, a própria casa. Não demorou para que cortasse os laços familiares em busca de uma vida na cidade grande. Por conta disso, ter de estudar e trabalhar dificultavam seu desempenho matinal dentro de casa, precisamente, na preparação do café. Logo, sempre acordava cedo para ser uma das primeiras pessoas a serem atendidas na cafeteria que tanto amava, e que também dispunha de um garçom muito bonito e com um sorriso bastante agradável.
  Numa das tantas manhãs que se seguiram, resolveu deixar seu número na mesa que dava de frente para o balcão – um lugarzinho especial que proporcionava uma visão perfeita do rapaz. lembrava perfeitamente da letra cursiva que mais parecia uma assinatura de alguém importante. De tanto vê-la sentada naquela mesma mesa, de observar como ela folheava o livro – que sempre mudava –, a garota passou a ser, sim, alguém importante para ele.
  Ele observou aquele pedaço de papel por quase o dia todo, teclou os números diversas vezes, mas sempre hesitava. Estava mais do que na cara que ela esperava que ele entrasse em contato, mas se sentia envergonhado. Muito envergonhado, até que... “Olá”. E como se fosse uma bruxa: “Que demora! Estou livre na sexta às 19h. Cinema?”, só pôde rir abobalhado.

  Será que lembrava do filme que assistiram? Do beijo que deram no meio dos créditos finais? Dos dias que se seguiram após aquele? Dos muitos outros beijos, da primeira transa no estacionamento? Era o carro da mãe de ... lembrava do fato?
  Foi relembrando o passado, atentando para os momentos mais incríveis ao lado dela, que esqueceu de pôr a água na panela. Foi um grande chiar, o encontro do líquido transparente contra o inox.
  O celular no quarto notificava a chegada de uma nova mensagem. Mas não era o toque de seu celular, e sim o de . no mesmo instante travou o maxilar, apertando a colher fortemente em sua mão como se a qualquer momento, mão e colher, fossem se fundir.
  De costas para a panela ao fogo, jogou a toalhinha, que antes pousada em seu ombro, agora se encontrava no chão. Em passos firmes, rangendo os degraus, chegou ao quarto.
  - Amor, seu celular.
   dormia.
  - Tudo bem se eu verificar por você? – arqueou a sobrancelha esquerda, engolindo a saliva quente. – Se você não discorda...
  Mais apressado do que devia, abriu a gaveta com certa urgência, fazendo com que os utensílios do criado-mudo vibrassem na madeira pintada de azul. Quase tudo dentro do quarto era azul, a cor favorita de .
  A tela exibia, em seu background, uma imagem de gatinhos. Os olhos de se moviam freneticamente. Não havia sido eletrocutado, mas aquela sensação de choque percorria toda sua espinha. Sua mão quente segurava o aparelho frio. O aparelho qual detestava.
  Abriu a mensagem, sentando na beirada da cama com bastante cautela para não acordar . “Ocorreu tudo bem com o envelope? Leu o bilhete?”, o contato estava salvo como Anjo. O maldito Anjo.
   lembrava perfeitamente de o chamando de forma carinhosa: “Anjo, poderia tomar banho primeiro? Ainda tenho algumas tarefas”, “Meu anjo, o que quer para jantar?” e tempos depois: “Não, ! Você não é a droga de um anjo!”. Dentro do seu peito, o coração começava a ganhar ritmo, um ritmo, insuportavelmente, rápido. Ele era um anjo, sim! era o anjo de ! O anjo que os céus reservaram a ela. deveria saber!
  Mas... Por que ter outro anjo? Por que aquele contato recebeu aquele codinome? O apelido carinhoso que pertencia a ?
  A primeira vez que ele se deparou com mensagens do tal anjo, estava tomando banho, uma semana atrás.

  - , seu celular!
  Mas ela não respondeu. Saiu do banho apressada, o cabelo curto tomado por água. Pegou o celular e voltou para o banheiro. Minutos depois, já vestida, guardou o aparelho na gaveta do criado-mudo. Deu as costas à , dizendo que prepararia o almoço.
  Não seria a primeira vez que o homem bisbilhotaria o celular da parceira. Tentou lutar contra os ciúmes, mas desde dias vinha se tornando diferente, meio distante, mal trocavam palavras. a amava. Ela não?
  Foi quando abriu a mensagem do ser intitulado Anjo. “Precisamos conversar. Isso não pode ficar assim, . Temos que dar um fim nisso...”. Ela foi mesmo muito boba em não apagar aquela mensagem? Prova de sua “traição”?
  E naquele momento os olhos do rapaz se tornaram fogo. Desceu com braveza as escadas. Puxou a namorada pelo braço, encarando aqueles olhos baixos um tanto sofridos, a pálpebra esquerda esverdeada, o inchaço diminuído naquela região.
  - Quem é o seu Anjo? Hein, Duntsaeng? Você está me traindo? É isso? - e desferiu um tapa carregado de raiva e ciúmes em sua face.

   se espremeu em seu lugar à beira da cama. Olhou para o lado e continuava deitada. Ele a amava. Amava muito, por isso os excessos de ciúmes. Ela era preciosa, sua princesa. Ela o entendia? Via o lado positivo de seus atos?
  Voltou atenção para o celular da garota em sua mão. Já faziam, exatamente, 24 horas que o Anjo não parava de mandar mensagens. leu todas. Respondeu algumas. “Tudo bempara, está tudo bem? Por que não respondeu minhas últimas mensagens?” e “Do que está falando? Desculpe, acabei esquecendo de alguns detalhes.paraVocê fará de acordo o combinado, certo? Mandarei o dinheiro em forma de encomenda. Esteja atenta.
   sabia o motivo daquelas mensagens. Ele era o culpado por aquele Anjo tomar o seu lugar.
  Em um ato rápido, jogou o celular para o lado fazendo o aparelho dar alguns pulos no colchão.
  O relógio de parede marcava quase o fim da tarde. Desde quando a hora passou tão rápido? Parecia fazer poucos minutos que tomava café com , na mesa de jantar.
  - Droga. O dia está passando tão rápido. Você não pode continuar dormindo, amor. Vamos, levante! Hoje é nosso dia! Hoje... Farei um jantar especial! O que acha? – sacudiu o corpo da namorada um pouco, fazendo o rosto da menina virar para o seu. – Que sorriso é esse? Você preparou algo para mim também, é isso? Você sabe que não sou muito chegado em surpresas. Mas... Ok! Dessa vez não me importarei.
  Aproximou o rosto ao da amada, depositando um beijo rápido em sua bochecha. Fungou perto de seu pescoço, retraindo um pouco o nariz.
  - Tudo bem! Não precisa dizer, sei que quer tomar banho. E mais uma vez quer ser levada no colo, certo? Você sabe que faço tudo por você. – pôs um pouco mais de força na última palavra ao pegá-la no colo. – Dessa vez usaremos a banheira juntos. Se continuar me olhando assim, não conseguirei me controlar. – brincou, ajeitando o corpo de em seus braços.
  A noite se aproximava muito rápido. Passaram quase que meia hora dentro da banheira.
   conversava com . Relembrava os momentos mais nojentos que passaram juntos, rindo, principalmente, do episódio em que estavam na fazenda dos tios de , e, de alguma forma inexplicável, enquanto ordenhavam as vacas, escorregou no cocô levando com ele ao chão. “Que nojo! Tem cocô de vaca na sua boca, !”, e as risadas rolaram soltas.
  - Já estou ficando com frio. Quer ficar mais um pouco? Não se importa se sair agora, né? – falava já se retirando da água, deixando a banheira apenas para a mulher. Se abaixou, a água escorrendo por seu corpo, com a mão alisou o cabelo molhado da garota que o olhava sem expressão no rosto. “Eu amo você”, conseguia ouvi-la pronunciar. – Eu também amo você. Amo muito! Não demore a sair do banho. Tenho um presente para você em comemoração ao nosso dia. – e com um breve beijo nos lábios, a deixou aproveitar o banho.
  Após vestir uma roupa qualquer, usar um perfume qualquer, voltou para a cozinha. Droga. Havia deixado a panela no fogo.
  Toda a água secou, um preto empesteava o fundo do inox. Dali não sairia mais nada.
  - PORRA!
  Em um movimento, arrancou a panela do fogo atirando-a com força no chão. O barulho foi imenso.
  - NÃO SE PREOCUPE! FOI APENAS A PANELA.
   poderia ter se assustado, o eco dentro da residência só ajudaria no fato.
  Mais calmo, abaixou o corpo, sentando por um momento no chão. A droga da panela, realmente, não poderia ser mais usada naquela noite. Não que fosse problema, havia tantas outras, porém a adorava. Sempre que cozinhava a usava. Foi o primeiro inox que ela comprou quando foram morar juntos.
  Na mente de se passava uma cena recente. Não muito bela.

  Era o começo do ano e havia aceitado o convite para sair com os amigos da faculdade. sempre saía para o futebol com os amigos, para as tais copas que planejavam todo mês, sendo assim, não teria importância uma volta à noite.
  - Anjo, estarei saindo daqui a pouco. - chamou a atenção do namorado assim que o viu adentrar a cozinha, voltava de uma sessão de fotos.
a observou mexendo algo na panela preferida.
  - Sair? A essa hora?
  - Ainda é cedo, não vê? - falou de forma natural.
  - Pensei que iríamos assistir um filme.
  - Podemos fazer isso outro dia.
  - Não podemos, ... Você prometeu.
  - Não seja criança, . É só uma pizza com os amigos da faculdade.
  - Amigos? Você vai estar rodeada de homens? Nem pensar!
  - Que droga é essa agora, ? Acha mesmo que vai me proi... - e num ato repentino, sentiu seu braço ser apertado com uma força imensa. - ! Você está me machucando.
  - Cancele a saída!
  - Preparei o jantar, justamente, para não haver empecilho. Pare de bobag... - a garota soltou um grito agudo com o susto.
  A panela, em que antes preparava o macarrão, foi jogada em sua direção.
  - M-Meu amor, me desculpe. Me desculpe. Foi sem querer! - tentava se redimir, não sabia explicar o que, de fato, o dominou. Só se sentiu estupidamente "arrependido" no segundo que se seguiu.
  Aquele havia sido o primeiro ato errôneo para com sua namorada. Daquele dia em diante, havia mudado. O amava, mas se perguntava se o que ele nutria por ela também era amor.

  O rapaz mirava a panela no chão. Criou coragem e levantou, passando as mãos ligeiramente em sua bunda.
  Aquele ano foi regado de atos errôneos.
  Sem ideia do que cozinhar para o dia especial, optou por algumas batatas, amava batatas fritas. Ele estava pensando nela, em seus gostos, não importava se o jantar fosse apenas batatas fritas acompanhadas de uma salada de alface, ainda era um dia especial, uma noite especial. Isso! se sentiria feliz, não o odiaria.
  Retirou da geladeira algumas batatas e se pôs a cortá-las em canudinhos.

  - Você não precisa cozinhar hoje à noite. Que tal pararmos em uma lanchonete e fazermos uns pedidos? - enquanto guiava o carro, perguntou à mulher no banco do passageiro.
   se encontrava distante, havia passado dois meses desde o ocorrido com a panela. Em seu braço esquerdo ainda constava a forma do que, um dia, foi uma queimadura.
  - Amor? - insistia. - Amor? !
  - Ah, tudo bem. Podemos, sim. - seu cabelo curto balançava ao vento advindo da noite escura.
   estava tão “encantador”, parecia até com o do começo de namoro. Esbanjava aquele sorriso lindo, os olhos brilhantes. “O episódio com a panela foi apenas uma fase ruim? Ele realmente se arrependeu?”, se perguntava, virando o rosto aos poucos para encará-lo. Ela o amava.
  Naquela noite, enquanto seu namorado ia fazer os pedidos, esperava na mesa, olhava por além da ampla parede de vidro, batendo o olhar nos carros estacionados. “Uma porção de batatas para a moça mais bonita do lugar”, a voz era de um quarentão, o homem sorriu simpático para ela, que apenas riu sem mostrar os dentes, não recusando o “presente”.
  Do balcão, observava tudo. Cancelou os pedidos e saiu segurando forte a mão de .
  - O que houve, não vamos comer lá e...? - recebeu um tapa na cara tão forte, que sentiu o ar estancar dentro de seus pulmões.
  - NÃO SEJA UMA VAGABUNDA! LARGA ISSO! POR QUE VOCÊ ACEITOU ESSA PORRA DAQUELE CARA? VOCÊ TÁ LOUCA POR ACASO? ESTAVA FLERTANDO COM AQUELE VELHO?

  Enquanto terminava o corte das batatas, lembrava de cada palavra feia que proferiu aquele dia. O olhar assustado de sua amada, seu mundo se partindo em sua frente por total, e completa, culpa dele. Mas ele a estava ensinando! Ela não via? Ele fez o que fez porque a amava! Não fazia para diminuí-la, fazia para fazê-la entender que uma mulher não se portava daquele jeito. Não aceitava presentinhos. Somente ele poderia comprar-lhe algo. Porque ele a... Amava.

  - Você ainda está aí? Logo vai dar 19h, amor.
  O horário proferido por sua boca saiu tão audível, que se deu conta do que estava escrito no bilhete de mais cedo, o mesmo que ele enfiou na boca da mulher dentro da banheira.
  - Venha. Você não está pensando em pegar aquele trem, está? ! Você não pode fazer isso comigo. Você simplesmente NÃO pode. Não pode me deixar. Nunca!
  Já faziam, exatamente, 24 horas que aquele medo de ser posto de lado o dominava, se infiltrando em sua cabeça, criando raízes em sua mente. Ele a amava demais, deixá-lo seria o fim de .
  - Por que você quer tanto aquele Anjo?! Eu não sou o suficiente para você? ! Me responde! Não se finja de surda!
  A tirou da água, andando meio cambaleante direção à cama. Jogou-a em cima dos lençóis brancos, que no mesmo momento ficaram ensopados por serem finos. O cobertor estava jogado no chão.
  - POR QUE, ? POR QUE, CARALHO? – baba se formava nos cantos de seus lábios, um gosto amargo de suco de uva, o único líquido que bebeu desde que acordou. As conhecidas lágrimas se alojaram nos cantos de seus olhos. Olhos tão miúdos e fundos. - T-Tudo bem, . Não tenha medo de mim, me desculpe. E-Eu sei que me ama. E a traição... Eu já perdoei. Não se preocupe.
  Parou por um momento, limpou os olhos na manga da camisa. Com a respiração melhor compassada, direcionou o olhar ao corpo nu de . Havia alguns hematomas azulados na região de sua coxa esquerda, outros amarelados na cintura. Mas ainda continuava linda. A mulher mais linda que conheceu.
  - Acho que você vai gostar do vestido que comprei semana passada para você. Eu queria fazer surpresa, por isso nunca revelei. Espera um momento.
  Meio atônito, abriu o guarda-roupas e retirou, debaixo de um amontoado de roupas, uma caixa consideravelmente larga.
  - Aqui está.
  E um vestido azul marinho - que certamente ficaria justo ao corpo de - dançava no ar, pendendo das mãos de . Imaginou a moça vestida naquele traje tantas vezes, que talvez nem seria mais novidade vê-la dentro dele. Ele já imaginou o tecido do traje tomando forma nas curvas de seu corpo tantas vezes, o levando a acreditar que não seria mais nenhuma novidade vê-la, de fato, estreando a roupa.
  - Quer que eu a ajude com o vestido? Tudo bem, então. Discutimos uma vez por conta de um vestido parecido com esse, lembra? Me desculpe. Por isso, resolvi presentear você com ele. Vai ficar linda para mim, certo?
  Há quase quatro meses, voltou a agredir verbalmente a mulher com quem dividia o teto. Dessa vez, por motivos fúteis como uma simples roupa.

  Era aniversário de , e resolveu preparar uma festa surpresa. “Espero vocês dois lá, por favor, não me desapontem”.
   havia conversado algumas vezes com a amiga sobre o que vinha acontecendo em seu relacionamento, no entanto, de uma forma fictícia. Inventava personagens para ocupar seu lugar e o de na trama infernal. E mesmo sabendo disso, do inferno que os dois viviam, tinha esperanças – por amá-lo – que um dia percebesse a burrada que estava fazendo. Que percebesse o quanto o amor entre eles estava esfriando. não se tocava daquele fato?
  Após o ocorrido envolvendo a batata frita, havia se tornado ainda mais persistente, contava os minutos que levava da faculdade para casa, de casa para o trabalho voluntário. Fazia questão de deixá-la em todos os lugares, como também buscá-la. Reparava em sua maquiagem, se saía muito arrumada, se quando chegasse o batom continuava em seus lábios.
enxergava TUDO! Só não prestava atenção para o círculo se fechando ao redor deles como casal.
  - Aonde pensa que vai?
   virou no mesmo instante, tendo seu pulso preso pela mão quente dele.
  - Como assim? Não vamos para a festa do ? - ela estreitou os olhos.
  - Acha que sairá dessa forma? Esse vestido mal cobre suas pernas... E que decote é esse?
  - Você está exagerando, . - falava sentindo um arrepio na espinha, ali, naqueles dias, ela já sabia aonde as “opiniões” do namorado os levariam... A uma eternidade de brigas.
  Aquela noite resultou em um vestido rasgado.
indo sozinho para a festa, “Para não me contrariar mais”, ele dizia a si mesmo. Como andaria ao lado de , enquanto usando aquele vestido ela estaria se oferecendo de bandeja aos homens?
era teimosa. Deixá-la trancada no quarto só serviria como um castigo básico. Quando voltasse da casa de , sua namorada estaria mais tranquila. Certamente estaria dormindo, ela sempre gostou de dormir bastante.
  Mas não percebia o tanto de sono que perdia. O tanto de noites que pensou em abandoná-lo. Ela não conseguia mais viver, não conseguia mais encará-lo e não ver o amável de antes. “Eu amo você”, ele repetia todas as noites, mas tinha consciência que não. Todos estão cansados de saber que o amor não machuca, não reprime, não rebaixa, não é egoísta. estava sujeita à tudo aquilo ao lado de . O amor que nutria por ele se transformava naquele momento em uma poça rasa de pena. Sentia pena dele. Do que havia se tornado.
  “Não, você não me ama, . Não mais.”, “É claro que te amo. Me perdoa, . Você não pode me deixar... Você tem que me ajudar. Não quero mais levantar a mão para você. Por favor, me ajuda, . Me ajuda.”, suplicava ao pé de seu ouvido, abraçado à ela na cama. Suas palavras pareciam sinceras, acreditava nelas, e tudo parecia se tornar bem mais uma vez. Porém, bastava se sentir inseguro para culpar por agredi-la novamente.

  - Você viu como nas últimas 24 horas, eu tenho mudado, amor? Finalmente estamos conseguindo, . Finalmente estamos trabalhando em equipe. Eu estou tão feliz. Eu amo tanto você, meu amor. – acariciava a mão dela, roçando seu nariz naquela pele exposta. O cheiro de já não era o mesmo. Seu corpo não cheirava mais à bebê, como costumava assimilar. – Precisamos nos arrumar. Precisamos...
  O lado esquerdo da cama, bem no canto, começava a vibrar quase que despercebidamente. até mesmo adivinhou do que poderia se tratar aquela musiquinha aguda do celular de . O Anjo batia as asas de volta para as mensagens.
  “Aconteceu algo? Por que não está aqui? Você desistiu? Se você não aparecer dentro de 1h, invadirei a casa com a polícia. Preciso que me responda urgente!”.
   achava aquela pessoa, quer quem fosse, muito idiota, se achava que separaria seu amor dele. Em nenhuma hipótese! o amava. Estava com ele até aquele momento. Ela o amava.
  Pensou várias vezes em marcar encontro, se passando pela namorada, com o tal Anjo. Dar uma surra nele. Ensiná-lo a não se meter em relacionamentos alheios.
  Já faziam, exatamente, 24 horas que se segurava para não gerar mais problemas. não gostaria nada daquilo e havia mudado. Havia mudado pelo seu amor, e não faria mais merdas daquele tipo.
  - Desculpe, . Tive que olhar sua mensagem. Está tudo bem. Para provar para você que tenho mudado, deixarei o tal Anjo para lá. Nunca mais vou tocar no assunto com você. Só vou... vou ficar com esse celular. – ele balançou o aparelho em frente ao rosto da mulher. – Você não quer que essa pessoa seja um empecilho em nosso meio, quer? – os lábios de tremiam um pouco. Ele umedecia o lábio inferior com a ajuda da pouca saliva que conseguiu acumular na boca. – Sei que me ama e durante todo esse tempo está claro que te amo mais do que tudo na vida. Mas vamos parar de enrolação. O jantar esfriará.

  A mesa do jantar estava posta. Flores artificiais decoravam o meio da mesa retangular que dava espaço para seis cadeiras, comprada, inicialmente, com o intuito de receber os amigos, ou até mesmo a família. As famílias do casal mal os visitavam, poderiam passar anos sem receber a visita da mãe de ou do pai de .
  Sentada na ponta da mesa, parecia estar relaxada, sua coluna não estava ereta, o que fez rir na outra ponta da mesa. Nos lábios dela, uma batom cor de vinho, as bochechas rosadas, um lápis de olho aplicado de forma apressada, o que resultou em alguns borrões no canto de seus olhos. Olhos esses que estavam opacos.
  - O vestido está combinando com seu rosto. – ousou brincar, realçando semelhanças de cor entre o traje azul e as veias que pareciam querer sair para fora de suas têmporas. – Você sabe que amo azul. Já disse que você ficou muito bem nessa roupa? Experimente as batatas... Quer que as coloque em sua boca?
  Afastou lentamente a cadeira, tomando o prato de batatas da mesa. Ao se aproximar do corpo da garota, puxou uma outra cadeira, essa mais próxima à ela, e sentou ao seu lado.
  - Abra a boca.
   gostava de receber comida na boca. Mas a última lembrança que tinha daquele ato carinhoso não era tão boa. Aconteceu há cinco dias.

  - Vamos, amor. Só mais um pouco. - dizia.
  Ele não entendia que aquela ação a machucava. Segurava uma colher com a mão direita, e com a outra segurava, indelicadamente, o queixo de .
  - Não faça birra, !
   não era nenhuma criança para ser forçada a comer contra sua vontade. A relutância para se alimentar surgia do estado emocional em que a mulher se encontrava.
  Se antes nutria esperanças de um modificado, ali, descobria que talvez sempre fora daquela forma, sempre teve seus ciúmes excessivos, que machucava não somente à ela, como ele próprio. estava cansada de ouvir suas desculpas, com nojo de seus beijos no fim da noite, enquanto seu corpo era obrigado a se enroscar ao dele. Ela o amou. Ele achava que "ainda" o amava.
  - ... Para com isso, Por favor... - a voz dela saiu baixinha meio chorosa.
   tinha medo de . Devia tê-lo entregado para a polícia. Ele simplesmente estava fora de si. Na noite anterior àquele dia, decidiu que não sairia mais de casa. “Só abriremos as janelas pra você sentir o sol. Não é uma boa ideia? Você não precisa ir para a faculdade, . Eu posso nos manter. Não quero que minha princesa se machucando de alguma forma. O mundo lá fora, ... Ah, não presta. Eu vou protegê-la, meu amor. Confie em mim.” A ação sincera da garota em relação a “brilhante” ideia de foi chorar.
  - Você tem que se alimentar.
  - Me deixa sair daqui, . Eu não aguento mais esse quarto. Podemos... Podemos comer algo em uma lanchonete...
Podemos...
  - Não! Nada disso.
  - Como você diz que me ama e tira minha liber...
  - Não! Eu não estou tirando a sua liberdade, porra! – e num ato vertiginoso agarrou os fios negros da namorada. – Abra a porra da boca! – sua atitude foi de introduzir a comida na cavidade bucal de , e por conta de seu esperneio, uma porrada de vômito veio a seguir.

  - Eu não queria fazer aquilo com você, meu amor. Você sabe que não. Olhe para mim. – segurou o rosto pequeno da garota em suas mãos.

  Olhava para aqueles olhos opacos, desprovido de qualquer brilho. Os olhos de não apresentavam brilho também, a diferença era a vivacidade, a cor natural de sua íris, enquanto que aquele azul-esverdeado tomava conta dos globos oculares de sua amada.
  - Eu amo você. Me perdoa. Eu mudei. Não vou deixar você ir. Sei que quer ficar. – gentilmente, talvez, o mais gentil que já foi em toda sua vida ao lado dela, alisava seu cabelo. Vários fios eram soltos do casco de sua cabeça, ainda que ele não os puxassem.
   tentava controlar as lágrimas salgadas que teimavam em descer por seu rosto. Mas a quem ele estava querendo enganar? Sua mente o relembrava a todo o momento da transgressão que cometeu.
  - Fale comigo, . Por favor. Não precisa ficar com medo, eu... Eu irei ouvir você. Eu serei o seu anjo novamente. Eu juro. – como uma criança desolada, chorava no ombro de . Chorava como se houvesse arrancado a sua perna, ou pior, o coração. Um choro amargo repleto de metanoia. – Oh, , o que eu fiz todo esse tempo com você, meu amor?
  Relances de tapas, puxões de cabelo, socos, a chave girando na porta, trancafiando a mulher dentro do quarto... A mente de repassava todas aquelas cenas.
  Mas a principal cena que ocupava sua mente se tratava de quatro dias atrás.

  A mão dele ia de encontro sua face, sangue espirrava por entre sua boca, ocasionado pelo dente que rasgou o lábio inferior.
estava cego, estava possesso.
  - É isso que recebo de você? Enquanto tento te proteger do mundo egoísta lá fora, você... ARGH! ! De novo a porra do Anjo? Eu pensei que aquela merda tinha ficado no passado! – ele apertava o aparelho em sua mão. Havia entregado o celular à namorada para falar com , falar que estava bem, que não precisava se preocupar, que ela estava viajando, por isso de não aparecer nas ruas da cidade nos últimos dias. – Mas ao invés de fazer o que mandei... O que você fez? Tramar uma fuga com o tal Anjo? Você o quê? Quer me abandonar? Chegou a pensar, mesmo, nisso?
   não falava nada. Mais do que nunca estava amedrontada, a maçã de seu rosto ardendo.
  A história do Anjo vinha desde a faculdade, muito antes de submetê-la à cárcere privado. “Cárcere privado”, pensar naquele nome a fazia se sentir um animal enjaulado, um estúpido animal oprimido e aturdido.
  Foi na biblioteca, tentava estudar para uma matéria, mas sua consciência estava pesada de palavras horrendas proferidas dias anteriores por aquele quem ela amava. era um estúpido babaca, mas naquele tempo ainda o amava. No entanto, precisava de ajuda. Conversar com alguém que não fosse , ou sua família. Deus! Se sua família soubesse do que passava... Ela havia os abandonado para encontrar uma vida melhor, e, do contrário, só havia encontrado problemas?
  Um site estampava a tela do seu Notebook. Ela procurava por respostas às suas perguntas. “Devo continuar com ele depois de me agredir? Se eu deixá-lo, julgando o nível que ele acha que me ama, poderia tentar suicídio?” Os resquícios de consideração que ainda portava por , vibravam de medo. Mesmo depois das surras, palavras hediondas... Não poderia imaginá-lo cometendo suicídio ou qualquer outra coisa que o machucasse. Ele a machucava, somente ela entendia a dor daquilo... De forma alguma deseja o mesmo para ele.
  Estando ciente do anonimato, passou a frequentar aquele site, ler histórias de pessoas que passavam por algo parecido. Havia tantas pessoas!
  Não era segredo que relacionamentos abusivos – destrutivos – existiam, e que ela própria estava dentro de um, mas, somente depois de encarar aqueles desabafos, e escrever o seu próprio, foi que se deu conta da enorme, e sórdida, situação em que estava metida.
  @Hatikvah: Perdida
  Nunca pensei que me encontraria em um site como esse. Inventaria um codinome para ocultar a pessoa que eu sou, e que desejava não ser. Pensei várias vezes se estava fazendo o certo, já que tenho uma amiga e família para desabafar. Mas, não sei. Encontrei isso aqui, não por acaso, já que sabia que algo do tipo pudesse existir na internet. A verdade é que me sinto perdida. A pessoa com quem convivo me fez me perder. É uma sensação horrível. Sinto que o amo, mas da parte dele... Acho que se tornou uma obsessão.

   mal sabia o que escrever, mas por breves segundos, depois de apertar a tecla
enter, sentiu um alívio. Não imaginava que desabafar na internet trazia aquela boa sensação.
  Não demorou muito para receber respostas ao seu comentário.
  @Rose: Seja bem vinda. Estamos aqui para compartilhar nossas terríveis situações, mas, mais que isso... Encorajá-la a tomar algumas medida, assim como já tomei. Hoje vivo em paz.
  @27DY: Sinta-se em casa. Sei como é difícil conversar com alguém sobre esse assunto, mas não tenha medo de se abrir aqui.
  @Anjo: A casa é sua, Esperança. Gostei do codinome, é hebraico? Diz muito do que você pretende. Acho que veio em busca de respostas que possam ajudá-la a colocar o relacionamento no eixo. Respostas concretas provavelmente você não achará, mas estaremos, ao seu passo, a guiando para abrir os olhos. É difícil, à primeira vista, receber conselhos de meros estranhos que se escondem por detrás da internet...
  A mensagem do tal Anjo iam além de palavras rasas. Ele a instruiu tomar uma posição naquele relacionamento, não se esconder, tentar dialogar, mostrar as consequências dos atos do parceiro, no entanto, tudo aquilo já havia feito. Sempre que tentava conversar com , ele parecia reconhecer os feitos, pedia desculpas, mas não passava daquilo. Se ela aparecesse, ao invés de se esgueirar pelos cantos, entendia como uma afronta e tratava de pô-la em seu lugar.
  Além de tudo, gostava do site, dos breves momentos na biblioteca em que podia despejar suas frustrações em forma de feedback. Gostava das mensagens bonitas, encorajando-a a se livrar daquela situação, algumas pessoas a mandavam denunciá-lo à polícia. Porém, não... Aquilo parecia demais para ela. Sim, batia nela, mas não era sempre, na maioria das vezes ele era um amor. Se ela continuasse ao seu lado, insistisse na mudança do parceiro...
  Até que cansou de vez daquele jogo, até que ele a trancou dentro do quarto, até que ele passou a tratá-la como um simples animal.
não tinha mais acesso à biblioteca, porque a havia proibido de frequentar a faculdade, consequentemente não era possível passar alguns minutos no anonimato. Sua sorte era o celular, se revelou ao Anjo em alguma de suas estadias no site, passando seu contato. Ele a ajudava, parecia compreendê-la. Ele sabia que faltava coragem em para fazer a denúncia, pediu permissão várias vezes para ele próprio a fazer.
negava.
  “Fuja, . Se não consegue entregá-lo, fuja.”
  “Não tenho para onde fugir. Tenho medo.”
  “Não se preocupe, estarei ajudando você. Preciso que me passe seu endereço.”
  “No que irá resultar? Não tenho como sair de casa. Ele não me deixa sair, mal atendo a porta.”
  No entanto, escreveu rapidamente, com as mãos tremendo, o endereço da residência.
  Quando terminava de enviar a última mensagem, entrou no cômodo pequeno. O quarto mais parecia uma caixa, as janelas sempre estavam fechadas, trancadas para ser mais preciso.
  - Preparei um macarrão instantâneo, não sou muito bom na cozinha, você sabe. – o riso de era branco, como a cor de sua camisa. Se aproximou da cama, sentando ao lado de . – Conversou com a ? ... – ele tentava tocar seu rosto, mas a garota sentia repulsa em seu toque, o toque que chegou a amar tanto um dia. – Tudo vai ficar bem. Eu... Olha, não vou mantê-la presa para sempre, eu juro. Não se sinta presa... Sinta... Sinta como se...
  Enquanto escutava aquelas palavras egoístas, escondia o celular atrás do corpo, mesmo sem enxergar a tela, tateava as teclas tentando apagar as mensagens.
  - O que... O que está fazendo? – se apressou em trazer a mão dela à vista, fazendo-a soltar um mini grito rouco. Ele analisou a caixa de entrada, e por sorte de as mensagens haviam sido deletadas. – Vou ficar com o celular a partir de agora. Entrego ele a você em breve, Ok? Vou pegar o macarrão na cozinha. – beijou a testa suada da mulher, acariciando seu rosto.
  Foi questão de segundos para o celular vibrar na mão quente de . Na cama, começava a chorar compulsivamente, sabia que aquilo aconteceria.
  “Enviarei uma quantia para você. Durante os dias que se passarão, fique atenta à porta.”
   virou no mesmo instante. Fuzilava com os olhos o rosto da garota, que mais parecia se desmanchar em lágrimas.
  - Por favor, ... Você está me destruindo... V-Você não percebe isso? ME DEIXA IR EMBORA!
  E foi quando sentiu o tapa forte em seu rosto. O discurso de sobre o que aquela mensagem significava durou quase que meia hora. Era gritos por cima de mais gritos. A casa que habitavam ficava afastada das outras, numa rua enlameada, as pessoas evitavam passar por aquele caminho. poderia gritar por socorro – como tentou nos últimos dias – mas ninguém a ouviria.
  Pela primeira vez, sentiu medo de morrer.
nunca a espancou para valer, a maioria das vezes não passava de tapas, puxões de cabelo, beliscões. Outras vezes – as mais destrutivas – eram as palavras humilhantes, o “eu te amo” sem sentido algum.
  Mas ali, há quatro dias, sentiu na espinha o medo da morte. não seria capaz daquilo, seria?
  - É isso que recebo de você? Enquanto tento te proteger do mundo egoísta lá fora, você...

  Mais controlado, levantou o rosto, encarando a pele pálida de . Sua princesa. As maçãs de seu rosto estavam tão rígidas, a pele esticada, os olhos fundos. O seu cheiro – percebia mais uma vez – não era agradável.
  Não parecia ser a sua , mas ao mesmo instante, acreditava que sim. Era seu corpo ali na frente dele.
  - Também não estou mais com fome. – sua voz saiu embargada, fungou com o final da frase. – Venha. – colocou força nos braços para pegá-lo no colo.
  Já faziam, exatamente, 24 horas que a carregava sempre que preciso.
  Mais uma vez o som dos degraus rangendo preenchiam a casa pequena. O coração de batia em sua velocidade normal pela primeira vez no dia. Ele estava convicto do que estava para fazer, e sinceramente, não via algo ou alguém que o pudesse impedir.
  Ao se encontrar de novo naquele quarto regado de tons azuis, deitou na cama do casal, palco de várias noites delirantes de puro prazer, como também de noites fatídicas, onde era forçada a satisfazer os desejos sexuais de um transtornado. Aquele ser que havia tomado o lugar de seu amável namorado.
  Juntou a coberta do chão, se aconchegando ao corpo fedido de . Suas mãos deslizavam por aquela cintura endurecida, ao mesmo tempo que fofa. O cheiro que adentrava suas narinas era pestilento, lhe dava ânsia, nem mesmo o derramar de perfume sobre fazia odor ir embora.
  - Eu a tranquei nesse quarto, . Eu a bati. Eu fui um monstro com você, meu amor. Você calava quando eu falava. Chorava quando eu gritava, mas nunca me deixou. Por que você me ama, certo? Você ainda me ama, ? – lentamente virou o rosto da mulher para ele. – Eu nunca falei a você, e acho que temos que ser sinceros em tudo agora. – pausou por um momento. – Me passei por você. Respondi as mensagens do Anjo. Você... Você não me odeia por isso, odeia? Já deixei claro que só queria protegê-la. – novamente os olhos de voltavam a marejar, mirando aqueles olhos que o encaravam como se vissem o último resquício de alma que houvesse nele.

  , está tudo bem? Por que não respondeu minhas últimas mensagens?”, o celular da garota não parava de notificar novas mensagens. pensou muito em encontrá-lo, mas estaria se precipitando. “Tudo bem”, ele teclou a contra gosto. Enviou.
  Se passava pela namorada, enviava mensagens à sogra informando que tudo estava bem, que estava feliz onde vivia. Passou mesmo por sua cabeça que se sentia feliz? Feliz do jeito que estava? Trancada no quarto há quase uma semana? Vendo apenas, e exclusivamente, o rosto de ?
  “Você fará de acordo o combinado, certo? Mandarei o dinheiro em forma de encomenda. Esteja atenta.”
  “Do que está falando? Desculpe, acabei esquecendo de alguns detalhes.”
  “Da estação de trem. Esperarei você lá no sábado. O que aconteceu? Quer desistir? , pense no monstro que dorme ao seu lado. Você merece algo melhor. Esse cara deveria estar na cadeia. Tudo bem que ele nunca levantou a mão para você, mas privá-la de viver NÃO SE FAZ! Pense nisso.

   torcia os dedos da mão esquerda. Ele não era um monstro! havia dito que ele era?   Notou que ocultou alguns fatos, como o que ele a agredia. O Anjo não sabia o quão desvairadas e doentias eram as ações de .
  “Não se preocupe.”
  “Estarei enviando a encomenda para seu endereço no fim da tarde. Provavelmente chegará em sua casa na sexta, ou talvez no próprio sábado. Já que você não quer efetuar a denúncia, só poderei ajudá-la até aqui. Tente distraí-lo, ganhe sua confiança, deve ser difícil, mas seja amável com ele para que você possa andar livremente pela casa. Não perca essa chance, ! NÃO o deixe pegar a encomenda. Conto com você, entrarei em contato a qualquer momento. Se cuide, por favor. Lembre-se que está fazendo um bem a si mesma.”

   ficou tão irado com aquela última mensagem que só pensou em canalizar a raiva em algo. O rádio portátil, por exemplo. Os vasos caros de porcelana que havia ganhado da amiga . Os pratos, alguns copos, a chaleira... Tudo se encontrava no chão.
  - ! O QUE ESTÁ ACONTECENDO? – a voz esganiçada de vinha do quarto acima.

  - Você lembra, não é? Lembra que subi no quarto aquela noite e a joguei no chão. Eu... Eu disse palavras de baixo calão, a chamei de vagabunda, de vadia. Eu me arrependo tanto, . Me desculpe. Eu forcei você a transar comigo. – “você a estuprou”, sua mente gritava dentro da cabeça que mais parecia um buraco onde só havia neblinas e mais neblinas. – Mas... Mas depois eu consolei você. Eu a peguei nos meus braços. E passamos os três dias que se seguiram em paz. Você estava tão calma. Me perguntei o que você estava pensado, . Me perguntei se a ideia de me abandonar, de fugir com o Anjo havia passado... Mas você, ... Você... DROGA!
  Mordeu seu lábio tão forte, para tentar evitar o choro, que acabou ferindo a si mesmo. Experimentava o gosto metálico do sangue em suas papilas gustativas, o dente pressionando a pele ressecada de seu lábio inferior. Uma angústia atingia em cheio todo o seu ser. Sua parte humana sendo tocada com braveza, reconhecia a silhueta do arrependimento dançando em sua desprezível alma. era tão desprezível.
  - Você me amava, ! Por que mentiu dizendo que não? Você rejeitou meu amor. Mas... – tapou os lábios cor de vinho, já machados, da namorada. – Não. Não precisa dizer nada. Eu a perdoei. Agora ficaremos juntos. Eu perdoo você pela noite passada... Foi a essa hora, não foi?   Com a mão trêmula, procurou pelo celular de no bolso. O bolso que vibrou umas duas vezes minutos atrás. Mais uma mensagem do Anjo, a outra era de .
  Ele olhou o horário naquele relógio digital. Já passava das sete e meia. Se o Anjo cumprisse com a palavra, a polícia estaria chegando em breve para tirar dele. Tirar seu mundo dos seus braços. Não, não, não!
  Foi na noite passada.

   chegava em casa após outra sessão enfadonha de fotos. Sua cabeça não comportava mais neurônios, em seu lugar só existia um mar de preocupações, medos e obsessões. Tremia o espírito imaginar pôr os pés dentro da casa, andar por aquele piso de madeira empoeirado e não encontrar no quarto.
  - Amor? Estou em casa! – usou um pouco de força na voz para chegar audível no quarto acima dele.
   não respondeu.
   correu tão velozmente, quase ocasionando uma queda ao tropeçar em alguns livros no chão da sala. Os cômodos estavam um breu total.
  Sentindo o suor escorrer por sua nuca branquinha, o cheiro do perfume amadeirado voltando à vida, pôs as mãos nos bolsos procurando sentir o metal da chave contra a pele de seus dedos.
  - ? Amor? – a urgência na pergunta era perceptível em seu tom de voz.
   jogou os equipamentos fotográficos no chão, acendeu a luz do quarto. Nada. não estava em nenhum canto. Mas foi olhando ao redor que notou um rastro de luz amarela se esgueirando debaixo da porta fechada do banheiro.
abriu aquela porta com tanta rapidez que mais uma vez, quase desliza no piso molhado.
  A torneira da banheira estava aberta, a água caía incessantemente. A grande bacia de porcelana transbordava como uma represa.
  - Não! NÃO! ! COMO FOI CAPAZ DISSO?
   estava morta? Como reuniu coragem para se afogar? Como? Por quê? Ele a amava!
  Seus joelhos fraquejaram. Seu corpo foi ao chão. Chorou copiosamente ao se aproximar da banheira, somente para notá-la vazia. Não havia nenhum corpo. não estava morta.

  O celular voltava a soar, uma musiquinha irritante de videogame. enxugou os olhos na manga da camisa. ? O QUE ACONTECEU? VOCÊ NÃO...” O rapaz não terminou de ler a maldita mensagem, ao invés disso, com os dedos trépidos de tão acelerado que seu principal órgão vital se encontrava, digitou uma breve resposta. Um pedido insano, mas que necessitava ser concretizado. Sim, ele tinha total ciência do seu pedido.

  - AAAARGH!
  Um líquido viscoso desceu por entre a face de . veio correndo detrás da porta do banheiro, atingindo-o com um vaso qualquer. Infelizmente, não foi o suficiente para levar ao chão.
  - EU ODEIO VOCÊ, ! VOCÊ É LOUCO!
  Atordoado por conta do baque, só conseguiu pensar em derrubá-la no chão.
Imobilizou suas mãos, prendendo-as acima de sua cabeça naquele chão molhado. A água da torneira continuava fluindo.
  - ME LARGA! AAAAH! SEU...
   não conseguia continuar, os olhos ardiam com as lágrimas incessantes que escorriam pelos cantos dos olhos. Seu corpo era pressionado pelo de , o peso dificultando a respiração, já ofegante, dela. Em sua cabeça, ensejos de uma vida feliz ao lado de cortavam sua mente de uma forma dolorosa. lembrava de cada riso que o namorado arrancava de seus lábios, bem como os vários tapas desferidos tão cheios de fúria, também por ele.
   ocupava dois papéis no teatro que assolava a mente de , o primeiro: O mocinho. O que se importava com ela; o que dizia o quanto ela era linda; o que não se importava com o horário que ela chegava em casa, ou com seu short preferido, a maquiagem acentuada. Aquele era o que conheceu. No entanto, do outro lado do palco estava outro , o vilão. Aquele que a chamou de vagabunda por ter sido educada em aceitar simples batatas fritas; o que feriu seus lábios ao esfregarem com tanta força para neutralizar a cor vermelha que os preenchia; o que dizia que a amava, mas que no momento seguinte a tratava como nada. E infelizmente, aquele , o vilão, era o principal astro da peça teatral.
  - Pare de se debater, ! Eu não quero machucar você.
  - VOCÊ JÁ ME MACHUCOU, ! MUITAS VEZES! DE VÁRIAS MANEIRAS! SEU IMBECIL! EU AMEI VOCÊ...
  Sua fala foi interrompida pela pressão dos lábios de nos seus. não desejava aquela boca como, um dia, desejou. Sentia repulsa das tantas vezes que ele o beijou a força. Sentia repulsa daquela língua quente passeando por seu pescoço e todo qualquer lugar de seu corpo. Sentia nojo de . Devia ter feito como todos falavam, denunciá-lo. A esperança morreu há tempos, só restava o ódio por alguém que um dia amou intensamente, e que imaginou haver reciprocidade.
  - Não, não, meu amor! Eu não fiz por mal. Eu sou o seu anjo, lembra? – parecia um louco desvairado, os olhos não focavam apenas em um lugar.
  - Não, ! Você não é a droga de um anjo! – seu tom saiu um tanto mais baixo, as lágrimas fazendo-a fungar. A dor em seus pulsos, causada pelas mãos fortes que os apertavam.
  - Eu amo vo...
  - NÃOOOOOO! – gritou tão alto que os tímpanos de pareceram oscilar por breves segundos. - Vo-você não me ama. Eu tenho medo de você, !
  - Me perdoa, amor... Vamos fazer diferente. Sei que conseguimos.
  - Me deixa em paz, por favor. Eu juro, eu não... – soluços audíveis se misturavam com o fungar de seu nariz, o qual deixava escapava um líquido pegajoso e translúcido. – Eu não tentarei fazer nada contra você, eu juro, .
  - Por que você quer me deixar, ? Eu só me sinto feliz ao seu lado. – gotículas salgadas saltavam dos seus olhos, caindo nos lábios entreabertos e trêmulos da garota. – Confia em mim, por favor. Eu deixarei você sair desse quarto.
  - Meu... Deus... Não... Não.
  - Não chora, . Eu não aguento te ver chorar. - era um hipócrita. Tantas vezes fez a garota soluçar.
  - S-Se me ama... Se me ama de verdade... Me deixa ir, . Me liberte disso. – implorava, afastando o rosto da face acima da sua.
  - Você não vai parar não é, ? – de tristonha – e até caridosa – a voz de quem falava foi mudando, gradualmente, para um tom duro. Absolutamente desprovido de cautela. – Você quer mesmo me abandonar, ... Você... – suas mãos perdiam força, a prisão que os pulsos de foram submetidos, aos poucos ia ao pó. frouxou o aperto. Olhava naquele momento dentro das orbes escuras de .
  Um tapa.
  - Não! – reagiu à dor, empurrou seu peito para cima, mas como queria medir forças com ?
  Outro tapa, esse, muito forte.
  - PARE!
  Mais outro, e outro, mais um.
  - EU TE AMO, ! EU JÁ PEDI DESCULPAS POR TUDO O QUE FIZ! EU DISSE QUE VOU MUDAR... – não parava de se debater, buscando em vão se livrar do corpo acima do seu. Tentou arranhá-lo, porém, foi resultado de mais zanga por parte de . – VOCÊ NÃO.ACRE.DITA.EM.MIIIM!
  Na tentativa de fazê-la parar, agarrou seu cabelo com força, puxando os fios com tanta brutalidade que muitos soltaram de seu casco para enfeitar a pele branca da mão esquerda de . Preto no branco, um contraste beirando o horripilante.
  As costas da garota arquearam, sua boca secou, os olhos pareciam querer pular de suas órbitas, tudo por conta de duas mãos envolta de seu pescoço frágil e bastante magro. Todo o corpo da garota exibia uma magreza incomum - para alguém que sempre fora saudável.
  Os olhos de revelavam o medo que sentiu tempos atrás. O medo da morte. O sangue parecia coalhar em seu cérebro. Primeiro se sentiu tonta, sentia como se fosse desmaiar ali, deitada no chão. O motivo era simples, a circulação sanguínea para o cérebro estava sendo interrompida. Em sua frente, havia dois s, depois três... Cada vez mais a visão da garota se tornava turva. Não conseguia sentir o corpo por completo, não encontrava forças para mexer um único músculo. perdia a noção do espaço, sua audição diminuía, seus pensamentos embaralhavam.
   ficou cega para o mundo que a rodeava. pôde sentir o último suspiro contra sua bochecha rosada.
  Ele desabou por cima do corpo da garota. Um choro agoniante travava sua respiração.
  - Você é minha, . Eu amo você. Eu... Eu sei que me ama também. Amanhã será nosso dia. Não haverá trem, não haverá mais dor, amor. Eu estarei do seu lado.
  Lágrimas e mais lágrimas. Estúpidas, malditas e egoístas lágrimas.

   não tirava sua visão dos olhos sem vida de . Naquele momento, as células, totalmente privadas de oxigênio, aumentava cada vez mais sua acidez. Células rompidas. A temperatura corporal totalmente baixa, dando um banho gelado à mão de quem toca aquele corpo. Pálpebras, queixo e músculos do pescoço tão rígidos... estava morta. O que restava em sua frente era apenas um corpo desprovido de alma. Os fios de cabelo tão oleosos, nenhuma beleza se via.
   desabraçou aquele corpo. Ergueu seu tronco e levantou da cama dura. O quarto estava infestado por um odor forte. Um cheiro podre. Durante todo o dia, se segurou para não vomitar.
  Não adiantava vesti-la, enfeitar seu rosto mórbido com maquiagem, jogar milhares de frascos de perfumes por todo aquele corpo cadavérico.
Não era . Não adiantava enganar a si mesmo. percebia aquilo.
  Como nas últimas 24 horas, o rapaz tomou o corpo sem vida da namorada nos braços. Caminhou direção banheiro, especificamente, à banheira. Com cuidado, deitou o corpo fedido de na porcelana branquinha.
  Ligou a torneira. Aos poucos, calça, camisa, sapatos, tudo o que comprou para a comemoração ia ao chão. O vestido azul-marinho, não! Estava lindo no corpo de . A água caía com urgência em cima do tecido.
   entrou na banheira. As mãos fincadas na cintura que um dia foi de sua namorada, o cheiro podre ganhando mais intensidade.
  Ele estava pronto, o esperava.
  - Ficaremos juntos para sempre, meu amor. Eu amo você, .
   sentia a água ganhando volume, cobrindo sua cintura, depois seus ombros... Ele poderia desistir, mas, não havia . Simplesmente não haveria mais .
  No quarto escuro, em cima da cama, o celular voltava a vibrar. Era o Anjo, aquele que nem e muito menos chegaram a ver a face.
  "Já estamos chegando, . Aguente firme. Estou muito orgulhoso de você!”
  Era a mensagem em resposta à: “Chame a polícia. Percebi que não vale mais a pena levar essa vida. Você estava certo. Ele é um monstro.”, que havia enviado minutos atrás.
  Já faziam, exatamente, 24 horas desde que matou quem dizia amar, e apenas 24 segundos que resolveu dar fim à vida de seus próprios demônios.



Comentários da autora


Nota da autora: Obrigada a você leitor(a) por prestar míseros minutos da sua noite/tarde/manhã/madrugada haha Não sei bem o que você deve estar sentindo agora, mas não me mate, sério.
Quero realçar que um relacionamento abusivo não se resume apenas à agressão física. Se tira a liberdade de expressão, se humilha, se põe "regras" pretensiosas no relacionamento à dois, se faz com que a outra pessoa se sinta qualquer coisa, menos digna de amor mútuo... É sinônimo de um relacionamento abusivo.
Um abraço! Até a próxima.