Wind of Chance
Hiroshima… 1945
“Eu sigo o Rio Mosva,
Até o Parque Gorky,
Escutando o vento da mudança.”
– Wind Of Change / Scorpions
Ainda estava me recuperando do ataque em Pearl Harbor que aconteceu em dezembro de 1941, eu era um dos poucos da minha infantaria que estava escalado para a pequena base terrestre na ilha de Oahu, no Havaí. Um dos poucos que o Capitão Smith confiava, apesar de eu ser um oficial do exército negro, uma coisa não muito comum de se ver, mas já estava acostumado com os olhares tortos em minha direção quando eu passava, principalmente quando o indivíduo era de patente mais baixa que a minha. Poderiam me considerar um dos poucos oficiais negros com patente de primeiro-tenente ou patentes mais elevadas que isso, mas felizmente por minhas competências físicas e grande destreza em bolar estratégias de ataque, eu jamais seria considerado um mero soldado.
Foram menos de quatro meses sendo tratado em uma base improvisada da Cruz Vermelha no Havaí, felizmente só tinha saído com algumas pequenas fraturas pelo corpo, mas o que me deixava aliviado não era ter tido pequenos ferimentos no ataque de Pearl Harbor, e sim não precisar mais olhar para a cara de nojo das enfermeiras que cuidavam de mim. A maioria loiras de olhos claros vindas de algum país aliado da Europa como a França e a Inglaterra, o que sempre me ajudava a distingui-las das americanas, que em sua maioria eram morenas de pele clara e olhos castanhos, raramente eu conseguia ver enfermeiras ruivas. Porém não tinha tanta importância a nacionalidade ou cor do cabelo, todas as enfermeiras eram brancas e todas me olhavam como se minha patente do exército não me pertencesse.
Certamente elas ficavam se perguntando como um negro como eu tinha um cargo bom no exército norte-americano. Minha carta de liberdade foi entregue em forma de alta médica, estava finalmente liberado para voltar às minhas atividades no exército americano, o que me deixou ainda mais empolgado para sair daquela tenda tediosa que estava instalado.
Os anos da guerra foram se passando, estava entre batalhas ganhas e perdidas, sendo o braço direito do Capitão Smith, servindo a sua divisão. Porém, no início de agosto de 1945, ele ordenou que eu me juntasse novamente a 92ª Divisão de Infantaria Americana, a qual eu pertencia, e me reportasse ao Major-general Edward M. Almond, meu novo superior. Respirei fundo reunindo minhas forças, aquela notícia não estava me deixando muito satisfeito, afinal, pior do que brancos te olhando com nojo, são negros com olhar de inveja para você, te achando arrogante. Mas isso seria uma pequena parte do que eu teria que enfrentar, já que minha divisão tinha sido mandada para a frente de batalha entre as tropas americanas e as tropas japonesas, na China.
Assim que cheguei na base improvisada para os soldados, constatei que estava tudo um caos, talvez porque estávamos perdendo algumas batalhas da linha de frente e muitos soldados estavam voltando mutilados. Há alguns metros de distância ficava a base da Cruz Vermelha, olhei de relance para a direção e de alguma forma elas me lembravam as mesmas mulheres que cuidaram de mim na base do Havaí. Logo que me avistou no meio da divisão que havia acabado de chegar, o major-general Almond se aproximou de mim, reconhecendo as recomendações do capitão Smith quanto a meu respeito, assim que fixou seus olhos em minha patente. Nos cumprimentamos formalmente e ele me guiou até a tenda onde todas as estratégias estavam sendo discutidas, eles precisavam de uma ideia urgente para contra-atacar.
“O mundo está se fechando
Você já chegou a pensar
Que poderíamos ser tão próximos, como irmãos?”
– Wind Of Change / Scorpions
— Senhores, este é o primeiro-tenente , a indicação do capitão Smith para nos ajudar — explicou ele ao me apresentar aos quatro homens que estavam na tenda.
— Boa noite, senhores — disse com meu tom de voz grave e forte.
— Vamos trabalhar com ele? — perguntou um homem ruivo, sua patente marcava que ele era o segundo-tenente, ou seja, abaixo de mim.
— Sim — confirmou o major-general. — Algum problema?
— Nos desculpe, senhor, mas ele é… negro — disse o homem calvo, sua patente demarcava que era primeiro-tenente também.
— Me desculpe, senhor primeiro-tenente, mas foi por perguntas como essa que o mundo está em guerra. — Eu o olhei de forma séria. — Se acha que é melhor do que eu por ser um branco, o senhor está no time errado, os nazistas não estão aqui.
Os quatro homens me olharam engolindo seco, o major-general sorriu de canto desviando seu olhar para o primeiro-tenente.
— Eis aí a explicação, primeiro-tenente Mark, espero não ter mais nenhuma indagação quanto a presença do primeiro-tenente . — O major-general tinha mesmo a palavra final naquela base. — Vamos falar de algo mais relevante, precisamos contra-atacar nosso inimigo.
— O senhor possui notícias sobre os alvos mais avistados pelos generais? — perguntei.
— Sim, temos o nome de algumas cidades japonesas que serão invadidas e bombardeadas em breve, e temos uma missão no meio disso — respondeu ele. — E não é de contra-ataque.
— O que o comando quer? — perguntou o homem com patente de capitão.
— Devemos resgatar algumas enfermeiras da Cruz Vermelha que foram capturadas, elas estão em uma base inimiga localizada na cidade de Hiroshima — explicou ele. — E nós só teremos três dias ou até menos para encontrá-las e resgatá-las até eles lançarem a bomba na cidade.
— O lançamento está previsto para que dia? — perguntei já tentando analisar a situação e pensar numa estratégia mais precisa e menos arriscada para o resgate.
— Dia 8 será a primeira bomba — respondeu ele. — Esta é a única informação que tenho.
— Para sermos mais precisos, acho que devemos nos dividir em três grupo, um grupo maior deve se concentrar direto na base principal deles, e os outros dois grupos na cidade e em seu entorno — disse já visualizando toda a ação em minha mente. — Eles são espertos e pode ter a variável das enfermeiras não estarem na base, mas escondidas na cidade.
— Faz sentido. — O capitão me olhou nada surpreso por minha resolução do problema.
— Muito bem, faremos isso — disse o major-general convicto de que minha ideia era a melhor.
Claro que não precisaria de nenhum dos outros oficiais falarem mais nada, minha estratégia era sem dúvidas a mais racional e bem elaborada. Tínhamos menos de três dias para atravessar o mar da China sem sermos vistos pelos inimigos e chegar até Hiroshima, e eu estaria no primeiro barco com a grande equipe que atacaria a base deles. Fomos à noite, para não chamarmos atenção e desembarcamos no litoral no início da manhã, não sabíamos o que iria acontecer, mas tínhamos que completar nossa missão de invadir a base inimiga e encontrar as enfermeiras. Foi o que fizemos, camuflados entre as grandes plantações de arroz que tinha perto da base, cercamos o local.
Inicialmente entramos de forma silenciosa, como era início da manhã, a maioria dos soldados não estava de prontidão, o que nos facilitou abater os que estavam de guarda. Mas tudo começou a dar errado quando uma breve explosão se deu na cidade que ficava há alguns quilômetros de distância, chamando a atenção de todos. Nosso elemento surpresa tinha sido estragado por um dos grupos que estava responsável por vasculhar a cidade. Logo começou o tiroteio dentro da base, nos separamos em pequenos grupos de cinco pessoas para nos locomover com mais facilidade, e como previa, eu era o de maior patente em meu grupo, que contava com dois soldados negros e mais dois sargentos brancos.
Se tivesse que escolher algo para descrever aquela cena, poderia até dizer que aquele lugar tinha se transformado no inferno na terra. Meu grupo estava na frente de batalha, no meio de um fogo cruzado tendo que avançar em meio aos tiros e lançamentos de granadas. Eu estava me concentrando para não ficar completamente desnorteado; quando olhei para minha esquerda, ao longe vi uma mulher usando roupas brancas, em meio às explosões das granadas. Respirei fundo, a olhando, analisando meu trajeto até ela e como conseguiria levá-la para um lugar seguro, olhei para trás e vi alguns de meus companheiros sendo alvejados sem piedade, ao lado de explosões e tiros, além de inimigos avançando.
Um soldado inimigo veio para cima de mim com uma faca, logo me desviei do primeiro golpe, lutamos por alguns instantes até que peguei a faca que estava na minha bota e cravei em sua barriga. De repente senti meu corpo gelar um pouco, junto com o impacto de algo em meu ombro, era uma bala, em instantes o gosto do sangue começou a invadir minha boca. Engoli prendendo o grito de dor e ergui meu corpo, eu ainda mantinha minha atenção na mulher, seu olhar estava assustado e preso em mim, como se estivesse pedindo para lhe salvar. Me recompus com certa dificuldade e corri para minha esquerda em direção à mulher, passei por alguns soldados inimigos que atiravam, minha arma já estava sem balas e tive que me defender no punho com minha faca.
Mantive minha direção na mulher, assim que estava a poucos passos dela, senti em meus reflexos que haviam lançado uma granada em nossa direção. No impulso, eu a abracei lançando nossos corpos no chão, a protegendo com meu corpo, o grande barulho da granada veio bem próximo de nós.
— Você está bem, senhorita? — perguntei sentindo novamente minha boca se encher de sangue, com minhas vistas começando a embaraçar. — Fala minha língua, consegue me entender?
— Sim, senhor, mas precisamos sair daqui. — Sua voz era doce e tinha um toque de tranquilidade mesmo em meio ao caos.
— Nós vamos. — Eu me levantei me esforçando para manter meu corpo de pé e meu senso de direção intacto.
A ajudei a se levantar e, segurando em sua mão, começamos a correr um pouco inclinados pela plantação de arroz, eu tinha que me manter estável e acordado para levá-la até o ponto de encontro. Porém, em um piscar de olhos, senti meu corpo cair instantaneamente sem aviso prévio e, enfim, tudo ficou escuro e vazio para mim.
“O futuro está no ar,
Posso senti-lo em todo lugar,
Soprando com o vento de mudança.”
– Wind Of Change / Scorpions
Era como se a vida não estivesse mais em mim, uma profunda escuridão e agonia, até que comecei a ouvir aquela doce voz cantando algo que não conseguia distinguir. Fui abrindo meus olhos lentamente, reconhecendo que minha respiração estava estável e meu corpo extremamente dolorido.
— Enfermeira. — Minha voz ainda estava meio confusa, mas conseguia vê-la com nitidez, estava de costas para mim. — O que aconteceu?
— Você desmaiou. — Ela tinha um pouco de sotaque de estrangeiro em sua voz, o que me deixou intrigado, pois era diferente do sotaque das outras enfermeiras que já tinha conhecido. — Mas vai melhorar.
— Onde estamos? — perguntei sentindo minha voz se estabilizar mais.
— Escondidos na parte leste da plantação de arroz, eles não vão nos achar aqui — respondeu ela se virando para mim com uma folha nas mãos.
Senti meu corpo paralisar de imediato, ela não era como as outras enfermeiras, o que explicava muita coisa, ela era do país inimigo. Demorei alguns instantes para absorver o que estava vendo, uma mulher de bochechas levemente rosadas, um pouco magra e de traços japoneses estava diante de mim. Sua roupa branca, que vi ao longe, era o famoso quimono feminino de tecido suave, acho que era seda. Não sabia o que dizer, nem como me comportar, eu havia arriscado minha vida por uma inimiga, não conseguia entender que brincadeira estava acontecendo com minha vida, mas já tinha a certeza de que ela me entregaria.
— O que houve? Está silencioso — comentou ela mantendo seu olhar suave em mim.
— Você é inimiga — afirmei num tom meio preconceituoso. — Por que ainda não me entregou?
— Só porque sou japonesa não significa que compactuo com os pensamentos do meu imperador — respondeu ela tranquilamente. — Não se preocupe, senhor, não o irei entregar, pelo contrário, o senhor se arriscou por mim sem nem olhar primeiro se eu era uma aliada de fato.
— Ainda não confia em minhas palavras, apenas tenha em mente senhor, que eu estou aqui para salvar vidas e não para ajudar a ceifá-las. — Tinha uma sinceridade incomum em sua doce voz.
— Quanto tempo estamos aqui? — perguntei.
— O senhor ficou desacordado por algumas horas, mas ainda não pode se levantar, está muito fraco devido aos ferimentos — respondeu ela.
— Ferimentos? — Até o momento eu só me lembrava do tiro.
— Sim, um tiro no ombro e uma pequena facada na região do abdômen, acho que no calor do momento o senhor nem percebeu que estava sangrando — explicou ela.
Agora que ela tinha falado, eu comecei a reparar nas pequenas manchas de sangue em sua roupa branca, de certo era consequência de ter caído sobre ela. Eu realmente não sabia de onde ela tinha tirado todos aqueles aparatos de enfermeira, além dos curativos que já estavam feitos em mim, mas estava agradecido por tudo.
— Pode me chamar de , se preferir — disse dando um sorriso de canto a olhando abrir a bandagem que estava em meu abdômen e limpar suavemente com um algodão.
— Bem, prazer, . — Ela lançou seu olhar para mim por um momento, que me fez prender a respiração por instantes. — Meu nome é .
— Prazer, — disse mantendo minha atenção nela. — Posso entender como você conseguiu todas essas coisas de médico?
— Metade eu havia escondido pela plantação para necessidades eventuais, a outra peguei no posto da base japonesa escondido — explicou ela trocando a bandagem.
— Se arriscou muito — a repreendi um pouco.
— Uma vida é uma vida, seja aqui ou do outro lado do mundo — retrucou ela com naturalidade como se soubesse que eu não iria insistir.
— Você é cristã? — perguntei ao notar que ela possuía uma pulseira com o pingente em forma de crucifixo.
— Por que a pergunta? — Ela me olhou surpresa.
— O crucifixo — expliquei apontando para seu pulso.
— Sim — respondeu ela com tranquilidade.
— Mas japoneses não são budistas? — retruquei.
— Bem, acho que tenho muitas ideias contrárias aos outros deste país — explicou ela segurando o riso. — Conheço uma pessoa que afirmou que eu tinha o livre arbítrio para escolher a quem vou seguir.
Ela assentiu, dando um singelo sorriso.
— Bem, você já falou mais do que deveria. — Ela suspirou um pouco. — Descanse, vou procurar algo para comer.
— Espera. — Eu segurei em seu pulso antes que me levantasse. — Precisamos sair daqui, tem que ser rápido.
— Não vamos a lugar nenhum até você se recuperar. — Ela tocou de leve em minha mão, se soltando de mim.
Eu não entendia como, mas seu toque teve um certo poder sobre mim, logo senti minhas pálpebras pesadas e adormeci. Acordei preocupado, no susto, olhei para os lados e ela não estava lá, fiquei um pouco preocupado e me levantei mesmo com uma certa dificuldade. Comecei a me locomover pelo perímetro adentrando a plantação que estava muito alta, não podia gritar seu nome para não chamar atenção, o que estava me deixando um pouco aflito.
— — disse ela aparecendo de repente, me fazendo apoiar nela. — O que faz de pé? Você ainda está fraco.
— Preciso te tirar daqui — disse tentando não entrar em desespero. — Por favor, venha comigo.
— Agradeço sua preocupação por mim, mas sou eu quem devo cuidar de você — retrucou ela com segurança.
— Você não entende, — eu toquei de leve em seu rosto, sua pele era macia e aveludada —, você me salvou, não posso deixá-la morrer.
— Do que está falando? — perguntou ela não demonstrando preocupação.
— Daqui dois dias irão lançar uma bomba nuclear em direção a esta região, não temos tempo — expliquei a ela sentindo meu corpo meio cansado e pesado. — Me deixe te tirar daqui.
— Eu sei, para ser sincera, a bomba já foi lançada, assim que descobriram que o pedido de socorro das falsas enfermeiras era uma emboscada para eliminar sua divisão e atacar sua base em seguida — explicou ela mantendo seu olhar suave para mim e a doçura na voz. — Não se preocupe, agora sou eu que vou te proteger.
“Uma noite de verão em agosto,
Soldados caminhando,
Escutando o vento da mudança.”
– Wind Of Change / Scorpions
Assim que ela terminou de dizer aquilo, sentimos um impacto forte e grande na terra, seguido de um grande estrondo, eu olhei para trás dela e vi um grande clarão, em seguida uma bola gigante de fumaça subiu ao céu. Aquele era o sinal de que a bomba tinha acabado de chegar ao seu alvo. Honestamente, eu não temia por mim, morreria com honra pelo meu país, mas queria poder tirá-la daquele lugar.
Ela segurou firme em meu braço e a primeira bola de ar veio sobre nós, senti meu corpo se desequilibrar por instantes, mas ela nos manteve firmes de pé. Logo a segunda bola de ar passou, estava mais elevada a temperatura e aproximou um pouco mais nossos corpos me fazendo abraçá-la.
— Será mais leve se fechar os olhos — disse ela mantendo sua respiração tranquila.
Eu olhei para trás dela e vi a grande bola de fogo vindo em nossa direção, se ela estava tranquila mesmo sabendo que morreria naquele momento, eu também me manteria assim. Então fiz o que ela sugeriu, fechei meus olhos e esperei pela morte. Esperei e esperei, mas não tinha acontecido. Abri meus olhos lentamente e naquele momento estava presenciando a coisa mais surreal e inacreditável da minha vida, estava presenciando um milagre.
Das costas de , estavam saindo um par de asas brancas com as pontas prateadas, tinham um brilho único e envolvente, algo que só de olhar me fazia sentir paz em meio à guerra. Levantei meu olhar para o fogo que nos cercava, as asas dela estavam projetando um escudo protetor que ao fogo tocar do lado de fora, faíscas iluminadas soltavam ao redor. Eu conseguia sentir um pouco do calor externo, mas a proximidade do corpo de fazia com que a temperatura do meu corpo se mantivesse estável sem o menor problema. Fiquei maravilhado com tudo o que via, ela mantinha sua face imóvel com seus olhos fechados, e respiração tranquila.
Enquanto isso, eu apreciava todo aquele milagre orquestrado pelo céu. Eu estava sim sendo salvo, não por uma mulher, mas por um anjo que me abraçava de forma confortável e aconchegante, fazendo meu coração se manter calmo em meio ao risco de morte. Porém, ao mesmo tempo, fazendo meu coração acelerar com tudo que eu estava vendo e sentindo, principalmente ao olhar para seu rosto, aos poucos eu comecei a sentir uma breve dormência nos músculos do meu corpo, minhas pernas bambearam um pouco, mas estava sendo abraçado por ela.
Mesmo com minhas pálpebras ficando a cada segundo mais pesadas, eu continuava lutando para ficar consciente até o final, mas em um piscar de olhos, tudo se escureceu novamente e desmaiei.
“Descendo pela rua,
Recordações distantes,
Enterradas no passado, para sempre.”
– Wind Of Change / Scorpions
Eu não entendia o que estava acontecendo comigo, mas sabia que eu não estava mais em risco, aos poucos fui sentindo os reflexos do meu corpo, fui mexendo os dedos das mãos e dos pés. Bem ao longe fui ouvindo vozes também, vagamente entendia o que falavam, era algo como estarem admirados por eu ter sobrevivido à grande explosão. Quando finalmente consegui acordar de fato, recebi a notícia de que a guerra já havia acabado, o grupo dos Aliados havia saído vitorioso e Hitler tinha sido abatido. O Japão havia se rendido, porém 140 mil pessoas tinham perdido a vida só naquela cidade, entre elas, civis inocentes que não puderam se defender.
Diante de toda aquela tragédia, eu não queria mais me ver como um herói de guerra, eu estava abalado por tantas pessoas inocentes e companheiros de farda que tinham morrido por causa da guerra. Mesmo recuperado eu sempre iria sentir o gosto de sangue em minha boca, sangue daqueles inocentes.
— Olha quem acordou, o milagre da nossa divisão — disse o soldado Jones, um amigo de infância.
— Você sobreviveu — brinquei mantendo meus olhos desviados dele, por causa da claridade.
— Claro que sim — assentiu ele.
— Onde estou? — perguntei.
— Em um hospital na Coreia do Sul — respondeu ele. — Foi o lugar mais perto que tinha as condições para te tratar, meu amigo, você sim que é o sobrevivente, a 87ª divisão achou você na orla do porto de Hiroshima, estava desacordado.
— Há quanto tempo fiquei assim? — perguntei.
— Alguns meses — respondeu ele meio receoso. — Mas o que importa é que você sobreviveu a bomba e nós, os Aliados, vencemos.
— Uma pequena e valiosa ajuda dos Soviéticos. Agora sim teremos paz — afirmou ele. — E você, ouvi dizer que vão te condecorar e elevar sua patente.
— Eu não fiz nada — disse.
— Claro que fez, sua estratégia de dividir os soldados em grupos nos garantiu descobrir o falso pedido de socorro e resgatar seu grupo que estava combatendo na base. — Ele suspirou um pouco. — Só não encontramos você em lugar nenhum, mas quando retornamos para a base, conseguimos mandar uma mensagem ao general de guerra.
— Foi ele quem mandou a bomba dois dias antes — concluí.
— Sim — assentiu ele. — Até aquele momento, você era o único desaparecido, pensávamos que tinha morrido.
— Eu estava na plantação, com uma enfermeira — sussurrei um pouco. — Vocês não a encontraram? Eu estava com uma enfermeira japonesa, ela me salvou, ela era um anjo.
— Não encontramos ninguém com você — respondeu ele me olhando de forma estranha.
— Não, ela estava lá, estou vivo por causa dela — insisti.
— Meu amigo, eu entendo que esteja confuso pelo que aconteceu…
— Você não entende. — Virei minha face para o lado, um pouco frustrado. — Eu só queria agradecê-la.
— Se ela for mesmo real e estava com você, certamente deve ter sobrevivido também.
— Sim. — Mantive meu olhar baixo.
— Que é isso, , você está vivo, nós vencemos, que olhar triste é esse? Deveria estar comemorando, graças a sua estratégia nossa divisão não foi dizimada.
— Não consigo ficar feliz.
— Por causa da enfermeira misteriosa?
— Não. — Respirei fundo. — Por causa de tudo, de todas as pessoas que morreram, na Alemanha, em Pearl Harbor, na Polônia, em Hiroshima, no mundo todo.
— Não acredito, estar triste pelos inocentes da Aliança tudo bem, mas está triste por nossos inimigos? — Ele parecia indignado.
— Todos eram inocentes e morreram pela ganância de poucos, três na verdade. — Desviei meu olhar para ele. — Nessa guerra aprendi que uma vida é uma vida, seja aqui ou do outro lado do mundo.
Jones ficou mais um pouco no quarto comigo, até que saiu para avisar meus superiores que eu havia acordado. Desviei meu olhar para a janela e fiquei olhando a luz do sol entrando no quarto, as coisas pareciam um pouco mais monótonas naquele momento. De repente uma enfermeira entrou e ficou de costas para a bancada olhando minha ficha médica, certamente estaria anotando algo.
— Senhorita… Enfermeira, poderia me dizer se alguém com o nome deu entrada aqui neste hospital?
— Mal acordou e já está procurando por mim? — Eu reconhecia aquela voz, ela se virou com um sorriso delicado nos lábios e ficou me olhando. — Meus parabéns por defender a vida ceifada dos inocentes, eu sabia que você era uma pessoa que valia a pena salvar.
— Obrigado — disse, não agradecendo o elogio, mas agradecendo por ela ter salvado minha vida.
“O vento da mudança,
Sopra direto na face do tempo,
Como um vento tempestuoso que irá soar,
O sino da liberdade pela paz da mente,
Deixe sua balalaica cantar,
O que minha guitarra quer falar,
Leve-me à magia do momento,
Numa noite de glória,
Onde as crianças de amanhã compartilham seus sonhos,
Comigo e com você.”
– Wind Of Change / Scorpions
“Guerras: Uma vida é uma vida, seja aqui ou do outro lado do mundo.” – Pâms