Vermilion
O espelho refletia uma silhueta tão conhecida por mim, mas ao mesmo tempo, distante. Meu dedo decidia em qual “eu” iria tocar, havia sete pedaços colados que mostravam a máscara que meu corpo vestia todos os dias na frente dos demais. A camisa branca tinha uma pequena mancha na altura da gola, mas nada que meu casaco não cobrisse. Meu olhar percorreu pelo meu rosto, indo de encontro com a janela que insistia em ficar batendo por culpa do vento que vinha quando queria. Antes de fecha-la, dei uma espiada lá fora, tendo a visão que eu mais queria: a garota com o vestido vermelho. Eu corri para terminar de arrumar tudo, sem me importar em fechar a janela, afinal, a minha menina estava me aguardando no nosso ponto de encontro e eu não iria perder mais nenhum segundo cortando meus dedos naqueles vidros, mesmo que eu gostasse.
Saí na rua com passos apressados, e ainda sim percebi que o cenário estava mudando gradativamente, causando uma estranheza em mim. As nuvens fechavam o tempo, e o anoitecer se tornou um fundo muito escuro, que só era possível enxergar aquele vestido vermelho graças ao único poste que tentava iluminar a estrada. Quanto mais eu me aproximava, minhas pernas iam se cansando, e o desespero de não chegar a tempo do meu encontro se instalou em meu peito. Forcei os meus pés a me obedecerem, quase precisando travar uma luta com a minha cabeça que insistia em me boicotar o dia inteiro. Com muito custo, toquei nas gramas e todo o peso que eu sentia sumiu, dando um alívio para o meu corpo. Levei alguns minutos para me recuperar, e recebi um beijo quente na minha bochecha, seguido de uma mordiscada leve no local. Me coloquei de pé e encarei a coisa mais perfeita que já tive o prazer de desfrutar na minha lamentável vida, vendo aquele sorriso se desmanchar ao desviar seus grandes olhos heterocromáticos de mim.
Ela estava se sentindo culpada.
E eu sabia exatamente o motivo.
Nos conhecemos há cinco meses e todas as noites eu fazia questão de procurá-la no parque, mais precisamente, no balanço. Conforme a brisa gélida tocava levemente seus cabelos macios, a minha paixão mal reparava na minha chegada, e meu rosto queimava de vergonha, assim que nem o dela quando me via. Durante a minha existência, em meus sonhos mais profundos, ela surgia e agia de acordo com os meus sentimentos, como se fôssemos um só. Ao vê-la fora da minha cabeça, todos os detalhes eram perfeitamente iguais, e de início isso me assustou. Na primeira semana eu tentava falar algo, porém o silêncio era a resposta que ficava explícita no ar. Aos poucos fui escutando aquele timbre adocicado, e a minha vontade de ficar a madrugada inteira observando aquele ser descalço, correndo com parte de seu vestido vermelho na mão só crescia.
Até o dia que seus lábios pronunciaram a notícia que arruinaria o meu céu estrelado.
Três meses após o anúncio, a minha paixão ia me deixando triste, e eu não sabia o que fazer. Nunca achei que chegaríamos nesse ponto, e ela tinha noção de como eu me sentia. Como nós nos sentíamos. Aqueles malditos olhos não conseguiam mentir, e mesmo que fizesse isso, a culpa que consumia o seu corpo se instalava no meu que nem uma bomba relógio prestes a explodir.
E desta vez, não teríamos para onde fugir.
Encarei a minha garota com certa incerteza, e meu coração já ia se despedaçado ao ver a boca dela abrindo e o silêncio novamente surgia. Ficamos assim durante longos minutos, até que ela segurou a barra de seu vestido, vestindo a minha vergonha em si como da primeira vez.
- Você precisa acordar.
- Não! – Gritei. – Você não pode me mandar ir embora, Lion. Por que me deixaste assim, tão triste? Eu sinto a sua culpa! E eu não quero mais ter isso dentro de mim.
- Nós precisamos acordar. – Sua voz ia se tornando distante, assim como a sua silhueta.
Um sentimento adormecido no meu interior foi acionado ao ouvir aquelas palavras, e a frase continuava saindo dos lábios da minha paixão. Minha cabeça começou a girar e um nó surgiu na minha garganta, me impossibilitando de chama-la. A raiva crescia tão rápido e em menos de dez segundos meus dedos estavam em volta daquele pescoço tão delicado e sua feição de surpresa era exatamente igual a minha. Quanto mais eu apertava, mais meu corpo implorava para parar, mas eu não podia.
Não podia deixa-la crescer dentro de mim.
Não mais.
- Você não é real, não é? – Uma lágrima escorria pelo meu rosto ao receber a confirmação. – Por que não me contou antes?
- Você p-precisava perceber sozinho.
- P-p-perceber o quê? – Comecei a ficar sem ar.
- Que nós somos um só, meu querido.
Ao escutar o seu último suspiro, a escuridão me envolveu em seus braços, fazendo com que eu perdesse a minha consciência e a única coisa que eu me lembraria para sempre era dos nossos corpos mortos se desfazendo com o vento.
Fim
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