Perspectiva
- Olhe para onde anda, perdedor!
O som das risadas soou alto por todo o corredor.
Era como se todos estivessem cochichando e, ao ouvir as palavras sendo dirigidas para aquela pessoa específica, o som tornava-se tão alto que talvez alguém do outro lado da cidade não tivesse ouvido.
não deixou se abater pelos risos, os tapas que recebeu na cabeça e na poupança, tampouco nos cadernos que agora jaziam no chão. Calmo, agachou-se e curvou suas costas para pegar todo o material escolar, também não se importando de se apressar por estar atrasado para a próxima aula.
- Não se dê o trabalho, senhor Kennedy. – a professora anunciou assim que ele abriu a porta. – Eu lhe avisei da última vez que mais um atraso era diretoria. – ela finalizou a bronca, apontando para uma direção fora da sala de aula.
- Perdedor! – gritaram de dentro do ambiente, trazendo mais risadas.
nada disse. Fechou a porta com a mesma calma que abriu, e então caminhou na direção da diretoria, onde Carla, a secretária, o olhou entediada.
- De novo, Kennedy? Você já sabe o caminho. – e apontou para uma saleta ao lado, onde os alunos punidos deviam se encaminhar para aguardar serem designados a algum afazer que consistisse em fazê-lo pensar sobre seus erros e evitar cometê-los novamente.
O que ninguém sabia, é que seu erro era irreparável.
Enquanto aguardava a chegada da diretora, encarou as mãos, interessado em observar o estado de suas mãos, já calejadas pelo trabalho manual. Talvez ficar em detenção era até melhor do que voltar para casa, onde seus pais agiam como pessoas normais, mesmo suas vidas tendo mudado drasticamente há um ano.
Um ano.
Há um ano, era como todos os outros garotos daquele colégio. Santo e ao mesmo tempo pentelho; achava-se o dono do mundo e da verdade. Nada era mais inteligente que ele, exceto nos dias de prova. Passava a tarde em parques ou na casa de amigos jogando qualquer coisa e fumando um cigarro. Beijava garotas sem nome nas festas aos finais de semana e se gabava com os amigos quando alguma delas dizia querer perder a virgindade com ele.
O som da porta se abriu, dando espaço para uma mulher alta, com os cabelos escuros presos em um rabo baixo, logo atrás de sua nuca. Seu olhar era forte, provavelmente o único que temia; até mais do que de seus próprios pais.
Madame Toule, era como gostava de ser chamada pelos alunos. Sua linhagem francesa era motivo de orgulho próprio e não hesitava demonstrar em todas as oportunidades que buscava. Para , ela não era somente a diretora do colégio; era também mãe de Liam, seu ex-melhor amigo, que o trocou pelas pessoas que agora o chamavam de Perdedor. Apesar de Liam jamais ter dirigido o adjetivo a – talvez pela antiga amizade que tiveram –, não hesitou em dar-lhe as costas após o acontecimento de um ano atrás. Os dois se tornaram melhores amigos porque Madame Toule era vizinha dos Kennedy’s. Foi por causa dela que foi colocado nesta escola; nada como a segurança de colocar o filho em um colégio coordenado por uma pessoa de confiança, seu pai sempre disse.
Ouviu o suspiro da mãe do ex-melhor amigo e então o som da cadeira ser arrastada até o lugar à frente de na mesa. Parecia uma sala de interrogatório policial; seria idêntico, se não houvessem tantas janelas, quadros educativos e carteiras de sala de aula.
- Por mais que estar aqui não seja um bom sinal, eu gostava mais quando você vinha acompanhado por Liam e outra meia dúzia de garotos. – ela começou a conversa, olhando para com o que ele sabia ser pena. Pena de vê-lo sozinho e abandonado. – Martha disse que você não está comparecendo às seções, .
- Porque eu não preciso.
- Se não precisasse, ela logo diria após a primeira consulta.
- Por que ela faria isso, se pode fingir que sou problemático de verdade e ganhar dinheiro com minhas consultas? Não é isso o que adultos fazem? Se aproveitam das oportunidades?
Madame Toule nada disse. Ela sabia que havia razões para estar assim. Tentou, no decorrer do último ano, falar com o garoto ou designar pessoas para saber o que ele estava pensando. Suspirou mais uma vez ao ver que ele não cederia.
- O senhor Jenkins precisa de ajuda para retirar as ervas doninhas no campo de futebol. Ele está adoecido hoje, então você poderá fazer o trabalho por ele. – ela olhou em uma folha presa na prancheta. – Sem máquinas. Às quatro, passarei por lá para verificar o trabalho e ver se você poderá ser liberado. Você também entregará um relatório de cinco páginas sobre química inorgânica para compensar a aula que perdeu. Tem até amanhã às três para entrega-la.
ergueu os ombros, pouco se importando com a quantidade de tempo que gastaria para fazer o relatório. Ele já estava quase se especializando em criar relatórios, pelo tanto de vezes que era punido com eles.
- Mais uma detenção esse mês e você será suspenso. Vamos evitar entrar em brigas, sim? – ela se levantou.
- São elas quem me procuram, Madame Toule.
A mulher nada disse porque sabia ser verdade. Olhou para com o mesmo olhar que havia enviado quando se sentou e então, antes de sair, murmurou:
- Supere, . Você sabe que nada vai mudar o passado.
~*~
- Você quer falar sobre isso?
se encontrava sentado em frente aos pais, que haviam recebido o aviso pela secretaria de Madame Toule sobre a detenção que ele faria na parte da tarde. Assim que chegou em casa, em torno das cinco, encontrou os dois prontos para iniciarem o diálogo que sempre faziam quando causava algum problema.
- Vocês querem falar sobre isso? – ele jogou a pergunta de volta e viu o desconforto nos ombros dos dois.
- , nós sabemos que não é fácil…
- Vocês devem mesmo saber melhor do que ninguém. – o garoto respondeu, amargurado, enviando-lhes um duro olhar.
- Uma coisa que você deve entender, filho, é que a vida não foi feita para ser parada quando algo ruim acontece. – o pai disse, compreensivo. – Você deve superar esses obstáculos para…
- Não fale como se ela fosse um animal ou um objeto quebrado. – cerrou os dentes com raiva. – Se eu quisesse parar minha vida por causa dela, vocês teriam feito dois funerais ao invés de um!
Aquilo calou os pais. Era a primeira vez desde o acontecimento de um ano que se expressava. Os dois tinham cautela nas palavras que iriam dizer, mas com a indiferença do filho, acabaram por deixar de lado. Mesmo com a mudança de humor do garoto, a parada brusca de outros amigos dentro da casa e o número de detenção aumentando, o psicólogo havia dito que era apenas uma questão de tempo até a morte da irmã mais nova ser superada.
Seu nome era Rania. A doce e adorável Rania, que era vista pelos pais e irmão mais velho como um filhote de coelho, tamanha fofura que exalava. Ainda que fosse somente um ano mais nova que , Rania era tratada pelo garoto como se entre os dois houvesse uma diferença de 10 anos.
Há um ano, quando Rania voltava de uma festa na casa da amiga, foi atingida por um carro que havia sido atingido por um caminhão desgovernado. quem teve de ir até o hospital reconhecer seu corpo e cuidar de toda a papelada, uma vez que seus pais estavam fora da cidade por conta do serviço. De acordo com a psicóloga, tal responsabilidade foi o estopim para a mudança do garoto. Nenhum jovem de 16 anos devia ser quem deve identificar o corpo distorcido da irmã que tanto amava.
Após a morte de Rania, percebeu que uma vida sem ela não significava nada. Tudo o que fazia, era para mostrar à mais nova de que ele era um irmão à quem ela podia confiar. Ao invés dos amigos demonstrarem compaixão, deixaram-no de lado e passaram a excluí-lo de tudo. Mas não se importava mais. Mesmo que ele voltasse à vida que costumava ter, não havia mais para quem voltar ou conversar durante a madrugada. Rania não estava lá para dar sua opinião como garota ou pedir pela ajuda do irmão quando não conseguia resolver algo sozinha. Ela havia partido para outra vida. Sozinha. Deixando-o sozinho.
- O que você quer, ? – o pai perguntou, baixo, após um longo tempo em silêncio. A mãe havia deixado a cozinha com lágrimas escorrendo pelo rosto, cedendo às próprias emoções. – O que você quer da sua vida?
- Eu não queria nem estar vivo. – ele murmurou.
- Nós também não.
Aquilo, por alguma razão, chamou-lhe a atenção. Ele encarou o pai, que agora não parecia mais tão normal. pôde perceber as bolsas escuras abaixo dos olhos, os olhos trêmulos e os cabelos grisalhos do pai.
- Nós também sentimos falta dela, . Mais do que você provavelmente imagina. Fomos nós quem a vimos no ventre de sua mãe, que ouvimos sua primeira batida de coração, que imaginamos o que ela seria no futuro. Você acha que não pensamos, todos os dias, como seria se Rania descesse pelas escadas como fazia, gritando bom dia para todos ou batendo a porta nos dias difíceis? Acha que nós não trocaríamos de lugar com ela se pudéssemos? Somos pais, . E se Deus quiser, você também será um dia.
O garoto manteve-se boquiaberto, encarando a cena por uma nova perspectiva. Ele sabia que os pais deveriam estar sentindo a dor da morte de Rania, mas jamais parou para pensar que pudessem estar piores do que a si mesmo. Afinal, vivia o luto todos os dias, a todo momento, em tudo o que fazia ou pensava.
- O seu azar, , é que você também é nosso filho. – o pai disse, sereno. – Nós também acompanhamos sua formação, também ouvimos o som da primeira batida de seu coração e também imaginamos qual seria o seu futuro. Mesmo que não possamos mais saber o que Rania seria quando crescesse, nós sabemos que ainda há você.
“Sabe, filho. A ordem natural da vida não é essa que vivemos. Filhos não devem morrer antes dos pais; não somos nós quem temos de enterrá-los, sabe? Mas as coisas são como são, por mais difíceis que sejam.” O homem depositou as mãos na mesa, cruzando os dedos, formando nós brancos na ponta devido à força que aplicava neles. “Quando enterramos Rania, eu e sua mãe achamos que ali seria nosso fim. Criamos N razões para nos separarmos, nos matarmos, abandonarmos essa vida, para fugir da dor. Mas quando entramos no carro, você estava lá. Rania não estava, mas você sim. E então recordamos das vezes que sua irmã perguntou por que nós éramos duros com você. Lembramos do acordo que fizemos pouco antes de você nascer; que o tornaríamos um homem respeitável, educado e do bem. E assim, antes mesmo de deixarmos o cemitério, nós já havíamos renovado nossas esperanças, criado um novo motivo que sobressaísse maior do que aqueles que terminava em um final infeliz. Nós ainda temos você. Ainda temos que mostrar para você que somos bons pais. Ainda podemos mostrar para Rania, que nos observa lá do céu, a razão de sermos duros com você. E não importa o quanto você nos afaste, . Não importa o quanto você tente parar de viver a vida que tinha antes. Nós dois estaremos do seu lado, porque somos seus pais.”
viu quando as lágrimas que o homem segurava rolaram pelo rosto exausto. Nos minutos seguintes, ele se lembrou de todos os dias que viveram desde a morte de Rania; todos os momentos em que eles tentaram ter uma vida normal, que tentaram mostrar para o filho que ele devia continuar vivendo.
O garoto fungou, limpando o nariz com as costas das mãos e as lágrimas que já manchavam a roupa com a manga da blusa.
- Agora, filho, me responda. – o pai disse, com a voz trêmula após ter controlado suas emoções. E antes que a pergunta fosse pronunciada, soube exatamente qual era; agora, com uma nova visão sobre sua vida, ele estava pronto para dar ao pai a resposta que ele queria. – O que você quer ser no futuro?
Fim
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