Pecados Mortais – Avareza
“Greed is not a financial issue. It’s a heart issue”.
– Andy Stanley
Me desculpe, Pai, eu pequei. Meu nome é , e essa é a minha confissão. Mas vou começar pelo início.
Vivíamos como pobres desde muito antes de eu nascer. E devo enfatizar “como pobres” porque, apesar das condições em que vivíamos – com uma casa antiga que não recebia reparação alguma há anos, móveis que já haviam se tornado antiquados para a época, roupas usadas passadas de geração em geração e alimentação suficiente, mas nunca ostensiva – nós éramos ricos. Ou melhor, meu pai era.
Meu pai ou Sr. , como preferia que o chamássemos, era um homem muito rico por conta dos investimentos que fizera com a pequena herança deixada por seus avós. Ele havia investido na construção de fábricas têxtil, e nunca mais precisou se preocupar com dinheiro na vida. Ainda assim ele se preocupava excessivamente, fazendo questão de preservar cada centavo possível e sem nos dar a menor chance de usufruir do resultado de seus esforços. “Vocês precisam merecer” sempre dizia, enfatizando sempre que possível que “dinheiro não cai do céu” e precisamos trabalhar para conseguir o que queremos.
Éramos em sete irmãos, eu sendo a caçula com meus recém-feitos dezoito anos. Como de costume, não houve qualquer celebração especial, uma vez que Sr. não permitia gasto com coisas supérfluas. “Você poderá ter seu bolo quando trabalhar e tiver condições de pagar por um”, afirmava desde que eu tinha cinco anos de idade, após ter participado da festa de aniversário de uma colega de classe e suplicado com todas as minhas forças para que meu pai permitisse que mamãe comprasse um bolo para mim.
Minha mãe era evidentemente infeliz, e apesar de ter se casado com meu pai quando ele já tinha mais dinheiro do que poderia gastar em uma vida, ele nunca se preocupou em usá-lo para conquistá-la. Até hoje me pergunto o que a levou a se casar com um sovina como o Sr. , que não se atentava sequer em lhe dar presentes ou joias, com exceção da aliança de casamento. A infelicidade de minha mãe era contagiante, e todos na casa cresceram mais ou menos com a mesma sensação de não serem amados o suficiente, pois até nas demonstrações de carinho meus pais economizavam.
Esse tipo de coisas certamente afetam o coração de uma criança, e era por isso que afetividade não era algo comum em nossa família. Todos os meus irmãos trabalhavam nas fábricas de nosso pai, mas nenhum recebia qualquer benefício, além do salário decepcionante que Sr. estava disposto a pagar considerando a margem de lucro anual da empresa. Eu deveria ser a próxima a seguir o caminho da família e continuar com o ciclo cansativo de avareza no qual nosso pai nos prendia, mas não havia nada de interessante no ramo e eu tinha sonhos muito maiores.
Quando ainda criança lembro de ter visto algumas revistas que anunciavam resorts incríveis ao redor do mundo para relaxar à beira mar, e desde então esse havia sido meu sonho praticamente inalcançável. Eu precisaria trabalhar por décadas para conseguir juntar o valor necessário que me permitisse viajar pelo mundo aproveitando sem remorsos. Isso ou aguardar até que meu pai batesse as botas e todo seu dinheiro – guardado cuidadosamente em um quarto da casa que vivia trancado – fosse dividido entre nós.
Sr. era tão muquirana que depositava no banco somente os valores necessários para manter a empresa, os lucros eram sempre sacados e levados ao seu depósito particular – um quarto sem janelas e com porta de metal reforçada – em nossa casa. Me lembro claramente das vezes em que, ainda criança, tentava bisbilhotar para entender como funcionava o mecanismo de abertura da porta sendo sempre esculhambada pelo meu pai. Eu certamente era nova demais para entender na época, porém anos depois consegui finalmente compreender o mecanismo que permitia a abertura da porta, uma sequência de códigos que revelaria um quebra cabeça, o qual quando montado dava espaço para a inserção da chave que abriria a porta.
Nunca consegui descobrir, no entanto, onde ele mantinha a chave que daria acesso aquele depósito. Até que no Dia de Ação de Graças bati na porta do meu pai para chamá-lo como de costume, e não obtive resposta. Sr. sempre foi extremamente pontual, portanto, uma leve batida na porta era o suficiente para que ele acordasse, mas não naquele fatídico dia. Bati duas outras vezes na porta com mais força, receosa de que ele ficasse irritado comigo, mas como não ouvi nenhum som lá de dentro adentrei o quarto curiosa.
Meu pai estava deitado de bruços na cama, parecendo preso em um sono profundo. Me aproximei da cama e me atrevi a movê-lo para verificar se ele estava realmente vivo. Para minha surpresa ele se virou rapidamente com uma irritação súbita no olhar, me fazendo cambalear para trás e cair no chão. Com os xingamentos de meu pai sendo registrados na minha mente, rapidamente me levantei e me preparei para sair do quarto, mas não sem antes bater meus olhos no pequeno objeto pendurado no colar em seu pescoço.
Saí apressadamente de seu quarto e tentei me manter o mais distante possível de sua visão pelo restante do dia enquanto ajudava minha mãe nas tarefas de casa e na preparação para o jantar de Ação de Graças. Apesar do feriado, meus irmãos haviam sido obrigados a trabalhar por meio período, portanto fui a única capaz de ajudar minha mãe naquele dia. Apesar de estar praticamente me escondendo da fúria que meu pai ainda deveria estar sentindo, não conseguia deixar de me felicitar com o fato de que finalmente descobrira o meu maior mistério: a chave do depósito era carregada no próprio pescoço do meu pai, sempre escondida sob as roupas pesadas e escuras que usava.
Naquela noite nos sentamos todos juntos para celebrar e agradecer por mais um ano de prosperidade. Eu podia notar a raiva do meu pai ainda emanando de seus olhos, mas ele havia decidido não me castigar em pleno Dia de Ação de Graças, o que significava que ele teria tempo suficiente para pensar em um castigo ainda pior para o dia seguinte. Permaneci encolhida em meu lugar, alheia as conversas de meus irmãos. Minha mãe começou a servir a todos, mas ninguém ousou mexer em seus pratos, era costumeiro que Sr. – como patriarca da família – fosse o primeiro a experimentar a comida servida.
Meus irmãos pareciam mais agitados e ansiosos do que o habitual enquanto aguardavam que meu pai cortasse calmamente o pedaço de peru em seu prato, como se quisesse prolongar a fome de todos que o assistia. Quando ele finalmente colocou o pedaço de carne na boca e mastigou todos suspiraram aliviados em uníssono e começaram a pegar seus garfos, aguardando pela permissão de meu pai que nunca veio. Ao invés de fazer seu gesto habitual para que iniciássemos o jantar, ele segurou no próprio pescoço como se algo o incomodasse, em seguida passou a tossir desesperadamente e a respirar com dificuldade, e em poucos segundos sua cabeça tombava sobre seu prato e o silêncio reinava na sala de jantar.
Todos permaneceram paralisados por alguns segundos, como se não soubessem exatamente o que fazer, até que minha mãe se levantou calmamente e seguiu até meu pai, verificando sua pulsação. “Ele está morto” anunciou com um sorriso, e então todos na mesa começaram a gritar e celebrar juntos. ‘Eles haviam combinado de matá-lo?’ era a única coisa que eu conseguia pensar enquanto observava as risadas ao redor da mesa. Tentando disfarçar o fato de que eu não fazia ideia do que haviam planejado, passei a celebrar junto aos meus irmãos antes de sugerir um brinde. Todos levantaram suas taças de vinho enquanto eu levantei a minha taça com suco de uva – uma vez que ainda não era permitido que eu bebesse álcool – e brindamos por uma vida de riqueza antes de virarmos a bebida e bebermos alegremente.
Não demorou muito e todos começaram a cair ao chão, um por um, acompanhando meu pai para o purgatório. Suspirei prolongadamente com um sorriso largo dominando meu rosto. Eu tinha o código, a solução para o quebra-cabeça e a localização da chave, tudo que me permitiria ter acesso ao meu dinheiro, e agora havia eliminado as únicas outras coisas no caminho: minha família. Se havia algo que meu pai havia me ensinado muito bem era que não devemos dividir o que é nosso.
Fim
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