Ouro Preto
Festa dos calouros
E quem diria que as ladeiras de Ouro Preto teriam algumas histórias para me contar e muitas peças para me pregar.
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Tudo aconteceu em um simples final de semana de outubro em que eu e minha amiga Laila fomos passar na casa da avó dela para a festa a fantasia inspirada no Halloween americano, para os calouros do próximo semestre da UFOP, promovida pelos veteranos. A humilde, porém, moderna residência se localizava em um quarteirão bem distante do centro comercial, na metade de um morro bastante inclinado. Ah! Um detalhe, todos os morros são inclinados e aquelas pedras ajudam bastante, é só deitar e descer rolando! E para alguém como eu que nasci em outro estado, nunca imaginei que uma rua poderia ser tão inclinada na minha vida.
Ao chegarmos na casa, com sua arquitetura tradicional barroca, Vovó Azaleia, como gostava de ser chamada, nos recebeu com uma mesa farta de quitutes mineiros, desde doce de leite até a sua famosa broa de fubá, e o cheiro do café fresquinho e moído na hora foi entrando pelas minhas narinas sem pedir licença. Eu particularmente detesto café, só tomo se ele vier acompanhado com um bom queijo mineiro, um costume típico que aprendi com meu padrasto que nasceu na cidade de Diamantina. Enfim, me servi de um chá que havia no velho bule de alumínio, admirando a caneca esmaltada em minha mão, lembrando-me de ter visto várias à venda, no Mercado Central de BH.
As horas se passaram, sexta à noite em Ouro Preto é o momento ideal para um passeio pelos botecos e bares, seria a primeira noite daquele final de semana de comemoração dos calouros. Porém eu ainda não estava animada, resolvi ficar em casa enquanto Laila saiu com a intenção de rever alguns amigos. Amigos?! Eu aposto que ela queria ver o Marcos, seu namorado de infância, mas isso não vem ao caso. Na sala vendo TV e afagando seu gatinho, estava vovó Azaleia, quando eu entrei e reparei em um porta-retratos com uma foto bem velha e com traços de antiguidade. Eu perguntei quem eram aquelas pessoas na foto, e a vovó enrolou um pouquinho até que finalmente cedeu e contou.
— Eu não deveria te contar, todos da minha geração prometeram guardar segredo. Você promete guardar também? — Eu assenti com a cabeça e ela continuou com um tom nebuloso e medonho. — Foi há anos e mais anos, quando os ingleses vieram para Minas trazendo consigo seus vagões de ferro e trilhos ferroviários. Neste grupo da foto havia um homem rodeado de mistério, meus avós me contaram que ele não veio para cá só por negócios, ele tinha um filho que era fascinado com pássaros, principalmente águias, pobre garoto, tinha uma doença rara. Após a morte do pai, o garoto morou sozinho em um casebre perto da gruta de águas claras, que fica perto desta cachoeira, mas nunca ouvimos mais nada sobre ele. O guia da gruta diz que ao entrar nela as pessoas conseguem ouvir o som dos pássaros vindo do lado de fora…
Eu não tinha prestado muita atenção na história, e devo ter dormido na metade…
Na manhã seguinte após o café, eu decidi caminhar um pouco, Laila, como havia chegado tarde, só iria acordar depois do almoço. Como era minha primeira vez em Ouro Preto resolvi visitar os pontos turísticos. Após conseguir me deslocar por entre um grupo de estudantes festeiros fantasiados de hobbits, consegui chegar na famosa feirinha de artesanatos. Foram alguns minutos admirando cada barraquinha até comprar uma pulseira com pequenas pedras ametista.
Assim que enviei uma mensagem para Laila, decidi fazer uma visita a tal gruta, que parecia mais uma caverna, um ambiente frio e úmido, tudo o que eu mais “gosto”! Só que não! Na entrada havia um guia contando o início da história do local. Era um senhor de idade, de voz rouca e pouco baixa, ele contou exatamente com as mesmas palavras da vovó. Eu e mais cinco pessoas entramos atrás do senhor, observei rapidamente que as duas meninas estavam fantasiadas também, só não consegui identificar se o que vestiam era mesmo uma fantasia para a ocasião ou um cosplay de anime dos anos 90. E sinceramente, não estava a fim de ouvir mais histórias, então me afastei do grupo, entrando em um corredor estreito e escorregadio, a única luz que tinha era do meu celular que por azar ficou com a bateria fraca de repente. Em um certo momento comecei a ouvir vozes e barulhos, pensei que era o grupo e tentei correr para alcançá-los.
Ironia…
Eu acabei me infiltrando ainda mais gruta adentro, me perdendo completamente. Para piorar, pisei em falso e caí deslizando barro abaixo, consequentemente, bati a cabeça. Quando consegui abrir meus olhos, minha visão ainda turva e embaçada me permitiu enxergar dois homens perto de mim, os senti mexendo nos meus bolsos, contudo, nesta mesma hora apareceu outro homem. Os vultos foram claros, eu acho, uma pessoa estava batendo em duas, ou será que eram duas batendo em uma? Não me recordo muito do momento, só sei que me levantei tentando segurar nas paredes e caí de novo em um desmaio espontâneo.
Eu não sabia onde estava quando acordei, mas pude sentir uma fogueira perto de mim me aquecendo, quando finalmente retomei meus sentidos, havia um rapaz, aparentava minha idade, me olhando encostado na parede que era de pedra. Ele sorriu rapidamente e andou até mim para me entregar a caneca que estava em suas mãos. Chocolate quente! Tudo o que eu precisava naquele momento. Mesmo sem meus óculos, que não sabia onde estavam e com a visão meio turva, sorri em agradecimento.
— Acho melhor descansar — disse ele, quase me ordenando.
As horas se passaram ao longo do meu cochilo, logo fui acordando ao som de gritos de dor, ranger de dentes e tremores no chão como se dois ursos estivessem brigando ali dentro. Em plena cautela me levantei daquele humilde aconchego de cobertores e comecei a andar em direção aos gritos. Ele estava perto de um laguinho ajoelhado em sua borda, gritando de dor. A princípio não entendi o porquê. Eu me apavorei de início pelos seus gritos, voltei para as cobertas tentando pegar minhas coisas e curiosamente encontrei meus óculos, assim que os coloquei, fui me afastando em silêncio para sair de lá. Eu escorreguei – de novo – e caí. Consequência: chamei a atenção dele. Quando ele me olhou, seus olhos estavam amarelos fazendo um formato avulsado como os de uma águia. Será que eu estava delirando agora? Depois de tantas quedas. Mesmo meus olhos fascinados com os dele, meu cérebro não quis impedir as minhas pernas de saírem de lá.
Nunca corri tanto na minha vida, foram corredores, pequenas escaladas e muito cansaço até que cheguei na entrada. Quando saí me deparei com total escuridão, deveria estar de madrugada, só a lua iluminava. O pior é que eu não tinha nem mesmo o meu celular, primeiro porque estava descarregado e segundo, mesmo que não estivesse, eu o deixei no conforto dos cobertores. Então, me lancei na mata fechada, andando e sendo observada por alguns animais.
Em um piscar de olhos começou uma ventania estranha me fazendo sentir um longo e pavoroso frio na espinha, fui assim olhando ao meu redor. Caminhando em silêncio total, um barulho surgiu do meu lado esquerdo, e, sem pensar duas vezes, disparei a correr. Até deveria ter olhado para frente, mas meus olhos insistiam em verificar se alguém me seguia. Foi neste momento que trombei em alguém, ou alguma coisa, que me fez cair – de novo.
Sussurrando, fui pedindo que não fosse o rapaz da caverna e uma mão se estendeu para me ajudar a levantar.
— Você está bem? — me perguntou o rapaz com aparência de jovem e algumas marcas no rosto, só foi uma pena não poder ver seus olhos que foram cobertos pela sombra das árvores.
Assenti com a cabeça. Após levantar tentei me limpar um pouco daquela terra que estava grudada na minha calça, ele me acompanhou o resto do caminho com algumas conversas rápidas. Chegando à cidade, por um descuido dele, um feixe de luz se refletiu em seus olhos e eu pude ver os mesmos olhos do rapaz da caverna, olhos de águia.
Poupando minha voz, pois ainda recuperava o fôlego, mesmo com um grito preso na garganta, tornei a correr ainda mais em direção à casa da vovó. Entrando, tranquei a porta e corri para o quarto, ao entrar, tranquei a porta e desabei no chão. Meu corpo estava exausto de tantos sustos e corridas não planejadas, o resto da minha noite foi em claro, encolhida na cama e olhando para o relógio, ouvindo de longe o barulho das festividades vindo da direção do centro comercial da cidade, estavam no ápice da festa com suas mais variadas e criativas fantasias.
Enfim chegou o domingo…
Laila entrou no quarto me perguntando onde eu estava, pois ela não tinha me visto na festa na noite anterior também. Notei que ainda vestia sua fantasia de Rainha de Copas, e curiosamente parecia agir meio estranha, como se segurasse o riso ou algo do tipo, principalmente quando eu disse a ela que tinha ido à gruta no dia anterior. Nós descemos as escadas, com ela dizendo que eu deveria voltar à gruta naquele dia, mas eu não queria reviver nenhuma experiência do dia anterior, mesmo que fosse pelo meu celular.
Quando chegamos na cozinha:
— , você foi à gruta, ontem? — perguntou vovó me servindo um chá, eu assenti com a cabeça e ela continuou: — Então, o que achou do passeio?
— Não tenho palavras para definir — murmurei a mim mesma em voz alta enquanto partia um pedaço de bolo.
— Disso eu não tenho dúvidas — disse uma voz grave vindo da porta.
Automaticamente eu levantei a faca, quase que jogo o pedaço de bolo no chão. Lá estava o tal rapaz da caverna.
— Calma, eu não sou assombração. Podemos conversar? — perguntou ele com seus olhos que no momento estavam normais, castanhos claros.
— O que é você? — perguntei com dificuldade, minha atenção estava totalmente nele, sem perceber a reação da vovó e de Laila.
Elas começaram a rir de imediato de mim.
Logo fiquei estática sem saber o que acontecia ali.
— Não ligue para elas. — Ele segurou o riso também. — Peço desculpas pelo que fizemos com você.
— O quê? — Agora é que não entendia mesmo.
— Bem-vinda à Universidade Federal de Ouro Preto, caloura! — disse Laila com empolgação jogando alguns papéis picados em mim. — Você acabou de participar do trote dos calouros. E este é o , meu irmão mais velho.
— O quê?! — Senti meu coração acelerar, um misto de raiva e choque, minhas mãos tremeram um pouco, e lacrimejei de leve. — Eu levei um susto imenso.
— Eles garantiram que não iria se machucar — disse a vovó.
— Até a senhora nesse esquema? Essa família é uma máfia? — Agora a indignação estava em mim. — Você não é mais minha amiga, Laila, não teve graça.
— Desculpa, amiga — ela veio até mim e me abraçou —, mas como sua veterana, tive que fazer isso.
— Meu coração, eu quase surtei, passei a noite em claro. — Bati forte em seu ombro. — Não se brinca com isso.
— Hum… Medrosa.
— Não sou nada. — Cruzei os braços. — Mas eu realmente me machuquei, nunca caí tanto em um dia só.
Minhas reclamações foram reais e plausíveis, arrancando mais risos e gargalhadas deles.
Se esse foi o trote de recepção, não queria ver o que rolaria ao longo da minha estadia naquela cidade para cursar biomedicina. Apesar de tudo, Laila me apresentou formalmente o seu irmão, inicialmente ele parecia ser um cara legal e divertido, mas por ora, manteria distância, estava mesmo ansiosa para o primeiro dia de aula.
“You can call me monster.”
– Monster / EXO
História: Em um piscar de olhos, todos devemos viver a nossa própria história. – by: Pâms.
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