O Amor Que Me Escolheu
– Você escolheu o lado errado, . – ouvi a voz do meu irmão soar em meio ao escuro.
Desfiz do pequeno sorriso que estava até então estampado em meus lábios. Virei levemente a cabeça em direção à porta, onde pelo canto do olho pude enxergar Tom com os braços cruzados, encostado no batente. Ele ainda estava com a roupa do trabalho. O paletó do conjunto completo que usava diariamente estava pendente em sua mão, liso, ainda que a posição caída indicasse que era uma peça de roupa amassada. Mas nada de Thomas era amassado ou fora do lugar. Era por isso que ele se formou em Direito. Era exatamente por isso que ele era um dos melhores promotores do país.
– Não sei do que você está falando. – sutilmente, empurrei a carta que tinha minha atenção para um monte de outras folhas de assuntos quaisquer.
Tom não soltou um muxoxo impaciente, nem outro incrédulo. Ele nunca foi homem de expressar suas opiniões através de onomatopéias. Ele gostava de fazer uso das palavras.
– Ele será sua perdição.
– Você não o conhece.
– Não, irmã. É porque o conheço que sei.
O vi acender a luz e seu perfil mostrar o corpo alto e esguio de quem gosta de praticar natação. Desde pequeno, Tom sempre mostrou preferência por permanecer dentro da água, do que qualquer outro esporte.
Se aproximou o suficiente para sentar na poltrona próxima à porta. Ele não gostava de se sentir invadindo a minha privacidade. Fazia isso de outras maneiras. Não alargou o nó da gravata; era o único homem que parecia estar confortável com o colarinho lhe enforcando.
– Ele é um criminoso.
– Essa é a sua opinião.
– Minha e da lei.
– A lei nem sempre é certa. – virei minha cadeira em sua direção. Meus olhos encontraram os seus e, como sempre, não encontraram brechas.
– É verdade. – sua voz saiu suave. – Mas ela é justa.
– Para você, tudo é em base da justiça. Não me parece justo que eu não possa frequentar a universidade que eu quero.
– Foi um desejo de nosso pai.
– Que eu nunca conheci, mesmo ele tendo falecido quando eu tinha doze anos.
– Ele era um homem ocupado.
– Parece um pré-requisito para ser considerado um . Ser ocupado. Achar-se sempre certo. Monopolizar a vida dos outros.
Thomas se tornou chefe da nossa família antes mesmo do caixão de nosso pai descer à terra. Nossa diferença de 12 anos nos fez sermos afastados, comparado a outros familiares. Nossa mãe, fragilizada com a morte de papai, nunca questionou qualquer decisão que Thomas tenha tomado desde então. Ela sempre se diz ser agradecida por tê-lo cuidando de nós duas.
– O que faríamos sem ele?
“Viveríamos”, era o que eu sempre pensava.
Não vejo meu irmão como um vilão. Nunca me faltara nada na vida. Nunca passei por dificuldades e sempre tive tudo o que quis. Até o final do colegial.
– Você irá para Princeton. – Thomas me falou no meu jantar de formatura do colégio. Um fúnebre jantar para nós três. – Era o desejo de papai.
Não respondi nada, por causa do olhar de mamãe. Ela não gostava que eu enfrentasse Thomas, pois ele tinha “outros problemas” para resolver, como ajudar nosso país a viver sobre uma justiça pura, sem corrupção.
Até que uma vez, a corrupção entrou em casa.
Eu estava na janela, observando o céu e imaginando como seria se eu tivesse coragem de derramar lágrimas de tristeza dos olhos de minha mãe e causar um tremor na voz de Thomas, indo contra seus desejos e seguindo minha própria vida. Os cachorros da segurança latiram de forma descontrolada, algo incomum. Assim que movi meus olhos do céu, para a terra, eu o vi.
Era como um anjo caído. Vestido de preto, olhando para cima. Para mim.
Senti que foram minutos, quando na verdade os seguranças falaram ter sido alguns segundos. Não demonstrei interesse durante o jantar do dia seguinte, quando mamãe perguntava de forma preocupada sobre a “invasão” da noite anterior.
– Foi um ladrão. Lidamos com ele. Está tudo resolvido.
Mas o tal ladrão voltou naquela noite. Ele, inclusive, foi muito mais ousado do que Thomas imaginaria, pois assim que apaguei as luzes do meu abajur, senti uma brisa que não deveria ter entrado, já que mantive as janelas fechadas por conta do clima frio.
O medo que me consumiu durou por menos de meio segundo.
Ele se agachou ao meu lado na cama e tocou em meu cabelo.
– Beleza rara.
– Que não lhe pertence.
Ele riu. Uma risada rouca, gostosa de se ouvir. Sensual como nunca havia me deparado antes.
Tentei enxergá-lo melhor, mas tudo o que consegui foi ver metade de seu perfil. Os cabelos charmosamente bagunçados, os olhos brilhantes e um rosto rústico, ao mesmo tempo que delicado. Nas definições de ‘homem’ que li nos livros, este era o que mais se aproximava do que eu tinha em mente. Incrível.
– Não me pertence… – ele murmurou. – Ainda.
– Vá embora.
– Não vim para ficar.
– Não leve nada daqui de dentro. São importantes para mim.
– Não levarei nada do que está pensando.
– Então levará o quê?
Seus olhos brilharam sob a luz da lua quando ele respondeu:
– Seu coração.
– O que você quer, Thomas? – pergunto cansada. – Que eu fique presa dentro do quarto enquanto você faz o que quiser? Não sou uma inválida, posso tomar minhas próprias decisões.
– Então por que nunca tomou?
Entrei em choque. Thomas nunca havia me enfrentado. Ele sempre se esquivava das minhas perguntas e rebeliões. Mamãe nunca ficava do meu lado, apesar de sempre tentar vir me explicar o lado do meu irmão.
– Se você quer mesmo ter sua própria vida, , então está na hora de tomar atitude. – se levantou da poltrona. – Não me culpe por estar presa aqui. Eu nunca disse que você não poderia sair e viver uma vida. Eu nunca a proibi de fazer o que queria. Foi você quem colocou essas barreiras, porque estou sendo contra o seu romancezinho com o ladrão. Se você quer ir, então vá. – passos pesados o trouxeram para perto de mim. Temi pela carta que ele havia me enviado, mas Thomas nem sequer deu atenção à minha mesa. Ao invés disso, abriu a janela logo à frente. – Vá.
– E se eu for.
– Não espere que eu tenha misericórdia de você, quando nos encontrarmos no tribunal.
– Mamãe…
– E por que você deveria se importar? Se for para querer conquistar os seus sonhos, , aprenda a lidar com o passado que terá de deixar para trás.
– Eu posso ter as duas coisas.
– Você pode tentar. – ele concordou. – Mas a vida dos outros não pertencem a você. Então não se ofenda se as coisas não forem da maneira que você quer.
Seus olhos permaneceram sobre os meus por alguns segundos, antes de ele sair, deixando a porta aberta.
Voltei meu olhar para a carta miseravelmente escondida. Era meu plano de fuga. O plano que ele fez para mim, se eu quisesse fugir.
“Não venha, se não tem certeza. Não venha, se acha que não conseguirá viver longe do seu mundo.
Mas se vier, eu lhe darei o mundo, . Se escolher a mim, minha vida pertencerá à sua.”
Apertei meus lábios. Cinco anos. Fazia cinco anos desde a noite em que nossos olhares se cruzaram pela primeira vez. Eu havia acabado de pedir às estrelas que realizassem meu desejo de ser uma mulher livre e independente, mesmo que me trouxesse obstáculos dolorosos e complicados. Passar por problemas era melhor do que viver como um robô.
Olhei para a noite limpa de nuvens, mas cheia de estrelas. Havia várias delas. Incontáveis como nunca haviam sido. Sempre tive tempo para contá-las. Agora, pelo jeito, não tenho mais.
Abri a gaveta de folhas nunca usadas e peguei uma caneta, onde escrevi as primeiras palavras:
“Querida mamãe,
Estou apaixonada por um criminoso.”
Naaat, adorei!
Comentário originalmente postado em 29 de Abril de 2019