Just In Time
1.
Eu podia ouvir o som das gotas caindo da torneira mal fechada há vários metros do meu quarto. Parecia alto o suficiente para manter meus olhos abertos, piscando a cada vez que a solução tocava o metal da pia. Já não era a primeira e nem a centésima vez que eu perdia o sono naquele mês. Frascos laranjas vazios de Neozine jaziam em meu criado mudo. havia dito que ele era mais forte do que qualquer outro remédio para dormir, apesar de estar relacionado a disturbios psicológicos. Eu poderia muito bem culpar um pouco de seu psicológico. Eram o que as pessoas faziam, afinal, culpavam seus sentimentos, culpavam o outro.
Mas eu sabia que a culpa era minha. Sempre fora.
Eu nunca fui a pessoa mais sociável e sorridente do mundo, ou alguém que poderia um dia conquistar alguma pessoa. Mas eu conquistei. Conquistei a garota mais adorável e linda que alguém irá conhecer na vida. Pode-se dizer que qualquer um sentiria o poder de seu sorriso assim que ele se abrisse. Seus olhos doces e sua voz aveludada, parece até que Ele a criou para trazer a paz. Pois paz era o que sentia quando ela estava por perto. Quando eu sabia que ela viria até mim. Dentre todas as míseras coisas boas que realizei em toda minha vida até agora, fazê-la sorrir ainda estava no topo. Soa clichê, mas isso é tudo o que tenho de clichê em minha vida.
Aprendi a sorrir quando deveria, aprendi a me entrosar nos lugares que nunca visitaria se não fosse por ela. Não posso dizer que aprendi tudo em vão. Este tudo está cuidadosamente guardado em uma caixa lá no fundo do meu coração. Junto com todos os bons momentos que passei com ela durante os quatro anos que permanecemos juntos. Junto com suas palavras, seus sorrisos, seu amor. Meu amor. Tentei ser o que eu não seria nunca. E o que eu aprendi foi que na verdade, eu sempre fora um fracassado. Aquele momento fora apenas uma felicidade passageira que Ele enviou para que eu não reclamasse de uma vida injusta.
Mas quem sou eu para julgar minha própria vida? Dizem que só se pode julgar quando é conhecido do assunto. Mal me conheço.
O teto descascando parecia como um quebra-cabeças já montado. Eu já havia decorado cada rachadura e manchas que ali jaziam. Sabia onde ocorria os vazamentos, por onde as formigas faziam seu caminho no verão. Sabia a hora que o caminhão de lixo passava de madrugada e a hora que o jornal era jogado em minha porta pelo garoto com sua motocicleta.
Todas as noites me recordava da maneira que ela terminou tudo. Da maneira digna de dizer que fora realmente ela quem terminara comigo.
Fora há quatro meses e quatorze dias atrás…
– Podemos conversar? – ouvira sua voz ansiosa atrás de mim. Estava jogado em nosso sofá. Dividíamos o apartamento fazia mais de um ano e meio, podíamos chamar aquele lugar de lar. Lembro-me de ter estranhado aquele tom de voz ser usado para com minha pessoa. Rapidamente abaixei o volume da televisão e olhei para trás. Eu sabia que havia algo errado desde o momento em que a vi ali encolhida, seus dedos brincando ou guerreando com o outro. Me endireitei lhe dando toda minha atenção, o que a fez hesitar.
Milhares de coisas passavam por minha mente. Milhares de erros provavelmente cometidos, mas nenhum tão grave a ponto dela usar aquele tom comigo.
- Eu… – meus globos oculares se mexeram, mostrando que eu estava de volta em órbita. Eu não conhecia aqueles movimentos, aquelas posições dela. Durante todos os quatro anos que convivemos juntos eu sabia, sabia de tudo dela. Todos os seus sorrisos e as ocasiões que ela o usava. Os verdadeiros, os falsos. Eu havia estudado seu corpo e movimentos. Mas pela primeira vez eu a vira encolhida daquele jeito, como se tivesse medo de mim. Como se tivesse medo que eu fizesse algum mal à ela.
Mal à ela. Eu faria tudo, menos isso. E não estou sendo metafórico.
- O que você faria se… encontrasse alguém… – ela dizia num impasse. Sua hesitação atrapalhava seu raciocínio, e sem pensar, ela havia me contado que conhecera uma outra pessoa. Um outro homem. Alguém com um futuro promissor, talvez não tanto quanto o meu, afinal, eu já estou com uma carreira feita. Mas eu sabia, sabia pelos olhos dela, que ele era melhor que eu. Ele era mais que eu. Era o que ela merecia.
Me limitei a ficar calado. Eu não era e continuo não sendo o tipo de pessoa que não quer ouvir a verdade por ela ser dolorida. Eu queria ouvir para voltar à minha realidade.
Ouvi cada palavra, cada letra de que formaram a frase que eu não me esqueço até o dia de hoje. A frase que descrevia aquele que a conquistou. Que a tirou de mim. Que a está fazendo feliz. Ouvi ela dizer que queria tentar. E em nenhum momento ela disse que me amava. E continuei esperando pela frase que nunca veio.
Abro meus olhos ao perceber que os mantinha fechados. Já estava claro. A luz sendo ofuscada pelas cortinas brancas que adorava. Aquelas que mesmo com uma fraca brisa, dançava como se fosse um vendaval. Que era transparente para não deixar o quarto na escuridão. O quarto nunca estaria na escuridão, pois lá havia uma lâmpada e energia para ligá-la e desligá-la. A única coisa realmente escura ali era eu. Minha energia fora passada para uma outra casa. Uma casa que na verdade, já omitia luz própria.
Sento-me e passo as mãos pelo rosto. Espero meus olhos se acostumarem com a claridade e faço minha higiene matinal. Tinha o dia livre. A semana, para dizer a verdade. O temporal no sul do país nos fez voltar para casa e aproveitar o período de shows cancelados. Era o quarto dia e nada demais acontecera.
- Oh you, oh you left just in time… – toco alguns acordes de Just In Time no violão. Qualquer um podia cantar aquela música. Afinal, ela foi criada para este fim. Era uma música para todos e qualquer um. Todos e qualquer um cantar.
Olho para nossa foto em minha cabeceira. dizia ser loucura eu ainda ter aquilo em meu quarto. Mas ele não sabia que aquilo era tudo o que me restara de um indício de que um dia eu senti tudo o que senti por ela e fui retribuído. Diversas vezes ele e com a ajuda de me diziam que eu tinha de sair daquela. Tinha que parar de me iludir achando que um dia ela iria voltar.
Mas ela voltaria. Porque se não fosse para ela voltar, ela não teria vindo pela primeira vez. Só há retorno algo que uma vez se fora. E apenas é caso perdido aquilo que é causado pela morte.
2.
O frio da primavera indicava que o inverno estava se aproximando e que em breve o cenário colorido das flores se resumiriam apenas no branco da neve. Eu odiava a neve. Fria e congelante. Ela amava. Criava diversas maneiras de nos divertir no meio de todo aquele gelo.
Eu afinava o instrumento calado, isolado de todos. Como sempre fora. disse que havia desacostumado ao meu humor daquela maneira. Disse que o meu problema era que eu tentara demais. Ele a culpava sempre. Achava que ela fora injusta e falsa. Não admitia o que ela fizera. Eu sempre o ouvia calado. Não discordava, tampouco concordava.
- Que tal uma cerveja? – sugere assim que terminamos de colocar nossos casacos e esbaforar as palmas das mãos para esquentá-las.
- Com batatas? – era fissurado em batatas.
- E espumantes? – gostava da palavra ‘espumantes’, por mais que a bebida estivesse categorizada como espumante, ele diria apenas pelo prazer da pronúncia.
- Por mim tudo bem. – concordo arrumando a gola do casaco para tentar tampar minhas orelhas congeladas.
O caminho até o bar não era muito claro e nem muito curto. Minhas pernas chegaram a doer por um tempo devido ao esforço mais o vento gelado. O clima quente do bar tocou minha pele logo que entrei, sendo o último. Dei uma olhada no local apenas pelo costume e segui até onde os três já estavam acomodados e mantendo um papo agradável. Me manti calado, exceto quando me incluiam na conversa com perguntas e pedidos de opiniões. Tudo voltara como era antes de conhecê-la. Nenhuma palavra pronunciada por mim era feita por vontade própria. Meus olhos corriam sempre pelo local.
- Você a está procurando de novo. – comenta em um determinado momento. Ao olhar para os três, vi seus olhos em minha direção e pude então perceber que estavam se dirigindo à mim.
- Não, não estou.
- Sim, está. – confirma o que dissera.
- Quando acha que irá esquecê-la? – era o único que demonstrava algum tipo de preocupação com meus sentimentos, mesmo que eu tivesse deixado claro que eu estava perfeitamente bem com a situação.
Levanto os ombros:
- Já a esqueci.
- Ah, cai na real, ! – diz perdendo sua paciência. – Pare de se iludir! Ela não é para você.
- Ninguém é para mim. E eu não sou para ninguém.
- Todos sabemos que isso não é verdade! – se exalta. – Só porque um dia o seu coração decidiu amolecer para alguém, não quer dizer que não poderá acontecer novamente. É só você querer!
- Eu não quis que meu coração amolecesse por ela, por que iria querer que isso acontecesse novamente?
Eles não tinham uma resposta para essa, por mais que eu ansiasse por uma.
- Vamos parar de falar dela. – finaliza o assunto. – E você, tente ser mais agradável. – aponta para mim.
Eu nunca fui agradável. Não sei porque seria agora.
Turnês repletas de fãs era sempre agitado e divertido. Eu sou como qualquer outro artista que toca numa banda. Dou autógrafos, agradeço, tiro fotos, converso e às vezes pego o número do celular – números que nunca ligo por perdê-los. O tempo passa rápido quando estamos viajando. Conhecendo e reconhecendo lugares. Conhecendo e reconhecendo pessoas. Mas tudo isso um dia acaba.
O fim da turnê chegou com o fim do ano e depois de algumas reuniões para decidir o que faríamos no ano que vinha por aí, nosso empresário Larry Mazer nos liberou, desejando um bom final de ano.
Me despedi dos três lhes desejando boas festas, já que eu dera a desculpa de voltar para casa até o início do próximo ano, para aproveitar o tempo que deixei passar com , com meus pais.
Todos nós sabíamos que eu iria ficar em casa assistindo às séries de televisão.
Ao sair do elevador do prédio onde eu morava, percebi que os vizinhos haviam finalmente trocado as luzes do corredor para algo mais decente. Luzes amarelas deveriam não ser mais produzidas. Girei a chave no fecho da maçaneta e ao abrir, pude sentir uma bola de pêlos pular em minha perna. Fiquei encarando Blink correr em círculos ao meu redor, como se a última vez que tivesse me visto fosse há muito tempo atrás.
E realmente fora.
Ter Blink ali significava que ela também estava. Joguei minha mochila no chão e passei meus olhos pelo local à procura dela. Não a encontrei. Agaixei para dar um pouco de carinho ao meu amigo, que lambuzou meu rosto com sua saliva.
- Ela está aí? – pergunto baixo e o ouço se encolher, balançando seu rabo rapidamente de um lado para o outro e suas orelhas ficarem caídas. Ele era um bom Terrier. Dou dois tapinhas no topo de sua cabeça e me levanto, fechando a porta e esquecendo-me de levar minha mala de carrinho comigo para o quarto como sempre tinha a mania de fazer quando chegava de uma viagem longa. Chegar, trancar a porta, caminhar com a mala de carrinho até o quarto, me jogar na cama. Era sequencial e inevitável. Não naquela noite.
Fui à cozinha e encontrei a embalagem da lâmpada do corredor. Então não foram os vizinhos. Eu devia ter desconfiado.
Segui até meu quarto e lá a encontrei. Adormecida no que um dia chamei de nossa cama.
Me aproximei e fechei a porta antes que Blink pudesse entrar e a acordar. Retirei minha jaqueta e a joguei em uma cadeira ainda caminhando até ela. Não poderia ser apenas ilusão, certo? Eu não estava louco. Aqueles remédios não causavam delírios, causavam? Toquei em seu rosto, retirando alguns fios de cabelo que estavam caídos de qualquer maneira. Ela era bem real.
Abri meu sorriso. O sorriso dela. Feito e treinado para ela.
Retirei meu tênis e, sem me preocupar se a roupa que eu usava era apropriada para dormir ou não, deitei em seu lado e a enlacei com meus braços, a puxando para mim. Senti o cheiro de seus cabelos que já estava me esquecendo e a pele que não me recordava mais como era.
Epílogo.
Eu sonhava que estranhava o fato de ter adormecido tão facilmente depois de tanto tempo com problemas de insônia. Ao me lembrar das visões de entrar no quarto e vê-la lá, meu consciente despertou, me fazendo rapidamente abrir os olhos desesperado por não ter sido tudo um sonho.
A primeira coisa que vi, foram seus olhos encarando os meus. Ficamos calados por um bom tempo. Ela não sorria. Eu conhecia aquela expressão, claro que conhecia. Estava sem graça. Nervosa.
Levantei minha mão para acariciar seu rosto e a vi fechar seus olhos, encostei nossas testas uma na outra e senti nossos narizes se roçarem.
- Senti sua falta… – murmurei e ela disse algo inaudível de volta. Provavelmente pedidos de desculpa.
Seus lábios grudaram nos meus e nossas línguas brincaram por um tempo. Toques inocentes, matando a saudade que fora nutrido por todos esses meses.
Eu estava pouco me importando pela razão dela ter voltado. Uma oportunidade dessas não acontecem duas vezes na vida.
Ela voltou bem na hora que eu precisava dela. Eu não sabia que precisava tanto assim, até que ela voltou para provar que uma vida com ela era muito mais próspera que uma vida sem ela. E que se dane tudo o que passamos. Ela fez errado, mas eu fiz pior. Eu a deixei ir sem reclamar.
E agora ela estava de volta. E na minha obrigação, tudo o que tenho de fazer é aceitá-la de volta com a mesma facilidade que a deixei ir.
Fim
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