Jinx
Prólogo
LIMBO • ANOS ANTES
Os pés da criatura se fincam duramente contra o gelo, mas como um condenado, o lago não o absorveu como fez com a garotinha.
Um cântico arcaico e fúnebre, um deboche pessoal daquela que não poderia alcança-lo ali, embora pudesse sentir o peso de seu olhar em suas costas, escapava por entre os dentes trincados, devido ao frio. Era uma maneira, igualmente, de fazer com que as almas condenadas o reconhecessem, soubessem que ele estava se aproximando, e por consequência, se encolhessem com medo, com respeito. Não era porque ele precisasse os fazer temer, mas havia algo no âmago da criatura que gostava do cheiro que o medo carregava. Sempre pungente. Sempre intoxicante, fazia com que suas veias pulsassem com o apreço, o prazer inerente do desespero que corroía as almas humanas.
Humanos…
A criatura para de andar em uma das bordas do lago congelado, onde um buraco se abria à sua frente e se desencontrava, espalhando-se pelo lago, movendo-se e sendo carregados pela água congelada em formatos de placas. O corpinho da garotinha estava flutuando agora, de barriga para baixo. Os cabelos se espalhavam ao redor de sua cabeça como uma auréola, cheios e volumosos — que ironia, um anjinho, bem em seu território. A pele da garotinha estava empalidecida, pequenas crostas de gelo já começavam a se formar ao seu redor, com uma tonalidade levemente arroxeada, enquanto as roupinhas, enxarcadas, estavam cobertos por incor e sangue, mas não lhe pertencia.
Por um longo momento, a criatura apenas inclinou sua cabeça para o lado e observou a invasora de seu território, pensativo. Como aquela garotinha havia ido parar ali e como diabos havia morrido. Ele podia senti-la ali, sua alma, deliciosamente vulnerável e a seu alcance. Tudo o que ele adorava encontrar, mas desta vez, seu interesse era um pouco maior.
O Limbo não recebia visitantes.
Não havia como entrar no Limbo se algo não tivesse acontecido antes, sem um verdadeiro motivo. E ela não deixava ninguém escapar, independentemente de onde ou quem fosse. E, no entanto, aqui estava: a garotinha que havia escapado. Tanto da Morte, quanto de onde quer que ela viesse. Se é que tinha existido algum dia.
Ele podia sentir algo na menina pulsar, algo errático, puro e pungente.
Não era apenas pureza de uma alma que o atraía, era a matéria prima que esta alma poderia oferecer, algum poder ou vantagem que o fizesse ao menos encontrar novas possibilidades para além do Limbo. E ele podia sentir aquilo na menina. Ele podia sentir exatamente o que ele desejava encontrar nela. Ele podia sentir a porta que estava aberta graças a menina. Uma âncora, de certa forma, mas não para um universo, uma âncora pessoal para si mesmo.
A criatura então colocou-se de cócoras, apoiando os cotovelos sobre seus joelhos, e inclinando a cabeça para o lado, estreitando os olhos, analisando o pequeno corpinho flutuando pela água. As unhas longas e curvadas, afiadas como navalhas se estendem na direção da cabeça da garotinha, com um cuidado demasiado, apesar de sua personificação traiçoeira, de maneira cuidadosa e lenta, fincando-se dentro do pequeno crânio, em busca das memórias.
O vento uivou, carregando a neve ao seu redor, os gemidos dos condenados tornou-se mais arrastado, e, por uma breve fração de segundos, os olhos da criatura encontraram-se com os dela, do outro lado do lago, na margem, observando-o.
A Morte estava esperando-a. Estava procurando pela garotinha. O capuz e manto pesado, preto, que parecia consumir tudo ao seu redor como um buraco negro, os ossos da parte inferior de seu rosto, e as costas expostas evidenciavam a aparição física da entidade. A criatura inclinou a cabeça para o lado em um silencioso convite, mas ele sabia que ela não viria captura aquela menina. Não desta vez. Estava no território dele e sabia o que poderia acontecer caso tentasse ultrapassar os limites preestabelecidos desde os primórdios dos tempos.
Um minuto se passou, e então a entidade desapareceu. A criatura sabia que havia vencido, por ora.
•••
acordou com um gritinho do pesadelo que estava tendo.
A garotinha não esperou muito para fazer o que sempre fazia todas as vezes que tinha algum pesadelo: pegou seu ursinho de pelúcia, puído, faltando um olhinho e com o cheiro pungente de suor e até mesmo pasta de dente, abraçando-o com força e então disparou na direção do quarto do pai, ao fim do corredor. Os pezinhos descalços ecoaram ritmadamente, a respiraçãozinha irregular e acelerada, os olhinhos fixos na porta do quarto do pai, assustados demais para se voltarem para trás, temendo o que iria encontrar ali. Ela colocou-se na ponta do pé, saltando algumas vezes até conseguir abrir a porta do quarto do pai, e então correndo em direção a cama onde o pai estava dormindo.
Vidar acordou com um pequeno sobressalto com a porta, colocando-se sentado rapidamente enquanto os olhos buscavam ansiosamente pelo invasor de seu quarto. Soltou um suspiro pesado, em forma de alívio, seu rosto se suavizou ao reconhecer aqueles olhinhos arregalados e bracinhos gorduchos abraçados ao ursinho de pelúcia tremendo.
— Ei, princesa, o que foi? O que acontece? Por que está acordada a essa hora? — Vidar perguntou bem, bem gentilmente, batendo no colchão ao seu lado, em um aviso silencioso para que a menina se aproximasse dele ou subisse na cama, caso não quisesse ajuda.
Vidar a alçou do chão, com cuidado, colocando-a sentada em seu colo, enquanto verificava com um olhar breve na direção do relógio o horário, e apertava os lábios com força. As maravilhas que ter uma miniatura sua correndo pela casa trazia consigo. Ele suspirou pesado, ajeitando em seus braços, e apoiando seu queixo sobre o topo da cabeça dela, esfregando gentilmente as costinhas da menina, tentando acalmá-la e assegurá-la de que estava tudo bem, que ela estava segura. Um murmúrio suave, arcaico e fúnebre escapando de sua garganta, enquanto ele deixava-se recostar contra a cabeceira de sua cama, pensativo, observando algum ponto invisível na porta entreaberta de seu quarto.
— Você quer contar pro papai o que foi dessa vez?
— Monstros — sussurrou assustada, enterrando a cabeça no pescoço do pai e tentando abraçá-lo apertado, mas os bracinhos mal conseguiam atravessar seu peito. Vidar tentou não rir, imaginando que tipo de monstro a filha havia encontrado dessa vez, beijando a testa da menininha e então a balançando gentilmente de um lado para o outro em seus braços.
— Meu amor, não tem como monstros viverem aqui, lembra? O papai verificou toda a casa com você, e a gente se certificou que o ficasse de guarda do seu lado. — Vidar tentou assegurar a garotinha, mas o pequeno fungado foi o suficiente para informar ao homem que a menina estava prestes a começar a chorar.
Algo no peito de Vidar se contraiu, um pequeno aperto pela situação infantil e ao mesmo tempo compreensivo com a menina. O escuro não o assustava, na verdade, ele até gostava, mas a garotinha? Bem, ela tinha apenas 6 anos, qualquer coisa que visse na televisão que fosse muito alto ou tivesse dentes muito afiados, seria assustador. E mesmo que fossem apenas cinco da manhã, em um dia de sábado, quando ele estava de folga e poderia aproveitar para dormir até um pouco mais tarde, ele ainda assim não se irritou com a menina. Ela era sua responsabilidade, não o contrário. Vidar suspirou, apoiando a bochecha esquerda sobre o topo da cabeça da menina, abraçando-a com um pouco mais de força.
— Foi só um pesadelo, . E sabe qual é a vantagem de um pesadelo? A gente sempre vai acordar dele. Pode parecer assustador, mas basta você abrir seus olhos e tudo vai ter acabado. Nenhum pesadelo vai vir atrás de você, eu prometo, hm? Você confia no papai?
— Ela disse… — sussurrou apoiando a bochecha rechonchuda e rosadinha sobre o peito do pai, se encolhendo e segurando com mais força o ursinho de pelúcia puído. — Ela disse que eu não deveria estar aqui, que é um erro, e que eu iria pagar… eu não sei o que fiz, mas eu não queria deixar ninguém bravo…
Vidar tencionou a mandíbula, tentando não rir das palavras da garotinha.
É claro que ela não desistiria daquela…
— Ninguém está bravo com você, meu amor, eu prometo. Foi só um sonho, ok? — Vidar repetiu mais uma vez, desta, com uma voz mais doce, pegando o lençol grosso a sua esquerda, que ele normalmente acabava descartando durante a noite por sequer conseguir direito, mas insistir em ficar deitado, e então enrolou ao redor da garotinha, lançando um olhar divertido e ao mesmo tempo afetuoso em um aviso silencioso. — Ainda tá muito cedo para a senhora estar acorda, ouviu? Volta a dormir que mais tarde o papai promete que a gente vai fazer panquecas pro café da manhã.
— Com chocolate? — questionou , erguendo o rostinho cheio de esperança para encarar o mais velho com olhos brilhantes e vívidos. Vidar a encarou exasperado, mas o sorriso que escapava por seus lábios evidenciava que a irritação não era exatamente pela menina, mas pela comum tentativa que tinha de querer colocar chocolate em tudo.
— Vai dormir, vai, pirralha — murmurou Vidar fingindo-se de irritado, e algo em seu coração congelado se aqueceu com o risinho que a menina havia dado.
Ele não sabia por quanto tempo havia murmurado a música até que estivesse, mais uma vez, embalada pelo sono, agora, no entanto, em seus braços, mas eventualmente, ela havia conseguido voltar a dormir. Agarrava-se, todavia, a ele como se fosse uma boia em meio a um oceano à deriva, e Vidar se questionou se o inconsciente da menina estava rejeitando o lugar. Não, era impossível isso, mas ainda assim ele precisava ser cuidadoso.
Com o máximo de cuidado que o homem possuía, Vidar puxou a barra da blusa do pijama que usava para dormir, a fim de verificar as costinhas da criança. A pele estava saudável, mas a sua marca estava começando a se desfazer como tinta, desaparecendo da pele, e deixando para trás apenas a cicatriz, levemente mais esbranquiçada do que a pele da garotinha era realmente. Vidar estreitou os olhos, ainda entoando o cântico, contemplativo.
Aquilo iria ser mais difícil do que ele havia suposto…
Os olhos do homem cintilaram, por uma breve fração de segundos, a luz que entrava pela janela havia os tornado amarelados, erráticos, mas então, o momento se passou, e voltaram a ser aquele tom vibrante de intensos, como os da menina em seus braços. Vidar trincou os dentes consigo mesmo, estalando sua mão esquerda, apenas para alongar seus dedos antes de revelar com um gesto rápido e preciso, as longas unhas, afiadas e curvadas, escurecidas com o poder que aquele lugar, ligado a si, oferecia. Ele traçou novamente as runas na costinha da menina inconsciente, certificando-se de que, desta vez, não iriam desaparecer facilmente. Desta vez, não havia como a entidade alcançá-la ali. E então, ele finalizou a marca com sua assinatura.
Mephisto.
Capítulo 01
QUEENS • AGORA
— Peter¹— tio Ben havia feito uma pausa longa, parecendo estar escolhendo as palavras corretas para continuar aquela mensagem, e por um segundo, Peter não sentiu seu coração se partir, mas sim, surpresa. Parker fechou os olhos, com força, tentando lutar contra as próprias lágrimas que se acumulavam ao redor de seus olhos, sentindo com pesar, culpa. Uma culpa avassaladora e sufocante ao perceber que se não fosse pela mensagem de voz, tampouco ele conseguiria se lembrar de como seu tio havia soado algum dia. Quando ele havia esquecido da voz de seu tio?… — Eu sei que as coisas estão complicadas ultimamente. Eu sinto muito por isso. Eu entendo como se sente… desde que era um garotinho, você passou por tantas coisas mal resolvidas…¹ —— tio Ben pausou novamente e Peter engoliu em seco, obrigando-se a abrir os olhos e encarar uma Nova York viva, e vibrante. Os cantos dos lábios dele se curvam um pouco para baixo, em um pesar que espelhava o do próprio tio, embora evidenciasse culpa também. Tio Ben suspirou pesado, e então disse: — Bom, tá aqui o conselho de um velho: essas coisas direcionam a nossa vida, elas fazem de nós quem somos, e se alguém está destinado a grandeza, é você, filho. Você deve ao mundo os seus dons, só precisa descobrir como usá-los e saiba, onde quer que eles o levem, estaremos sempre aqui. Então volta para casa, Peter, você é meu herói, e eu te amo.¹
Peter observou a tela parcialmente quebrada de seu celular franzindo o cenho por baixo de sua máscara. De repente, usar uma máscara parecia sufocante demais, como se o tecido estivesse grudando em seu rosto como plástico, uma segunda pele insuportável que o fazia desejar querer arrastar-se para fora de seu próprio corpo. Ele suspirou pesado, deixando-se cair para trás no topo da George Washington Bridge em que estava sentado, enquanto seus olhos castanhos se desviavam do aparelho celular e do horizonte, para focar na água do rio Hudson abaixo. Peter pegou a rosa vermelha que havia comprado aquele dia — teoricamente, ele havia comprado um buquê, a maioria eram girassóis, rosas amarelas, e lilases, de acordo com a florista —, após ter convencido a atendente da floricultura a adicionar apenas uma rosa vermelha no buquê, e então, com um beijo de despedida, ele jogou a rosa em direção ao rio.
— Perdoe-me — ele sussurrou as palavras, como havia se tornado um ritual para ele desde que tudo havia acontecido. Todos os anos, naqueles últimos três, Peter tiraria aquele dia, não para ir ao cemitério, mesmo que fosse o aniversário dela, mas ao em vez disso, ele iria para a George Washington Bridge, mesmo que fosse por apenas vinte minutos e ele jogaria de onde estava uma rosa. Um pedido silencioso de perdão para Gwen.
E então, pelos próximos minutos, Peter repassaria em sua mente, de novo e de novo, o que poderia ter feito de diferente naquele dia. Se ele tivesse sido um pouco mais rápido, se seus sentidos aranha tivessem sido um pouco mais precisos, se ele tivesse se lembrado da regra da inércia, se ele tivesse, ao invés de se desesperar para a alcançar, ter considerado apenas criar uma rede abaixo dela. Se, se, se! E ele não conseguia perdoar-se por isso. Mesmo após três anos, a culpa pela morte de Gwen era — e de alguma forma, ele sabia, que sempre seria — uma ferida aberta, infeccionada, apodrecendo em seu peito.
Havia feito Peter questionar por que continuar naquele ramo. Por que continuar sendo um herói? Era como tentar enxugar gelo, como tentar impedir a água de fluir, mesmo que ele tentasse muito havia sempre mais trabalho, havia sempre um novo problema. Peter viu sua própria vida desaparecer à sua frente. Não havia espaço na vida do Homem-Aranha para Peter Parker, e por alguns anos, este havia sido seu consolo. Havia sido escapar.
Estar trabalhando, sendo o herói da vizinhança, prendendo criminosos e salvando pessoas era recompensador. Era uma excelente distração, e céus, ele agradecia por isso. Ele precisava manter sua mente ocupada, e por vezes conseguia. Mas então, ele iria retornar para seu apartamento minúsculo em um pequeno prédio comunitário no Queens, onde as paredes de drywall eram finas o suficiente para que ele escutasse os gritos e passinhos rápidos de crianças correndo por suas casas. Fino o suficiente para que ele não conseguisse dormir a noite com o arrastar de móveis do apartamento no andar superior, mesmo que estivesse usando abafadores de ruído. E então, ele iria retirar sua máscara de seu rosto e estaria só.
Completamente só.
Havia doído no começo. Muito. Ele havia encontrado inúmeras desculpas para retornar a casa de Tia May, e Tia May, é claro, mesmo que percebesse como Peter estava desesperado por companhia, nunca em sua vida havia recusado sua presença ali. Ela faria sua comida favorita, iria ligar o jornal e Peter dormiria no sofá, sem perceber que o som que o acalentava eram os passos cuidadosos de May. Ele faria aquilo tudo e então, de manhã, Peter diria que estaria ocupado, procurando emprego, e voltaria para seu apartamento. Ele pegaria sua mochila, verificaria tudo o que estava ali, e antes de ir para a universidade, Peter faria uma ronda pela cidade, em busca de pessoas precisando ser salvas, ou criminosos a serem detidos. Ele iria atrasar, e eventualmente, precisaria encontrar uma boa desculpa para deixar as aulas, e sair para resgatar alguma vítima, para impedir algum vilão.
Sua rotina não era mais nada do que um placebo.
E era justamente durante aquele dia que Peter Parker tinha mais consciência disso. No dia em que Gwen havia morrido. No dia que ele a havia deixado morrer.
Talvez algo dentro de Peter nunca tenha conseguido fazer as pazes com seus próprios erros de cálculo. Ele havia convencido a si mesmo que tornar-se o Homem-Aranha era uma maneira de conseguir corrigir e a desenredar-se da culpa que ele carregava pela morte do tio Ben, em tornar-se o herói que tio Ben acreditava que ele poderia se tornar. Mas isso não acontecia com Gwen. Não, Gwen era diferente. Quem a havia matado, querendo ou não, havia sido o Homem-Aranha, e Peter não conseguia aceitar isso. Ele deveria saber melhor! Deveria ter feito melhor!
Peter sabia que Gwen, muito provavelmente, jamais o culparia. Sabia que ela não o julgaria e não apontaria seu dedo em acusação para Parker. E, uma parte sádica de si mesmo, desejava silenciosamente que ela o fizesse —— talvez fosse ser mais fácil se ela o odiasse, se ela o desprezasse e jamais o perdoasse. Mas Peter sabia que Gwen não o culparia. E, todavia, Parker se culpava. Não a visitava no cemitério porque não se sentia digno, porque não conseguia. Havia ido uma vez, e observar o nome da ex-namorada cravado em cimento e mármore havia sido o suficiente para destruir o que havia restado de seu coração.
Era por isso que ele sempre vinha à ponte se despedir.
Um ping ecoa pelo aparelho celular meio quebrado de Parker evidenciando a notificação de uma mensagem do Mount Sinai Hospital. Peter franziu o cenho, tencionando a mandíbula com uma pequena ponta de tensão. Naqueles últimos meses, Parker havia desenvolvido uma considerável ansiedade para tudo o que era notificado em seu celular vindo daquele lugar. A ansiedade era infundada, ele sabia, não havia exatamente motivo para que ele temesse receber uma notificação como aquela daquele hospital. Peter engoliu em seco, sentindo uma ponta de alívio ao perceber que não era o Doutor avisando alguma piora no quadro de tia May — igualmente, não havia uma melhora em si —, mas sua expressão se desfez completamente em um cenho franzido quando ele observou a notificação do hospital com o preço dos novos exames que tia May teria que fazer. Peter fechou os olhos com força, estava salvando seu dinheiro já fazia algum tempo para o aluguel, mas considerando que o caso de tia May precisava de atenção, então, bem, que escolha ele…
— NÃO! — Um grito desesperado ecoa de algum lugar a frente da ponte, e Peter arregalou os olhos, inclinando-se para frente do topo do pilar da ponte em que ele estava sentado. Seu sentindo aranha estava pulsando ao fundo de sua cabeça, seus ouvidos ficam abafados, com um pequeno zumbido, enquanto seu corpo instintivamente se inclina para a esquerda, tentando localizar com o seu olhar onde o criminoso estava. Peter franziu o cenho, estreitando os olhos, enquanto pulava de um pilar para o outro, disparando sua teia e se lançando por entre os carros, lançando-se o mais alto que ele conseguia, em busca do criminoso.
E então ele o avista.
•••
— Ei! Ei! Ei! Fica calmo, amigão, fica calmo! — Peter praticamente repete em loop, erguendo suas mãos para cima, no segundo que o garoto de 16 anos apontou a arma na direção dela. Peter prendeu a respiração assentindo ansiosamente, respirando pesado, tentando encontrar uma maneira de convencer o garoto a colocar a arma no chão, uma maneira em que aquela situação não se tornasse algum tipo de violência gratuita. — Qual é? Coloca a arma no chão, amigão, por favor.
O garoto de 16 anos, com sinais visíveis de exaustão, e talvez até sede, franzindo o cenho encarou o Homem-Aranha com uma ponta de irritação, e até mesmo medo. Peter uniu as sobrancelhas coçando seu pescoço, enquanto suspirava e se sentava no parapeito do prédio, ao lado do garoto, quisesse ele ou não.
— Seus amigos forçaram a fazer isso? — Peter perguntou, bem, bem suavemente, franzindo o cenho enquanto voltava o rosto mascarado na direção do garoto. Mesmo que o adolescente não pudesse ver em seu rosto, havia compreensão em sua linguagem corporal, ao invés de julgamento. — Conversa comigo, amigão, o que aconteceu?
O garoto hesitou por um breve momento, e Peter temeu ter que responder com um ato mais agressivo do que deveria. Era só um adolescente, talvez perdido, talvez algo tivesse dado errado em sua vida e o feito recorrer, em meio ao desespero, pelo que estivesse à sua frente. Muitos criminosos não escolhiam o crime porque queriam, mas porque não tinham escolhas, talvez fosse esse o caso. Parker não via malícia no olhar do menino, via medo e uma postura defensiva. Alguém que havia se desesperado e ficado sem opções. Peter engoliu em seco, abaixando sua cabeça para encarar suas mãos enquanto movia suas pernas para frente e para trás — um gesto que vinha mais da ansiedade do que de sua distração — ajustando o lançador de teias de novo com um suspiro pesado.
Não estava ele também com uma conta vermelha para pagar e desesperado pelo dinheiro? Qual era a diferença entre o menino e Peter? E levando em consideração que o menino deveria estar na escola, preocupado com garotas e testes se aproximando, e nada mais. Parker não poderia deixar de pensar o quão era injusto, e se questionar, se a situação fosse diferente, se o desespero fosse maior, se tio Ben não tivesse sido o tio Ben, se tia May não tivesse o consolado após a morte de tio Ben, se ele não se culpasse pela morte de Gwen, mas sim quem havia causado o problema… o quão propenso a seguir por aquele caminho Peter estaria? O quão atraente seria ter controle em sua vida, mesmo que por uma fração de segundos?
— As coisas estão difíceis? — Peter questionou baixinho, tentando encontrar um tom em sua voz que não fosse soar como um potencial ataque ao garoto ou o fazer sentir vergonha, medindo cuidadosamente suas palavras enquanto voltava o rosto mascarado para o menino. Os olhos de sua máscara se ajustaram um pouco para focar nele, deixando-o que tomasse seu tempo, sem pressa.
O garoto apertou os lábios, abaixando a cabeça enquanto passava uma mão pelo couro cabeludo raspado.
— Eu só… — o menino começou a dizer, sua voz falhando no lugar. Peter franziu ainda mais o cenho percebendo que talvez o garoto fosse ainda mais novo do que ele havia achado que fosse. — Pô, os caras ficam pressionando, dizendo que eu não faço a minha parte, tá ligado? E meu pai tem essa arma guardada em casa, mas a gente mal tem comida pra comer! E tem essa galera com tanto dinheiro, sério, mano, eles não vão precisar, eu só quero comer um hamburguer, tá ligado? Só um…
Parker sentiu algo em seu peito doer com as palavras do menino, porque, de certa forma, Peter compreendia de onde elas vinham. Em algum momento de sua vida, ele também havia desejado muito ter algo que não poderia ter. Que não conseguiria comprar. Peter estendeu a mão enluvada para colocar no ombro do menino, em um apoio silencioso, enquanto por trás da máscara ele sorria. Os olhos da máscara se contraem um pouco, como se fosse evidenciar que ele estava sorrindo enquanto virava-se um pouco em sua direção.
— Podia ter falado para o seu pai, não?
— Ele não me escuta! Nunca! Só fica na frente da TV e tomando cerveja, cara.
Parker assentiu, compreendendo a situação. Uma mãe sobrecarregada com as responsabilidades primárias da casa, um pai ausente, mesmo que vivesse na mesma casa, e amigos com condutas questionáveis que estavam colocando pressão para que o garoto fizesse algo. Quando você acha que as coisas não podem ser piores…
— Vamos fazer um acordo, pode ser? — Peter ofereceu por fim, estendendo sua mão na direção do menino, para que ele lhe entregasse a arma, tentando passar o máximo de confiança que conseguia. — Vou conversar com a mulher que você roubou a carteira, e se tiver sorte, e espero que você tenha, ela perceberá que foi só um erro. Você promete para mim que vai abandonar esses seus amigos, e eu te compro o hamburguer, pode ser?
— Ainda vou ter fome amanhã — o adolescente disse com uma expressão de poucos amigos, e Parker deu de ombros, assentindo mais uma vez.
— Tudo bem. Então te trago um hamburguer amanhã também.
O adolescente hesitou, encarando o herói mascarado por um longo momento antes de deixar seus ombros caírem e entregar a arma para Parker. Peter sentiu uma sensação de orgulho por ver que o menino havia tomado a escolha certa, que aquilo não havia passado apenas de um erro, um lapso momentâneo de juízo causado pelo desespero. Peter lançou uma de suas teias na direção de um prédio, e então estendeu seu outro braço para que o menino se agarrasse ali.
•••
— Ele só precisa de uma chance, senhora Cho — Parker tentou convencer a mulher da loja de conveniência, com os olhos escuros, e expressão severa que ficava sentada atrás do balcão, comendo algumas nozes enquanto lia os jornais como se fosse um passatempo. — Por favor.
Duas semanas atrás, Parker havia conseguido impedir que um assalto acontecesse na loja de senhora Cho. Havia capturado os criminosos e recuperado o dinheiro roubado. Agora, Peter tinha a esperança de que a dona do lugar, que havia parecido tão agradecida pudesse lhe retornar o favor ao contratar Mike, o adolescente que Peter estava tentando ajudar. Peter sabia que não era o correto, ele não poderia usar o fator de ter salvo a loja de Senhora Cho para cobrar favores, mas igualmente, a ideia de deixar o menino vagando pelas ruas sem ao menos tentar ajuda-lo, parecia errado. Ele tinha outras pessoas para salvar, Nova York não dormia, mas naquele momento, havia algo dentro de si que estava clamando para que conseguisse salvar pelo menos alguém.
— Aish — a senhora soltou um estalo em sua língua, e Peter soltou um suspiro aliviado, sorrindo. Isso! Isso aí! — Ele pode começar na terça, mas é melhor que não se atrase! — Cedeu a senhora, e Peter, no auge de sua empolgação, tomou a cabeça da mulher e beijou-lhe a testa em agradecimento. Ele se arrependeu completamente do que havia feito quase um segundo depois, e implorou por desculpas enquanto recebia um ataque de golpes com jornal dobrado, mas ele estava feliz.
— Oi, kid, chega mais! — Peter gesticulou para que Mike se aproximasse, observando o menino se apreçar em limpar a boca suja de ketchup enquanto terminava de engolir seu segundo hamburguer. O Homem-Aranha repousou as duas mãos nos ombros do menino, assentindo animadamente enquanto tentava parecer o mais firme e apoiador possível. Não queria deixar o menino sem amparo, mas igualmente não estava disposto a perder Mike para o mundo do crime. Não se tivesse chance. — Você começa na terça-feira, ouviu? É meio período, então não vai ganhar muito, mas já vai ser o suficiente para conseguir o básico. Eu também conheço um ótimo advogado que pode te ajudar com o seu pai, caso a sua mãe queira, a senhora Cho vai te entregar o cartão dele, então, conversa com ela, tire notas boas, e eu vou te ver de novo, vivendo sua melhor vida, tá bom? — Parker chacoalhou um pouco os ombros de Mike, tentando conter um riso baixo, animado pelo garoto, e esperando ter a dupla confirmação que o adolescente havia entendido suas palavras.
Quando um brilho esperançoso surgiu nos olhos do menino, Peter soltou os ombros dele, sorridente mesmo por trás da máscara, se preparando para ir embora. Para o próximo trabalho.
— E se aqueles seus amigos te derem problema, avisa que você é amigo do Homem-Aranha, que eu resolvo! — Peter gritou para Mike, que pulou no lugar acenando em sua direção quando Parker se lançou novamente na noite, disparando outra teia e alçando-se no ar.
Um trabalho cumprido. Bom. Muito bom!
Peter se lançou mais e mais alto, buscando por mais problemas ao redor do Queens e Brooklyn quando algo chamou a atenção dele. Parker se lançou no ar, girando para conseguir um pouco mais de altitude no segundo que os céus de Nova York se tornaram avermelhados, como um flash rápido, e, as nuvens se tornavam escuras, pesadas, com raios chicoteando os ventos girando ao redor até formar um círculo. Peter prendeu a respiração, lançando outra teia antes que pudesse cair, e se arremessando em direção a uma caixa d’água para assistir o evento.
Primeiro, Peter considerou se poderia ter sido Doutor Estranho. Talvez, até mesmo a Feiticeira Escarlate, embora ele não tivesse noticias há muito, muito tempo. Mas então tais pensamentos tomaram uma curva perigosa e confusa para outro lado quando de dentro do buraco, do… portal? Peter poderia chamar assim? Uma jovem desabou em queda livre. Desacordada. Como se fosse uma boneca de pano, sem apoio ou nada para a impedir a queda eminente. Ela estava em queda livre, girando no ar bruscamente em direção ao rio Hudson.
Gwen! A memória é vívida e dolorosa, e coloca o corpo de Peter em moção antes que ele sequer considere o que está fazendo. Ele só sabia que deveria alcança-la antes que ela desaparecesse engolida pelo rio a dentro. Ele precisava alcança-la antes que fosse tarde. Ele precisava chegar a ela antes que fosse tarde!
Não! Não! Não dessa vez! Não de novo!
Não!
1 Frase retirada diretamente do filme: O Incrível Homem-Aranha, com o Andrew Garfield.
Continua
NOTA DA AUTORA: originalmente, nas HQs, a Gwen é morta pelo Duende Verde após ele a arremessar de cima da ponte Washington, não de um relógio, não muda muita coisa dos filmes eu só quis adaptar aqui porque gosto da cena que o Peter deixa uma rosa para a Gwen lá.
Quero saber de todo o resto e o que rolou com a menina que morreu mas não morreu AHHAHA
Quero também ver mais do Bingus que mal apareceu, mas eu já tenho um apreço HAHAHAHAHAHA
A dibradora da morte aparece mesmo só no 2° capítulo, mas tadinha, ela é só uma casualidade, nem era para ela tá ali. KSKKSKSKKSS Bingus o filhotinho de dragão que não troca o sono por nada, nem diante da presença da Morte hehehe