Head In The Clouds
I need you around, got my head in the clouds
Come over
Prendi o cabelo num laço, um dos muitos da minha coleção. Os adornos de cetim e fita eram uma tentativa meio tola de manter contato com a minha garotinha interior, aquela que foi abandonada pelo pai e trazida para um mundo ao qual ela, claramente, não pertencia. Criar uma criança nascida nos Estados Unidos e fazê-la se sentir amada e acolhida quando ela é visivelmente diferente de todo mundo não é uma tarefa fácil, mas minha mãe e meu “paidrasto” conseguiram a façanha de fazer Seul, na Coreia do Sul, ser a minha casa. Apesar do bullying na escola, das crises de identidade na adolescência e de todos os problemas que vêm no pacote de uma garota distraída e insegura, minha mãe e DongHae se empenharam muito e me transformaram na jovem adulta que eu era: formada, independente e… feliz, eu acho?
Não me faltava nada, mas também não sobrava muito. Era bem verdade que eu conseguia, com meu salário de atendente de livraria, cobrir minhas despesas, fazer uma viagem ou outra e até comprar um perfume mais caro aqui e ali. Era bem verdade também que eu adorava morar no quarto que , minha melhor amiga e quase irmã mais velha, me cedeu no apartamento dela, e graças a essa ajuda eu tinha conseguido quitar um carro e juntar uma graninha para, logo mais, batalhar o cantinho só meu…
Mas também era verdade — e essa verdade já não era tão doce — que toda vez que eu ia a um café ou ao cinema havia um casal apaixonado esfregando na minha cara o que eu não tinha ainda. E por pura inveja e ciúme, eu desenvolvi uma certa preguiça aos rapazes que colocavam suas namoradas dentro de seus casacos quando o tempo esfriava. Às namoradas que deitavam a cabeça no peito de seus rapazes no metrô. E a todas essas cenas românticas que recheavam a maioria dos livros da Wang Bookstore, onde eu trabalhava há alguns anos. E para onde eu já estava atrasada.
— Stewart! — a voz de atravessou a porta do meu quarto.
— Eu sei! — respondi, pegando a bolsa e as chaves. — Eu me atrasei, mas eu já tô in-
— Antes fosse só isso, sua maluca. — ela agitou uma panela suja que só então eu percebi que ela segurava. — Você foi aquecer o leite e esqueceu ele lá! Parece que ordenharam uma vaca no nosso fogão!
Corri para a cena do crime, encontrando tudo branco e grudento. Virei para com as mãos no coração e os olhos cheios de lágrimas. Tinha isso também: além de terrivelmente desligada e aérea, eu chorava quando achava que iam brigar comigo. , que me conhecia melhor que ninguém, apenas suspirou pesado e soltou a frase que eu mais ouvia desde que me entendia por gente:
— Você tem a cabeça nas nuvens, . — ela me chamou pelo apelido coreano que me deu. — Vai que eu limpo tudo aqui. Mas você fica me devendo.
Assenti e tomei meu rumo para a charmosa Wang Bookstore, uma das mais famosas livrarias do centro. O dono tinha acabado de fazer uma reforma na cafeteria e uma ampliação no depósito, comprovando o crescimento do negócio e, graças a Deus, do meu salário. Era um trabalho simples, eu só tinha que catalogar os livros, ajudar os clientes a acharem seus títulos e fazer uma recomendação ou outra aos mais indecisos, no entanto, desde que o local começou a realizar encontros de fãs com a presença dos escritores, o movimento e as minhas atribuições aumentaram. Às vezes, sobrava para mim organizar a bagunça das prateleiras e até mesmo cobrir alguém no caixa. E era sempre o mesmo alguém, , um desafeto de longa data.
Não era bem o que eu tinha em mente quando me formei em Biblioteconomia, eu admito. O que eu tinha em mente era bem mais ousado e quase fantasioso. Todo mundo tem um sonho meio impossível quando entra na faculdade, certo? O meu era publicar um livro infantil. Estava terminado, graças ao cronograma que me fez seguir, eu só precisava revisar e procurar uma editora interessada. No entanto, toda vez que eu abria o manuscrito, eu achava pior que da última leitura. Quanto mais eu olhava, mais defeitos eu encontrava, então eu engavetei o projeto para não achar mais nada.
Infelizmente, trabalhar numa livraria não me ajudava a esquecer esse meu delírio literário. A cada remessa de livros infantojuvenis que eu recebia, uma pontada discreta no meu ego vinha junto: “podia ser você”. Mas como não era, eu só lamentava internamente minha falta de sangue e de coragem, afastava o pensamento do sonho e seguia pelos fundos da livraria para começar meu dia.
O mesmo dia, todos os dias.
Talvez eu estivesse me enganando ao achar que não me faltava nada. Ironicamente, encarando com a minha cabeça de vento a minha rotina estoica, eu me via fazendo a constatação insossa de que, bom, faltava vida na minha vida.
Suspirei, tirei o casaco e guardei minhas coisas no meu armário cheio de adesivos. Pus o avental preto por cima da roupa e agachei para amarrar o cadarço do All Star, mas como eu só sabia fazer uma coisa de cada vez, a porta do armário ficou aberta e quase me acertou a cabeça quando levantei, não fosse a intervenção sorridente e fofa do rapaz do almoxarifado.
— Cuidado, noona. — me estendeu a mão livre, enquanto a outra fechava a porta que por pouco não fez um galo na minha cabeça.
— É o meu segundo acidente do dia e ainda não são nem nove da manhã. — puxei ele pela mão e o cumprimentei com um beijo na bochecha. — Aliás, quase acidente, você me salvou. — beijei do outro lado, dessa vez em agradecimento.
— Os cartazes do evento do chegaram. — ele olhou para o chão timidamente, tocando o local beijado e mudando de assunto. — Posso começar a colocar?
— Por que você sempre me pede autorização antes de fazer alguma coisa?
— Porque foi o que me disseram quando eu cheguei aqui. — ele arriscou um olhar. — “Qualquer coisa, pergunte a noona.”
— Não sou sua noona.
— Você é sim. Você é mais velh-
— Shiu! — apertei o rosto dele até a boca fazer um bico. — Eu posso ter morado aqui a vida inteira, mas eu ainda sou estrangeira e ainda me ofende esse negócio de idade.
— Noona não é só pela idade, é pela proximidade também. Gosto da senhora, noona. — voltou a encarar o chão.
— Então não me chama de senhora. — comecei a caminhar e fui seguida. — Nem de noona. Nós somos amigos.
riu e apontou o balcão com o queixo, grande e marcado da barba feita recentemente, balançando a cabeça em negação logo em seguida. Bem atrás do caixa, o gerente, furioso, articulava algo ao telefone, enxugando a testa com um lenço.
— Nós vamos abrir em breve. — ele checou o relógio. — Esse é o tipo de coisa que eu preciso saber com antecedência, . — uma pausa impaciente. — Tá, tá. Eu coloco alguém no seu lugar.
— Já sabemos quem. — sussurrei para o meu amigo. — A princesa loira resolve faltar o trabalho e a aqui é quem se fod-
— ! — o gerente chamou antes que eu terminasse. O apelido, embora invenção de , não era exclusividade dela. — Preciso que você fique no caixa hoje, a …
— Não vem. De novo. — murmurei, mas fiz uma menção de concordância. — Eu posso cobri-la.
— Obrigado. — o gerente se curvou. — Agora todo mundo nos seus lugares, já tem gente lá fora esperando.
— O dia vai ser longo… — lamentei baixinho, espiando pelos vidros a discreta aglomeração do lado de fora da livraria.
— Vai dar tudo certo, . — fechou o punho para que eu desse um soquinho. — Se concentra no caixa e, quando o dia acabar, eu te levo pra matar um hambúrguer e falar mal da .
— Se a gente vai falar mal dela, talvez eu precise de dois. E batatas fritas e um milk-shake.
— De chocolate! Combinado! — ele falou enquanto se afastava e eu comecei a abrir o caixa.
A manhã se arrastou entre um cliente e outro e um sistema que não parava de travar. Perto do meio-dia, o entra e sai de gente abrandou um pouco e a Wang estava praticamente vazia, movimentação típica do horário. Comecei a pensar em enfrentar a fila para esquentar meu almoço e me peguei salivando. Não pela carne grelhada com macarrão e verduras refogadas na minha marmita, mas pelo pedaço enorme de homem que apareceu no meu campo de visão, analisando minuciosamente uma caixa de giz pastel no expositor ao meu lado.
A boca carnuda abria e fechava conforme ele lia as especificações do produto, que parecia maior do que realmente era nas mãos pequenas e desastradas: a caixa quase escorregou, e quase escorregou de novo quando ele decidiu colocá-la de volta no lugar. Ri para dentro, me identificando com a falta de jeito. Outro cabeça nas nuvens. Ou apenas um cara preso num corpo muito grande. Muito moreno, muito bem feito e muito cheiroso.
O cheiroso, claro, era uma dedução minha, e eu deixei minha mente voadora vagar e deduzir mais. Deduzi, por exemplo, que além do cheiro intoxicante, ele deveria ter a pele quente, naturalmente morna. E deduzi ainda (agora descendo das nuvens) que, a julgar pela marca dos pincéis e blocos de folhas para aquarela que ele escolheu, não era a primeira vez que ele comprava equipamento de desenho. Aqueles materiais eram profissionais e caros demais para amadores. Ele deveria ser pintor ou coisa parecida.
Foi no meio desse devaneio que o rapaz alto, enfiado numa camiseta branca que marcava o peito enorme a cada vez que ele se mexia, colocou cuidadosamente a cesta de compras no meu caixa, sorrindo grande, aceso e afiado. O canino escapando da boca quando ele me deu bom-dia me fez acreditar, por uma fração de segundo, que vampiros existiam. E que os finais felizes que eu vendia existiam também.
— Bom-dia. — respondi apesar da voz falhando. — Tem cadastro conosco, senhor?
— Sim. — ele balançou a cabeça feito um filhote e digitou os números no teclado que eu indiquei. Até as unhas dele eram perfeitas, sem sinal de cutícula.
— Bem vindo à Wang Bookstore, senhor . — conferi nome e sobrenome na minha tela.
— Só , por favor. — ele pediu e demorou os olhos em mim enquanto eu digitava os códigos de desconto com as mãos suando. — Você é nova aqui? Não lembro de ter visto você antes.
Minhas pernas amoleceram e meu rosto esquentou. Ele estava prestando atenção. Prestando atenção em mim. Eu não sabia o que fazer com a atenção de um cara tão bonito em mim.
— Nova aqui no caixa. — comecei, hipnotizada. — Estou substituindo uma… — me pausei. De jeito nenhum chamaria de minha “colega”. — Uma outra funcionária.
— Ainda bem. — ele deixou escapar e se arrependeu, mas meu sorriso involuntário foi um sinal verde para que ele prosseguisse. — Eu quis dizer, er… é que aquela outra moça é meio…
Folgada? Lambida? Enjoada? Parece uma vela apagada?
— Relapsa. — ele completou. Era um adjetivo sutil se comparado aos que eu e usávamos no nosso clube secreto “eu não suporto a ”, mas serviu para me arrancar outro sorriso.
desgrudou a camisa do peito, sacudindo-a, e conforme minha imaginação aguçada me sugeriu, o perfume gostoso que subiu com a manobra era um quê de indecifrável, um cheiro bom de alguma coisa que eu nunca tinha sentido na vida, tipo o tal cardamomo almiscarado que eu li uma vez num dos livros da . O homem parecia um sonho. Além de tudo, tinha um par de olhos bem pretos e uma pele da cor de açúcar mascavo me distraindo do empacotamento, que eu fiz questão de fazer absurdamente devagar só para apreciar aquela vista magnífica. Depois de guardar os papéis e as tintas nas sacolas, notei que um volume peculiar restava na cesta. Tomei em minhas mãos com alguma dúvida.
— Não é meu não, é pra minha namorada. — ele explicou rapidamente quando eu passei pelo leitor uma edição de colecionador de um livro da saga Crepúsculo.
Disfarcei um suspiro pesado. Existia, na maldita Seul dos casais perfeitos, uma namorada. Stephanie Meyer não me deu a sua bênção e a fanfic que eu criei com o gostoso misterioso da livraria acabou antes mesmo de começar.
— Ela vai adorar. — sorri conformada e profissionalmente. — Podemos fazer uma etiqueta especial para presente. Como ela se chama?
— Hã… — ele raspou a garganta e quebrou o contato visual pela primeira vez. — Bella.
— Como a Bella do livro? — ergui uma sobrancelha.
— S-sim.
Foi a confirmação mais suspeita que eu já tinha ouvido. Mas um homem lindo como aquele estar solteiro era mais suspeito ainda. Afinal de contas, por que ele mentiria sobre ter uma namorada?
🎨☁️
Porque ele não tinha.
Algumas semanas depois do episódio Crepúsculo, continuou frequentando a Wang Bookstore e fugindo do caixa de (nas poucas ocasiões em que ela aparecia para trabalhar) para conversar comigo. Ele decorou meus horários de intervalo e passou a aparecer todos os dias no café da livraria, onde começamos a trocar ideias sobre o trabalho dele como ilustrador, sobre música, sobre os rumos do universo Marvel, sobre o céu selvagem de Seul e sobre tudo e mais um pouco. E sobre como ele tinha inventado para si uma Bella, porque era uma explicação muito mais crível do que:
— Eu sou um marmanjo com quase dois metros de altura que gosta de ler romances água com açúcar, tá? — limpou o bigode de chocolate quente. — Acredita em mim, eu sei do que eu tô falando. O Edward só se afastou da Bella porque ele a amava!
— Pode dizer o que quiser, eu continuo sendo Team Jacob. — provoquei, dando uma mordida no meu sanduíche do intervalo.
agitou-se na cadeira, rindo e indignado ao mesmo tempo. Elencou ainda mais alguns motivos para justificar a escolha da protagonista e eu, em certo ponto, me obstinei em discordar dele apenas pelo prazer de vê-lo discursar atropelando a própria língua presa, falando tudo numa velocidade tão grande quanto o bico. Por fim, ele se deu por vencido quando a garçonete o interrompeu, trazendo meu suco de laranja e colocando-o sobre a mesa.
— Aqui, . Sem açúcar, como você pediu. — ela avisou e eu agradeci de boca cheia.
— Por que todo mundo te chama assim? — perguntou enquanto eu me desentalava com o suco.
— é meu apelido coreano, é mais fácil de pronunciar que meu nome. — dei mais um gole. — A pergunta é: por que só você não me chama assim?
— Eu me recuso. — ele cruzou os braços e o peitoral ficou ainda mais alto. — Um nome bonito feito o seu tem que ser dito da maneira que deve ser, .
Errei o canudo do copo. Toda vez que eu ouvia meu nome na voz de , uma combustão interna tomava conta de mim e bagunçava meus pensamentos. Não que meus pensamentos já não fossem, por si só, uma grande bagunça, mas desde que tinha entrado na minha vida, alguma coisa aqui dentro estava diferente. Um diferente bom. Como se tudo fosse desbotado e, de repente, ganhasse cor. Como se tudo estivesse meio parado e, de repente, ganhasse vida.
— ? — me chamou com um tom de terceira ou quarta vez.
— Hein? — acordei do transe. — Desculpa. Eu estava com a cabeça nas nuvens.
— Então desça, eu preciso de você por perto. — ele sorriu, segurando o canudo, e eu finalmente acertei a boca nele. — Eu estava perguntando sobre o seu livro. Você comentou outro dia que escreveu um.
— Ahn… Não é lá grande coisa. — dei de ombros. — O que você quer saber?
— Tudo. Sobre o que é?
— Um mágico atrapalhado que nunca acerta os truques. — sorri leve. — É uma homenagem ao meu pai. Quer dizer, não o meu pai biológico, esse eu nem conheço. Meu pai é meu padrasto.
— O que aconteceu? — segurou minhas mãos instintivamente. — Quer dizer, se estiver tudo bem por você falar sobre isso.
Estava. Com ele, estava tudo bem para falar sobre qualquer coisa.
— Meu pai biológico deixou minha mãe quando descobriu que ela estava grávida de mim. Ela nunca mais teve notícias dele, ainda bem. — percebi que fazia um carinho gostoso nos meus dedos enquanto eu falava, piscando devagarinho de tanta atenção investida. — Alguns meses depois que eu nasci, minha mãe conheceu o DongHae, eles se apaixonaram e se casaram logo em seguida.
Um “own” prolongado foi a resposta de , o romântico incurável. Os olhos dele brilharam quando eu falei em casamento e o modo como ele umedeceu os lábios logo em seguida me deu uma sede estranha. Eu poderia ter virado o suco de uma vez, mas se eu fizesse aquilo, ele teria que me soltar. E eu não queria que ele me soltasse.
— Bom, quando eu completei um ano, DongHae precisou voltar para a Coreia. — continuei, tentando não me perder no lábio que agora mordia sutilmente. — Mas ele não queria ir sem a minha mãe e sem mim, então, ele me assumiu e nos mudamos. Graças a ele, tem um nome de um pai no meu registro.
inclinou a cabeça, enternecido, me incentivando a continuar.
— Conforme eu fui crescendo, eu comecei a perceber que eu não parecia com as meninas da minha escola. Nem com a , nem com mais ninguém que eu conhecia, exceto pela minha mãe, é claro. Isso me deixava muito triste. — suspirei e apertou minha mão. — O Hae e minha mãe tentavam de tudo para me animar, mas nada funcionava. Até que um dia, ele chegou em casa com um kit de mágica e fez um show pra mim.
— E como foi? — o carinho desceu para os meus pulsos.
— Horrível. — soprei pelo nariz. — Ele se atrapalhou todo, derrubou a cartola, acertou a varinha no próprio olho… Então, finalmente, eu consegui rir. — um sorriso genuíno acompanhou a lembrança. — Eu ri tanto que esqueci de ficar triste. Foi quando eu entendi que não importava que o Hae não tivesse me gerado, ou que eu fosse diferente de todo mundo. O que importava era que eu tinha um pai para fazer mágica pra mim. Daí a motivação para o livro.
mostrou os caninos, fascinado, e deslizou gentilmente as minhas mãos pelo próprio rosto para deixar um beijo nelas.
— … — ele cantou meu nome. — Essa história é linda demais para ficar engavetada. Você precisa publicar seu livro. Pelo seu pai e, principalmente, por você.
— Você acha? — perguntei, mole pelo conjunto todo: a carícia, o incentivo e o meu nome musicado.
— Eu sei. — confirmou, demorando no “s”.
— Sabe como se você nem leu? — desdenhei.
— Não seja por isso, você vai me mandar uma cópia quando chegar em casa. — ele puxou o celular e começou a digitar uma mensagem.
— … — prolonguei com desânimo quando a mensagem chegou no meu celular. Era o endereço de e-mail dele.
— Por favor, . Eu tenho certeza que está incrível só porque veio de você.
Me senti derrotada pelos olhos faiscantes e concordei em deixar alguém além da ler alguma coisa que eu escrevi. Mais tarde, quando cheguei ao apartamento, liguei o computador e procurei o arquivo parado há meses, salvo numa pasta esquecida na minha área de trabalho. Um suspiro bem denso e dois cliques depois, lá estava eu, pela primeira vez em muito tempo, encarando o título na minha frente:
Magic Man, por Stewart.
🎨☁️
— Você tá de brincadeira comigo? — uma voz sibilada atravessou o telefone quando eu atendi.
— ? — tirei o aparelho do ouvido e a tela acendeu, confirmando o chamador. — São duas da manhã…
— , o seu livro é incrível! Você é incrível!
— Ah, você leu… — esfreguei os olhos e bocejei. Já era bem tarde quando eu terminei de revisar a história e encaminhei para , não esperava que ele fosse ler tão instantaneamente.
— Eu chorei com o final, sabia?
— Você chorou nos créditos de Amanhecer Parte 2, você não é parâmetro.
— Você vai publicar, não vai?
— Eu… Eu não sei. — meu coração pulou com a ideia e meu corpo despertou, me obrigando a sentar na cama. — O namorado da é escritor, eu posso conversar com ele e ver o que ele acha.
— Promete pra mim, ? Promete pra mim que vai pensar com carinho?
Pude ouvir a respiração de , ofegante, na espera. Era bonito o jeito como ele torcia por mim, genuíno, sincero. Eu era capaz de jurar que ele estava, lá da casa dele, com o mindinho erguido aguardando que eu selasse a promessa.
— Eu prometo. Agora vai dormir e me deixa dormir também. Eu tenho muito trabalho amanhã com esse evento do .
— E eu tenho uma fila imensa pra enfrentar se quiser falar com ele… — estalou a língua. — Eu sou tão fã desse cara, ! Queria tanto conhecê-lo!
— Não se preocupe. — sorri, lembrando que o famoso em questão era ninguém menos que o namorado da minha melhor amiga. — Eu dou um jeito de te colocar pra dentro.
No dia seguinte, tão logo o evento terminou, o depósito de estoque da Wang ficou apertado quando o maior par de peitos de toda Coreia entrou correndo: tinha praticamente madrugado na porta da livraria para conhecer seu autor favorito e era hilário como ele, com todo seu porte físico, destoava das pequenas e barulhentas fãs que buscavam o tão sonhado autógrafo.
— Ele assinou meu livro! — veio na minha direção, me apertando num abraço. — Olha, ! Ele fez dedicatória! — e abriu a contracapa com os dedos trêmulos.
— Que bom que você conseguiu falar com ele! — apertei a mão pequena e fofa demais em comparação ao resto do corpo enquanto ele dava pulinhos no lugar.
— Vou guardar junto com o autógrafo da Stephanie Meyer. — os dentes de vampiro do maior fã de Crepúsculo escaparam dos lábios carnudos.
A empolgação dele (a-do-rá-vel) se mostrava nos olhinhos cintilando e na respiração pesada perto demais do meu rosto. Às vezes, se esquecia da quantidade de espaço que ocupava e, não raro, eu me via amassada contra o peito dele. Não que eu achasse ruim, pelo contrário, tudo ali era agradável, desde o perfume até a temperatura morna da pele, mas eu não podia mais negar os fatos. Um homem daquele tamanho prestes a chorar com o simples fato de ter escrito o nome dele só podia significar uma coisa.
— Então você é um cara bonito, malhado… — apertei os bíceps dele, certa de que ele entenderia a referência. — Sua pele não tem poros visíveis e seu cabelo tá sempre hidratado. Eu sei o que você é.
— Então diga, . — entrou na minha brincadeira, imitando Edward Cullen e me puxando pela cintura. — Alto e claro.
— Gay.
— Quê? — ele piscou várias vezes, completamente aturdido.
— Gay, ué.
— De onde foi que você tirou isso? — ele franziu o cenho.
— De você? — perguntei mais do que afirmei. — Você é lindo, doce, gentil. Eu nunca te vi com mulher nenhuma, então deve haver um cara, certo?
— , eu não sou gay. — riu baixinho e prendeu o lábio inferior com os dentes. — É só que… Eu não quero só ter uma namorada. Eu quero sentir todas essas coisas que eu leio, entende? Eu quero alguém que faça eu me sentir…
— Vivo. — completei instintivamente.
— Isso.
Senti um formigamento por toda extensão do meu corpo. Uma sensação misturada de empolgação com esperança e, como era de costume para mim, algumas doses de insegurança. Que diferença fazia que ele fosse hétero, desimpedido e que eu gostasse dele? era areia demais para o meu caminhão.
Mas eu podia fazer duas viagens?
— Desculpa. — cobri o rosto, vexada. — Eu fiz um julgamento errado de você.
— Tá tudo bem. — ele afastou minhas mãos e levantou meu queixo. — Não é a primeira vez que pensam isso.
O canto mal iluminado do depósito fez nossas risadas ecoarem e nos demoramos ali, naquele olhar e se deixar olhar. me prensava contra as caixas empilhadas de livros de autoajuda, ainda segurando o seu livro autografado numa mão e a minha cintura com a outra. Havia algo que eu queria dizer, mais ainda, havia algo que eu queria fazer, mas uma rápida escaneada no ambiente nada romântico me lembrou que não era a hora, muito menos o lugar certo.
— Eu espero que você encontre alguém que te faça ganhar vida, . — foi o que eu consegui dizer depois de me afastar e voltar ao trabalho.
🎨☁️
Amanheci do mesmo jeito que adormeci: reprisando mentalmente a cena do depósito e criando um final alternativo para ela, um final em que eu me declarava e , magicamente, gostava de mim de volta. Entretanto, a única mágica que estava ao meu alcance era a que eu tinha escrito. Li o arquivo do Magic Man pela enésima vez, mas não vi mais os defeitos que sempre foram tão cruéis para mim. Tudo o que eu vi foi uma história pulsando, vibrando, pedindo para ser contada. Uma história que poderia confortar alguma criança meio deslocada por aí, meio cabeça nas nuvens… Uma história que, assim como eu, precisava ganhar vida.
Mordi a parte interna das bochechas, caminhei em círculos e ensaiei roer as unhas antes de tomar a decisão que eu adiava há meses. Por fim, fechei o notebook e fui resoluta até o quarto de .
— Unnie… — encostei na porta entreaberta. — Eu preciso de um favor. Um favor que envolve o seu namorado.
— Se for pra ele autografar mais alguma coisa daquele seu amigo eu mesma vou pedir uma ordem de restrição. — ela me apontou um lugar na cama.
— Não é isso. — aceitei o convite. — Eu finalmente decidi publicar o meu livro e eu queria que você entregasse o manuscrito ao . Pra ele mostrar pra agente dele.
— Eu já entreguei. — disparou com naturalidade.
— O quê? — agarrei uma das almofadas felpudas.
— Quando eu vi que você tinha voltado a mexer no arquivo, eu me adiantei. — ela espalmou as mãos para cima. — Ele vai levar para a editora hoje.
Meu estômago deu uma pirueta e o sangue começou a correr mais rápido, aumentando o ritmo da minha respiração. Depois de tanto tempo desperdiçado com medo e comodismo, eu, enfim, agia concretamente sobre o meu sonho adormecido. E aquele primeiro passo tão esperado era, em grande parte, culpa de , para quem eu mandei mensagem avisando da novidade. A resposta veio em áudios, figurinhas e um convite que parecia uma intimação:
🐶:
Vem aqui em casa assim que você sair da Wang!
Eu fiz uma coisa que você precisa ver.
Passei o resto do dia sendo corroída pela curiosidade e aturando se divertir às custas da minha aflição. À noite, me enfiei no meu melhor vestido casual e fui aproveitando os sinais vermelhos para arrumar meu laço preferido a caminho do apartamento de . Não fazia ideia do que ele queria me mostrar, mas queria estar bonita. E até que eu estava.
Subi depois de me anunciar ao porteiro do prédio em que ele morava, um edifício simpático e acolhedor (combinava com ele, afinal). Bati na porta e assim que ela destravou, fui puxada para dentro pelo filhote de Golden Retriever que ignorava o fato de ser bem mais forte do que eu.
— Eu tenho uma surpresa pra você. — ele vendou meus olhos com as mãos gordinhas, enquanto eu, atônita, tentava sem sucesso enxergar alguma coisa.
— Sério? Quase não deu pra perceber. — ironizei e girou meu corpo, apoiando as minhas costas contra o tronco dele.
Tinha muita coisa acontecendo, mas… o tronco parecia estar nu?
Afastei a suspeita e ele me forçou a caminhar, me dirigindo com cuidado e adentrando o apartamento. Segurei pelos antebraços, deslizando pelas veias grossas e aparentes conforme ele se esforçava para me manter no escuro, e um cheiro intenso se misturou ao dele. Parecia óleo, papel molhado e tinta.
— Pronta? — ele perguntou e eu assenti.
Quando as mãos dele descobriram meus olhos, me deparei com várias telas espalhadas pela sala. Os quadros alternavam em tamanho, em técnica e em cores, um mais lindo que o outro. era incrivelmente talentoso e seu amor e cuidado pela pintura eram perceptíveis em cada traço, em cada detalhe perfeitamente executado. Ele tinha um estilo orgânico e a aquarela dele era fluida, limpa e inconfundível. Comecei a passear pelos desenhos, cheios de coelhos encantados, cartas mágicas e flores saindo de uma cartola. Caminhei mais um pouco e reconheci num dos quadros um mágico baixinho e bigodudo que jogava pó dos desejos numa menininha de lacinho. Meus olhos encheram d’água quando eu entendi a sequência. Quando eu entendi, finalmente, qual era a surpresa de .
— Você ilustrou meu livro! O livro inteirinho! Está tudo aqui! — lancei num único fôlego e encarei o artista, incrédula. — , isso é incrível! Deve ter levado a noite toda!
— Não consegui dormir pensando em você. — ele sorriu.
coçou a nuca com o braço malhado e só então eu percebi que realmente não havia mais nada lhe cobrindo o peito além de um avental salpicado de tinta, a mesma que sujava um cantinho atrás da orelha e um pouco do pescoço dele. Ele apertou a calça de moletom, tentando caber em si, e engatou uma apresentação da sua obra.
— E aqui eu coloquei um degradê de verde porque você fala muito dessa cor no livro… Você gostou? — ele quis saber quando terminou de me mostrar tudo.
— Se eu gostei? — rebati, radiante de felicidade. — , isso é o coração do meu livro bem aqui! Batendo na nossa frente! Você fez a história…
— Ganhar vida. — ele completou, enfiando as mãos nos bolsos e mirando os próprios pés. — Mas você é quem fez tudo. Eu só desenhei.
Pulei nele para um abraço, apoiando meu queixo no ombro exposto e sendo esmagada pelo corpo febril. nos girou com facilidade e voltou a me puxar quando me pôs de volta no chão, me colocando na frente de mais uma tela, dessa vez em branco.
— Eu guardei uma pra gente. — a presa rasgou num sorriso pedinte.
— Mas… — encarei os pincéis e a paleta apoiados num pedestal perto da tela. — Eu não sei desenhar.
— Eu te ensino. — resolveu, apanhando um avental para mim. — Você vai adorar.
Era uma oferta irresistível, mas a quantidade de pele à mostra nele me deixou paralisada demais para falar qualquer coisa. Ignorando a minha falta de resposta, me vestiu o avental, prendendo-o primeiro na minha cintura num único e firme nó. Delicadamente, os dedos dele afastaram meu cabelo das minhas costas e eriçaram a pele por onde passaram, amarrando ali as pontas de cima do tecido. O cheiro inebriante dele se sobrepôs ao da tinta e a qualquer outra coisa que eu era capaz de sentir. Ainda atrás de mim, pegou minha destra e encaixou um pincel de cabo envernizado nela, me orientando ao pé do ouvido.
— Você segura assim, tá? — a mão dele cobriu a minha, flexionando-a e ajustando a posição, tão gentil no movimento quanto no tom. — Relaxe o pulso… Isso. — senti ele formar mais um sorriso, soprando na minha nuca. — Agora umedeça a ponta. — ele ordenou, indicando um pote de vidro com água.
Mergulhei o pincel no vidro com exagero, nervosa pela voz sussurrada, pelos músculos escapando do mísero avental dele e pela distância mínima entre nós. Quando o pincel escorregou dos meus dedos trêmulos e ficou completamente imerso, riu na curva do meu pescoço e me deteve com sutileza.
— Não precisa afogar o coitado, tá? — ele segurou a haste na minha mão e o braço livre também me enlaçou, me prendendo num abraço por trás enquanto ele tirava o excesso de água. — Agora escolha uma cor e esboce.
— Esboçar o quê? — levantei o rosto, incapaz de me mover com o corpo dele me esmagando.
— A primeira coisa que lhe vier à cabeça. — ele continuou sem recuar. — Deixe a tinta correr.
Analisei as muitas opções, cores que eu sequer sabia que existiam, e um azul sereno foi a minha escolha. Recolhi o pigmento com o pincel e tentei visualizar a coisa pronta antes de pintar, querendo me poupar de cometer uma atrocidade artística na frente do meu instrutor, um ilustrador habilíssimo. me observava pacientemente, acompanhando o meu tímido subir e descer na folha. A textura ajudava no deslize e ele tinha razão, eu estava adorando. Repeti o contorno algumas vezes e completei, pairando no meio da tela, uma nuvem azul bem cheia.
— Ficou lindo. — ele sorriu imenso e tomou também um pincel para si. — Agora vamos colorir esse céu juntos.
🎨☁️
A cama em que eu acordei cheirava a roupa limpa e tinha um travesseiro fofinho, mas não era a minha. Esfreguei os pés um no outro, sentindo as meias atritarem, e levantei de supetão, perdida num quarto que eu não conhecia. A inferência que meu cérebro fez foi assustadora, mas logo esclarecida quando removi o cobertor e vi que eu estava completamente vestida. A única coisa que eu dei por falta foi o meu laço, que estava numa cômoda ao lado da cama e não no meu cabelo. A fim de entender meu paradeiro, repassei os acontecimentos da noite anterior: e eu terminamos a tela, conversamos por horas, eu me entupi com o jantar que ele preparou (um japchae divino) e depois eu tomei uma dose de soju. Soju me deixava sonolenta, então eu encostei no sofá e fechei os olhos por cinco minutos. Ou bem mais que isso.
Eu caí no sono e aquele era o quarto dele, óbvio. Mas se eu dormi lá, onde ele dormiu?
Alguns passos furtivos pelo apartamento foram bastantes para que eu obtivesse uma resposta inusitada. Atrás do balcão americano, um pé balançava para fora de um colchão inflável e uma mãozinha canhota levantava no ar, espreguiçando um corpão descamisado.
— ? — me aproximei, seguindo o lençol espalhado meio no piso e meio no colchão. — Você dormiu na cozinha?!
— Ahn… Oi, . — ele bocejou, sentando-se. — É que não me cabia no sofá. E eu gosto desse cantinho aqui.
— Não acredito que você dormiu desconfortável assim por minha causa!
Ajoelhei na cama improvisada dele, arrumando o cabelo despenteado que fazia parecer que ele tinha uma plantinha no topo da cabeça. piscou lenta e repetidamente, esforçando-se para abrir os olhos, e enfim se deu conta de que estava sem a parte de cima do pijama, embolada perto da geladeira.
— Você dormiu bem? — ele perguntou no meio de outro bocejo.
— Divinamente. Mas por que você não me acordou, seu maluco? — afundei o dedo no peito nu. — Por que não me mandou embora?
— Porque eu não queria que você fosse. — ele falou depressa e cobriu-se com o lençol, esfregando o local da cutucada. — Quer dizer, você comeu demais, tomou uma dose, e ainda por cima começou a chover…
— Eu vou te fazer um café da manhã pra compensar esse inconveniente. — decidi.
— Você não é nenhum inconveniente, . — ele me deu o primeiro sorriso da manhã. — Mas eu aceito a oferta.
Minhas torradas de queijo branco com geleia de pimenta ficaram prontas em dez minutos (tempo que levou para tomar um banho e achar uma camisa) e eu montei a mesa com algumas porções de arroz e do kimchi que ele tinha na geladeira. Comi correndo, sem querer prolongar minha estadia nem abusar da hospitalidade do dono da casa que, ao contrário de mim, não parecia estar com pressa. As ilustrações do livro ainda estavam expostas nos cavaletes pela sala e eu dei uma última olhada naquelas peças maravilhosas antes de me despedir, notando um bloco de aquarela com desenhos que eu ainda não tinha visto.
— Essa sou eu? — perguntei, levantando uma das folhas para , que permanecia à mesa.
— Depende. — ele colocou um pedaço grande de alga na boca. — Você gostou?
— Claro que sim!
— Então é você.
— E se eu não tivesse gostado? — ri.
— Ainda seria você, mas aí eu ia ficar envergonhado. — ele respondeu com as bochechas cheias e um toque estridente de notificação veio da minha bolsa.
— Eu tenho que ir. — verifiquei na tela mais uma das milhares de mensagens de , digitando uma resposta rapidamente. — Mais cinco minutos e ela manda as forças armadas me buscarem. — balancei o celular com a foto do contato dela.
Deixei um beijo na testa de e voltei para casa, enfrentando um inquérito policial de assim que coloquei o pé para dentro:
— Você sabia onde eu estava, unnie… — argumentei, tentando amolecê-la. — Até porque você rastreia meu celular.
— Mas sabe o que eu não rastreio? — balançou o dedo no meio da minha cara. — Aquela sacola de músculos com quem você tá andando pra cima e pra baixo! O que tá rolando entre vocês, hein? — ela baixou o dedo e o tom, suavizando o semblante. — Você tá gostando dele?
Sim.
— Quê? Não. Quer dizer, um pouco. — fingi uma tosse. — Talvez.
— E ele sabe?
— Parece até que você não me conhece. — meneei a cabeça, derrotada.
— Conheço até demais e acho que você deveria contar pra ele. — ameaçou sorrir. — Aliás, aproveita e conta também que a agente literária leu seu livro e quer te ver para acertar a publicação.
— Nem fodend- — comecei e me censurou com um grito. — Tá falando sério? Ela gostou mesmo?
— Já ligou atrás de você e tudo. Falei que você estava livre hoje.
— Unnie! — agarrei minha melhor amiga. — Obrigada! Muito obrigada!
— De nada, sua pirralha. — ela resmungou, orgulhosa. — Agora se apronta! Você tem que publicar um livro!
Quase me arrependi de ter calçado um Converse para a reunião mais importante da minha vida quando vi a agente chique sustentada num salto agulha me esperando no saguão da editora. Por sorte, a morena de roupas escuras era mais receptiva do que aparentava e logo elogiou minha escolha:
— Conforto em primeiro lugar, gostei. — ela apertou minha mão e me indicou o assento. — Eu, se pudesse, só andava de coturno.
Era difícil imaginar uma agente literária tão fina num coturno, mas o fiz como exercício mental para me distrair do meu nervosismo. Ela me explicou os trâmites, acertamos os detalhes e decidimos que a próxima reunião demandava a presença do ilustrador, . E o simples mencionar do nome me deixava com as pernas bambas e a barriga borboleteando.
A perna parou de tremer algum tempo depois da reunião, quando eu entrei no meu carro e soquei a buzina, extravasando a euforia e a alegria que eu estava sentindo. Já as borboletas, resistentes e teimosas, aumentaram conforme o dia passou, batendo as asas sem parar no meu estômago até de madrugada. Virei de um lado para o outro na cama, briguei com o travesseiro e dei a luta por encerrada quando me levantei, vencida pelo turbilhão de ideias que fervilhavam na minha cabeça. Uma delas, tão insistente quanto as borboletas, empurrava as outras e era silenciada logo em seguida. Mas a ideia era dura, voltava mais forte, e não demorou muito a me convencer que aquilo martelando na minha mente já não era mais uma ideia, mas sim uma necessidade.
Coloquei um casaco por cima do pijama, calcei chinelos e apanhei as chaves do carro. A ideia me venceu.
Dirigi e estacionei perto da calçada sem me dar tempo de pensar muito, tomada de uma coragem insana que eu não sabia de onde tinha vindo, mas que ficou comigo até eu atravessar a rua fria. Até eu entrar no prédio e me anunciar pelo interfone. Até eu subir as escadas. Até eu bater na porta.
— ? — um sonolento e confuso me atendeu. — Tá tudo bem? Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu. Aconteceu sim.
amarrou o laço do robe, piscando os olhinhos cansados e vermelhos. Ele fez menção para que eu entrasse e eu entrei, mas o surto da coragem acabou e ficou do lado de fora.
— Eu… — balbuciei. — Eu esqueci meu laço aqui.
— Seu laço? — ele franziu o cenho. — São duas e quinze da manhã e você bateu na minha porta porque esqueceu o seu laço?
— Não. — respirei fundo. — Eu bati na sua porta porque eu tenho que te contar uma coisa.
— O que foi? — ele segurou minhas mãos. — Pode falar, eu tô aqui.
— … — respirei fundo e fechei os olhos. — Eu gosto de você. Eu gosto muito, muito mesmo de você. E eu estava morrendo de medo de te contar porque eu não sei se você se sente do mesmo jeito.
Um breve silêncio encheu a sala iluminada por uma solitária luz amarela, quente como as mãos que me seguravam. A revoada das borboletas foi mais violenta dessa vez, e eu teria saído voando junto se não fosse pelo lindo sorriso diante de mim, se abrindo e me prendendo.
— Você não sabe se eu me sinto do mesmo jeito? — sussurrou. — Tem certeza que você não sabe, ?
— Bom, eu achei que talvez você também gostasse de mim, mas aí eu comecei a suspeitar que você era gay, então você não era, eu fiquei super aliviada, mas aí depois eu-
usou o indicador para me silenciar e me trouxe perto o suficiente para eu aspirar o perfume que eu não sabia qual era. Não fazia ideia se era mesmo o tal cheiro de cardamomo almiscarado, eu só sabia que era cheiro de , e isso bastava. A boca rosada se abriu minimamente em antecipação, exalando um ar quente que atraiu a minha, indo ao encontro da boca dele como uma mariposa seduzida pela luz. Nossos lábios se apertaram macio, sem pressa, se mordendo e se testando. O beijo lento e interminável tinha um gosto agridoce de bala de canela, aquelas que ardem mais do que refrescam, e era ao mesmo tempo forte como embriaguez e ameno como adormecer. Viciante. Suave. Entorpecente.
— Eu te desenho o tempo todo porque eu não paro de pensar em você. — confessou raspando os lábios nos meus. — Eu tenho que te ver todo dia porque o dia em que eu não te vejo é… É todo em preto e branco, . É como uma cena que não valeu. — a esse ponto, o nariz dele já passeava livremente pelo meu rosto. — Você me faz ganhar cor, Stewart. Você me faz ganhar vida. Como você não sabia disso?
— Eu meio que tenho a cabeça nas nuvens… — ri na boca alheia.
— Então, por favor, desça. — ele pediu, manso. — Eu preciso de você por perto.
Fim
Nota da autora: Espero que esse peitudo com energia de filhotinho tenha sido uma boa leitura pra você! Um cheiro e até a próxima!
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