Fortuna & Mudanças
Vazio. Foi aquilo que sentiu quando foi jogada para fora do Caldeirão.
Ela não sabia o que tinha acontecido, só sabia que, mesmo depois de sair do artefato mágico, ela ainda podia se sentir nele, e parecia que todas as emoções, sentimentos e sensações haviam ficado dentro dele.
Feirenhaar era apenas uma casca, posta sentada diante de uma grande janela para tomar sol durante o dia, deitada e perfeitamente aquecida sob as cobertas durante a noite. Os grandes olhos castanhos haviam perdido o brilho e parecia que não havia mais nada ali para comandar aquela casca. Mas bem lá no fundo, em algum lugar daquele corpo – ou talvez ainda dentro do Caldeirão –, uma se contorcia para se libertar.
A desaparecida via a vida passar como num filme. Talvez ela estivesse morta apesar de não se sentir morta. Depois de algum tempo – e ninguém saberia dizer quanto –, se lembrou de quando adentrou a floresta dos feéricos pela primeira vez. Havia sido quando ainda era uma criança e havia se encantado pelos seres que ali habitavam, mas que não necessariamente faziam parte do grupo de feéricos que se pareciam com humanos…
Também se lembrou da sua última vez. E do encontro com Lucien, o charmoso, porém triste, grão-feérico que aceitou se tornar uma companhia durante aquela sua viagem de exploração. No começo ele parecia mal-humorado, mas conforme o tempo foi passando e o feérico foi se acostumando à companhia da humana, Lucien pareceu ficar mais à vontade na presença dela.
Foi em um dia qualquer que caiu no que os antigos feéricos chamavam de “armadilha para humanos”, tudo e qualquer coisa que pudesse dificultar a sobrevivência humana podia ser encontrada ali. não sabia o que havia acontecido durante o período em que os venenos trabalhavam em seu organismo, tentando evitar que ela continuasse viva, só se lembrava de quando sua consciência havia voltado e a sensação gelada de algo que ela não conseguia identificar, tomou conta de todo o seu ser.
Pelas memórias que passavam à sua frente, não havia passado mais do que alguns segundos desde que seu corpo havia sido colocado dentro do Caldeirão e depois devolvido, mas a impressão que a moça tivera era que havia passado horas ali. O conteúdo do Caldeirão foi se tornando espesso e cada vez mais escuro ao seu redor antes de começar a aquecer até parecer escaldante demais para aguentar. E então, o vazio.
Todas as vezes as memórias paravam ali e o vazio voltava, até que o ciclo recomeçasse. Demorou algum tempo até conseguir sair do loop e se agarrar às lembranças que a faziam sentir algo. Quando começou a ficar mais consciente de si mesma, teve a impressão de que parte do conteúdo do Caldeirão que havia ficado nela se desprendeu. A primeira emoção que sentiu foi a raiva. Raiva por não ser mais a mesma de antes, raiva por não ter podido escolher, raiva pelos feéricos mesquinhos que haviam colocado aquela armadilha para humanos na floresta feérica…
… E então foi a vez da tristeza. Ela teria alguma chance de ver sua família outra vez? Poderia Feirenhaar realizar seus sonhos mesmo que parte de seu ser tivesse mudado? Com aquela tristeza veio o medo e logo depois dele, a ansiedade que começou a construir todo o tipo de cenários terríveis sobre o futuro.
E então a raiva voltou novamente. Onde estava a alegria?
olhou ao redor do nada escuro e pegajoso que a envolvia. Viu um feixe de luz logo à sua frente, mas quando tentava esticar a mão para alcança-lo, o nada – de sua mente ou de parte do Caldeirão que havia se juntado a ela – se enrijecia a impedindo.
De certa forma, sentiu as emoções começarem a se misturar em um pequeno turbilhão em algum lugar dentro de si, um turbilhão que foi aumentando cada vez mais, até ser impossível segurar.
Feirenhaar nunca imaginou que uma explosão de sentimentos que usualmente eram tidos como negativos, pudesse dar origem a uma luz tão intensa e colorida como havia acontecido – no Caldeirão? Em sua mente? Na imaginação? – naquele instante. Aquela explosão fez todo o nada pegajoso desaparecer por completo, e então, finalmente ela pôde alcançar a alegria…
Quando abriu os olhos novamente, ela se encontrava sentada de frente para uma grande janela e ao olhar ao redor, percebeu que o lugar estava rodeado de prateleiras com livros. Ela não reconhecia o ambiente, mas de alguma forma ela sabia que não precisava temer. Poucos instantes depois de “despertar”, recebeu a visita do que provavelmente eram os donos de onde estivera hospedada todo aquele tempo.
Depois de ser questionada e explicar tudo o que podia ao grão-senhor e grã-senhora do lugar, ela foi deixada sozinha, mas não por muito tempo. Minutos depois da saída do casal, a nova audição aguçada de conseguiu captar um barulho ritmado e de certa forma familiar do outro lado da porta fechada. Ela também pôde sentir um cheiro que lhe trazia a sensação de aconchego e acolhimento.
Seu coração deu uma tropeçada quando finalmente conseguiu entender o que ou quem estava escondido atrás das grossas portas daquela biblioteca. As pernas de pareceram trabalhar sozinhas, mesmo ainda um pouco fracas, e logo ela se viu girando a maçaneta e abrindo a porta, eufórica. O sorriso ao ver Lucien Vanserra parado à sua frente foi inevitável.
Fim
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