Faísca de Força
As batidas na porta eram incessantes, assim como a indagação de meio mundo querendo saber se eu estava bem. A cada cinco minutos a voz de algum parente se fazia presente e eu apenas ignorava, como já vinha feito desde ontem. Não saí do meu quarto e nem tinha pretensão, eu precisava de um tempo para associar e desfazer o nó que minha cabeça insistia em produzir.
Há coisas que eu realmente não queria entender.
Virei meu corpo de lado, dando de cara com uma foto nossa. A paz e calmaria invadiu meu peito ao olhar minha namorada tão serena e encantadora, e eu, como sempre, com uma feição abobalhada de tanto admirá-la.
Aisha era, de longe, a garota mais inteligente e linda que eu já conheci, seu sorriso podia ser facilmente considerado uma obra de arte. Ela havia me dado essa porta retrato dizendo que aquela era melhor foto que tínhamos, e eu não podia negar. O jeito que Isha vinha toda manhosa deitar sua cabeça no meu peito e pedia para que eu cantarolasse qualquer música de sua banda favorita, provocava em mim uma sensação tão gostosa que eu quase cantava o CD inteiro só para vê-la feliz. E era assim que costumávamos levar nossas vidas, simples e com um toque de algum musical da Disney.
Eu me lembro bem desse dia da fotografia, ainda mais do impacto que ele está causando até hoje.
Era por volta de cinco e meia da manhã quando escutei as pedras sendo jogadas na minha janela. Levantei e abri, revelando ser Aisha com várias pedrinhas na mão e rindo bastante da minha expressão. Vesti meu casaco e desci pela escada que eu construí, já que quando mais novo eu gostava de sair escondido e não podia sair pela porta da frente. Fui recebido com um abraço bem apertado e inúmeros beijos pelo meu rosto, sendo retribuídos rapidamente. Entrelaçamos nossos dedos e deixei que ela me guiasse para o nosso esconderijo, que não ficava muito longe da minha moradia. Íamos sentindo a brisa fresca do amanhecer, o sol tímido escondido atrás das nuvens liberava pequenos raios para contar presença na vizinhança e Isha ia falando sobre a previsão do tempo que sua vó insistia em acompanhar todos os dias. Adentramos o depósito abandonado e subimos as escadas que dariam acesso ao nosso cantinho, e eu me aprontei a acender as velas e Aisha fechou as cortinas improvisadas. Desde que começamos a namorar, achamos esse lugar e decidimos reformar para que ficasse do jeitinho que queríamos e éramos. Nós tínhamos muitas coisas em comum, inclusive os problemas familiares que nos afetavam bastante. Esse depósito foi a nossa forma de conseguir escapar um pouco da realidade e esfriar a mente, podendo passar algumas horas curtindo o nosso amor sem nenhuma interrupção. Eu achei que ela tinha me trazido aqui para fugir da família, já que sua mãe e seu padrasto vinham discutindo bastante, e isso envolvia sua vó, que passava algumas semanas na sua casa, que ficava contra a própria filha. Seus parentes nunca foram os mais unidos, e duvido que tenha algo que os façam ficarem próximos novamente. Meus pais adoravam Aisha, se pudessem troca-la comigo para ser sua filha o fariam na primeira oportunidade. Eles não me odeiam, apenas temos inúmeras divergências que acabam em brigas constantes e em choros dos meus irmãos menores. Isha, por outro lado, queria gostar bastante dos seus sogros, mas não conseguia por conta de vários episódios presenciados de troca de farpas.
Sentei no enorme pufe lilás e fiquei observando minha namorada que estava com a cabeça para fora da janela, reparando no céu.
- Eu vou sentir falta disso. – sua voz era quase inaudível e dava para perceber que algo não estava certo.
- Como assim, meu bem? – endireitei minha postura e estiquei minha mão para Aisha vir pra perto.
- Eu fui no meu médico ontem, Trevor. Meu câncer voltou. E trouxe mais três amigos. E eu não quero mais fazer a quimioterapia porque vai ser pesado demais e isso só aumentaria dois meses do meu prazo. Eu não quero ser mais forte, Trev.
Eu a abracei bem forte e sussurrei que estava tudo bem. O silêncio era cortado pelo som das nossas respirações, e meu rosto sentia cada lágrima. Minha garganta queimava e indícios da ansiedade surgiam, mas tentei me controlar ao máximo por conta da Aisha. Ela me apertava contra si, com o rosto escondido no meu pescoço e seus pés levantados, por conta da nossa diferença de altura. Ao contrário de mim, não chorava, e eu sabia que isso era pior do que Isha derramar um rio de lágrimas. Aisha sempre sofreu sozinha, assim como era o jeito que preferia resolver as suas coisas. As poucas vezes que ela ficava quieta eram as mais preocupantes, porque são os piores acontecimentos que estavam a afetando terrivelmente. Eu a vi desse jeito duas vezes e pude ter a noção do quanto minha menina é forte por passar por todos os obstáculos e no final, continuar com aquele puta sorriso no rosto.
A verdade é que ela é mais forte do que qualquer pessoa possa imaginar, inclusive, mais do que a mesma acredita.
- Ei, está tudo bem, okay? Eu estou aqui e eu tenho a certeza de que você é a pessoa mais incrível que eu conheço. Está tudo certo em não querer ser mais forte, mas preciso te lembrar que isso é algo evidente em ti. – segurei seu rosto e acariciei suas bochechas – Não seja tão dura consigo, meu bem.
- A gente pode deitar um pouco? – assenti, ajeitando o pufe e pegando a nossa manta. Nos deitamos e a envolvi com meus braços, deixando-a o mais aquecida possível.
- Obrigada por tudo, Trev.
Beijei a sua testa e comecei a cantarola sua música favorita. Um pouco depois, percebi que ela havia adormecido e fiquei admirando o seu rosto tão sereno e a sua boca entreaberta, até dormindo conseguia ser um amor de pessoa. Dei um sorriso e fechei meus olhos, pegando no sono demoradamente.
E lá estava eu, lembrando mais uma vez desse dia com os olhos marejados. Independente da notícia, um filme passava pela minha cabeça dia pós dia, com vários momentos nossos. As batidas haviam finalmente cessado, e eu vi que já eram 14h15. Durante seus três meses, vivemos do melhor modo que podíamos. Transformamos aquele quarto de hospital em nosso cantinho, no mesmo estilo do depósito. Quando eu chegava lá com o violão, eu recebia um olhar tão brilhante que deixava meu corpo em êxtase. Não havia sensação melhor do que ver o meu potinho de felicidade toda animada porque iríamos cantar várias músicas dos filmes da Disney. Eu dormia toda noite com ela, indo para casa de manhã cedo para tomar banho e comer alguma coisa. Seus familiares iam visita-la praticamente todos os dias, e era triste pensar que precisou Aisha ficar doente para uni-los de uma vez por todas. Até suas tias que moravam nas cidades vizinhas vieram.
Nos seus últimos dias, Isha estava debilitada, mas ainda permanecia com seu sorriso manhoso. Ela dizia que não queria que as pessoas tivessem sua última imagem com ela tristonha e esperando a morte. Aisha queria que todos vissem o quão feliz e amada se sentia e grata por ter o apoio de todos. Eu nunca achei que seu ato era egoísta, minha menina só queria descansar e isso é um direito dela. É claro que eu queria que sua doença tivesse sumido para sempre e que ela ainda estivesse aqui, mas eu entendo a sua luta, e essa escolha foi uma das coisas mais fortes que já pude presenciar em toda a minha vida.
Eu tô apaixonada! Ela realmente teve que ser muito forte para tomar essa decisão. Amei, parabéns! <3
Comentário originalmente postado em 06 de Outubro de 2018
Obrigadaaaa! Fico feliz que tenha gostado! <3
Comentário originalmente postado em 16 de Outubro de 2018