Dust or gold?
Capítulo 01
A lua cheia iluminava o caminho feito de pedra, dando à minha visão a cena clara das crianças correndo no pequeno lago e jogando água umas nas outras. Não pude deixar de sorrir brevemente e soltar um risinho tímido, meu coração ficava calmo ao ver a pureza dessas almas em meio a tanta confusão que ocorria ultimamente, e, sendo sincera, eu não era paga o bastante para exercer mais de uma função. Entretanto, quando dizem que o coração apaixonado é solícito ao extremo, é um fato. E o motivo disso se encontrava a poucos passos de distância, provavelmente bebericando algum líquido enquanto amaldiçoava o nosso ancião. Apertei levemente as bandagens entre meus dedos e entrei na tenda, vendo-o do jeito que imaginei, porém sem falar mais nada ao me perceber no ambiente.
- Pode continuar com seus xingamentos, estou aqui unicamente para trocar os curativos. – Comecei a desfazer as faixas e observei que seus ombros relaxaram com o meu toque – É muito bom ter uma faz tudo, não? – Sussurrei divertidamente.
- Preciso lembrar quem é que quase se ajoelhou para ter mais trabalho, pois, de acordo com uma certa pessoa, não tinha nada de melhor para fazer quando chegou aqui? – Ele jogou sua cabeça para trás com uma expressão tranquila.
- Não sei do que você está falando – assobiei – Agora, ajeita essa postura para eu continuar o meu trabalho.
- Tudo bem, tudo bem! – levantou as mãos como estivesse se rendendo – Delilah, qual a diferença entre se tornar poeira ou ouro?
Ponderei sobre seu questionamento, mesmo sabendo que no final, não importava a resposta que eu desse, ele não revelaria o que está por trás de seu pensamento. Não no momento, mas, sim, na hora certa. Talvez isso me irritasse mais caso eu estivesse desacostumada com a sua personalidade, todavia, desde o dia que fui abrigada por todos, a primeira alma que veio na minha direção com uma pureza tão grandiosa foi o Quentin.
E atrás dele, segurando uma flor e com uma aura tão acolhedora, estava Quinny.
A sábia e o quinto, a dupla mais promissora de toda a cidade de dentro da barreira ganhara um holofote muito pesado para segurar. Seus berços cobertos em poeira e ouro anunciavam o quão especiais eram, e a pressão do alto escalão da nossa hierarquia escapava pelas paredes do local, pois, pela primeira vez em séculos, a salvação teria batido em nossas portas. Crescer com duas celebridades me ensinou grandes coisas, inclusive a como fugir de caçadores com duas almas que tinham seus olhos vendados no meio da noite para que não fossemos aprisionados pelos inimigos fora da barreira. E, também, em como escapar de longos sermões por nos aventurarmos por aí. Nosso trio acabou se tornando um grupo inseparável de oito crianças que cuidavam uma das outras sem esforço algum, e a nossa adolescência foi suportável por termos nossa pequena realidade compartilhada.
Até o dia do aniversário de dezoito anos.
Não é difícil esquecer as diversas frases jogadas sem freios em cima dos regenerativos e a cobrança que estavam recebendo crescia mais e mais, a ponto de todos estarem cansados mentalmente por ambos. Nosso grupo se encontrava no centro do auditório com aqueles que apontavam os dedos e esbravejavam os seus julgamentos, e os mais velhos, que deviam olhar por nós, haviam arranjado inúmeras formas de saírem por cima e de incriminarem os seus até então “salvadores”, como adoravam chamá-los. A hipocrisia causou uma raiva tremenda não só em mim, mas em meus amigos que se preparavam para o pior e, já esperado, Quentin não ficou quieto. A próxima cena que vivenciamos foi de um dos homens apontando sua espada e quase perfurando o pescoço de Quentin, que não demorou para desarmar o outro e mudar suas posições, com o seu olhar enfurecido. No momento, independente de seu sentimento, ele só queria que parassem de falar e apontarem os dedos para os nossos como se fossemos culpados por toda a reviravolta que sofríamos nos últimos anos, dava para perceber nitidamente que sua vontade era de nos proteger. Por isso, Quentin ergueu sua espada para o alto e atacou o homem que vinha em sua direção com uma sede de morte plantada em sua alma há um bom tempo. O indivíduo em questão, não satisfeito em alimentar um sentimento tão agressivo em relação aos regenerativos, decidiu que de pouco em pouco envenenaria a mente de vários colegas para que pensassem que Quinny era a culpada de tudo e que Quentin era seu cúmplice. Seu projeto de separar os inseparáveis deu certo no final, pois sua posição no alto escalão de nossa sociedade lhe deu poder suficiente para convencer seus amigos a tomarem seu lado e logo os regenerativos estavam na mira.
Contudo, o que realmente separou Quentin e Quinny foram seus próprios objetivos.
Após toda a dor de cabeça que tivemos, ambos começaram a discutir bastante sobre o que fariam. Sabíamos que tinham um peso em seus ombros e suas responsabilidades e obrigações agravava a situação, mas o ponto que chegou foi tão exaustivo para eles que, por fim, optaram por não se falarem mais. Assim, se iniciou uma separação não solicitada por ninguém além deles mesmo de deveres e em uma noite fria, Quentin reuniu nosso grupo e anunciou que ia embora da cidade. Então, disse que quem quisesse ir com ele seria recebido de braços abertos e levou seu olhar à Quinny, como se a convidasse para ir junto. Entretanto, a distância que cresceram não tinha mais volta, e no segundo seguinte fomos cercados por soldados que receberam o sinal de Quinny. Partimos com outros dois amigos em rumo ao sul, deixando o norte para quem um dia amamos mais do que toda a poeira e ouro existente em nossa criação.
“Do pó nós nascemos, enraizamos nosso sangue na terra seca para que nela fique marcado que as próximas árvores que nascerão serão frutos dos primeiros que voltaram a ser poeira. Do ouro os heróis são banhados e abençoados com sua valiosidade e força, para que junto do pó, tragam toda a glória para seu povo reinar de acordo com sua vontade.”
Capítulo 02
- E não esqueçam: os treinos serão feitos tanto de manhã quanto de tarde, três vezes por semana. Os demais detalhes deixo com o seu novo líder. Qualquer dúvida, agora é com ele, tudo bem? – Quentin sorriu para os jovens, pondo uma mão na cintura e a outra no ombro do amigo – Armin, eles estarão aos seus cuidados.
- Almoço está sendo servido na cozinha, é melhor se apressarem para experimentarem o meu mais novo menu! – juntamente de mim, Noel vinha anunciando e se gabando um pouco da sua nova receita, arrancando risadas dos demais – Vamos, se apressem! Temos muito trabalho depois do almoço, meus queridos pupilos.
- Não precisa assustar também, El! – Armin pegou a cesta dela.
- Você fala como se eu fosse uma professora malvada, espere até eles terem a primeira aula com o nosso querido espadachim, vão sentir a minha falta.
- Em vez de ficarem brigando, que tal comermos logo para chegarmos na reunião no horário certo? A menos que queiram ouvir nossa anciã por meia hora dizendo quão irresponsável somos.
- Tudo bem, mãe! – disseram ao mesmo tempo em que abriram seus potes.
- Se você é a mãe, então quer dizer que eu sou o pai? – Quentin sussurrou no meu ouvido, dando um beijo na minha bochecha em seguida.
- Quando você colocar um anel no meu dedo, quem sabe? – dei um pedaço do doce em sua boca.
O almoço foi preenchido com um clima agradável e risadas dos quatro, e quando o relógio central tocou o sino, já estávamos sentados na sala com nossos amigos e Ivy, a anciã. Reuniões de estratégia eram uma das mais importantes para mim, afinal, receptores sempre tinham um dos papéis mais indispensáveis em uma batalha. Enxergar a aura das pessoas era um dos pontos básicos e fáceis de lidar, na maioria das vezes é difícil alguém conseguir esconder sua verdadeira essência da gente, todavia, não éramos visados somente por isso. Poucos sabem lidar com a audição aguçada e em conciliar com a rápida troca de informações em pequenas frações de segundo, além de ter que ser responsável pela comunicação com os outros. É um cargo onde é necessário estar focado 100%, senão, você é engolido pelas vozes alheias e acaba se destruindo lentamente. Assim como os regenerativos, receptores são escassos e se o inimigo puder pôr a mão em um de nós, entregaríamos todo o esforço de muitos anos de bandeja. Não é apenas defender os meus, mas proteger a minha própria vida. Por essa razão, regenerativos e receptores andam afastados o bastante para não serem pegos juntos, entretanto, perto o suficiente para se comunicarem em um campo de batalha.
- Ainda acho isso tudo muito injusto. – Noel descansou as costas na cadeira meio emburrada – Eles têm a coragem de fazer o que fizeram no passado e agora temos que assumir uma guerra que não é nem nossa.
- Passou a ser nossa quando eles visaram destruir as duas barreiras, Noel – Quentin massageou as têmporas – Se não fizermos nada, a destruição chegará em nosso território e eu não posso ficar sem nada.
- O povo do norte já nos considera como inimigos, então é fácil saber que eles acham que somos os causadores disso. Provavelmente pensam que unimos forças com os gananciosos.
- Não subestime o adversário, Armin. – a fala de Ivy me causou uma certa curiosidade, mas decidi ignorar.
- Antes de finalizarmos essa longa reunião, gostaria de recapitular as posições de cada um. Armin ficará na linha de frente com Noel, enquanto Leylin e Keith os dão cobertura. Ivy auxiliará Kaleid com os remédios e poções e quem os levará para o campo será Bella e Kize. Também estarei na linha de frente fazendo a proteção da barreira, então Delilah estará perto o bastante da maioria para a comunicação.
Terminamos de acertar os detalhes e fomos dispensados, todos visivelmente cansados mentalmente. Encostei meu corpo na porta e cruzei os braços, olhando para o céu nublado e tentando ignorar as vozes distantes. Me distraí o suficiente para não perceber que Quentin estava ao meu lado, com seu olhar em cima de mim e uma feição tranquila.
Se eu pudesse, pararia o tempo só para admirar o homem que eu amava.
- Vamos? Quero te levar em um lugar. – ele estendeu a mão.
- E para onde vamos que você precisa me carregar no colo e vendada?
- É surpresa! – exclamou animadamente – Pronto, dez minutos de caminhada e chegamos.
Ao tirar a venda, pude ver um pequeno jardim tão vívido com pequenas mudas de flores espalhadas por sua extensão e uma árvore com suas folhas em uma coloração rosada. Senti seus braços me envolverem e ele descansou sua cabeça em meu ombro, soltando um suspiro aliviado.
- Fico feliz que tenha gostado do meu presente para você. Coloquei todo o meu amor aqui para que você possa vivenciá-lo sempre que quiser. – entrelaçou seus dedos aos meus e nossos indicadores tocaram a cerejeira. – Ela ainda florescerá, espero que você a mantenha companhia quando chegar a hora.
- Eu amo você, sabia?
- Sim! Mas, no que você está pensando? – a minha inquietação não passou despercebida.
- É como se fosse uma metáfora, essa cerejeira parece com você e com ela. Era pra ser algo estranho… A sensação que tenho é que você não me trouxe só para me dar um presente, não é?
- Continue com a metáfora, Lilah. – recebi um beijo na minha bochecha.
- Vocês estão prestes a florir e são tão bonitos quanto a árvore, não é a toa que sinto um calor familiar vindo dela. É como se os dois me abraçassem que nem na primeira vez que nos conhecemos, e ao tocá-la, eu não escuto mais nenhuma voz. É como se eu e todo o mundo tiver contato com essa árvore, lembraremos de vocês por séculos… Mas – me afastei de modo que conseguisse olhá-lo de frente, com as lágrimas descendo pelo meu rosto quente – vocês morrerão tão cedo.
Nenhuma palavra foi dita no momento. Mesmo com a venda, a nitidez que os seus sentimentos transbordavam era visível ao meu olhar, e nós dois tínhamos noção de que não havia nada que pudesse ser feito para evitar o destino. Meu choro incontrolável não cessava, e eu me perguntava se ele se encontrava com o coração sangrando por saber que quem ama voltaria ao pó.
A resposta viria em breve.
A guerra tinha começado.
Capítulo 03
A sensação de que a destruição estava longe de acabar não saía da minha mente, mas a última coisa que tenho atualmente é tempo para me preocupar com algumas horas adiante. O caos que os gananciosos instalaram em toda a fronteira dos quatro lados era insana, eles visavam roubar os regenerativos a todo custo. Não se importavam com as vidas perdidas ou em incriminar um dos extremos, portanto que conseguissem ter em suas mãos seus prêmios, tudo era válido. As informações vinham freneticamente e eu trabalhava arduamente para entregar a mensagem para meus amigos, além de protegê-los. O arco e flecha vieram a calhar quando soube que pretendiam nos atacar de dentro da floresta, e logo Noel estava a postos dando as instruções aos demais. Noutro minuto, em uma mudança repentina, explosões se iniciaram, colocando em risco a barreira do Norte e Sul. Estava difícil de distinguir as vozes entre os gananciosos e o povo do norte, assim como no nosso lado, eles tinham se misturado e o som das espadas ficava cada vez mais alto. O som da morte era audível das três partes e logo o meu foco começaria a se esvair, de forma que talvez eu não conseguisse contornar a situação e o desespero ia surgindo.
- Para proteger os meus, eu preciso dar tudo de mim, nem que isso custe a minha própria vida.
Repeti como se fosse um mantra que me desse forças para me manter de pé, até que uma enorme explosão foi causada e os gritos eram os únicos sons que eu podia escutar. Quando recebi o sinal de que meus amigos estavam bem, finalmente ouvi a voz fraca de Quentin me chamando. Corri em sua direção com as lágrimas de quem estava prestes a perder o seu amor, e a cena em minha frente não me surpreendeu, mas causou dor igual. Separados por uma barreira visível, Quentin e Quinny estavam preparados para retornar às suas raízes, e por um breve momento, meu olhar cruzou com o dele. O receptor que não sabia de sua natureza e não era afetado pelas vozes, protegido por Quinny e que tinha o seu coração sangrando que nem o meu: Devon. Seus olhos arregalados entregavam que sabia quem eu era, mas não tinha noção de como. Entretanto, nós não podíamos perder tempo um com o outro, e com um sorriso brincalhão, Quentin pôs a mão em meu rosto e voltei minha atenção total a si.
- É ele, não é? – confirmei com a cabeça – Se quiser, pode levá-lo para a árvore. Talvez ele sofra menos ao sentir a presença de Quinny.
- Se preocupando com os outros até quando está assim, Quentin? – coloquei sua cabeça no meu colo, passando os dedos em seu cabelo – Eu amo você.
- Eu te amo, Lilah. Com todo o meu coração. Não precisa chorar mais, minha linda Lilah. – sua voz ia ficando mais rouca – Posso te pedir um último favor?
- Claro, Quentin.
- Tire a minha venda.
Com os últimos resquícios de vitalidade, o seu corpo foi deitado no chão por mim, e antes de me afastar por completo, me despedi dele e consequentemente, da minha querida Quinny. Seus sorrisos iam se desfalecendo e quando eu estava longe o suficiente, o clarão tomou conta de todo o campo de batalha. A sensação da pureza acolhedora dos dois era sentida por todos aqueles que estivessem dispostos a lutar para manter os seus povos erguidos, continuando a construir os seus legados para que as lendas contadas adiante não se perdessem no meio dos séculos. Afinal, respondendo a sua pergunta, não há diferença. Na verdade, os dois dependem um do outro para sobreviverem, Quentin. E enquanto suas memórias estiverem conosco, todos se lembrarão de vocês.
Em sua honra, tomaríamos o trono que é de nosso direito, para que os futuros frutos tenham a garantia de que suas raízes vieram dos primeiros guerreiros que construíram essa cidade. Do pó e do ouro.
Fim
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