Blood & Crown
Baile de Maskarins
Reino de Cahir, século XVII
Quem nunca se perguntou se há mundos que não conhecemos?
Ao norte da Europa Ocidental, escondida pelas altas montanhas e densa neblina, estava o reino de Cahir, regado de segredos obscuros, traições silenciosas e acordos ocultos. Sua característica marcante não se restringia apenas ao frio levado pelo vento cortante, mas das promessas quebradas e das conspirações sussurradas entre paredes de pedra fria que compunha sua arquitetura.
As florestas que cercavam o castelo eram espessas, quase vivas, como se guardassem em seus galhos retorcidos a memória das traições e pactos antigos, tecidos através do sacrifício de muitos antepassados, ora esquecidos. O silêncio ali não era sinônimo de paz — era uma espera inquieta, um prelúdio de tempestades que nunca tardavam a chegar. Neste reino onde o crepúsculo parecia durar para sempre, dois destinos estavam prestes a se entrelaçar, marcados pelo sangue e pela mentira, onde o amor e a atração poderiam ser a arma mais perigosa de todas.
Bem ao centro da clareira, estava uma dama com seu olhar fixo na lua que clareava o céu. Uma respiração serena, quase imperceptível, que mantinha seus batimentos estáveis e os músculos de seu corpo rígidos. Ela se preparava para a noite mais perigosa e arriscada de sua vida.
— Lembre-se, assassina, neste jogo, o verdadeiro poder é saber quando esconder o punhal… e quando usá-lo. — O sussurrar da voz de Lady Isolde despertou vossa atenção.
Uns instantes de silêncio, enquanto a mulher, com traços tão joviais quanto os seus, lhe rodeou até parar em sua frente.
— E quando confiar em quem nunca confia? — retrucou , sabendo que estava diante da mulher menos confiável de todo o reino.
— Ah, essa é a pergunta que move reinos. — Uma risada rápida e um tom sarcástico. — E derruba reis.
Olhar firme, não se intimidou pelo alto status social da mulher que ameaçou a sua família.
— Não se esqueça o propósito pelo qual está aqui esta noite, Vhaloris — continuou a mulher, com seus cabelos acobreados levemente cacheados nas pontas cobrindo parte da máscara em seu rosto, erguendo a mão direita para lhe entregar o objeto.
— Não preciso disso. — Em recusa, elevou a mão esquerda, mostrando que havia levado consigo a sua própria. — Se vou fazer isso, que seja em honra ao legado de minha família.
A máscara de não era uma simples peça de adorno — era uma extensão de quem ela era, daquilo que carregava no sangue e em seu interior. Feita de ônix obsidiana polida, tão negra que refletia a luz como um espelho distorcido, ela cobria toda a parte superior do rosto, moldando-se perfeitamente às linhas afiadas de suas feições. Seu propósito não era apenas decorativo, possuía uma resistência, quase tão forte quanto aço temperado, capaz de suportar até cortes superficiais de lâminas menores. Seu desenho seguia traços alongados e elegantes, ao redor das bordas, filetes de prata antiga formavam símbolos arcanos esquecidos, por dentro, a máscara era forrada com couro macio, tornando-a confortável mesmo após horas, e suas laterais levemente curvadas para cima, lembrando as asas de um corvo em pleno voo — símbolo ancestral da Casa Vhaloris, uma família cuja história sempre foi entrelaçada com a morte, segredos e contratos de sangue. Quando ela surgia com aquela máscara, era como se a própria morte tivesse ganhado rosto. Para quem a via, nunca era só uma mulher — era um presságio.
Um sussurro de que aquela poderia ser sua última noite.
— Como desejar, Vhaloris. — Assentiu lady Isolde ao jogar a máscara em sua mão sobre a grama e impulsionar seu corpo para se retirar. — Estarei te observando no baile.
O olhar de acompanhou-a até que desapareceu de seu campo de visão.
— Talvez… Não seja apenas uma pessoa a sair sem vida no final desta noite — sussurrou para si, tendo em mente que uma pessoa não sai impune quando se ameaça as pessoas erradas.
Para muitos, parte da sua história era apenas uma lenda urbana, invenções dos antigos para explicar a aura sombria que rodeava os integrantes de sua família. Contudo, a Casa Vhaloris surgiu das fendas das montanhas rochosas e sombrias ao sul de Cahir, onde as neblinas são ainda mais densas e escondem segredos de tratados antigos. Reza a lenda, que seus antepassados foram forçados a um juramento de lealdade e submissão ao rei para proteger o reino, tornando-se guardiões das sombras e executores silenciosos da justiça. O que os tornou conhecidos pelas habilidades em batalhas físicas e manejo de instrumentos de guerra, além da forte resistência mental e psicológica.
— Parece que está na hora do baile. — , em sua feição séria, permitiu escapar um sorriso no canto do rosto. Sua mente focada e pronta para agir.
Sendo de uma família temida e respeitada, já tinha consciência de que seria evitada pela maioria dos presentes aristocratas da corte, pela famigerada reputação de assassinos que os Vhaloris tinham há séculos. E sendo a primogênita herdeira, era vista como a personificação desse legado sombrio e letal, considerada uma sombra em forma de mulher, treinada para ser invisível e inquebrantável. Seu rosto logo foi coberto pela máscara, tornando-o tão enigmático quanto o próprio destino que ela carregava.
—
Entre as paredes gélidas do castelo de Cahir, o silêncio foi quebrado pelo som de passos vibrantes, música e risos disfarçados. Era noite de Maskarins — o baile das máscaras, o evento mais importante do ano, onde identidades se perdiam e verdades eram tão frágeis quanto os fios de prata que decoravam os rostos ocultos. Luzes de velas tremulavam nas paredes de pedra, refletindo nas máscaras ornamentadas dos nobres, sons abafados de alaúdes preenchendo o ar do grande salão, juntamente com som dos violinos. Mesclavam-se ao tilintar de taças e aos sussurros carregados de intenções ocultas, tecidos luxuosos deslizavam sobre o mármore negro, e todo o aroma do ambiente era apresentado pelos perfumes doces que persistiam em mascarar o cheiro mais forte daquela celebração.
O cheiro do perigo.
Sob lustres de cristal negro, a passos suaves e cautelosos como se estivesse pisando em plumas, moveu-se entre os casais que dançavam ao centro, como se o salão inteiro fosse um tabuleiro e ela, a peça mais letal. Seu vestido de veludo preto ondulava como fumaça, e cada passo sendo calculado, medido e preciso. Seu olhar procurava uma pessoa em especial, não se importando com os olhares curiosos e temerosos que começaram a se voltar para sua direção.
— Aí está quem tanto procuro — sussurrou ao parar exatamente no centro.
Aos que dançavam próximo, apenas se afastaram, deixando-a em um imenso espaço vazio.
Bem ao canto, próximo a passagem para o jardim leste, estava ele.
Alto, imponente, cercado de nobres que simulavam apoiá-lo e de inimigos que fingiam respeitá-lo. Grimwald, conhecido como o herdeiro que se recusava a cair. Um lobo vestido em trajes de príncipe em busca de sua coroa, camuflado entre risos falsos e cortesias envenenadas. Sua máscara, de prata fosca e traços austeros, não escondia a rigidez do maxilar, nem o olhar afiado que atravessava a multidão como uma lâmina pronta para separar aliados de traidores. Ele sabia quem ela era, ambos já haviam cruzado seus caminhos inúmeras vezes ao longo dos anos, afinal, oficialmente, os Vhaloris ainda serviam a coroa.
E sempre que seus olhares se encontravam, o mundo ao redor silenciava.
Apenas os dois existiam.
Ele não desviava. Ela não recuava.
Com a segurança de quem nunca teme, atravessou o salão, cortando o espaço entre eles como se ninguém mais importasse. Seus passos eram firmes, seu olhar, lâmina pura — dois mundos destinados a colidir. Ao parar diante dela, a máscara que ocultava metade de seu rosto, não fora capaz de esconder o vislumbre de sorriso que surgiu — frio, perigoso, intrigante.
— Não deveria estar morta? — questionou num tom firme, porém, baixo o suficiente para que não fosse alcançado por ouvidos alheios.
— E você, futuro rei, já não deveria estar seguro em seu trono? — retrucou ela, tocando em sua ferida. — Mas aqui estamos, ambos à beira do abismo.
— Diga-me, … quem está mentindo mais sobre sua real condição? — indagou, mantendo seu olhar fixo nela.
— Talvez sejamos ambos — respondeu, devolvendo o tom seguro e confiante.
Ela o conhecia o suficiente para saber que sua condição era pior.
O bastardo que provou ser o Príncipe Herdeiro de Veyrden, vindo da linhagem direta do grande fundador de Cahir, não tinha aliados satisfatórios para reclamar o trono, menos ainda, direito suficiente para desafiar o herdeiro atual, Severin Grimwald. A Casa Grimwald iniciou juntamente com o reino, entre disputas territoriais, acordos emblemáticos e alianças perigosas. Uma família conhecida por sua disciplina rígida, fria e calculista, se tornando um sinônimo de honra e poder militar, com uma reputação imponente. E , mesmo não tendo o sangue direto do rei Darian, também carregava o peso dessa linhagem e a promessa de que recuperaria o trono.
— O que a traz ao castelo após tantos boatos de vossa família ter sucumbido às chamas que dizimaram vossa propriedade? — indagou ele, apenas naquele momento notando que não havia música, apenas o barulho dos murmúrios de todos do ambiente, sendo acompanhados por seus olhares curiosos.
Um ardor passou pela garganta de , fazendo-a mover seu olhar com discrição para Lady Isolde, que a observava ao longe. Uma fração de segundos em que seus pensamentos a transportaram para a noite fatídica de terror e agonia. Uma memória que jamais se apagaria e alimentava seu sentimento de vingança.
— Assim como todos, estou aqui para dançar — respondeu, em sua forma natural.
— Sabe… — a voz dele permaneceu baixa, profunda, com o tom que pode se comparar tanto como uma ameaça quanto uma promessa — é curioso como as sombras decidem dançar sob a luz, principalmente em noites como esta.
Era um fato que apenas em eventos relevantes como o Baile de Maskarins, algum membro da família Vhaloris se permitia ser visto em sociedade. Afinal, sua reputação era cada vez mais mantida por suas tradições de reclusão e discrição.
ergueu levemente o queixo, seus olhos brilhando por trás da máscara.
— É curioso… — retrucou, com suavidade cortante — como alguns cavalheiros esquecem que nem toda criatura que surge das sombras está ali para ser admirada.
O silêncio que se seguiu não foi desconforto. Foi tensão. Fios invisíveis se esticavam, frágeis, prestes a romper — ou a entrelaça-los para sempre.
estendeu a mão, sem desviar o olhar.
— Já que está aqui para isso, permita-me ser o primeiro? — O sorriso dele tornou-se mais visível, com um toque quase cruel. — Afinal… É noite de tragédia, não é mesmo?
desviou seu olhar para a mão estendida.
Ela deveria recusá-lo?
Talvez.
Entretanto, havia algo naqueles olhos — algo que não era apenas desafio, era reconhecimento de oponente. Como predadores que, ao se olharem, entendem que podem tanto se devorar quanto caçar juntos.
Ela deslizou sua mão na dele, fria como a lâmina da adaga que escondia na coxa.
— É uma honra para mim, alteza — sussurrou, deixando escapar um sorriso de canto perceptível a ele. — Uma trégua, até que o sangue decida quem vence.
E, sob as máscaras, a dança começou.
Duas peças no tabuleiro.
Dois mentirosos.
Dois destinos selados.
Ao sinal de , os músicos iniciam mais uma vez, e aos poucos, o vasto espaço do salão novamente foi preenchido pelos casais que giravam ao redor deles, porém, aquelas pessoas que fingiam naturalidade diante da presença de uma Vhaloris, eram quase irrelevantes aos dois. As notas dos violinos foram meros sussurros, juntamente com as conversas paralelas nos cantos do lugar e os cochichos daqueles que rodopiavam próximos.
Logo mais, uma presença fora percebida por todos os convidados.
Vossa alteza, o atual príncipe herdeiro, Severin, adentrou o salão já sendo reverenciado por todos, fazendo a música parar mais uma vez. Com o parar da dança pelas circunstâncias, engoliu seco a presença de seu rival, então forçou-se a se inclinar para reverenciá-lo o mais sutilmente que conseguira. Todavia, a dama nebulosa que ainda segurava sua mão, manteve-se rígida e fria no olhar.
— Curioso termos a presença de uma Vhalois. — A voz grossa e altiva de Severin ecoou pelo espaço.
Alto, de postura impecável, media cada movimento como parte de uma encenação cuidadosamente coreografada. Seus cabelos loiro-acinzentados eram complementados pela pele muito clara, quase pálida, e refletia a vida de quem nunca precisou se expor aos rigores do mundo real, sempre protegido pelos muros da corte e das intrigas. E o fato de não sujar as mãos de sangue, não significava uma falta de força física, pelo contrário, suas habilidades em combate eram invejadas até mesmo pelos cavaleiros reais.
Contudo, Severin era a lâmina que nunca via o campo de batalha.
Sua luta era definida com palavras, sorrisos e veneno. Mestre da persuasão, estrategista brilhante, sempre cinco passos à frente de seus inimigos — ou aliados, que, para ele, eram apenas peças temporárias. E o peão da vez era ninguém menos que Lady Isolde, a marquesa de Velmoria, cuja ambição pelo poder a fez acreditar em promessas falsas de casamento por parte do falso herdeiro.
— Alteza — cumprimentou sem mover um músculo para saudar o futuro rei.
— A fama de desrespeito precede vossa família — comentou Severin, fazendo sua superioridade se sobressair.
— A Casa Vhaloris apenas se curva ao rei — continuou ela, aumentando os murmúrios pelo salão. — E não vejo tal coroa em vossa cabeça.
Um soar áspero e ríspido.
Para Severin, ela era uma variável instável. Um erro de cálculo que, se não fosse bem controlado… poderia vir a ser sua ruína.
— Logo verá, tenha certeza — assegurou ele, confiante, desviando o olhar para , que também o encarava.
As notícias da piora da saúde do rei Darian já haviam percorrido todo o reino.
Uma tensão palpável se instalou entre eles, o olhar afiado de . Sua fúria interna sendo controlada pela razão que, contudo, não a impedia de constatar que a perseguição à sua família partia dele, e não de Lady Isolde. E certamente o incêndio provocado tinha as ordens ocultas do falso príncipe. Engolindo seco a raiva que parecia querer explodir sua garganta, inconscientemente apertou as mãos de , fazendo-o notar sua luta pelo autocontrole.
— Todos sabemos que o Baile de Maskarins sempre teve a presença dos Vhaloris, afinal, foram eles que deram início a este evento. — finalmente adentrou a conversa com a finalidade de transmitir serenidade a ela. — A verdadeira surpresa está em vossa presença, não estavas a zelar pelo rei?
— Uma ocasião tão específica como esta noite faz-se necessário a presença da família real. — E mais uma vez seu tom superior, em uma sutil indireta a , pois não havia sangue de Darian em suas veias.
— Vossa alteza… — A voz sinuosa de Isolde soou atrás do homem. — Estamos deveras jubilosos com vossa presença. Que tal uma dança com vossa noiva?
O olhar enigmático da Lady era tudo o que Severin precisava naquele momento, como se conseguisse desvendá-lo em segundos para obter apenas uma informação.
O real motivo da presença de no baile.
— Vamos à dança, milady. — Severin, voltando-se para ela, acenou com o olhar para os músicos.
E novamente o soar dos violinos teve seu trabalho de abafar os cochichos e murmúrios pelo salão. De um toque extravagante e entusiasmado, para uma melodia suave e doce, que se fazia necessário uma proximidade maior entre os casais presentes.
— O que realmente fazes aqui? — puxou-a com firmeza, mantendo o toque sutil. Seu tom carregava aquele equilíbrio perfeito entre charme e provocação. — Sabemos das lendas sobre os membros de vossa família? Os dizeres de que até a morte teme pronunciar o sobrenome Vhaloris.
deslizou a mão livre pelo ombro dele, os dedos percorrendo o tecido fino como quem mede a distância entre o toque e o golpe.
— E, ainda assim… Aqui está vossa alteza, dançando comigo. — Sua voz baixa, agora em um tom aveludado, deixando palavra envolta em um veneno doce. — Não pareces temer a morte tanto quanto deveria.
, em um sorriso nebuloso, inclinou-se levemente, aproximando os lábios de forma perigosa ao ouvido dela.
— Talvez… — uma risada baixa e sarcástica — porque aprendi que a morte, às vezes, tem olhos belos demais para se temer.
O olhar dela não vacilou, embora um músculo de sua mandíbula tivesse se contraído. A mão de apertou sua cintura, puxando-a meio passo mais próxima, fazendo-a notar uma leve brisa passando por seu corpo, arrepiando os pelos de sua nuca.
— Diga-me — continuou ele, deixando soar seu habitual tom rouco —, está aqui para me matar… ou para me salvar?
Ela inclinou levemente a cabeça, o sorriso oculto pela máscara, mas perceptível na curvatura dos lábios. A respiração serena, o controle de seus sentimentos obscuros e a recusa em deixar que seu coração acelerasse pelo calor do momento.
— Quem disse que uma coisa exclui a outra? — murmurou. — Talvez eu ainda não tenha decidido qual opção.
Eles giraram no salão, deslizando como sombras entre os nobres mascarados que, inconscientes, continuavam sua própria dança de intrigas, enquanto tentavam os observar nas entrelinhas.
— Ou talvez… — respirou fundo, os olhos cravados nos dela. — Saiba que, se me matar, perde algo mais valioso que qualquer contrato.
— Confiança? Poder? — rebateu , arqueando uma sobrancelha. — Nada é tão mais valioso que minha família.
Ela deixou soar como um desabafo, sabendo que em algum momento ele entenderia o recado. inclinou-se mais, sem se importar em que ambiente estavam e não estarem sozinhos, até que os lábios roçaram levemente a linha da mandíbula exposta pela máscara.
— Vingança — sussurrou, com a voz carregada daquele tipo de perigo que não vem da lâmina, mas do desejo.
respirou fundo, e por um instante — apenas um instante — o controle escapou pelo canto dos seus lábios, porém, ela sorriu. Um sorriso lento, afiado, que poderia tanto preceder um beijo… quanto um golpe certeiro.
— Cuidado, herdeiro de Veyrden. — Seus olhos brilharam como vidro negro sob a luz trêmula das velas. — Algumas danças terminam em sangue.
Naquela noite, ela tinha um objetivo.
Uma missão.
Matar o herdeiro bastardo, que curiosamente a tinha convidado para dançar.
You can call me monster.
– Monster / EXO
Príncipe Herdeiro de Veyrden
Reino de Cahir, século XVII
5 anos atrás…
A névoa estava espessa naquela noite.
Densa e sufocante, que descia como um manto sobre os telhados da região de Eryndor, o vilarejo mais escondido nas sombras do reino de Cahir. A porta do armazém bateu contra a parede com um estrondo, logo a sombra mais temida pelo reino preencheu o espaço — alta, sinuosa e letal. O capuz caiu, a máscara que carregava a marca registrada de sua Casa, não trouxera desta vez.
Hoje, apenas ela.
Sem máscaras e sem disfarces. Só a lâmina… e a dor que carregava no peito.
A informação que a levou ao lugar, tinha vindo com preço — sangue, facas, mentiras. O herdeiro perdido, bastardo da coroa. A única ameaça viva ao trono de Severin Grimwald, estava ali, diante dela.
Grimwald.
Peça central de um boato que, até então, era somente sussurro de uma criada considerada louca por seu estado de demência. O descendente direto do fundador, o destemido rei Veyrden, surgiu entre as cinzas de seus antepassados, sendo revelado ao mundo. O silêncio pairava no lugar, mesmo não sendo visível com nitidez, o corpo de parecia uma extensão da escuridão — vestida de preto, o capuz ocultando metade do rosto.
— Vhaloris. — A voz de era grave, mais rouca do que ela se lembrava. — Sabia que não conseguiria ficar longe.
Ela, com seu objeto cortante nas mãos, apertou o cabo da adaga até os dedos doerem.
— Mentiu para mim. — Sua voz saiu mais trêmula do que deveria. — Mentiu o tempo inteiro. E eu… — A garganta ardeu pela raiva acumulada. — Eu fui tola o bastante para… para acreditar em vossas palavras. Grimwald.
Ao pronunciar seu verdadeiro nome.
deu-lhe a deixa para entender suas palavras iniciais. Ela havia descoberto o maior de seus segredos, estava diante do descendente direto de uma linhagem real rara. Não era como se ele fosse o filho bastardo do rei atual, Darian apenas estava assentado ao trono por ser covarde o bastante e se aproveitar de uma guerra para planejar a morte do verdadeiro rei — o primo de vossa esposa, Magnar Grimwald — e sentando-se em seu trono posteriormente.
— Não era o momento adequado… Poderias se envolver em algo que não lhe era respeito — respondeu, dando um passo. — Achas que isso foi fácil pra mim?
Seu olhar transmitiu honestidade.
era diferente, pertencia a mais alta casta. O filho perdido do rei Magnar, o verdadeiro dono do trono de Cahir, o qual muitos derramaram seu sangue para que ele pudesse permanecer vivo o suficiente, para reclamá-lo.
O vento cortou forte.
As correntes no cinto balançaram levemente quando ela saltou. Silenciosa e precisa, imperceptível ao ouvido alheio, deixando-o notar sua aproximação apenas no momento em que a lâmina de sua adaga roçou seu pescoço.
— Há um ditado que diz… — sussurrou ela no ouvido dele, gélida como a lâmina do instrumento em sua mão — nem todo rei morre ao ascender ao trono.
Mas ao invés de se enrijecer de medo, sorriu.
— Sabia que viriam após a confirmação de minha identidade real. Só não imaginei que seria através de vós. — A voz dele era grave, rouca, sem traço algum de surpresa.
De certa forma, ele entendia a sua rasa indignação.
Em um movimento seco, ele girou, o braço batendo contra o punho dela e fazendo a lâmina ricochetear. recuou de forma ágil, deslizando para trás com uma precisão felina, sacando uma segunda adaga que estava presa em sua coxa esquerda.
— Vais mesmo me matar, Vhaloris? Cravar essa lâmina no meu peito e fingir que tudo isso é apenas mais um trabalho executado para a coroa? — A voz de soou estranhamente.
Um toque de alguém ferido internamente.
— Não sabe nada sobre mim — rosnou ela, avançando, a lâmina mirando o espaço entre as costelas. — E não viverá para descobrir.
Ele desviou, pegando em seu pulso para imobilizá-la. Contudo, girou e lançou sua perna, com o intuito de se soltar dele. Jogando seu objeto no chão em consequência de seus movimentos, porém, curiosamente ela puxou outra adaga, agora escondida em seu espartilho, na altura da cintura. Ele agarrou o outro braço, fazendo ambos os corpos se chocarem, com as pernas entrelaçadas e uma respiração ofegante sincronizada.
Mãos que antes sabiam como tocar… agora sabiam como ferir.
O ambiente ao seu redor parecia mais quente do que o normal para uma noite de verão, e não era pelo olhar nebuloso da dama que acelerava seu coração.
Mas… havia algo mais, escondido sob a fúria.
Um calor incômodo.
Uma lembrança do que poderia ter sido, do que quase foi.
Ela deslizou por baixo de seu braço, girando o corpo para tentar cravar a lâmina na lateral do abdômen do rapaz, entretanto, mais uma vez sendo impedida, teve ambos os pulsos segurados, enquanto seu corpo foi enquadrado por ele. O som seco do corpo de batendo contra a pedra ecoou no espaço, mas não foi isso que a fez prender a respiração, e sim a devastadora proximidade de e a forma veemente de como ele a olhava.
Estava perto demais.
O antebraço do homem cruzava seu peito, imobilizando-a com precisão. As mãos seguravam seus pulsos, pressionando-os contra a parede a uma altura significativa de seu rosto. O olhar profundo de despertava sentimentos ocultos e adormecidos em seu interior.
Era algo que queimava. Que rasgava.
Mágoa.
Desejo.
Decepção.
E algo mais, que ambos nunca tiveram coragem de nomear. Ao tentar se debater para soltar seu corpo, fora pressionada ainda mais, a ponto de sentir com avidez o calor que emanava do corpo dele, fazendo-a sentir-se sufocante com seu aroma natural.
O cheiro… era o mesmo de antes.
De couro, metal, e… dele.
Maldito cheiro que ela nunca conseguiu esquecer.
— Me solte — rosnou, mas a voz vacilou. — Solte-me, .
— É isso que quer? — O tom saiu baixo e brando, seu rouco habitual, que a deixava quase desarmada em certos momentos. — Quer que eu solte? Pra me matar? É isso que quer… ou é o que acha que deveria querer? — A respiração tão próxima a ponto de fazê-la estremecer internamente.
Os olhos dela permaneceram fixos nos lábios dele por um segundo antes de voltar a sanidade, seus pensamentos a transportaram para a primeira vez que se viram. estava em uma missão da coroa no vilarejo de Mordravia, localizado ao leste de Cahir. Seu dever era apenas se desfazer de uma família que ameaçava os planos de Lord Kaelen, um homem ganancioso que buscava poder a todo custo, e havia jurado lealdade à coroa, em troca de alguns favores prestados pelos temidos Vhaloris.
— Eu devia te odiar — sussurrou ela, respirando fundo para reajustar seu autocontrole. — E devias ser apenas mais um nome na minha lâmina.
Maldição. Pensou consigo ao encará-lo.
Por que vossos olhos pareciam sempre pedir algo?
Perdão ou redenção.
Em poucos movimentos, suavizou os músculos de seu corpo para aliviar a tensão entre ambos, não o suficiente para soltá-la, mas para que seus dedos escorregassem do pulso dela até a mão, segurando-a de forma quase íntima.
Involuntária.
— Então por que não fizeste antes? — sussurrou de volta, convicto de seus argumentos mediante aos fatos. — Poderias ter me matado há quatro noites, quando estivemos juntos… Mas apenas deixou-me no meio da madrugada fria, sem nenhum bilhete, apenas com o vosso perfume impregnado em meu corpo.
O silêncio que se seguiu não era só silêncio.
Era uma realidade que nenhum deles ousava colocar em palavras. E o mundo pareceu encolher até só existir eles dois. O corpo de estremeceu-se mais uma vez, lutando para manter-se em equilíbrio, devido à parede fria que tocava suas costas, em contrapartida com o calor que emanava dele.
Se ele a beijasse naquele momento… seria mais fácil do que qualquer palavra.
Se ela o apunhalasse… doeria menos do que admitir qualquer verdade.
Mas nenhum dos dois fez.
Porque quebrar o silêncio mútuo significava quebrar a si mesmos.
Ele soltou-a devagar, seus dedos demoraram mais do que deveriam para se desfazer, e quando se afastou, foi como se arrancassem algo de ambos.
— Da próxima vez… — disse ele, rouco, quase quebrado. — Ou mata-me adequadamente, ou para de fingir que é apenas a morte que temos em comum.
Então, voltaram ao silêncio.
Denso e quase mortal.
—
Atualmente…
Com o fim da melodia…
Os corpos se separam, mas os olhos permaneceram presos um no outro — uma promessa não dita, um duelo que persistia por anos entre ambos. O salão voltou a existir e as máscaras seguiam sorrindo. Contudo, ao centro, as duas peças se moviam no tabuleiro da morte, e o jogo longe de terminar. inclinou-se, levando a mão dela aos lábios, como ditavam as regras da etiqueta.
Ou, no caso deles, da guerra silenciosa.
— Espero que esta não seja nossa última dança — sussurrou, com os olhos ainda queimando nos dela.
— Depende… — respondeu , sorrindo. — Se chegar vivo ao final desta noite.
Ela se afastou, deslizando pelo salão como um espectro elegante.
O olhar do cavalheiro a acompanhou até desaparecer entre os convidados. já tinha todos os seus passos milimetricamente calculados, e suas mãos sempre trabalhavam com precisão. O anel em seu dedo com um fechamento oculto, no qual guardava seu preparado mortal, uma gota translúcida balançando do lado de dentro — pequena, discreta, invisível. O suficiente para matar um homem antes que terminasse sua taça. Seus olhos percorreram o lugar discretamente, até avistar um dos criados se aproximando com uma bandeja de vinho. Com um leve toque no braço do serviçal, atraiu seu olhar tempo suficiente para despejar o líquido na única taça restante, em seguida, pede para que seja entregue a pessoa devida.
Discrição impecável.
Um trabalho limpo, perfeito.
Como sempre.
Dando mais alguns passos, parou em frente à mesa de frutas. Deixou-se admirar pela variedade apresentada em tempos de escassez devido ao inverno rigoroso daquele ano. Enquanto parte do povo morria de fome, os mais vulneráveis economicamente, é claro, a nobreza seguia esbanjando seu status nas grandes festas que realizavam ao longo do ano. Ao pegar uma uva, levou-a à boca e voltou seu olhar sinuoso para — que, claro, a observou de volta. Como se ambos estivessem conscientes de cada movimento do outro.
— Devo confessar minha surpresa e alívio por vê-la aqui, milady? — A voz de lorde Maester Aldric despertou sua atenção, fazendo-a olhá-lo.
— Não acho que deves continuar a tratar-me com tanta formalidade, já que minha família está a um passo de perder seu título de nobreza — pronunciou ela, a realidade a qual se preparava para vivenciar. — A única coisa que nos restará são as lendas urbanas e a reputação de assassinos da corte.
— Lamento que a coroa não seja tão grata e atenciosa a lealdade que a Casa Vhaloris tem mantido ao longo dos séculos — comentou com amargura.
Aldrich era classificado como a definição de inteligência controlada.
Seu pouco falar e muito ouvir lhe permitia ter vantagens sobre muitos dos aristocratas que viviam de bajulações desnecessárias. Suas palavras eram medidas como se cada uma tivesse o peso de uma sentença, e, muitas das vezes, as tinha. O conselheiro leal da Coroa, discreto, sempre presente nas reuniões do Conselho, oferecendo análises ponderadas e estratégicas. Seus princípios partiam da preservação do equilíbrio, da história e das linhagens que guardavam segredos maiores que qualquer trono.
— É bom ver um rosto amigável, mesmo que pareça assombrado pela minha presença — continuou ela, relevando a indignação do homem por algo que sabia não ter mudança.
— Uma vez, vosso pai me disse… — Ele inspirou com precisão, parecia lembrar-se do momento com vivacidade. — “A história não é feita apenas pelos reis… mas pelos fantasmas que eles tentam esquecer.”
— A que ponto minha família chegou… — Ela segurou as emoções diante do ocorrido. — Fomos transformados em fantasmas.
— Lamento o que tenha acontecido, e sabes que se soubesse de algo… — ele iniciou suas explicações.
— Não se preocupe, milorde, consigo ver a inocência em vosso olhar — ela o interrompeu, jamais desconfiaria do único que fora capaz de enfrentar o rei Darian em busca pela verdade sobre o Príncipe Herdeiro de Veyrden. — Sei que não está envolvido nessa trama, não apenas por vosso gesto de compaixão em amparar minha família.
O único que abriu as portas de sua casa para abrigar o que um dia foi a imponente Casa de Vhaloris.
— Vosso pai foi-me um grande amigo — confessou. — Jamais deixaria a vossa família em estado de necessidade… Contudo… — Ele silenciou por um momento.
— Contudo? — indagou ela.
— Contudo, preocupou-me o vosso desaparecimento repentino — prosseguiu com as palavras. — Deixando a vossa mãe e irmãos para trás, apenas com um bilhete contendo uma palavra específica que nos trouxe ainda mais aflição.
Qual palavra?
Vingança.
— Como a primogênita, sabe que devo carregar o legado da família. — Não se justificando, apenas esclarecendo sua decisão pelo afastamento. — Sei que cuidará deles em meu lugar.
— Temo que algo ruim possa acontecer a vós, criança. — Suavizando mais a voz, demonstrou a preocupação de um pai.
A mesma que seu próprio pai teria se estivesse entre os vivos.
— Nem toda lâmina brilha ao sol. Existem algumas que cortam melhor na escuridão. — Sua voz aveludada ficou mais lenta, como o dobrar de um sino distante. — Lembra-se desta frase?
— Claro que sim… Eu mesmo disse a vós quando começaste vosso treinamento. — Assentiu ele.
Do outro lado do salão, o criado com a taça da agonia aproximou-se de , estendendo a bandeja com naturalidade. O príncipe bastardo estendeu a mão para pegá-la já sentindo a garganta seca pelos assuntos que debatia com seu fiel escudeiro, enquanto observava a dama fatal ao longe.
Em um piscar de olhos, uma voz rouca e desconfiada cortou o ar.
— Deixe-me provar, alteza. Apenas… por precaução.
Lucien Falkhart, guarda pessoal, conselheiro e grande amigo de desde a infância — um homem de olhos duros, ombros largos e instinto afiado como a lâmina de sua espada. Considerado pelo príncipe como o equilíbrio perfeito entre a disciplina e o coração. Um homem de códigos, juramentos e convicções, disposto a morrer — e, se necessário, matar — para proteger quem considera digno de sua lealdade. Sua desconfiança de tudo ao seu redor o fazia cético, em relação a todos que circulavam os salões do poder. Carregando secretamente um grande temor por suas próprias emoções.
O passado ensinou-lhe que quem ama… sofre.
E quem protege… perde.
Antes da recusa de sua alteza, Lucien tomou-lhe a taça de sua mão e, em um só gole, despejou o vinho garganta abaixo. Por um instante, tudo pareceu normal, entretanto, em um piscar de olhos, o guarda leal levou a mão à garganta, sentindo-a arder. Seus olhos se arregalaram e as pupilas dilataram, uma ligeira fraqueza nos membros do corpo levou-o a derrubar a taça que se estilhaçou pelo chão de mármore.
— Al… … — sua voz saiu rouca, sufocada. — Enven…
As pernas logo falharam.
E seu corpo pesado desabou, batendo contra o chão com um som seco, seguido de um murmúrio coletivo do salão, que começava a perceber que algo estava errado. , no susto, tentou ampará-lo sem sucesso, sendo levado ao chão juntamente pelo amigo. sentiu o coração acelerar — não por remorso, não por culpa, mas porque isso não fazia parte do plano.
Ela não errava. Nunca errava.
E bastaram alguns minutos mantendo a atenção longe do seu alvo, que todo seu plano fora posto em risco. , ajoelhando-se ao lado do amigo com as mãos pressionando o peito de Lucien, acompanhou a mudança gradativa nas feições do amigo. O herdeiro bastardo não sabia como reagir diante do inesperado. Ao levantar a cabeça, seus olhos percorreram a todos os presentes, as atenções assustadas em sua direção.
— Chamem o médico real! — gritou ele em desespero. — Agora!
Alguns dos guardas que se mantinham em sentinela, se locomoveram para atender a ordem do príncipe. Ao centro do salão, Severin mantinha seu olhar apático ao ocorrido, entretanto, internamente a fúria e frustração o consumiam, fazendo-o sentir que havia perdido alguns lances naquele tabuleiro.
— Lucien, por favor, fica comigo — pediu ele, forçando a voz sair.
Não ambicionava perder um amigo daquela forma, ainda mais por perceber que o mesmo havia tomado o vinho em seu lugar. Foi então que sua mente se ascendeu, voltando seu olhar fulminante para apenas uma pessoa.
Não havia mais sorrisos, não havia mais joguinhos.
Apenas a raiva em seu estado bruto.
E um tipo estranho de decepção.
— Vhaloris — ele rosnou, levantando-se abruptamente. — GUARDAS!
O salão explodiu em caos.
As máscaras caíram, alguns dos convidados gritaram e outros correram, os mais intrigados assistiam paralisados. O restante dos guardas empunhou suas espadas, empurrando a multidão, procurando por ela. Contudo, , em sua sagacidade, deslizou pelas sombras como névoa, como foi treinada desde que sabia andar.
Sua mente se moveu mais rápido que seus pés.
O plano falhou, e agora… agora o jogo mudou.
De predadora, tornou-se a caça.
Porém, no fundo, já tinha em mente que a linha tênue entre essas duas coisas nunca fora tão clara. E fato era que a próxima vez que seus olhos cruzassem os de Grimwald, não haveria máscaras, apenas a fúria de um amigo que se culpava por tê-la deixado permanecer viva um dia.
O caos no salão se desenrolava como uma tempestade descontrolada.
Gritos, correria e espadas desembainhadas. , ainda em sua fuga, continuava como sombra entre os vultos, deslizando por frestas, por entre colunas e extensos corredores escuros e úmidos que compunham a vasta arquitetura do castelo. As botas silenciosas não deixavam rastros, pois ela conhecia esse jogo — sempre o conheceu.
Entrar. Matar. Sumir.
Mas, desta vez, algo estava errado. Se deslocando para chegar ao corredor lateral que levaria às passagens secretas do palácio, uma rede pesada caiu sobre ela, puxando-a ao chão. A armadilha não era improvisada — fora feita exatamente para conter alguém como ela, esperando-a que tomasse aquele caminho. Então, no ápice do desespero, lembrou-se do discreto sorriso de Isolde quando ordenou aos guardas a sua captura, levando-a a constatar que ambos os responsáveis pela ruína de sua família, haviam tramado não apenas uma execução naquela noite, mas sim, duas.
Seria como deter dois coelhos com uma única cajadada.
— ACHAMOS A ASSASSINA! — gritou um dos guardas. — Segurem-na! NÃO a subestimem!
lutou…
Chutou um dos guardas e girou o corpo para pegar a adaga presa em sua coxa com golpes precisos de defesa pessoal, conseguiu ferir mais dois guardas. Entretanto, eles estavam em vantagem numerosa e determinados a não a deixar escapar. Uma batida forte em sua cabeça, o suficiente para deixá-la sem os sentidos.
Seria o fim do legado da Casa de Vhaloris?
Algemas de aço negro se fecharam em seus pulsos. Uma corrente apertada envolveu seu pescoço, limitando seus movimentos e sua respiração. Ao despertar de sua sonolência pelo impacto na cabeça, um misto de frustração tomou conta de si ao lembrar-se do que lhe aconteceram antes do desmaio.
— Soltem-me, vermes! — gritou com os olhos ardendo de ódio.
Mas era tarde.
As sombras que sempre estiveram ao seu lado agora pareciam traí-la. O som dos seus gritos ecoou pelos corredores frios e úmidos das masmorras do castelo, ao contrário da luz que rescindia o grande salão pelos lustres de cristais, as escassas chamas das tochas espalhadas em pontos estratégicos, não lhe dava nem mesmo a chance de entender o que acontecia ao seu redor.
O cheiro de ferrugem, mofo e sangue seco passou a ser perceptível nas suas narinas.
Ali não existia honra, nem misericórdia. As paredes de pedra absorviam os gritos como se estivessem famintas. Correntes, ganchos, mesas de ferro. E ao centro, ela — lançada como um animal, algemada, ensanguentada, respirando com dificuldade.
Não demorou para começarem a leve sessão de tortura, prática essa desconhecida pela sociedade aristocrata, mas que demonstrava a real face da coroa de Cahir. Primeiro os golpes? Socos e chutes na região do abdômen. Depois, lâminas pontiagudas que demarcavam precisamente pequenos cortes, não letais, mas fundos o suficiente para dilacerar músculos, arrancar controle, forçar submissão.
rangeu os dentes, o rosto sujo de sangue e poeira.
Ela não chorava. Nunca.
Cada grito arrancado de sua garganta era uma promessa silenciosa de vingança.
Não a , mas àqueles que a forçaram a tal situação.
— Diga o que queremos, assassina! — urrou o comandante da guarda, empurrando uma adaga quente contra sua pele. — A quem tentava envenenar?
Ela apenas riu.
Uma risada rouca, que mais parecia insanidade ao invés de lucidez. Um momento de silêncio e o som de passos fortes e firmes ecoaram pelo lugar. Em instantes, a figura de adentrou o calabouço com a capa negra ondulando atrás de si, o olhar duro como pedra. Não trazia mais a máscara. Seus olhos, verdes como lâminas de jade, faiscaram com fúria… e algo mais.
Desapontamento.
Ordenou em silêncio, com um único gesto, a retirada dos guardas. Os homens, em obediência, recuaram com precisão, saindo da cela em que estavam, seus movimentos foram lentos o suficiente para que o príncipe notasse suas mãos manchadas com o sangue dela. Mais uma onda de silêncio com ambos se encarando. Mesmo naquela posição, mantinha sua postura rígida de assassina implacável.
Aproximando mais, ele agachou diante dela.
Observou-a como se observasse uma lâmina partida — bela, perigosa, mas agora… vulnerável. Internamente, sentia a mistura de sentimentos o consumindo como as chamas que um dia consumiram a casa da dama à sua frente.
— Diga-me uma coisa, Vhaloris… — sua voz saiu baixa, grave, carregada de ferocidade contida — …você pretendia me matar durante… ou depois do baile?
Mantendo o olhar nele, tossiu um pouco por suas condições físicas, então, cuspindo sangue no chão, o respondeu com um sorriso trêmulo.
— Ainda estava calculando a hora exata, afinal, você dança bem… — respondeu com o soar de deboche. — Quase me convenceu a esperar até a meia-noite.
Seus olhos se estreitaram, movendo-se para o chão, o peso de seu corpo a fez sentir um esgotamento desconhecido por ela. Porém, a mão dele agarrou seu queixo, obrigando-a a encará-lo.
— Lucien está morto por sua causa — afirmou com o gosto amargo na boca.
— Não está, ainda. — Suas palavras soaram como um vento gélido e cortante. — Ao contrário do que pensa, ele ainda está vivo, mas pode desfrutar de uma morte lenta e tortuosa.
— Está mentindo — retrucou em desconfiança. — Como sempre.
Ela o encarou.
E, pela primeira vez naquela noite, o jogo virou. ainda tinha a carta mais valiosa.
— Sabe que não brinco em serviço… Posso te dar o antídoto. — Sua voz saiu baixa, rouca, mas firme. — Mas nada vem de graça.
apertou o maxilar dela com mais força.
— Não vou deixar que brinque comigo novamente. — Áspero e inexpressivo.
— Não estou brincando — confirmou.
Seu olhar seguro o fez confiar em suas palavras.
“Someone call the doctor.”
– Overdose / EXO
Contrato de Sangue
— O que você quer? Sua liberdade? Sua vida? Misericórdia? — Ele riu baixo, lutava contra seus desejos reprimidos que ansiavam explodir numa péssima hora. — Não terá nenhuma dessas coisas.
— Vingança — respondeu de imediato. — Vossa alteza quer o trono de volta, e eu ambiciono a queda dos que causaram a ruína de minha família… Proponho um acordo.
Ele arqueou uma sobrancelha, surpreso.
— Um acordo?
Ela respirou fundo, sentia acentuadamente a dor que latejava em cada músculo de seu corpo.
— Eu te dou o antídoto… E, em troca, permita-me vingar dos nossos inimigos em comum — propôs num tom firme e seguro, de alguém que não parecia ter sido torturada a minutos atrás. — Mais que isso… Contrate-me como sua guarda pessoal.
Seus olhos, mesmo marcados pela dor, arderam como brasas.
— O ajudarei a reclamar vosso trono por direito, cortarei as cabeças de quem nos apunhalou. Sabes que ninguém é mais eficiente e mais leal à coroa que um Vhaloris — ela continuou mediante o silêncio estático dele. — E você é a verdadeira coroa.
— Tens consciência de vossas palavras? — indagou, ainda absorvendo a proposta.
— Sim. — Seu sorriso enigmático escondia o quão quebrada internamente ela estava, seu coração sangrando. — Sabes que ninguém se move na escuridão como eu, e sou vossa única chance.
Mais uma leva de silêncio pairou pelo ar.
O som do gotejar da água no fundo do calabouço pareceu uma sinfonia aos ouvidos de ambos. Soltando-a com leveza, afastou-se em dois passos e voltou seu olhar para a grade da cela. Só havia dois caminhos a seguir: condená-la ou salvá-la.
Por fim, sua voz ecoou, grave, cortante:
— Aceito vosso acordo… Viverás e lutarás por mim, e se me trair novamente… — virou-se para encará-la, olhos faiscando como lâminas — não haverá calabouço. Não haverá misericórdia. Haverá apenas… uma cova sem lápide.
Um sorriso no rosto de a fez tossir mais uma vez e cuspir mais sangue.
— A morte sempre foi uma velha amiga, alteza — sussurrou, não se intimidando por sua ameaça.
E assim, selou-se o acordo que mudaria para sempre o destino de Cahir.
O som das correntes sendo destravadas ecoou pelo calabouço. Ainda presa pelos tornozelos, foi forçada a caminhar a passos limitados pelos corredores mais iluminados, as mãos livres apenas o suficiente para cumprir sua parte. Levada para a parte mais aberta do calabouço, uma mesa de carvalho escuro, arranhada pelo tempo e marcada por antigos acordos, os aguardava ao centro. Apenas ele e ela, sem a presença dos guardas, que foram instruídos a aguardarem na entrada principal.
A dama deslizou seus dedos sobre a mesa até chegar a um pergaminho grosso, selado com a insígnia da Casa Grimwald — a figura de um lobo cinzento gravado em cera negra. Ao lado do pergaminho, uma adaga curta, com lâmina de prata, repousava. Nenhuma pena. Nenhuma tinta.
A assinatura seria feita com sangue.
E não havia necessidade de uma única letra a ser escrita no documento. A palavra e o juramento de um Vhaloris era a evidência de sua honra.
— Por este juramento, eu, Grimwald, herdeiro legítimo do trono de Cahir, estabeleço um contrato de aliança e serviço com Vhaloris, herdeira da Casa dos Corvos. A contratada oferece seus talentos, habilidades, informações e serviços até que o contratante reivindique plenamente o trono. Em troca, sua vida será preservada, terá liberdade sob vigilância e sua sentença por tentativa de assassinato será anulada — finalizou, enfatizando o propósito principal. — E me entregará o antídoto, antes do raiar do sol.
Ele respirou fundo, mantendo o olhar fixo nela.
— Eu, Vhaloris, perante este contrato de sangue, juro lealdade ao verdadeiro herdeiro do trono de Cahir, oferecerei minhas habilidades e talentos a fim de ajudá-lo em sua jornada pela reconquista do trono, protegendo de qualquer ameaça de vossos inimigos. — Ignorando a dor latejante, manteve firmeza na voz. — Sabendo que a quebra de minha lealdade resultará em execução imediata.
Mesmo sendo de tal família, ela nunca havia feito o juramento à coroa antes.
Nunca havia se sentido pronta para assumir tal responsabilidade, pois sabia que a partir daquele momento, sua vida estaria conectada para sempre com o herdeiro.
pegou a adaga, cortou levemente a palma da mão, deixando o sangue escorrer grosso, rubro, contra o metal escuro. Então, pressionou a mão contra o pergaminho vazio, deixando a marca nítida, uma impressão de linhas e veias entrelaçadas como raízes. , sem hesitar, fez o mesmo, apertando a mão contra o papel, sobrepondo sua marca à dele.
Duas impressões de sangue unidas.
Indissolúveis.
— O antídoto — pediu ele, de forma seca.
respirou fundo.
Seus dedos foram até a bainha interna de sua bota, o único lugar que, mesmo revistada, ninguém ousaria mexer a fundo. De lá, retirou um pequeno frasco de vidro com líquido âmbar avermelhado, parecia vibrar mesmo com a fraca luz das tochas.
Erguendo o frasco, voltou a encará-lo.
— Uma única gota. Direta sob a língua. Antes que o veneno alcance o coração. — Sua voz soou seca, com leve traços de fraqueza, porém, ainda desafiadora. — Depois disso, ele viverá.
— Irá funcionar? — indagou ele ainda em desconfiança.
— Acabei de fazer-lhe um juramento, não posso mais mentir para a coroa. — Sua resposta enigmática o fez entender.
arrancou o frasco de suas mãos, girando sobre os calcanhares para se retirar do lugar.
— Se ele morrer… — sussurrou , mesmo que ele já estivesse longe. — Não sou eu quem você deveria temer. E sim a própria morte.
—
Lucien jazia sobre uma cama de pedra no quarto dos guardas.
O corpo encharcado de suor, os olhos semicerrados, sem nenhum movimento que acusasse estar vivo, com seus batimentos quase imperceptíveis. Sem esperar, aproximou-se dele a passos cautelosos, pedindo a Deus para que funcionasse. Segurando-lhe o queixo com força, despejou uma única gota do líquido sob sua língua, como havia sido instruído. Em segundos, os olhos de Lucien se abriram. Mesmo com a visão turva, o homem sabia que a pessoa parada diante dele era o amigo. As veias escuras começaram a recuar lentamente, desaparecendo sob a pele, e acompanhou todo o ligeiro processo de recuperação em silêncio.
E então, soou um suspiro longo e fraco, porém vivo.
— A…… — A voz baixa e falha, mas carregada de reconhecimento. — Ela… tentou…
apertou-lhe o ombro, interrompendo.
— Eu sei. Mas agora ela jurou lealdade ao verdadeiro Príncipe Herdeiro de Veyrden — anunciou o príncipe com a voz branda, com a intenção de transmitir segurança ao amigo.
Mesmo febril, o olhar do homem se estreitou, confuso e desconfiado.
— Você… En… Enlouqueceu? — Mesmo naquele estado, ele não deixaria de demonstrar sua desaprovação.
— Talvez — respondeu, com um sorriso frio. — Ou talvez eu tenha encontrado a lâmina perfeita para cortar as correntes que nos prendem.
Sentindo suas forças retornarem aos poucos, Lucien ergueu seu corpo com a ajuda de .
— Não se force, mandarei o médico real cuidar de vossa recuperação — ordenou ele, demonstrando paciência para com o amigo. — Nos falamos quando estiver melhor.
Em seu retorno ao calabouço, as portas se fecharam atrás deles com um estrondo seco, quebrando o silêncio que havia se instalado. permanecia próxima à mesa, com o olhar fixo em suas digitais estampadas no pergaminho, e tentava entender qual caminho a havia levado àquela situação. aproximou-se, em observação a cena diante dele, não acreditando que a mulher que tanto desejava para si havia se ligado a ele naquela noite.
Não da forma que esperava.
Porém, sabia que tê-la ao seu lado poderia ser sua melhor — ou pior — aposta.
— Vosso silêncio é um sinal de que o antídoto funcionou — ela cortou o silêncio, voltando o olhar para ele.
Parado em sua frente, o olhar de apenas conseguia se concentrar nos lábios da dama que lhe atormentava os sonhos. Mais um passo para perto, sem um recuo da outra parte. Com seus corpos a poucos centímetros e a respiração sincronizada, ele ergueu sua mão direita tocando-a em seu ombro descoberto pelo vestido rasgado. Uma onda de eletricidade percorreu por eles, fazendo-os sentirem arrepios involuntários.
— Vhaloris… — sussurrou ele, a voz falha e rouca. — Não sabes como me destrói de um jeito que nem mesmo seu veneno seria capaz.
sentiu seu corpo estremecer por completo, com os olhos fixos nos dele, por um instante o mundo inteiro desapareceu.
Só restavam eles.
A mágoa.
O orgulho ferido.
E esse maldito desejo que teimava em existir mesmo onde só deveria haver sangue.
O silêncio queimava.
Contudo, ela não demonstrou reação inicial. Por um instante, ele inclinou-se o suficiente para que os narizes quase se tocassem. O hálito quente dele roçou em seu rosto, provocando outra onda de arrepio. A quem pensavam enganar? Desejavam um ao outro mutuamente, com toda a intensidade que lutavam para não sentir. Em instantes, a rendição de ambos os lados deu espaço para que seus lábios se encontrassem em um misto de malícia e doçura, que lhes permitia aprofundar ainda mais naquele beijo desesperado.
Logo, os dedos de deslizaram por suas costas, trazendo-a mais para perto, a cada avanço seus anseios por mais dela, toda a bagagem de ressentimentos passados parecia ter sido esquecida. Naquele curto espaço de tempo, permitiram externar seus sentimentos reprimidos, as aspirações que tanto lhes tiravam o sono quando seus pensamentos eram levados um ao outro. Se a estação era mesmo o inverno, aquele frio e úmido lugar presenciava um calor mais ardente que o dia mais quente do verão.
Entre beijos intensos e carícias mútuas…
Se mais um suspiro escapasse… seriam dois.
Se mais um centímetro se rompesse… seriam nenhum.
Porque eles seriam um só.
Entretanto, a razão voltou-lhe com a mesma rapidez que havia se retirado, e, travando sua mandíbula, afastou-se de imediato, enrijecendo o olhar como se, naquele segundo, odiasse a si mesmo mais do que odiava a ela.
— Não — sussurrou, mais para si do que para ela. — Não permitirei mais distrações.
Ele recuou.
Um passo.
Dois.
Os punhos fechados, como se o próprio corpo traísse a decisão que a mente teimava em manter. respirou fundo, tensa, cada fibra do corpo tremendo de raiva e frustração, lutando contra aquele sentimento que não queria admitir nem sob tortura.
virou-se, as costas rígidas.
— Cubra-se — ordenou com a entonação mais grossa, ao retirar sua capa e esticar para ela. — Tem um príncipe para ajudar, e eu, um trono para reaver.
As últimas palavras saíram amargas, mais baixas, mais partidas do que ele queria demonstrar.
E, naquele silêncio que restou, ambos sabiam…
O problema nunca foi o ódio.
Foi tudo o que existia… além dele.
Ya no importa cada noche que esperé
Cada calle o laberinto que crucé
Porque el cielo ha conspirado a mi favor
Y, a un segundo de rendirme, te encontre
– Creo en Ti / Lunafly
“Amor: A vida é feita de escolhas. Quando você dá um passo à frente, inevitavelmente alguma coisa fica para trás.” – Pâms
MULHER. COMO QUE TU ME CRIA ESSE AMBIENTE E ESSE ENREDO E ME TERMINA ASSIM? EU QUERO SABER DA VINGANÇA. EU QUERO VER ALARIC TOMANDO O TRONO PRA ELE. E QUERO VER ESSA PAIXÃO DELES VOLTAR COM TUDO.
Ai, eu sofro sendo sua leitor, viu?
Vai preparando a continuação dessa história já, oras bolas!
Mulher está maravilhosooooo eu quero mais, vou aguardar ansiosa