Bad Reputation
“She got a bad reputation
She takes the long way home
And all of my friends seen her naked
Or so the story goes
Mistakes, we all make them
But they won’t let it go
‘Cause she’s got a bad reputation
But I know what they don’t, hummm”
Eu a observava desaparecer longe andando, apressada com os fones de ouvido tampando-lhe toda a orelha. Ela seguia com aquela postura que parecia carregar o mundo inteiro nas costas, como se estivesse sempre fugindo de algo — ou de alguém.
A rua vazia fazia seu caminhar parecer mais solitário, mas havia algo em como ela se movia que capturava minha atenção. Talvez fossem as histórias que se espalhavam como fogo por todos os cantos.
“Ela tem má reputação”, dizem. Dizem muitas coisas, na verdade. Comentários maliciosos se transformam em verdades para quem gosta de falar demais.
”
Todos os meus amigos já a viram nua”, ou assim dizem as fofocas. O tipo de frase dita em voz baixa, mas alta o suficiente para que alguém como eu ouça. E, no entanto, ela segue como se nada pudesse atingi-la, como se as palavras não tivessem peso algum.
Claro, todos cometemos erros. Quem não cometeu? Mas, com ela, não deixam passar. Cada deslize vira uma cicatriz exposta, apontada, repetida. Carregam-na em julgamentos intermináveis, mas ninguém vê o que está por trás. Ninguém parece disposto a enxergar o que eu vejo.
Porque eu sei o que eles não sabem.
Eu sei do olhar perdido que ela lança às vezes, como se buscasse algo que nem ela sabe nomear. Sei da força que ela esconde em cada palavra quando alguém tenta rebaixá-la. E sei, acima de tudo, que os julgamentos alheios só reforçam a solidão que ela já aprendeu a suportar.
Enquanto a vejo dobrar a esquina, fico com essa verdade gravada em mim. Eles a enxergam como um mistério manchado por histórias que nem sempre são reais. Mas, para mim, ela é um livro ainda por escrever, com páginas que só esperam alguém disposto a lê-las sem preconceitos.
E talvez… eu queira ser esse alguém. Eu a conhecia. Sabia de cada mania, cada jeitinho dela. Posso não a conhecer de perto, mas a conheço de longe. Por muito tempo eu a observei. Durante muito tempo eu prestei atenção nela, mesmo ela achando que ninguém a reparava. Eu reparei. E eu vi quando ela, um dia, agiu como se fosse outra pessoa, só pra chamar atenção de alguém. Mal sabia ela, que já tinha um alguém e ela não precisava ser outra, só ela mesma.
🎭🎭🎭
“She got a bad reputation
Nobody gets too close
The sight of a soul when it’s breaking
Making my heart grow cold”
Ao chegar em casa, o céu já estava tingido de tons laranja e roxo, como se o dia tivesse exalado seu último suspiro. O portão rangeu baixo enquanto o empurrei, e antes de entrar, meus olhos pararam nela — sempre nela.
Lá estava ela, sentada na calçada de casa, tão perto e tão distante ao mesmo tempo. Os fones de ouvido ainda cobriam suas orelhas, abafando o mundo ao seu redor. As pernas cruzadas, um caderno equilibrado no colo, e uma caneta que dançava rápida sobre as páginas.
Desde crianças, sempre a observei assim, absorta em seus próprios pensamentos, escrevendo como se sua vida dependesse daquilo. Talvez dependesse. Mas naquela época, tudo parecia mais simples. Não havia boatos, não havia julgamentos, só tardes preguiçosas e risos abafados entre a grama do quintal.
Agora, o mundo era outro — e ela também.
As palavras de todos os outros voltaram à minha mente, insidiosas:
“Ela tem uma alma partida.” Dizem que dá para ver nos olhos dela. Dizem que ninguém chega perto porque essa alma queimada arde em qualquer um que tenta tocá-la.
Eu a via diferente. Para mim, aquele momento ali na calçada, sozinha e escrevendo, era menos sobre uma alma quebrada e mais sobre uma luta silenciosa. O som de uma alma que tentava se costurar sozinha.
Ela não percebeu que eu estava ali, ou se percebeu, não deixou transparecer. A luz do poste criava um contorno dourado ao redor dela, um contraste bonito contra a escuridão que começava a envolver o resto do bairro.
Eu fiquei mais alguns segundos observando, o peito apertado por algo que eu não sabia nomear. A forma como ela se isolava, como deixava o mundo inteiro lá fora, fazia meu coração encolher. Era como se, a cada vez que ela se protegia, eu também perdesse um pouco da vontade de tentar.
Então, eu subi os degraus de casa, mas antes de entrar, olhei para trás. Ela ainda estava ali, alheia a tudo. Por um instante, pensei em chamá-la, mas minha voz morreu antes de sair. Fechei a porta suavemente, sabendo que, por mais perto que estivéssemos, o abismo entre nós nunca pareceu tão grande.
🎭🎭🎭
“And into the deeper, she’s sinking
I’m begging her, please, don’t let go
She’s got a bad reputation
But she’s all that, she’s all I want though, humm”
Na manhã seguinte, a escola fervilhava com o burburinho habitual. Risadas ecoavam pelos corredores, grupos se formavam no pátio e as conversas pareciam girar em torno de tudo e nada ao mesmo tempo. Eu estava com meus amigos, ouvindo pela metade enquanto eles debatiam sobre o próximo jogo, mas minha atenção logo foi capturada por ela.
Ela estava no canto do pátio, sentada sozinha perto do gramado, os fones novamente enfiados nos ouvidos, como se quisesse se desligar de tudo ao redor. Mas o mundo parecia não saber respeitar essa distância.
Duas garotas se aproximaram, sorrisos maliciosos estampados em seus rostos. Eu não consegui ouvir o que disseram, mas pelo jeito que riram entre si e apontaram para ela, não era nada bom. Uma delas tomou o caderno que estava em seu colo, segurando-o acima da cabeça, enquanto a outra fingia ler algo das páginas. A risada delas era alta, cruel.
Eu senti meu peito apertar, o sangue começar a ferver nas veias.
Ela não reagiu. Ficou ali, imóvel, com o olhar fixo no chão, os ombros tensos, mas sem dizer uma palavra. Era como se estivesse afundando cada vez mais fundo, deixando-se engolir por algo invisível que eu não conseguia alcançar.
“Ela está afundando cada vez mais.” As palavras ecoaram na minha mente, repetindo o que todos diziam sobre ela. Que ela já havia desistido de lutar, que era melhor deixar para lá.
Mas eu sabia que não era assim tão simples. Eu via algo que ninguém mais parecia enxergar:
ela ainda estava lutando. Era uma luta silenciosa, desesperada, de quem segurava com todas as forças uma corda que já estava esgarçada.
“Por favor, não solta,” pensei, quase como uma súplica. Porque, por mais que quisessem pintá-la como alguém que só afundava, ela era tudo o que eu queria, tudo o que eu não sabia como proteger.
Uma das garotas empurrou o caderno contra ela com força, derrubando-o no chão antes de se afastarem, ainda rindo. Ela abaixou para pegá-lo, sem olhar para ninguém, e voltou a se sentar. Para os outros, era apenas mais um episódio. Para mim, era como assistir a um naufrágio em câmera lenta, incapaz de fazer qualquer coisa para mudar o curso.
Eu devia ter ido até ela naquele momento. Devia ter dito algo, mostrado que não estava sozinha. Mas meus pés estavam presos no chão, a vergonha e a impotência amarrando minhas ações. Ela tinha má reputação, e talvez eu fosse covarde demais para enfrentar isso de frente.
Mas, ao mesmo tempo, sabia que nada do que falassem importava para mim. Porque, no fim, ela era tudo o que eu queria, tudo o que meu coração insistia em querer salvar.
E era isso que me matava.
🎭🎭🎭
“And I don’t care what they say about you baby
They don’t know what you’ve been through
Trust me I could be the one to treat you like a lady
Let me see, what’s underneath, all I need is you”
O destino tem uma forma engraçada de jogar com a gente. Naquela tarde, depois da aula, me peguei indo para o estacionamento mais tarde do que o usual. Estava procurando minhas chaves quando a vi: , encostada no muro, uma expressão de irritação misturada com cansaço.
— Droga… — ouvi-a murmurar para si mesma, chutando uma pedra no chão.
— Algum problema? — perguntei, me aproximando.
Ela levantou os olhos, surpresa por minha presença, mas não disse nada no início. Por fim, apontou para a bicicleta que estava ao lado dela. O pneu estava murcho, praticamente no chão.
— É só isso? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.
— É. Mas não tenho bomba de ar, então vou ter que empurrar até em casa.
— Ou você pode aceitar a ajuda do seu vizinho de longa data — sugeri, tentando um sorriso.
Ela hesitou, mas no fim acabou dando de ombros.
— Tudo bem, mas não precisa se preocupar.
Ignorei a última parte. Peguei a bicicleta e a empurrei ao meu lado enquanto caminhávamos. Silêncio. Era curioso como o silêncio entre nós parecia falar mais do que qualquer conversa.
— Obrigada, — disse ela de repente, sua voz suave, mas firme.
Eu parei, virando para encará-la. Havia algo no jeito como ela disse meu nome que me fez sentir…
diferente.
— Me chame de
. É assim que me chamam — expliquei, tentando soar casual, mas sentindo o peso do momento.
Ela inclinou a cabeça, os olhos fixos nos meus. Depois de alguns segundos, simplesmente balançou a cabeça, como se não quisesse discutir, e começou a andar novamente.
Sem pensar muito, me apressei para acompanhá-la.
— Vou com você — falei, empurrando a bicicleta ao lado dela.
Ela lançou um olhar desconfiado, mas não tentou me afastar. E assim seguimos, um ao lado do outro, com o som dos nossos passos preenchendo o caminho vazio.
Quando chegamos ao portão da casa dela, ela parou, finalmente se virando para mim.
— Obrigada, de verdade — disse, sua voz mais suave dessa vez.
— Sem problemas — respondi. — Sempre que precisar, .
Ela olhou para mim, e por um segundo, quase parecia…
vulnerável. Mas então ela balançou a cabeça, como se afastasse qualquer pensamento que pudesse surgir, e entrou em casa sem dizer mais nada.
Enquanto eu me afastava, não consegui deixar de sorrir. Talvez aquele fosse apenas um pequeno gesto, mas algo me dizia que, de alguma forma, estávamos começando a nos aproximar. E, desta vez, eu não deixaria ela se afastar tão facilmente.
🎭🎭🎭
O restaurante da minha família era pequeno, mas movimentado, uma daquelas joias do bairro que todos pareciam conhecer. Era praticamente uma extensão da minha casa, já que ficava no terreno ao lado. Depois de um dia de aula, minha rotina quase sempre incluía ajudar no que fosse necessário — limpando mesas, atendendo alguns clientes ou simplesmente levando os pedidos para a cozinha.
— , leva isso aqui para a mesa dois — chamou minha mãe, segurando uma bandeja cheia.
— Já estou indo! — respondi, pegando a bandeja e equilibrando-a com habilidade.
Era assim até o sol começar a desaparecer e as luzes da rua tomarem conta. Quando terminei minhas tarefas, desejei uma boa noite aos meus pais e caminhei de volta para casa, sentindo o cheiro familiar de comida no ar e o cansaço do dia me alcançando.
Ao dobrar a esquina, meu olhar foi automaticamente atraído para ela. estava escorada no poste em frente à sua casa, o mesmo caderno no colo, mas sem os fones desta vez. A luz amarelada do poste iluminava os fios bagunçados do cabelo dela e as sombras sob seus olhos.
Não sei o que me fez mudar de direção, mas antes que percebesse, já estava andando em direção a ela.
— Você não cansa de estudar? — perguntei, tentando soar descontraído.
Ela levantou os olhos para mim, e eu vi o instante exato em que a guarda dela subiu. Seu rosto ficou tenso, e ela fechou o caderno com um movimento rápido.
— Se você veio até aqui achando que vou
transar com você só porque me ajudou mais cedo, pode tirar o cavalinho da chuva — disparou, a voz firme, mas o olhar carregado de algo mais. Algo como cansaço. — Sei que é isso que está pensando, porque é isso que todos os garotos pensam de mim.
As palavras dela me atingiram como um tapa. Pisquei, surpreso, e a indignação começou a subir.
— O quê? — interrompi, a voz mais alta do que pretendia. — Você tá falando sério agora?
Ela me encarou, esperando algum comentário sarcástico ou alguma confirmação de que tinha razão. Mas não tinha.
— Olha, eu não sei quem colocou isso na sua cabeça, mas não sou
“todos os garotos” — continuei, cruzando os braços. — Só achei que talvez você quisesse companhia. Só isso.
Ela franziu o cenho, como se tentasse decifrar minha expressão, buscando alguma mentira ou intenção oculta.
— Todo mundo acha que me conhece, — disse, o tom defensivo permanecendo.
— E talvez ninguém realmente conheça — rebati. — Mas não significa que eu vou te julgar pelo que falam.
Ela ficou em silêncio, os olhos abaixando por um instante antes de voltarem para mim. O poste iluminava metade do rosto dela, e pela primeira vez eu vi o cansaço genuíno em seus olhos, o peso de carregar algo maior do que ela deveria.
— Só estou tentando ser legal, — falei, com a voz mais baixa. — Você pode me deixar ser?
Ela hesitou, parecendo dividida entre aceitar minha presença ou me afastar de vez. Mas, no fim, só balançou a cabeça e voltou a abrir o caderno.
— Só não se acostuma — murmurou, sem olhar para mim.
Eu sorri de leve, sentando-me no chão, a poucos metros dela. Não disse mais nada. Não precisava. Alguma coisa me dizia que, mesmo sem palavras, estávamos construindo algo, por menor que fosse.
🎭🎭🎭
Os dias seguintes trouxeram uma estranha frequência às nossas interações. parecia não saber se confiava em mim ou não, mas, de alguma forma, sempre acabávamos próximos um do outro. Como naquela tarde em que, saindo do restaurante, a vi sentada na calçada de casa novamente, o caderno no colo e os fones cobrindo as orelhas.
Eu me aproximei devagar, sem querer assustá-la, mas ela percebeu.
— Vai ficar me seguindo agora, ? — perguntou, sem levantar o olhar.
Sentei-me ao lado dela, sem pedir permissão.
— Você tem o lugar mais confortável do bairro — respondi, apontando para o chão.
Ela bufou, mas não me mandou embora. Isso já era um progresso.
— O que você tanto escreve aí? — perguntei, inclinando-me ligeiramente para tentar ver o caderno.
Ela fechou o caderno com força, lançando-me um olhar de advertência.
— Nada que interesse a você.
— Segredos? — provoquei, apoiando o queixo na mão enquanto a observava.
— Não quando acho que vale a pena.
Ela revirou os olhos, mas dessa vez havia um leve sorriso escondido no canto dos lábios.
🎭🎭🎭
No outro dia, nos encontramos na escola, dessa vez na biblioteca. Eu estava procurando um livro para um trabalho, e ela estava no canto mais afastado, cercada de papeis e anotações. Parecia tão concentrada que quase senti pena de interrompê-la, mas algo me fez continuar.
— Não sabia que você passava tanto tempo aqui — comentei, puxando uma cadeira ao lado dela.
Ela ergueu os olhos, claramente surpresa, mas não disse nada.
— Precisa de ajuda? — perguntei, apontando para o monte de papeis.
— Eu sei me virar sozinha.
— Isso eu já percebi. Mas, às vezes, é bom ter companhia, sabe?
Ela hesitou, os olhos voltando para as anotações. Depois de alguns segundos, empurrou um dos papéis na minha direção.
— Tá, me ajuda com isso aqui.
Senti meu peito aquecer com a pequena vitória. Passamos as próximas horas juntos, em um silêncio confortável, trocando ideias sobre o trabalho dela. De vez em quando, eu a pegava me observando, mas ela sempre desviava o olhar rapidamente, como se não quisesse ser pega.
🎭🎭🎭
As interações entre nós começaram a se tornar quase naturais. À noite, quando eu saía do restaurante, ela estava lá, escorada no poste ou na calçada, e eu acabava sentando ao lado dela, falando sobre tudo e nada ao mesmo tempo.
Uma noite, depois de um longo silêncio, ela falou:
— Por que você insiste, ?
Eu a encarei, tentando entender o que ela queria dizer.
— Em mim. Todo mundo me evita, mas você parece querer estar perto.
Pensei por um momento antes de responder.
— Talvez porque eu veja algo que os outros não veem.
Ela ficou em silêncio, os olhos fixos no chão. Mas dessa vez, não se afastou.
E foi assim que começamos a construir algo maior do que eu esperava. Aos poucos, ela foi baixando a guarda, e eu fui aprendendo mais sobre o que realmente existia por trás daquela fachada que todos julgavam. Eu só precisava de tempo, e ela precisava acreditar que alguém finalmente estava disposto a ficar.
🎭🎭🎭
Era intervalo, e o pátio da escola estava cheio. estava no canto de sempre, perto da quadra, tentando ignorar o burburinho ao seu redor enquanto rabiscava em seu caderno. Eu a observava de longe, conversando com alguns amigos, quando percebi um grupo de garotas se aproximando dela.
— Ah, olha só quem tá aqui — uma delas começou, a voz carregada de deboche.
manteve os olhos no caderno, mas era impossível não notar o corpo dela enrijecer.
— Não vai dizer nada, ? Ou tá ocupada demais anotando os nomes dos próximos garotos que vai levar pra cama?
A risada cruel que veio em seguida fez meu sangue ferver. Antes que pudesse pensar, já estava me afastando do meu grupo e andando na direção delas.
— Ei, já deu — falei, firme, parando ao lado de .
As garotas me encararam, surpresas, mas não demoraram a recuperar o tom debochado.
— Que bonitinho, o herói da — uma delas disse, cruzando os braços. — Tá esperando a sua vez também, ?
Senti puxar levemente a manga do meu casaco, como se me pedisse para não me envolver, mas eu não consegui segurar.
— Só achei que vocês tinham coisas melhores pra fazer do que inventar histórias sobre os outros — rebati, mantendo o olhar fixo nelas.
— Histórias? — a líder do grupo riu. — Todo mundo sabe que é verdade. Não se faz de santo, . Ela só serve pra isso mesmo.
O som da risada delas ecoava como um eco irritante, mas antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, ouvi outra voz atrás de mim.
— , você tá defendendo ela? — Era Jun, um dos garotos do meu grupo de amigos. Ele vinha andando até nós com um sorriso cínico. — Claro, né? Tá esperando o quê? Ela é fácil. Todo mundo sabe.
— Cala a boca, Jun — falei entre os dentes.
Ele riu, aproximando-se mais.
— O quê? Vai negar? Tá todo mundo vendo. Você só tá defendendo porque tá de olho no que ela pode te dar. Todo mundo aqui sabe pra que a serve.
O som do meu punho encontrando o rosto dele foi alto o suficiente para silenciar o pátio inteiro. Jun cambaleou para trás, segurando o nariz com uma expressão de choque, enquanto as garotas ao redor soltavam gritos de surpresa.
— Tá maluco?! — ele gritou, a voz abafada pelo sangue que começava a escorrer do nariz.
— Não fala dela assim de novo — eu disse, minha voz carregada de raiva.
Ele avançou, e, antes que eu percebesse, estávamos no chão, lutando. Eu não me importava com os gritos ao nosso redor, nem com as mãos tentando nos separar. Tudo o que eu conseguia pensar era no quanto aquilo era errado, no quanto não merecia ouvir nada do que diziam.
Quando finalmente nos separaram, eu estava ofegante, com a camiseta amassada e o gosto metálico de sangue na boca. O diretor já estava a caminho, e eu sabia que a bronca seria inevitável.
Mas, quando olhei para , ela estava parada ao lado, os olhos arregalados e brilhando como se não soubesse o que sentir.
— … — ela começou, mas eu balancei a cabeça.
— Tá tudo bem — respondi, antes de ser levado pelos inspetores.
E, naquele momento, soube que faria aquilo de novo, quantas vezes fosse necessário. Porque, por mais que o mundo insistisse em derrubá-la, eu não deixaria que fizessem isso enquanto estivesse por perto.
🎭🎭🎭
“Nobody knows the way that I know her, said
Nobody knows the weight that’s on her shoulders, said
Nobody knows the way that I know her, said
She got a bad, she got a bad…”
A chuva caía em pesadas cortinas, encharcando tudo ao redor. O som das gotas contra o asfalto era quase ensurdecedor, mas não o suficiente para abafar o barulho dos pneus da bicicleta de contra o chão. Ela pedalava rápido, como se fugisse de algo, o capuz da jaqueta mal protegendo o rosto das gotas insistentes.
Eu corria atrás dela, os tênis escorregando de vez em quando nas poças d’água.
— ! Espera! — gritei, mas ela não parou.
A chuva tornava tudo mais difícil — o ar parecia mais pesado, o frio penetrante, mas eu não ia desistir. Eu sabia que ela estava magoada, talvez com raiva, talvez triste, e eu precisava alcançá-la.
Finalmente, ela reduziu a velocidade, talvez cansada, talvez percebendo que eu não iria desistir. Quando a alcancei, ela já havia parado a bicicleta no meio da calçada, ofegante.
— O que você tá fazendo, ? — perguntou, a voz misturada com a chuva.
Eu não respondi imediatamente, ainda recuperando o fôlego. Quando nossos olhares se encontraram, havia algo no rosto dela que me fez congelar. Um misto de dor e alívio, de cansaço e desespero.
— Você não precisa… — ela começou, mas a voz falhou.
Eu dei um passo à frente, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, ela desceu da bicicleta e se jogou nos meus braços. O impacto me fez dar um passo para trás, mas eu a segurei com força, sentindo o calor do corpo dela contra o meu, mesmo com as roupas molhadas.
— Por quê? — ela murmurou contra meu peito, a voz abafada. — Por que você tá aqui?
— Porque você não precisa passar por isso sozinha — respondi, minha voz firme apesar da adrenalina que ainda corria pelo meu corpo.
Ela apertou os braços ao meu redor, como se eu fosse a única coisa sólida em meio à tempestade. Ficamos ali, no meio da rua, ignorando o frio e a chuva que parecia nunca cessar.
E, naquele momento, eu soube que faria qualquer coisa para protegê-la. Não importava o que os outros pensassem, não importava o que dissessem. Eu a conhecia de uma forma que ninguém mais conhecia, e isso era tudo o que importava.
Corremos juntos até a grande árvore que ficava ao lado da calçada, suas folhas densas oferecendo um mínimo de abrigo contra a chuva incessante. se sentou no chão, encostada no tronco, enquanto eu me abaixei ao lado dela, tentando recuperar o fôlego.
O silêncio entre nós era preenchido apenas pelo som da chuva batendo nas folhas acima e nas poças ao redor. Por um momento, pensei que ela não fosse dizer nada, mas então ela se virou para mim, seus olhos escuros fixos no meu rosto.
— Você tá machucado… — disse baixinho, a voz quase perdida no som da chuva.
— Não é nada — murmurei, desviando o olhar.
Antes que pudesse reagir, senti a ponta dos dedos dela roçarem meu rosto. Sua mão era leve, quase hesitante, enquanto traçava o pequeno corte que Jun havia deixado no canto dos meus lábios.
— Foi por minha causa, não foi? — ela perguntou, a voz carregada de culpa.
Eu segurei a mão dela, interrompendo o movimento.
— Não foi sua culpa — respondi, firme. — Ninguém tem o direito de falar de você daquele jeito.
Ela abaixou os olhos, seus cílios pesados de água da chuva, enquanto mordia o lábio inferior, claramente lutando com as próprias emoções.
— Você não precisava fazer isso — disse, quase num sussurro.
— Precisava, sim — rebati, minha voz suave, mas carregada de determinação. — Você merece alguém que fique do seu lado.
Por um instante, ela ficou imóvel, sua mão ainda descansando na minha. O ar parecia mais denso ali, sob a árvore, como se a chuva e o mundo ao redor tivessem desaparecido.
— Você é diferente… — ela murmurou, quase para si mesma.
— Talvez seja só o único que realmente te enxerga — respondi.
Ela olhou para mim novamente, e naquele momento havia algo diferente em seus olhos. Algo mais suave, quase vulnerável.
O som da chuva começou a diminuir, e por um segundo pensei em dizer algo mais, mas então ela se afastou levemente, recolhendo a mão.
— Vamos pra casa — disse, levantando-se e estendendo a mão para mim.
Peguei sua mão sem hesitar, levantando-me. Caminhamos juntos em silêncio, o som dos nossos passos ecoando na calçada molhada, mas algo havia mudado entre nós. Algo que nenhum de nós estava pronto para colocar em palavras, mas que era impossível ignorar.
🎭🎭🎭
A casa dela era modesta, com a tinta das paredes desgastada pelo tempo e o portão da frente um pouco enferrujado. Mas tinha um ar de calor, de vida, diferente da frieza de tantas casas enormes e vazias que eu já tinha visto. Parei diante da porta, hesitando por um momento antes de bater. Não sabia ao certo por que estava ali, mas alguma coisa me dizia que precisava vê-la.
Quando abriu a porta, parecia surpresa, mas não havia aquela dureza habitual nos olhos dela.
— ? O que você tá fazendo aqui?
— Só… quis saber se você tava bem — respondi, coçando a nuca e tentando não soar bobo.
Ela deu um passo para o lado, permitindo que eu entrasse. Por dentro, a casa era ainda mais simples, com móveis antigos e fotos antigas penduradas nas paredes. O ar tinha aquele cheiro de lar que fazia você querer ficar.
— Minha avó já tá indo dormir — ela disse, apontando para a idosa que caminhava devagar com uma bengala em direção ao quarto.
— Quer ajuda? — perguntei, antes mesmo de pensar.
Ela hesitou, mas depois assentiu. Caminhei até a idosa e ofereci meu braço, ajudando-a a se sentar na cama enquanto ajeitava os travesseiros e a cobria com o cobertor.
— Boa noite, vó — ela disse, abaixando-se para dar um beijo na testa da senhora.
Fiquei observando de perto, notando o jeito delicado como cuidava dela, o carinho quase natural em cada gesto. Era difícil acreditar que alguém que falava tão pouco sobre si mesma pudesse ser tão cheia de amor assim.
Voltamos para a sala em silêncio, e ela se sentou no sofá, abraçando as pernas. Fiquei em pé por um momento, sem saber ao certo o que fazer, até que ela finalmente falou:
— Você acha que seus pais me dariam um emprego no restaurante?
— É. Quero ajudar minha avó — ela respondeu, encarando o chão. — Ela não diz, mas sei que as contas não estão fáceis.
Senti meu peito apertar com aquilo. sempre tinha essa força, essa coragem, mas naquele momento, tudo o que eu via era alguém lutando para manter o mundo dela de pé.
— Tenho certeza de que eles vão adorar te ter lá — falei. — Vou conversar com eles amanhã.
Ela suspirou, e por um instante, a tensão no rosto dela pareceu diminuir. Mas, antes que eu pudesse pensar em outra coisa para dizer, as palavras saíram quase sem querer:
— E seus pais? Por que eles… nunca voltaram?
Ela congelou por um segundo, como se eu tivesse acabado de tocar em algo que ninguém nunca mencionava. Quando finalmente falou, a voz dela era baixa, quase um sussurro:
— Eu nunca soube por que eles nunca voltaram para me buscar.
Meu coração apertou, e eu senti uma raiva que não sabia explicar. Como alguém podia deixar uma filha para trás?
Ela ergueu os olhos para mim, a expressão fechada, como se estivesse esperando um julgamento. Mas eu só consegui pensar em como ela era forte, em como ela carregava um peso que ninguém deveria carregar.
— Você é incrível, sabia? — deixei escapar, a voz mais baixa do que eu pretendia.
Ela arqueou as sobrancelhas, claramente surpresa.
— Porque você é. Porque você faz tudo isso sozinha e ainda consegue ser…
boa.
Ela não respondeu, mas desviou o olhar, mexendo nos dedos como se quisesse ocupar as mãos. E, naquele momento, percebi que eu queria estar ali por ela. Que queria ficar, mesmo quando ela achasse que não precisava de ninguém.
ficou em silêncio por alguns segundos, os dedos brincando com uma linha solta do tecido do sofá. A casa parecia ainda mais quieta, e tudo o que eu conseguia ouvir era a respiração dela e o som distante de uma TV na casa vizinha. Resolvi arriscar.
— Esses boatos sobre você… — comecei, escolhendo as palavras com cuidado. — Eles começaram como?
Ela riu, mas não era uma risada de verdade. Era amarga, pesada, como se carregasse anos de histórias mal contadas.
— Sabe como é, … Tudo começa pequeno. Você sai com um cara, ele acha que pode contar vantagem pros amigos, e de repente você é o assunto da escola inteira.
Eu franzi a testa, sentindo um nó na garganta.
Ela levantou o olhar, e havia algo no jeito que ela me encarava, como se estivesse decidindo se eu merecia a verdade.
— Algumas vezes, talvez — admitiu, dando de ombros. — Mas não da forma como dizem. Eles inventam coisas. Multiplicam. Transformam cada escolha minha em um escândalo.
Fiquei em silêncio, tentando absorver o que ela estava dizendo.
— E você nunca tentou… explicar?
Ela soltou uma risada curta, seca.
— Pra quem, ? Pra eles? — Ela balançou a cabeça. — Ninguém quer ouvir a minha versão. Eles querem acreditar no que faz sentido pra eles.
— Não é justo — murmurei, mais para mim mesmo do que para ela.
— Não é mesmo — ela respondeu, encostando as costas no sofá. — Mas a vida não costuma ser.
Fiquei olhando para ela, tentando entender como alguém podia carregar tudo isso sozinha.
— E você nunca pensou em… sei lá, mudar de escola? Começar de novo?
Ela deu de ombros novamente, mas dessa vez o movimento foi mais lento, quase resignado.
— Pensei, sim. Mas eu não quero fugir. Não vou deixar eles vencerem.
Admirei aquela força nela, aquela teimosia quase obstinada. Mas também me preocupava o quanto ela estava se machucando para se manter firme.
— Eu só… não entendo como alguém pode ser tão cruel — soltei, a frustração na minha voz evidente.
Ela me olhou, os olhos brilhando de um jeito que eu não esperava.
— Porque é fácil, . Eles veem alguém diferente, alguém que não segue as regras deles, e isso assusta. Então, eles atacam.
— Você não é o problema, — falei, sem pensar muito, mas com toda a certeza do mundo.
Ela sorriu de leve, mas era um sorriso triste.
— Você acha isso porque me conhece. Mas, pra eles, eu sou só a garota que fez coisas que eles acham que uma garota não deveria fazer.
Eu queria dizer algo, algo que pudesse apagar aquela dor que ela carregava, mas as palavras pareciam fugir de mim. Então, só fiquei ali, olhando para ela, deixando que o silêncio falasse por mim.
— Obrigada, — ela disse de repente, quase sussurrando.
— Por… ouvir. Por não me julgar.
E naquele momento, percebi que talvez isso fosse tudo o que ela precisava. Alguém que ouvisse, que visse além das histórias que contavam sobre ela. Alguém que soubesse quem ela realmente era.
O silêncio entre nós durou apenas alguns segundos antes que o rompesse. Ela mexia nos dedos como se estivesse escolhendo cuidadosamente o que dizer, e então soltou:
— Sabe… já te vi dançar algumas vezes nos intervalos da escola.
Meus olhos se arregalaram, e eu senti um calor subir pelo meu rosto.
— Você já me viu dançar? — perguntei, surpreso.
Ela sorriu, um sorriso discreto, mas que carregava uma leveza incomum.
— Algumas vezes. Quando você acha que ninguém tá olhando.
Eu me inclinei um pouco para frente, curioso.
— Achei incrível — ela respondeu, sem hesitar.
Aquelas palavras me pegaram de surpresa. Não era comum ouvir elogios sinceros, ainda mais vindo de alguém como , que sempre parecia tão reservada com suas opiniões.
— Sério? — perguntei, meio bobo, mas querendo ouvir mais.
Ela riu, um som leve e verdadeiro dessa vez.
— Sério. Dá pra ver o quanto você gosta disso, sabe? A paixão, o jeito que você se movimenta… Parece que você esquece do mundo inteiro.
Eu pisquei algumas vezes, sem saber como reagir. Dançar sempre foi algo que me fazia feliz, que me libertava, mas nunca pensei que alguém realmente prestasse atenção nisso.
— Eu… não sabia que você reparava.
— Eu reparo — ela disse simplesmente, e havia algo no tom dela que parecia querer dizer mais do que as palavras mostravam. — Acho que a maioria das pessoas tá ocupada demais falando, mas eu prefiro observar.
Fiquei em silêncio, digerindo aquilo. Talvez fosse por isso que eu sempre me sentia tão confortável perto dela. Mesmo com toda a história que as pessoas inventavam, tinha esse jeito de enxergar o que os outros ignoravam.
— Você devia dançar mais — ela continuou, sem me olhar diretamente, como se falar disso fosse algo casual. — Não só nos intervalos ou escondido. Acho que o mundo devia ver o que você é capaz de fazer.
Engoli em seco, sentindo algo estranho no peito. Era como se aquelas palavras dela fossem diferentes de qualquer elogio que eu já tivesse recebido. Mais verdadeiras.
— Talvez… talvez eu mostre pra você algum dia — eu disse, com um sorriso.
Ela finalmente me olhou, arqueando uma sobrancelha.
— É. Já que você gosta de observar — provoquei, meio brincando, mas ao mesmo tempo querendo ver a reação dela.
Ela riu, e era uma risada cheia de algo que eu não conseguia decifrar.
— Quem sabe? — respondeu, balançando a cabeça.
E naquele momento, sentado ali naquela sala modesta, percebi que queria mostrar pra ela. Não só a dança, mas tudo de mim. Tudo que o mundo ignorava, do mesmo jeito que ela fazia comigo.
🎭🎭🎭
Eu estava tão perdido naquele momento, ainda tentando processar o fato de que estava falando sobre algo tão íntimo, algo que eu sempre fiz sozinho, que mal percebi quando ela continuou, quase como um suspiro:
— Eu também gostaria de saber dançar… — ela falou, com um brilho estranho nos olhos.
Eu a observei por um instante, surpreso. sempre foi a garota misteriosa, a que ficava distante de tudo, e agora ela estava falando sobre aprender algo tão pessoal. Fiquei imaginando como ela seria se estivesse dançando, perdida no movimento como eu fazia. Aquilo me animou.
— Você conseguiria, com certeza — respondi, sem pensar muito. — Não é difícil. Só precisa se deixar levar.
Ela olhou para mim, os olhos dela estreitando ligeiramente, como se estivesse analisando cada palavra que eu disse. Depois, ela deu um pequeno sorriso, quase desafiador.
— Ah, é? Você acha mesmo que eu conseguiria? — Ela parecia brincar, mas também havia algo de curioso, como se realmente quisesse acreditar.
Não resisti. De uma forma quase automática, levantei-me do sofá e estendi a mão para ela, com um sorriso no rosto.
— Vamos descobrir? — falei, mais para mim mesmo do que para ela, mas já com a intenção de puxá-la para algo que talvez nenhum dos dois esperasse.
Ela me encarou por um momento, hesitando, mas então pegou minha mão. Eu podia sentir que ela estava nervosa, mas também curiosa. nunca foi do tipo que se entregava facilmente a algo sem questionar, e isso só aumentava a tensão entre nós. Quando ela se levantou, me seguiu até o centro da sala, e eu fiz um movimento simples com os pés, guiando ela para o ritmo.
— Só se soltar. Não tem segredo — falei, com a voz baixa, tentando fazer a situação parecer mais descontraída do que realmente estava.
Ela fez um pequeno movimento hesitante, mas logo tentou acompanhar o meu ritmo. Vi os olhos dela focados em meus passos, tentando se concentrar.
— Assim? — ela perguntou, seus olhos ainda em dúvida, mas com um sorriso tímido.
Eu sorri de volta e assenti.
— Isso, exatamente assim. Agora tenta deixar o corpo seguir o movimento. Sente a música.
E ela tentou, com mais confiança dessa vez. Mas havia algo nos seus olhos, uma leveza que eu não esperava. Como se ela estivesse começando a esquecer de tudo, se entregando ao momento. Eu não queria interromper, mas, antes que eu percebesse, estávamos mais próximos do que eu imaginava. O corpo dela se movia com o meu, e aquela proximidade estava me deixando sem fôlego. Eu podia sentir o calor de sua respiração, e os nossos olhos se encontraram por um instante, antes que tudo ao redor desaparecesse.
Foi como um choque. Sem pensar, sem querer, eu me inclinei para ela, puxando-a mais para perto. Ela não se afastou. E então, em um impulso, nos beijamos.
Foi suave, como uma dança, mas intensa, carregada de algo que eu não soube definir. O mundo ao redor desapareceu, e por um momento, fomos só nós dois, na sala iluminada pela luz suave da lâmpada, dançando e nos descobrindo de um jeito que ninguém jamais imaginaria.
Enquanto eu a puxava para mais perto, o som suave da música ao fundo parecia desaparecer, e o único ritmo que existia agora era ○ batimento acelerado dos nossos corações.
Quando nos aproximamos, senti a respiração dela quente, contra a minha pele, e foi como se o ar ao redor ficasse denso, pesado. Eu a olhei nos olhos, e ela não desviou o olhar, como se estivesse esperando por algo, talvez o mesmo que eu, um movimento que viesse de nós dois.
Eu não sabia o que estava acontecendo, mas, de alguma forma, tudo parecia tão natural Quando nos beijamos, foi como se o mundo se inclinasse em torno de nós, e todo o resto desaparecesse. As minhas mãos, que estavam quase flutuando no ar, desceram para a cintura dela, sentindo a curva delicada de seu corpo contra o meu. Eu puxei-a para mais perto, de modo que nossos corpos quase se uniram por completo, e foi nesse momento que o beijo se tornou mais intenso.
A princípio, foi suave, como um toque gentil. Mas logo, quando ela respondeu, com mais coragem e um pouco mais de urgência, a pressão aumentou, e senti os lábios dela se moldando aos meus, de um jeito que parecia perfeito. O gosto dela era leve, um pouco doce, mas também algo mais, um gosto que eu não conseguia identificar. Como se cada respiração que trocávamos fosse uma descoberta
Minhas mãos subiram até o rosto dela, meus dedos deslizando suavemente pela sua pele fria, até que encontrei sua nuca. Eu a puxei para ainda mais perto, e o contato entre nossos corpos ficou mais apertado, mais urgente. O calor dela se misturava com o meu, e a sensação de estar tão perto a fazia parecer ainda mais real, mais palpável.
O gosto dos seus lábios era salgado por conta do suor que se formava com a tensão entre nós, mas havia algo refrescante, uma sensação de suavidade que me deixava com vontade de não parar. Eu sabia que estava certo ali, naquele momento, como se o universo todo tivesse nos empurrado para aquele instante. O toque dela, a forma como ela se entregava ao beijo, fazia tudo parecer mais leve e intenso ao mesmo tempo.
Os dedos dela passaram por minha camisa, como se quisesse se ancorar, e eu sentia cada movimento dela como uma dança, algo que era fluido, mas também cheio de algo mais. A boca dela se abriu um pouco mais, e eu não consegui resistir, aprofundando o beijo, deixando que a sensação tomasse conta de mim completamente. Eu a sentia ali, tão perto, tão real. O toque das mãos dela nas minhas costas, o calor que se espalhava pelo meu peito, tudo parecia tão intenso, que por um momento, eu quis que o tempo parasse.
Mas então, aos poucos, nossos lábios se afastaram, ainda com um toque suave, como se precisássemos de um respiro, mas sem querer realmente se separar. Ela ficou ali, com os olhos fechados por um momento, e eu também sentindo a minha respiração descompassada, como se tivéssemos acabado de correr por quilômetros.
Quando abri os olhos e a olhei, vi algo que não sabia que existia. Algo que eu não conseguia definir, mas que estava ali, claramente, no olhar dela. Um misto de surpresa, mas também algo mais… talvez começo de algo novo, algo que eu ainda não conseguia entender.
Mas não disse nada. Não precisava. Aquele beijo tinha falado por nós dois.
🎭🎭🎭
Assim que o beijo terminou, ela deu um passo para trás, como se a realidade tivesse acabado de desabar sobre ela. Seus olhos estavam arregalados, a respiração rápida, e suas mãos, que antes estavam nos meus ombros, agora pendiam ao lado do corpo. Ela desviou o olhar, incapaz de me encarar.
— Você… deveria ir embora — ela murmurou, a voz baixa e tensa, quase como um sussurro.
Eu a observei por um momento, tentando entender o que estava passando pela cabeça dela. O que quer que estivesse acontecendo, não podia ser só medo. Havia algo mais ali, algo que ela tentava esconder.
começou a caminhar apressada até a porta, e eu a segui, hesitando entre respeitar o pedido dela ou fazer o que meu coração gritava para fazer. Quando ela alcançou a maçaneta e começou a abrir a porta para mim, algo em mim se quebrou. Não podia deixá-la fugir de novo.
— , espera — minha voz saiu firme, mais do que eu esperava.
Antes que ela pudesse dizer ou fazer qualquer coisa, avancei até ela, segurando-a pela cintura e a virando de frente para mim. Seus olhos encontraram os meus, cheios de uma mistura de surpresa e algo mais… algo que parecia medo e desejo, tudo ao mesmo tempo.
— Eu não vou embora — falei, sem soltar a cintura dela. — Não dessa vez.
Ela tentou dizer algo, mas parou quando viu a determinação no meu olhar. Respirei fundo, tentando organizar os pensamentos antes de continuar.
— Você sabe que gostou daquele beijo tanto quanto eu — falei, minha voz mais baixa, mas ainda firme. — Não adianta negar.
Ela não respondeu, mas seu silêncio disse mais do que qualquer palavra. A forma como seus olhos brilhavam, como sua respiração acelerava, tudo nela confirmava o que eu estava dizendo.
— Eu sei que você acha que eu sou como todo mundo, que só vou te machucar, que eu só estou aqui por causa do que falam sobre você… mas isso não é verdade. Eu vejo você, . Eu vejo quem você realmente é. E eu gosto do que vejo. Gosto de você.
Ela piscou, como se estivesse tentando absorver minhas palavras, e balançou a cabeça lentamente, mas sem se afastar.
— Não faz isso, … — murmurou, a voz dela carregada de incerteza.
— Eu já fiz, . — Apertei suavemente a cintura dela, como se quisesse garantir que ela não fugisse. — E você sabe disso.
Por um instante, o silêncio tomou conta da sala. Eu podia ouvir o som da chuva lá fora, o leve rangido da porta que ela ainda segurava aberta. Mas tudo parecia distante, secundário. A única coisa que importava era ela, bem ali, tão perto de mim, com seus olhos me encarando, vulnerável como nunca a vi antes.
Ela ficou imóvel por um longo momento, como se estivesse processando cada palavra que eu havia dito. Seus olhos se estreitaram levemente, e eu sabia que estava tentando decifrar se eu estava sendo sincero ou apenas jogando palavras ao vento. Então, com um suspiro quase inaudível, ela desviou o olhar, mordendo o lábio inferior enquanto soltava a porta que ainda segurava.
— Você não entende… — começou ela, a voz trêmula. — Não é tão simples, .
— Então me ajuda a entender — interrompi, ainda segurando sua cintura. — Me explica, . Mas, por favor, para de me afastar como se eu fosse igual a todo mundo. Eu não sou.
Ela respirou fundo, como se estivesse prestes a dizer algo, mas se interrompeu. Seus olhos voltaram para mim, e dessa vez havia algo diferente neles. Cansaço, talvez. Ou quem sabe, esperança.
— Eu… não sei como fazer isso. — Sua voz era um sussurro. — Não sei como deixar alguém entrar. Toda vez que tentei, só serviu para provar o que falam de mim… como se eles sempre estivessem certos. Como se eu só fosse boa para… — Ela parou, o olhar se perdendo.
Eu segurei seu rosto com uma das mãos, a outra permanecendo firme em sua cintura. Toquei sua pele de forma leve, esperando que ela me deixasse continuar.
— Escuta, . Eu não me importo com o que dizem. Não dou a mínima para os boatos ou o que qualquer um pensa. Eu vejo você — reforcei, tentando ao máximo que ela sentisse a verdade em minhas palavras. — E o que eu vejo é alguém que carrega tanto peso nos ombros que nem deveria ser seu. Alguém que se preocupa com a avó mais do que consigo mesma. Alguém que tenta ser forte, mesmo quando tudo está desmoronando.
Ela me olhou novamente, e vi os olhos dela se encherem de lágrimas que ela claramente estava tentando segurar. Eu continuei:
— Você é muito mais do que as histórias que contam. Muito mais do que eles conseguem entender. E eu quero… eu preciso que você veja isso também. Porque eu vejo, . Eu vejo você.
Ela soltou um riso curto e nervoso, balançando a cabeça enquanto enxugava os olhos rapidamente, como se estivesse tentando manter uma fachada.
— Você parece tão certo disso, … mas e se você estiver errado? E se eu realmente não for nada disso que você diz?
— Então, deixa eu te provar que você é — respondi, aproximando nossos rostos. — Deixa eu ficar aqui. Não precisa me afastar, . Só me deixa ficar.
Ela ficou em silêncio por mais alguns segundos, até que finalmente soltou um suspiro longo, como se estivesse se rendendo à ideia.
— Tá bom… — murmurou, quase inaudível. — Mas não me machuca, . Não faz isso comigo.
Eu assenti, puxando-a de leve para um abraço. Senti seus braços hesitarem antes de me envolverem, e foi como se, pela primeira vez, ela estivesse permitindo que alguém ultrapassasse as barreiras que havia construído. Eu sabia que ainda havia muito a ser enfrentado, mas naquele momento, senti que havíamos dado o primeiro passo para algo que poderia ser real. Algo que, por mais complicado que fosse, valeria a pena.
🎭🎭🎭
O portão rangeu levemente quando ela o empurrou, parando logo depois de cruzá-lo. Eu fiquei parado ali, do lado de fora, a observando, enquanto a chuva fina que ainda caía umedecia meus cabelos e a luz amarelada do poste iluminava o rosto dela. segurava o portão com uma mão, a outra descansando na lateral do corpo, como se estivesse decidindo se ia me mandar embora ou dizer algo.
— Eu vou entrar agora… — disse ela, com a voz baixa, mas sem real convicção.
Eu sabia que deveria deixá-la ir, mas também sabia que não podia. Não ainda.
— . — Dei um passo à frente, segurando a grade do portão. Ela ergueu o olhar para mim, os olhos um pouco mais suaves do que estavam antes, mas ainda carregando algo que parecia um misto de dúvida e medo.
— Você não precisa mais fazer isso sozinha. — Minha voz saiu firme, mas calma. — Eu tô aqui. Eu vou estar aqui. E eu prometo que ninguém vai mais te machucar enquanto eu puder evitar.
Ela me olhou por alguns segundos, o silêncio entre nós preenchido apenas pelo som suave da chuva. Então, soltou o portão e deu um passo na minha direção.
— Você fala como se fosse tão fácil… como se tudo pudesse mudar só porque você tá dizendo isso. — A voz dela tinha um tom quase amargo, mas havia uma leve rachadura ali, uma vulnerabilidade que ela não conseguia esconder.
— Talvez não seja fácil — concordei, dando mais um passo, até que estávamos tão próximos que eu podia sentir sua respiração. — Mas algumas coisas valem a pena lutar. E, pra mim, você é uma delas.
Antes que ela pudesse responder, inclinei-me, aproximando nossos rostos. Ela hesitou por um momento, como se estivesse avaliando se deveria recuar. Mas então, com um suspiro quase imperceptível, seus lábios tocaram os meus.
O beijo foi mais lento dessa vez, menos apressado e mais profundo. Minhas mãos encontraram sua cintura, enquanto as dela subiam lentamente até os meus ombros. O gosto dela era uma mistura de chuva e algo que eu não conseguia descrever, mas que parecia exatamente como ela: intenso, com um toque de doçura escondida.
Quando nos afastamos, ela manteve os olhos fechados por alguns segundos, como se estivesse absorvendo tudo. Quando os abriu, havia algo diferente ali: um brilho, talvez esperança.
— Você realmente acha que pode me proteger de tudo? — sussurrou, a voz carregada de dúvida e algo mais, algo que parecia ser o início de confiança.
— Eu vou tentar — respondi, sério. — Não posso prometer que vai ser fácil, mas prometo que nunca vou desistir.
Ela respirou fundo, balançando a cabeça levemente.
— Talvez — concordei, sorrindo. — Mas você vale a loucura.
Ela deu um passo para trás, voltando para dentro do portão, mas antes de fechá-lo, olhou para mim mais uma vez.
E com isso, ela fechou o portão, deixando-me ali, mas sem a sensação de estar sendo deixado para trás. Eu sabia que, a partir daquele momento, tudo mudaria. E eu estava mais do que pronto para isso.
“She got a bad reputation
She takes the long way home…”
Fim
Cê vai me bater se eu disser que quero uma continuação pra ver a relação desses dois? 🥹