Dopa(mine)
Capítulo 11: Cicatriz
(POV: )
Todos os contornos perderam definição.
A luta corporal que se travou diante dos meus olhos era um grande borrão confuso e assustador, permeado por barulhos intensos de pancada. e Morgan chocaram-se um contra o outro, disputando a força que sobrava no meu marido e faltava no meu… tio?
Eu não sabia mais quem era aquele homem. E, francamente, pouco me interessava agora. O único reflexo nítido no meu cérebro era gritar, gritar por ajuda, por socorro, por uma intervenção vinda de qualquer lugar, menos da arma que disparou.
Definitiva. Irreversível. Cabal.
Era difícil acreditar que Morgan utilizaria um subterfúgio tão sujo, mas foi o que ele fez. Houve um tiro, uma bala que foi cuspida, resultado de uma reação físico-química que só necessitava de uma fração de segundo para acontecer e causar um dano permanente. A princípio, eu não sabia em quem tinha sido o dano. Os dois cessaram as ações simultaneamente, compartilhando um silêncio fúnebre de assimilação, e balançaram a si mesmos num abraço letal. , interposto entre mim e Morgan como um escudo, aplacava a ira por anos contida no outro, cuja erupção se deu com o som tétrico que trouxe três seguranças para a sala, empunhando mais armas e escurecendo a minha vista.
Isolei a parte do meu sistema nervoso que queria me apagar a qualquer custo e testei as pernas em direção à cena do crime. caiu lentamente, enquanto Morgan era rendido e desarmado, e as falas indistintas transmitidas através dos pontos dos seguranças chamavam por reforço médico.
— Ferimento por arma de fogo. Precisamos de uma ambulância.
As palavras que Tyler, líder da equipe, trocava com os outros agentes não faziam o menor sentido para mim até eu me aproximar de o suficiente para ver com meus próprios olhos que, sim, havia um ferimento por arma de fogo. O sangue manchava a camisa, desabotoada nas primeiras casas devido ao confronto físico, e a mão dele pressionada contra o local atingido, na altura das costelas, deixava tudo muito real e muito tangível para a minha visão turva. O cheiro ferroso que emanava da grande poça vermelha ao seu lado atravessou até o meu espírito, em completo estado de negação, e as maldições que Morgan lançava sobre nós, possesso, cumpriram-se ali, naquele momento, quando eu vi o homem que eu amava se colocar na frente do tiro que deveria ser para mim.
Ajoelhei ao lado do corpo retorcido de dor intensa. Uma fenda se abriu aos poucos, retalhadora, atravessando a seco camadas de tecido, órgãos e ossos. rangia os dentes, padecendo do corte lancinante, enquanto minhas mãos trêmulas tateavam por ele buscando amenizar-lhe o sofrimento.
— Não, não, não. — repeti baixinho, vendo o sangue escorrer e calculando ingenuamente alguma maneira de colocá-lo de volta para dentro. — Não faz isso comigo, .
Foi o momento em que eu olhei para os olhos e não para a ferida. Inchados, ainda. Prometendo fogo, como sempre, mas um fogo fraco que lutava para se manter aceso.
— … Me perdoa.
— Não! — segurei o rosto dele, manchando-o do próprio sangue. — Não me pede perdão agora, entendeu? Só… Só não me deixa. Não me deixa, tá ouvindo?
Ele tentou sorrir, mas o sorriso saiu gelado e sofrido pelo tanto de si que ele perdia numa velocidade assustadora. Aturdida, a solução mais plausível me ocorreu quando eu notei o cinto perpassando o cós da calça dele, lembrando de uma manobra para diminuir a hemorragia. Era o que faziam em filmes de ação e séries sobre hospitais, deveria ter algum fundamento, então imediatamente abri a fivela, puxando a tira de couro e removendo o acessório.
— Eu sei que você é tarada por mim, mas agora eu não vou conseguir, docinho… — ele falou com dificuldade.
— Isso! — minhas lágrimas se misturaram a um sorriso transitório, surpresa por ter escolhido gastar o fôlego numa gracinha. — Continua fazendo as suas piadinhas de quinta, tá? Continua aqui comigo! — envolvi a cintura dele com o cinto, apertando abaixo do ferimento num torniquete. — Fica comigo, meu amor!
grunhiu uma mistura de alívio e mais dor, ao passo que a camiseta rasgada mostrava a bala latejando na carne que se contorcia para expulsá-la. Tyler me dizia para não mexer por causa do risco de infecção, então eu me ative ao rosto que desfalecia, se deixando vencer pelo estanque numa calmaria que eu não queria ver. Os toques se amplificaram com meu suor frio, estimulando-o a manter os olhos abertos e a demonstrar algum tipo de movimentação, mas a resposta dele foi ficar cada vez mais quieto, mais imóvel, mais distante de mim…
— Senhora, está ferida? — uma mão enluvada tocou meu ombro de repente.
— Não.
— Ótimo, agora afaste-se, por favor.
— Eu quero ir com ele! — agarrei a pessoa pelo braço. — É o meu marido!
— Sim, senhora, você poderá acompanhá-lo, mas precisamos de espaço para socorrê-lo. — a voz saiu por entre a máscara num tom de ordem e Tyler me obrigou a obedecer.
— Senhora Arata, procure se acalmar.
Ele me ajudou a ficar de pé e ceder área de manobra para os socorristas. Não parava de entrar gente na sala e as sirenes se sobrepunham lá fora, ora da polícia, ora da ambulância, já posicionada para receber a maca em que meu marido foi habilmente colocado. Alguém me ofereceu um copo com água e quis verificar minha pressão, mas eu não estava em mim, eu estava com Mackneyu, e nada era mais importante do que ficar junto dele, o que me levou a empurrar o enfermeiro, rejeitando o atendimento, e a correr em direção ao grupo que carregava meu esposo ferido, passando em algum momento pela viatura responsável por levar Morgan para a delegacia, a prisão, ou, sei lá, o inferno.
e cuidariam do destino.
Minha prioridade era o .
— Mede a saturação dele. — um médico mandou de dentro da ambulância, enquanto outro colocava a máscara de oxigênio no desacordado. — Frequência cardíaca?
— Instável.
Subi na traseira e me sentei no lugar que determinaram sem o menor controle das minhas pernas, acompanhando a movimentação intensa e permeada de códigos que só o pessoal da saúde entendia. A maca foi instalada e os primeiros socorros foram enfim iniciados, envolvendo gaze e muito sangue. Cada comando apertava meu coração e me fazia balbuciar baixinho coisas como “o que é isso?”, “o que vão fazer com ele?”, “ele parou de sangrar?”… Ninguém me respondia, eu parecia uma criança desconsolada e impotente, cega pelos flashes de jornalistas que surgiram feito abutres.
O choro afrouxou. Os soluços faziam meu peito doer e as bolsas de sangue sendo tiradas do armazenamento resfriado para a transfusão imediata eram parte de uma cena tão esperançosa quanto assustadora. Minha mente me atacou com todas as lembranças que eu dividi com o homem que havia priorizado a minha vida no lugar da dele e me dar conta de todo o tempo que perdemos foi o meu ferimento à bala naquele momento.
Descartei a ideia de que o pior podia acontecer. Não podia ser. Não era justo. Não agora. Não desse jeito.
Tínhamos muita coisa pra fazer. Faltava repetir a viagem para Navagio. Visitar os pais dele no Japão. Dormir no mesmo quarto. Andar de bicicleta de novo. Reclamar do perfume, das cantadas baratas, da falta de açúcar nas coisas. Ouvir mais histórias sobre o tio dele que usava peruca. Ver ele dormir. Ver ele acordar. Ver ele resmungar que não consegue dormir e aí beijar a boquinha pequena até ele acordar de vez querendo sexo. Céus, eu precisava beijar o outra vez! Eu precisava dizer que eu o amo. Eu…
— Eu preciso de mais tempo! — gritei no meio da ambulância, aos prantos. — Nós mal tivemos tempo!
👰🏻♀️
“A causa de morte entre pessoas baleadas por arma de fogo ocorre mais pela exsanguinação do que pelo comprometimento de algum órgão vital”. Isso e “bom trabalho com o torniquete” foram as coisas que eu mais ouvi nas quase 12 horas de vigília no hospital. A minha espera aflita por notícias foi tanta que eu até já tinha aprendido o termo médico: exsanguinação era o processo de perda quase total de sangue. Me disseram que, desde o momento em que o torniquete era colocado e apertado, restavam cerca de duas horas antes de haver danos irreversíveis aos tecidos, o que não era o ideal, mas, sem dúvida, ainda era muito melhor que sangrar até morrer.
Ao que tudo indicava, meu estanque improvisado tinha sido a chave do sucesso da cirurgia de remoção da bala do corpo de , além do fato de, graças a Deus, ela estar alojada superficialmente. Após a operação e algumas transfusões, a única sequela (eu tinha perguntado mais de mil vezes) seria apenas a cicatriz da incisão e sessões de fisioterapia para garantir quando seria seguro voltar a levantar os pesos de academia que ele tanto gostava. Os médicos garantiram que ele estava fora de perigo, que a hemorragia estava totalmente controlada e que logo ele seria transferido para o quarto e poderia receber visitas, mas a série de boas notícias não bastou para conter meu consumo compulsivo de cafeína e o mal-estar generalizado.
— Tudo bem? — , meu companheiro de tocaia hospitalar, perguntou assim que eu saí do banheiro.
— Acabei de vomitar o sanduíche que eu consegui comer no refeitório. — confessei. — Pode me dar minha bolsa? Preciso escovar os dentes.
Meu irmão prontamente me passou a necessaire que eu havia preparado às pressas, na rápida ocasião em que voltei para a mansão apenas para me livrar das roupas ensanguentadas e para uma ducha de três minutos. Depois disso, eu me recusei a tirar os pés do hospital, mesmo que a minha presença fosse “inútil” — eu só conseguia pensar que ficaria mais tranquilo se acordasse e descobrisse que eu estive ali o tempo todo. Escovei os dentes rapidamente, aproveitando para jogar uma água na nuca, e ao levantar os olhos para o reflexo no espelho, me encontrei pálida e visivelmente abatida, precisando de um pouco de cor que fosse nas bochechas e nos lábios.
Apliquei uma camada de lip tint nas áreas mais necessitadas, não obtendo tanto efeito. E o estômago continuava se revolvendo numa ânsia ininterrupta.
— , por que você não vai embora descansar um pouco? — bateu nos meus ombros rígidos quando voltei para a antessala.
— Porque ele pode precisar de mim. — esfreguei as têmporas, ansiosa. — Disseram que ele vai pro quarto logo, não quero que ele fique sozinho.
— O efeito da sedação vai demorar a passar, filha, vai dar tempo de sobra pra você ir em casa. — minha mãe, que jamais me deixaria sozinha numa situação como aquela, reforçou a sugestão do meu irmão.
— E se ele acordar e eu não estiver lá?
— Aí ele vai ter que se contentar com os meus belos olhos. — bateu os cílios.
— A enfermeira disse que ele chamou por mim. — lembrei a ambos, vendo a dita enfermeira se aproximar de nós.
— Em toda oportunidade que teve, querida. — ela confirmou. — Foi difícil fazê-lo parar. — ela escreveu alguma coisa no prontuário. — Ele já está no quarto, vocês podem vê-lo agora, mas apenas uma pessoa por vez.
Embarguei ainda, juntando as sobrancelhas e detectando algum resquício de choro entalado. Alguma coisa desbloqueou dentro de mim no intervalo denso de todos aqueles acontecimentos e eu sentia vontade de chorar de cinco em cinco minutos, independente do cenário e da estabilidade do meu marido. Cada abraço que eu recebia fazia meus olhos lacrimejarem e até a última ligação de , à frente do processo de Morgan, me arrancou algumas lágrimas que eu não sabia de quê.
Não eram de pena ou remorso, eu estava satisfeita em vê-lo ser punido — não enfeitou as acusações nem economizou artigos para enquadrá-lo por bons anos —, era uma espécie de dor atrasada, como se eu estivesse devendo chorar “certo” a perda da tia Agnes, não mais com aquele pesar por alguém que tirou a própria vida, mas com um senso de justiça feito, com a memória dela enfim honrada.
Bem ou mal, aquele era um desfecho se encaminhando para o fim. Crime confessado, pena aplicada, águas passadas. Eu não queria entrar no quarto com aquela energia ruim. Eu não queria pensar no escândalo corporativo, nos acionistas cobrando explicações, nem mesmo nos pais de vindo às pressas para Nova York porque o filho “foi baleado numa tentativa de assassinato”. Com que cara eu ia olhar para eles? Como explicar o caos em que eu meti o primogênito dos Arata? Aquele inferno todo era pra mim, e eu não conseguia parar de remoer a culpa como um cão agarrado a um osso velho.
Reuni as poucas forças que me restavam, sentindo uma felicidade boba e tímida me atravessar rapidinho ao lembrar que eu tinha colocado um mínimo de maquiagem para me ver “bonita”, ou pelo menos sem cara de quem passou mal e chorou o dia inteiro. Lupita, a enfermeira, já me deixava chamá-la de Lupe quando trocou a pulseira de “visitante” para “acompanhante”, abrindo a porta do quarto e sinalizando que eu podia entrar com uma piscadinha que me deixou mais confortável.
— Eu vou deixar vocês sozinhos já já. Só vou verificar umas coisas.
Assenti, querendo chorar outra vez. Os aparelhos monitorando os batimentos do meu marido e outras atividades vitais apitavam baixinho, quebrando o silêncio do quarto sem incomodar a paz do paciente. Uma larga tira branca enfaixava todo o peito e as costelas dele, deixando a bandagem nitidamente visível apesar da bata hospitalar, e o antebraço que descansava na lateral da cama tinha um acesso ligado a um saco de soro fisiológico e antibióticos, além de uma medicação que eu precisei chegar mais perto para ler.
O nome fez meus olhos cansados ficarem úmidos.
— Dopamina. — li baixinho na etiqueta de identificação da ampola.
— Ajuda a controlar a pressão arterial e a força de contração no coração. — Lupe explicou, ajustando a válvula do conta-gotas. — Olha, ele está sob efeito da anestesia, mas deve acordar logo. Qualquer coisa, você me chama, tá? Estarei lá fora.
Agradeci com um gesto de cabeça, empurrando a poltrona para longe da cama de modo a encaixar uma perna no vão entre elas e apoiar a outra na beirada do leito, tomando a mão livre de entre as minhas.
A mão dele estava quentinha de novo. E aquilo sim me fez chorar.
Trouxe o dorso ao encontro da minha boca sutilmente, molhando-o com um choro grosso e sentido, transbordando de gratidão por sentir o calor dele outra vez. Por não mais sentir aquele frio mórbido nas palmas embranquecidas pela perda de sangue, por não mais ver tanto vermelho, tanta perda, tanta dor. Só o som da respiração dele, alta, como quando ele dormia e eu ficava esperando ele acordar. Só o peito se mexendo mansinho e a barriga acompanhando o movimento. Só o meu amor inteiro lutando para sobreviver e vencendo.
— Você era a minha única opção, mas agora eu sei. Eu escolheria você entre todas as opções do mundo, Arata. Porque eu te amo. Eu te amo muito. Eu queria ter te dito isso antes, mas eu vou ter outras chances de dizer o quanto eu te amo. Eu vou repetir quantas vezes for preciso. Eu te amo, entendeu?
Segurei o rostinho levemente inclinado e beijei a testa dele, arrumando os fios da franja e acariciando o perfil com cuidado.
— A propósito, é a risada rouca que você dá depois que consegue me irritar, os seus olhos de fogo e como você se coloca na frente de uma bala por mim. Pronto. Minhas três coisas favoritas sobre você. — funguei. — Mas não é só isso, você sabe. Eu amo quando você mexe nos seus brincos, e quando você se perde olhando pra minha boca no meio de uma conversa séria. Eu também amo que você se lembre de comprar minha geleia de morango, e que você sempre tenha um elástico pra prender meu cabelo. Eu amo que você me segure pela cintura, que você me beije como se fosse a única chance que você vai ter na vida, que você me coloque do lado da calçada quando andamos na rua… Eu amo você. Era isso que você queria ouvir? Que eu amo tudo que eu sei sobre você? Eu amo! — fechei os olhos numa prece. — Agora, por favor, acorda pra eu descobrir mais motivos pra te amar, . Pra eu descobrir se você me ama também. Por favor.
Nada mudou, a não ser pelo intervalo dos bipes da frequência cardíaca, que ficaram mais rápidos e chamaram minha atenção para o monitor. Houve um fôlego, uma puxada de ar para dentro, e a mão que eu segurava apertou a minha de volta.
— Eu não acredito que o meu tanquinho de oito gomos não entrou nessa sua lista. — o timbre rouco preencheu o quarto.
Verti as lágrimas mais felizes da minha existência.
Ali estava ele. O meu .
— Era o próximo, eu juro. — solucei, incrédula. — A minha coisa favorita no momento é te ouvir falar.
— Vamos ver quanto tempo isso vai durar. — ele riu fraco.
— Eu espero que a vida toda. — deitei sobre o peito dele delicadamente.
— Então… — ele tossiu e eu levantei assustada, pronta para chamar a enfermeira, mas ele usou a pouca força que tinha para continuar apertando minha mão. — Então você não quer mais se divorciar de mim, não é? Você não está mais pensando nisso? — ele me olhou bem prolongado, os olhos ainda sem meu fogo, refletindo medo.
— Você quase morreu e a coisa mais te assustou foi essa ideia maluca de divórcio?
apertou os lábios um contra o outro numa cara que dizia “sim, ué”, fazendo a expressão mais docemente ingênua que eu já tinha visto. Tentou se mover, recuperando a agilidade e a firmeza aos poucos, ainda descobrindo as pequenas sequelas, como a região das costelas dolorida e sensível, e parecia estar despertando por completo dos efeitos da anestesia. Esperei que ele se ajeitasse e voltei a reclinar a cabeça sobre o peito alheio, marcando a bandagem com um beijo demorado, e o monitor tornou a acusar a frequência cardíaca dele aumentando, arrancando de nós uma risada cúmplice. Foi quando o olhar dele acendeu devagarinho, resgatando a chama que eu amava ver na íris escura, e eu selei a boca carnuda com a minha saudade.
— Me perdoa por não ter contado sobre a sua tia antes. — ele sussurrou. — Eu estava tentando achar um jeito de falar sem te machucar. Nós finalmente estávamos nos entendendo, eu não queria perder isso.
— Eu sei, meu amor. Eu sei. — deixei mais um selar no sorriso que ele abriu quando eu o chamei de “meu amor”. Eu não conseguia parar de chamá-lo assim. — Eu não te contei sobre o divórcio pela mesma razão. Eu mandei a mensagem para o pra desistir do plano, . Eu pensei nisso no começo, mas depois você fez…
— O quê? — um sorriso ladino e o fogo de volta, ardendo como nunca. — O que eu fiz?
— Você fez eu me apaixonar por você.
— Pode repetir? — ele virou a cabeça, mostrando a orelha sem brincos. — O tiro danificou a minha audição.
— Não brinca com isso. — minha barriga gelou. — Eu fiquei apavorada com a ideia de te perder, .
— Eu nunca vou deixar você. — ele fechou os olhos quando disse “nunca”, solene. — Você queria uma resposta? Eu estou te dando agora. Eu te amo, . Ferozmente.
A confissão dele causou uma revolução dentro de mim e em milésimos de segundo eu senti euforia, alívio e mais um choro rompendo, misturados a uma alegria que me soltava o riso e as lágrimas. Não era como se houvesse outra resposta, afinal, me dava provas de amor desde que nos conhecemos, e tudo o que ele fez por mim até ali era o sinal de que ele tinha se rendido primeiro. Mas se ele se entregou antes, eu me entreguei com mais força. Se o amor dele veio em ondas, o meu veio na maré cheia. Se ele me amou um pouco a cada dia, eu o amei todo de uma vez, sem aviso, sem reserva, num fluxo contínuo e voraz que arrancou meu chão e me lançou nos braços dele.
Porque o chão não importava mais. A minha eterna busca por segurança cessou quando levou meu rosto para junto do seu, dividindo comigo o mesmo ar.
— Eu ouvi tudo que você falou. — ele admitiu, colando nossas testas e narizes. — E sinceramente, acho que foi por isso que eu acordei.
— Eu acho que foi por causa da dopamina.
— Você é minha dopamina.
A temperatura febril da pele dele transferiu-se para a minha por indução durante o nosso beijo urgente e inevitável, que durou tempo suficiente para que Lupe voltasse a entrar no quarto tossindo e nos repreendendo, perguntando se estávamos querendo trocar bactérias daquele jeito. A fim de fazer seu trabalho e evitar que se esforçasse além da conta, a enfermeira fez alguns testes rápidos, avaliando os reflexos, a resposta dele aos remédios e ajudando-o a se levantar para um “alongamento” e uma caminhada em câmera lenta ao redor da cama. Depois de constatar que tudo estava em ordem, apontou para mim com sua lanterna clínica.
— Sua esposa aqui salvou sua vida com o torniquete. Se você tivesse perdido um pouco mais de sangue, não teria resistido.
— Eu serei eternamente grato. — piscou para mim.
— É bom que seja mesmo! — Lupita advertiu. — A ela e ao seu cunhado. Ele foi seu doador.
— era compatível? — estranhei a informação. — Nós temos o mesmo tipo sanguíneo e me disseram que eu não podia doar.
— É claro que não pode! — Lupe pôs a mão nos quadris e bateu o pé, indignada. — Onde já se viu uma barbaridade dessas? Grávidas não podem doar sangue.
— Eu sei que não podem, mas eu não estou grávida. — juntei o cenho e sobressaltou, já removendo de si a coberta. — Eu não posso engravidar.
— Não é o que o seu hemograma diz.
Meu hemograma? O que eu fiz para saber se estava apta para doação? Que loucura era aquela agora?
Pisquei várias vezes, buscando uma forma de explicar para uma profissional de saúde que a endometriose causava infertilidade sem insultar a inteligência e o conhecimento dela (muito maior que o meu, obviamente), mas Lupita continuava com sua feição fixa e imutável, olhando para a minha cara com uma certeza matemática.
— Meu bem, você tá gravidinha. — ela foi categórica. — Por que você acha que anda tão enjoada? Eu vi quando você foi ao banheiro vomitar. Mais de uma vez.
— ?! — arrancou os acessos do braço e levantou o tronco envolto em ataduras com a rapidez de uma lesma, limitado e trôpego. — Você tá grávida? Você enjoou? Você tá bem? E o bebê?
— Não! Quer dizer, eu enjoei, mas eu tô bem agora. E não tem nenhum bebê! — emendei tudo e me apressei em socorro do paciente rebelde, obrigando-o a se encostar novamente. — Eu sou estéril, deve ter havido algum engano.
— Então o engano foi do ginecologista que te deu esse diagnóstico, lindinha. — Lupita, ao contrário de mim, preparou-se para arrumar a medicação que tirou na calmaria típica da profissão. — Eu já vi esse filme muitas vezes antes, além de enfermeira, eu sou filha de parteira. Conheço uma grávida de longe e você está grávida. Gravidíssima.
escancarou a boca, exibindo todos os dentes e levando o monitor cardíaco à loucura com os batimentos descontrolados. Lupe suspirou para o aparelho e para a cena, desistindo de achar a veia perdida do meu marido e pegando a sua prancheta em vez disso.
— Não adianta eu colocar o acesso agora com você agitado desse jeito, então vamos aos fatos. — ela folheou algumas páginas até selecionar um exame. — O’Brien Arata, data de nascimento 12 de fevereiro, certo?
— Certo. — confirmei, zonza.
— Aqui está, meu anjo. — ela apontou a linha que indicava “gravidez positiva” e minha visão ficou turva na hora. — Essa é sua taxa hormonal, está vendo? — Lupita seguiu mostrando dados que, àquela altura, eram apenas pontinhos para mim, e se esticava todo para tentar ver também. — E esses são os valores de referência. Entre 5 e 50 significa que você está de três semanas.
Grávida? De três semanas?
— Quando te disseram que você não podia ter filhos, você não procurou uma segunda opinião? — Lupita notou meu estado de perplexidade, como se houvesse um balão de confusão pairando sobre a minha cabeça.
— Eu não achei que eu precisasse, eu só… — levantei a vista procurando por e não o encontrando na cama, porque ele já estava atrás de mim, curioso para ver o papel. — O que você está fazendo aí em pé? Você é maluco?
— Eu sou maluco por você! Por nós! — ele segurou meu pescoço e amassou meu cabelo. — E agora a gente vai ter um filho! Ou uma filha! E… Eu tô sentindo um ventinho… — congelou por um instante, cerrando os olhos. — A minha bunda tá de fora?
Lupita baixou o prontuário, checando a traseira exposta pela bata hospitalar e fazendo um sinal de joinha para mim.
— Calma, tá? Foi muita informação em pouco tempo. — suspirei, exausta.
— Tá legal, os dois precisam se acalmar agora. , vamos repetir a coleta e fazer também um teste de gravidez pra você se convencer e ter uma lembrança pra guardar. — Lupe decretou e virou-se para . — E você, papai, coloque a sua bela bunda de volta no leito e fique em repouso. Você acabou de passar por uma cirurgia, quer abrir esses pontos antes do tempo e dar dor de cabeça pra sua mulher gestante?
— De jeito nenhum. — voltou para debaixo da coberta como um cachorrinho. — Tudo pela minha família.
Família.
Eu, que nunca achei que teria filhos. Eu, que até um dia desses, não sabia sequer se teria um marido. Eu, que desisti desse sonho aos 18 anos, numa sala de consultório, quando recebi a notícia que, eu sabia agora, estava errada.
E eu sabia. Eu já podia sentir. Eu quis duvidar, porque a tragédia é muito mais crível que a boa-nova, mas havia algo diferente dentro de mim há algum tempo. Há três semanas, exatamente. Não eram só os enjoos ou o choro frouxo e incontrolável, era um rearranjo interno, uma mudança interior que fazia eu receber e sentir tudo por um nervo novo e preparava meu corpo para as transformações que estavam por vir. A carga de hormônios, as alterações no cérebro, no corpo, no coração, na minha vida. E na vida do meu marido, que não parava de sorrir desde que descobriu que poderia ter colocado uma coisinha no mundo.
— A gente não vai surtar até repetir o exame, ok? — sentei ao lado dele no espacinho que ele indicou.
— Eu não tô surtando, eu tô feliz.
— … — sibilei. — Um filho?
— É, meu amor. — ele apoiou os dedos no meu queixo. — Você não quer isso?
Eu queria. Mais que tudo. Principalmente depois de ouvir que eu era o amor dele, só dele, confesso daquele jeito tão genuíno e tão lindo, derramado que nem calda doce. A voz de soou com tamanha ternura que me fez pensar até em como ele chamaria o bebê, como conversaria com ele na minha barriga, como ia ensiná-lo a andar de bicicleta logo cedo para que ele não precisasse passar pela mesma vergonha que a mãe… Céus. Mãe. Ouvir essa palavra, mesmo que dentro da minha cabeça, fazia todas as fibras do meu ser vibrarem e aceitarem a grata missão, confirmada com uma certeza inabalável que tomou de conta de mim.
— Eu quero ser a mãe do teu filho, .
Ele beijou minha boca e minhas lágrimas.
— Nosso filho, amor. — ele passeou pelo meu rosto. — Eu já te amo mais do que a minha vida, mas eu vou amar esse bebê mais do que eu amo você. — os olhos de flamejaram, encarando até o fundo da minha alma. — Eu te prometo, , eu vou cuidar de vocês dois. Você não precisa ter medo de nada.
— Mas eu tô com medo. Eu tô apavorada com aquela história de o mais velho da sua família sempre ter três filhos. — enxuguei as lágrimas que desceram pela minha bochecha. — E, ao que tudo indica, você já botou o primeiro aqui.
— Vamos focar só nesse por enquanto, ok? — ele fez um carinho atrás da minha orelha. — No futuro, quando ele estiver grandinho, a gente pensa nos outros. E na menina, se ela não vier agora.
— Que história é essa de outros? — resisti ao impulso de empurrar o peito dele, me acomodando no seu abraço em vez disso. — Não vai ter outros. Você só precisou de duas noites comigo para conseguir me engravidar, nós nunca mais vamos transar de novo.
— É uma pena, porque eu não vejo a hora de sair dessas bandagens pra fazer amor com você. — ele jurou no meu ouvido. — Eu tô desesperado de saudade, minha .
Capítulo 12: Cura
(POV: )
Eu finalmente estava me sentindo eu mesmo outra vez.
A dor ainda pulsava na região das costelas, meio adormecida, mas os analgésicos estavam sendo cada vez menos necessários e eu já conseguia tomar banho sozinho — embora eu tivesse escolhido omitir esse fato da minha esposa apenas para ganhar a companhia dela no chuveiro todas as vezes. Recuperei a destreza dos movimentos e até consegui autorização para retomar minha rotina de exercícios, muito mais leve agora, é claro, e com o devido acompanhamento. A pressão constante nas costas amenizou ao longo dos dias, habituando a minha carne ao que ela era antes, e a lembrança em relevo que rasgava a lateral do meu torso não era uma preocupação, mas sim uma prova de onde meu coração sempre esteve.
A cicatriz era a minha verdade. E meu coração estava com a .
Com a e com o pedacinho de nós dois que estava dentro dela.
Depois que repetimos o exame e confirmamos o resultado, decidimos não contar a ninguém sobre a descoberta mais doce das nossas vidas, pelo menos por enquanto. tinha algumas reservas, um resquício de medo pela condição de saúde que, mesmo depois de comprovada como inexistente, ainda conseguia assustá-la e preocupá-la quanto à segurança do bebê. Era completamente compreensível, uma vez que anos de dor não se apagavam facilmente, mas o nosso pequeno milagre já desenhava em nossos corações um amor capaz de vencer qualquer coisa.
E uma barriguinha tímida já queria aparecer. Linda, linda.
— Ei, deixa eu te ajudar com isso. — caminhei em direção à barrigudinha. — Você não pode pegar peso.
— Nem você, mas não se preocupe. — ela deixou uma caixa no chão. — São só os meus travesseiros.
— Achei que você ia usar esses daqui. — puxei para um abraço e beijei o topo da cabeça dela, mantendo-a aninhada no meu peito.
— Eu vou. Mas daqui a pouco esse pacotinho que você colocou em mim não vai me deixar deitar e eu vou ter que dormir sentada.
— Bom, sentar é a sua posição favorita…
A versão grávida da desbloqueou um novo rolar de olhos, mais demorado, impaciente, e acompanhado de um suspiro alto bastante característico, que acusou o feito mesmo que eu não pudesse ver seu rosto. Felizmente, meu comentário não foi suficiente para fazê-la partir nosso abraço, que era muito mais importante que a minha piada, e as mãozinhas pequenas cercaram minha cintura, demonstrando a verdadeira preocupação da minha esposa no momento. Os dedos trêmulos foram subindo devagarinho à procura da marca na costela e, ao achá-la, ela desenhou a fenda com cuidado, errando a respiração com um soluço anunciando o começo de um choro.
— Shhh. — abracei mais forte, afagando os fios da nuca dela. — Já passou, amor. Não foi nada.
— Como não foi nada? — levantou o rosto. — Eu te meti nessa enrascada, foi tudo culpa minha-
Não esperei que ela concluísse o pensamento e o interrompi com um beijo manso, tentando persuadi-la do contrário sem palavras. Os lábios dela, mornos e nervosos, formigaram contra os meus em busca de consolo, que eu ofereci sem pressa alguma. Não havia culpa a ser designada além, é claro, daquela cabível ao malfeitor, e essa já estava sendo aplicada graças à competência de . O que restava agora era cuidar para que a gestação da minha esposa ocorresse da maneira mais tranquila possível, cercá-la de todos os cuidados, todos os carinhos, todo o amor que eu retive nas cláusulas do contrato que não existia mais.
— Ainda dói muito? — ela fungou, circulando suavemente ao redor da área.
— Quase nada. Mas antes em mim do que em você. — recolhi a mão dela e beijei as pontas dos dígitos. — Não pensa mais nisso, tá?
me encarou com os olhos marejados e um vinco no cenho provou que ela não conseguiria atender meu pedido. Desfiz o nó na testa dela com um carinho no espaço entre as sobrancelhas e ela fechou os olhos, erguendo o perfil na espera de mais um beijo. Sorri sem perceber. Aquele tinha virado nosso código secreto, nossa resposta não condicionada, nosso instinto. Em qualquer que fosse a situação, nosso ímpeto era tocar um ao outro, era ler na pele alheia tudo que não conseguia ser dito, era abraçar com todos os sentidos. O beijo dela era sempre a solução.
— E se toda vez que você pensar nisso, você me der um beijo? Que tal?
— Não precisamos mais de nenhuma desculpa para nos beijarmos. — ela ficou na ponta dos pés e me selou a boca. — Mas eu concordo.
Ficamos parados no centro do quarto que agora era nosso, encarando aquele cenário como a tela da nossa história. A tempestade que enfrentamos e que nos guiou até ali finalmente começava a assumir contornos de calmaria, e as coisas da foram encontrando seu lugar no guarda-roupa, no banheiro, na penteadeira que ela instalou no canto… E mais do que tudo, o lugar dela na cama, do lado esquerdo, que a deixava dormir no ângulo perfeito para ser encaixada nos meus braços.
— Aquela caixa é a última. — ela apontou os travesseiros esquecidos no chão. — Se for desistir, a hora é agora. Você ainda quer que eu me mude pra cá?
— Hm, deixa eu ver. — desci pelos braços dela, segurando as duas mãos. — Nós somos casados, vamos ter um bebê, eu levei um tiro por você, não sei… Talvez não estejamos prontos para algo tão sério como dormir no mesmo quarto.
— Será que estamos indo rápido demais? — ela forçou uma cara de pensativa.
— É um grande passo, vamos dividir tudo, até as gavetas… — aproximei a boca do ouvido dela, sussurrando. — Eu vou saber onde as suas calcinhas moram.
— Então talvez eu não deva usar mais nenhuma.
— Eu gosto muito dessa ideia.
O sexo durante a gravidez poderia ser um tabu, mas a minha urgência e meu desejo pela minha esposa falavam muito mais alto do que o mito risível de que a relação sexual poderia machucar o bebê — além disso, eu estaria mentindo se dissesse que não notei o aumento nos quadris e nos seios da e que isso não triplicou meu tesão por ela, — porém, três batidas na porta cortaram a manobra ousada que eu estava prestes a fazer por baixo do vestido que ela estava usando.
— Musuko?
A voz que surgiu me chamando em japonês atravessou mais que a minha audição, revirando alguma coisa dentro das minhas entranhas. Não era como das outras vezes em que eu tinha escutado aquele vocativo, meio frio, distante, quando eu chegava até mesmo a duvidar se aquela palavra tão doce era mesmo para mim. Não. Daquela vez, havia algo diferente na forma como Shinichi Arata, meu pai, me chamou de filho.
Talvez fosse a minha paternidade recente, ou quão sensível eu estava depois de assitir minha vida inteira passando diante dos meus olhos nas horas em que eu fiquei suspenso da realidade no hospital, o fato era que ver meu pai, sempre tão altivo e distinto, hospedado na minha casa e me aguardando no corredor com os pés descalços, totalmente à vontade, me aqueceu de certa forma. Fazia tempo que eu não o via em roupas confortáveis, com um semblante tão destravado e uma entonação tão calorosa, receptiva, de guarda baixa. Era agridoce. Por mais que a ausência dele tivesse pesado no meu coração durante anos a ponto de me tornar alguém insone, a presença dele ali, agora, claramente abalado por quase ter me perdido surtia uma espécie de efeito curador, um remédio tardio, mas, ainda assim, bem-vindo.
Meus pais haviam resolvido prolongar a estadia e aproveitar o acidente como uma oportunidade de passar mais tempo conosco e conhecer a melhor. Não faltavam assuntos nem tópicos para conversa, mas especialmente entre mim, meu pai e nosso relacionamento mal resolvido latente, havia muito mais do que poderia ser falado. Homens, no entanto, não costumam desbravar suas dores. Homens japoneses, então, são ensinados a enterrá-las e a sofrê-las em silêncio. Eu nunca disse ao meu pai o quanto sangrei com a falta dele, assim como eu também não disse o quanto estava aliviado por tê-lo ali ao meu lado, semanas depois de ter sangrado literalmente. Esse acúmulo de coisas não ditas parecia estar pairando sobre nós como uma nuvem densa que romperia em chuva mais cedo ou mais tarde, e a ansiedade nos olhos dele em falar comigo indicava que as águas viriam mais cedo do que eu pensava.
— Eu vou deixar vocês sozinhos. — soprou baixinho, caminhando até a porta e passando pelo meu pai no caminho. — Senhor Arata.
— Pode me chamar de Chiba. — ele acenou com a cabeça, derretido pelo sorriso dela.
— Como quiser, senhor Chiba. — ela piscou.
E então meu pai fez algo que ele não costumava fazer com tanta frequência: ele riu. Um riso gostoso, acompanhado de um japonês misturado com o inglês enrolado, tentando explicar para que o objetivo era fazê-la parar de chamá-lo de senhor. A cena me arrancou um riso tímido também, porque assistir o velho e duro Chiba se desmontar com os encantos da era a mais pura comprovação do velho ditado: tal pai, tal filho…
Aparentemente, ela tinha um dom natural para enfeitiçar os homens Arata.
E eu me rendi por inteiro.
— Ela está radiante. — meu pai decretou assim que saiu da nossa vista. — De quanto tempo ela está?
Senti uma pontada na cicatriz e um entalo na garganta.
— Tempo? — tossi. — Como assim de quanto tempo?
— Musuko… — ele repetiu, sorrindo pequeno. — Eu sei que ela está grávida, eu já vi isso. Três vezes.
— Pai… — balbuciei.
Ele chegou mais perto, apertando meu ombro apreensivamente, como se quisesse me abraçar e não soubesse como. Apenas aceitei a investida, colocando a minha mão sobre a dele, enrugada pelo tempo, mas ainda com a firmeza da qual eu me lembrava tão bem. Os olhos, por sua vez, vacilaram por um instante, e eu percebi que ele estava me estudando de uma maneira diferente, não mais com o crivo exigente que buscava o sucessor perfeito para a Three Swords, aquela visão aguçada que me demolia para me moldar de acordo com as suas expectativas altíssimas. Não era o olhar inquisitivo, obcecado em apontar as minhas falhas e corrigi-las, não era o olhar endurecido que criou uma barreira entre nós. Meu pai estava, naquele momento, enxergando pela primeira vez algo que era invisível até para mim mesmo.
Foi quando a paternidade, enfim, me encontrou.
— Eu vou ter um filho. — anunciei num fio de voz. — Eu vou ser pai.
— Você já é um. — ele me apertou com mais força e me sacudiu um pouco. — Já tem uma semente sua no mundo.
O silêncio entre nós se arrastou, enquanto o peso da nossa declaração se acomodava no ar. Uma lágrima quis se formar sozinha no canto do meu olho e antes que eu pudesse me envergonhar dela, antes que eu conseguisse pensar que ela poderia ser uma demonstração de fraqueza, meu pai me puxou para junto de si e me deu o abraço que eu esperei por quase uma vida.
— , meu filho… — ele finalmente disse. — Seja melhor do que eu fui pra você. Seja melhor do que eu.
Eu não sabia o que responder. As palavras estavam presas, entrecortadas por um misto de medo, rancor, alegria e saudade. Era uma combinação muito intensa e difícil de tragar, mas o calor das mãos grossas do meu pai batendo nas minhas costas amaciava a mistura de sentimentos. Receber o afeto atrasado dele me fez entender que todas as dúvidas e todos os temores que naturalmente tomaram conta de mim eram, na verdade, muito simples de resolver.
Se eu quisesse mesmo ser um bom pai, eu precisava perdoar o meu.
— Eu… vou precisar de você, pai. — foi tudo o que eu consegui dizer.
— Você vai? — ele gaguejou, segurando meu rosto pelas laterais. — Depois de como eu falhei com você, você… Você ainda me quer por perto?
A lágrima que eu tentei segurar escapou, rápida como uma fugitiva.
— Eu preciso. Eu estou assustado. Muito feliz, mas assustado. — me apressei em enxugar o filete salgado do queixo. — E eu sei que você deve me achar um fraco por dizer isso, mas-
— Você é tudo, menos fraco, . — ele rebateu com o pigarro típico de quando ele estava emocionado e não queria aparentar. — Na verdade, você é mais corajoso do que eu. Eu não levaria um tiro pela maluca da sua mãe.
Bati os cílios repetidamente. Ele estava fazendo uma… piada?
Bom, os dentes querendo aparecer entre os lábios contorcidos indicavam que sim, mas quem poderia imaginar que eu tinha herdado minha veia cômica justamente do meu pai?
— Isso não é verdade. — me permiti rir.
— Não, não é. Eu atravessaria o fogo pela sua mãe. E por você e seus irmãos. — o poderoso Shinichi puxou o ar com força e voltou a me encarar com sua convicção inabalável. — É o que um homem faz, ele protege e cuida. — ele apontou a marca na minha costela, quase orgulhoso dela. — Isso que você fez pela mulher que você ama, filho, é a maior prova de que você vai ser um bom pai.
Inspirei. Meu pai tinha razão, eu amava a .
Era tão óbvio assim?
Claro que era. Eu não podia me ver quando olhava para ela, mas eu tinha certeza que eu fazia uma cara de cachorrinho faminto e por pouco não colocava a língua para fora pedindo carinho. Meu pai certamente notou o meu fascínio pela desde o primeiro dia e eu certamente não era tão bom em fingir as coisas quanto eu pensei que fosse. Descobrir que ele sempre conseguiu enxergar através de mim e das minhas intenções me fez ter ainda mais fé nas palavras dele, que saíram tão verdadeiras como eu nunca tinha visto antes.
— Você sempre soube que era ela, não é?
— Sim. Mas eu quis deixar você descobrir sozinho.
Meu pai deu um passo à frente e a presença dele ocupava todo quarto. Os pontos dissolvidos na minha costela pulsavam à medida que ele se afastava, pinicando muito mais pela ansiedade do que pela leve dor do pós-operatório. A reconciliação era uma situação inédita para nós dois, o que nos deixou um tanto sem reação, sem saber direito quais seriam as próximas palavras, os próximos gestos, até que um impulso me moveu a confessar meu pensamento mais feliz até então.
— Amanhã eu vou ouvir o coração do bebê.
O velho quebrou, bem na minha frente.
— Não, filho. — ele sorriu brando. — Você vai ouvir o seu coração batendo fora de você.
⚔️
reclamou que o gel estava muito gelado e que o aperta-aperta da enfermeira dava vontade de ir ao banheiro, tudo para disfarçar o quanto ela estava nervosa. Eu estava muito mais nervoso que ela, mas não tinha nenhuma desculpa para justificar meu estômago se revolvendo nem a tremedeira involuntária, que arrancava risinhos discretos da médica e da auxiliar.
— Talvez tenhamos que verificar o coração do papai também. — a médica notou meu pé balançando compulsivamente, já segurando o transdutor para dar início ao exame.
Fiz que “não” com a cabeça, mas até que não era uma má ideia.
— Você tá quase tendo um piripaque no primeiro ecocardiograma e ainda fica falando em ter o próximo… — relaxou brevemente, divertida com a minha inquietação.
— Mas é claro, no próximo eu já vou saber como é, então eu vou estar mais tranquilo. — rocei o nariz no dela e ganhei um selinho que conseguiu me acalmar um pouco.
— Podemos começar?
pressionou a minha mão e deu o sinal verde para a doutora, inspirando fundo assim que a médica deslizou o aparelho pela barriga saliente de oito semanas. O monitor começou a projetar as imagens borradas e o som de líquido sendo remexido tomou conta do consultório, um barulho indiscernível que lembrava a sensação de um mergulho, uma submersão tão incrível que respirar deixava de ser importante.
Na verdade, eu tinha escolhido não respirar. Quando os contornos escuros começaram a se desenhar na tela, eu imediatamente retive o ar nos pulmões para que nada no mundo fosse mais alto que as batidas do coração do nosso filho.
E nada era. Nada no mundo era mais alto, ou mais bonito, ou mais perfeito que o coraçãozinho fazendo tum-tum. Inclinei um pouco a cadeira e deitei a cabeça ao lado da , dividindo com ela o mesmo fôlego para sentir plenamente os batimentos fortes e compassados sendo reproduzidos ali. Eu quis dizer o quanto eu amava os dois, mas não queria que minha voz se sobrepusesse à melhor música do mundo, então eu deixei um beijo na testa dela que falou por mim.
Meu pai tinha razão. Era o meu coração batendo fora do meu peito.
— Muito bem. Tudo certo por aqui. — a médica rompeu nossa bolha impenetrável, registrando dados no computador acoplado. Depois, ela moveu o transdutor mais para baixo. — Esse foi o primeiro bebê.
Aí sim meu coração parou por completo.
Primeiro…
Bebê?
— Primeiro? — moveu-se bruscamente. — Sim, esse é o primeiro. Nosso primeiro filho. Foi isso que você quis dizer?
— Oh, eu peço perdão. Achei que vocês já soubessem sobre os bebês.
Os…
Bebês?
— Não tem bebês não, doutora. — quis se sentar, mas foi impedida pela enfermeira, que procurava tranquilizá-la. — Nós só fizemos um.
— Acho que os bebês não foram avisados. — ela insistiu.
Bebês?
Mais de um?
Eu estava paralisado, todos os ossos, músculos e tecidos congelados. A médica ria contido, eram apenas mais notícias normais para ela, mas para nós, pais de primeira viagem, era como se a Terra tivesse perdido o eixo de rotação. Como se a gravidade tivesse sumido. Como se não houvesse mais chão, nem força nenhuma capaz de nos manter preso a ele.
Só havia a explosão de dopamina espalhando uma alegria violenta e contagiante pelas minhas veias.
— Então são gêmeos? — perguntei, enfim desprendendo a língua e sentindo o sangue faltar no corpo inteiro. — Tem dois?
— Tem três. — a médica apontou no monitor três vezes.
— O QUÊ? — deu um pulo na maca.
— Trigêmeos. — a ginecologista seguia completamente profissional, indiferente ao xilique. — Meus parabéns!
sequer me deu tempo para processar a informação, porque me agarrou pelo colarinho da camisa e me puxou impetuosamente, vermelha e agitada.
— Você colocou três crianças em mim, Arata? Isso quer dizer que daqui a pouco vão ter três bebês nadando aqui dentro como se eu fosse um piscinão coletivo?
— Amor, eu tô tão surpreso quanto você, mas você precisa se acalmar. — pedi, e a enfermeira saiu para buscar um copo de água (e quem sabe um sedativo).
— Não, você e seu pênis triplamente fértil estão uns dois bebês menos surpresos do que eu. — ela voltou a se deitar, apertando as têmporas.
— Calma, tá? — tentei tirar a pressão dela, suavizando o rosto com um carinho. — Em minha defesa, eu te falei que o mais velho da minha família sempre tem três filhos.
— Você não me falou que ia ter todos os três de uma vez só! São todos meninos, não é? — a essa altura, já não sabia se sorria ou se chorava. — Três meninos?
— Sim. — a médica confirmou, aproximando as imagens manchadas e cheias de pontinhos brilhantes. Mas os pontinhos podiam também ser resultado da vertigem que o impacto da novidade tripla me causou. — Três meninos fortes e saudáveis.
— Três japonesinhos… — balbuciou, me fitando com os olhos vidrados. — Três de… você.
— E de você também. — embarguei. — Eu espero que eles tenham os teus olhos, meu amor.
— … — ela sibilou, mordendo o lábio. — Estamos prontos pra isso, certo?
Encarei a íris dela, procurando ali no fundo castanho a resposta que ela me pediu. Não havia um manual que pudesse nos preparar para aquilo, aliás, a única certeza absoluta que eu tinha agora eram as três sementinhas de nós dois crescendo dia após dia, e por mais que elas ainda fossem do tamanho de uma frutinha framboesa, a sua simples e maravilhosa existência já era motivo suficiente para me fazer erguer o rosto da pelo queixo e ser capaz de confortá-la.
— Estamos sim. — sorri, genuíno. — Três ou trinta, não importa. Eu tô aqui por vocês.
estalou a língua, lutando para terminar as frases desconexas e parando os pensamentos na metade do caminho para enxugar uma lágrima.
— Como foi que isso aconteceu, hein? — ela perguntou, por fim, extasiada.
— Ah, você sabe como…
— Eu tô falando de como eu saí de infértil para fértil até demais, . — a barriga dela balançou com a risada e as imagens no monitor chacoalharam, me fazendo rir também.
— Isso eu posso explicar. — a médica aplicou mais uma camada de gel e soltou o ar pela boca, tentando amenizar o terremoto que a gargalhada causou nos trigêmeos. — Você relatou no seu histórico que recebeu um diagnóstico equivocado de endometriose, certo? Por causa disso, você tomou medicamentos para tratar uma esterilidade que não existia, o que otimizou suas chances de fecundação múltipla. É muito comum gravidez de gêmeos depois de tratamentos assim. Ou, no caso de vocês, trigêmeos.
Trigêmeos. O nome puxou um riso de felicidade pura rompendo pela minha garganta.
— , você tá rindo! — reclamou, mas continuava rindo também, com todo o cuidado que pôde. — É claro que você tá rindo, não vai ser você que daqui a alguns meses vai ter três cabecinhas rasgando a sua-
— Eu te amo. — cortei o rompante dela, inebriado por aquele sonho criando vida diante de mim. — Eu te amo ferozmente. Vocês ouviram? — olhei para baixo. — Eu amo vocês quatro.
— Nós também te amamos.
Ela suspirou, encostando a cabeça no meu peito e ancorando-se em mim, enquanto eu passava o braço pelas costas dela para transferir o calor que emanava do meu corpo num abraço. Eu abracei não só a minha mulher, mas todo o meu mundo infinito e particular.
Eu abracei a minha cura.
Eu abracei a minha fonte inesgotável de dopamina.
E naquela hora, nada mais me doía.
Achei fofo a reconciliação de pai e filho <3
E eu não tava esperando essas três surpresas. TRÊS!
Boa sorte a todos os envolvidos, mas muita felicidade HAHHAHA <3