%Yue% sentia a lágrima solitária rolar por sua bochecha ao observar a sua casa em chamas apesar do seu olhar vazio. O local no qual cresceu e criou memórias tão bonitas agora não passava mais do que um aglomerado de labaredas que ganhavam forças conforme o fogo se alastrava, e do alto da montanha ela podia ver o desespero iminente daqueles que diziam amá-la tentando lidar com aquela situação, não para salvá-la, mas para recuperarem as relíquias da família Mahina. “Tudo não passava de uma farsa”, pensou ao ter sua cabeça invadida por inúmeras lembranças de dias felizes, só para mais tarde descobrir que tudo o que lhe foi ensinado era uma mentira tão bem contada para mantê-la presa naquele casulo sufocante, sem a possibilidade de abrir suas asas e voar livremente por onde quisesse ir.

  Para onde o seu coração mais queria pousar.

  A fotografia queimada em seus dedos era a prova de que existia felicidade fora da mansão Mahina, mas queriam tirá-la de si a todo custo por acreditarem que sabiam o que era o melhor para a jovem, quando, na verdade, eles só queriam enriquecer mais às custas de sua única herdeira, mesmo que isso valesse a sua liberdade. %Yue% queria gritar aos quatro ventos que a sua família era uma farsa, queria que todos soubessem até onde os seus parentes iriam por suas ambições, contudo, todos já sabiam. Não havia como uma família tão influente como a dela passar despercebida pelas demais, e no fim, a jovem era a única que era mantida alheia do mundo lá fora. %Yue% olhou para a foto e sentiu o seu coração apertar tanto, mas tanto que quase ficou sem ar, precisando se apoiar na árvore para tentar se recompor; a dor que aquela fotografia lhe causava era tamanha, e quanto mais a observava, mais a vontade descontrolada de chorar surgia, fazendo a sua visão ficar completamente embaçada.

  %Yue% conheceu a liberdade e o amor em uma calorosa tarde de verão, em um lago distante da mansão Mahina em uma de suas poucas permitidas saídas. Com a desculpa de que compraria um presente para o lorde a quem foi prometida, ela correu para o mais longe possível do lugar, esbarrando com %Moon% %Jun% debaixo de uma enorme cerejeira, e bastou meio segundo para eles se aproximarem, e mais cinco minutos para perceberem que eram o amor da vida um do outro. Esse tipo de encontro era raro, %Yue% sempre lia em seus livros de romance que a chance era uma em um milhão, e ela não teve dúvidas de que o homem parado na sua frente com um sorriso tão lindo era aquele destinado a ser seu.

  A jovem se apaixonou por %Jun% antes mesmo de saber a sua verdadeira natureza, e no segundo encontro deles, ao descobrir, %Yue% apenas sorriu, dizendo que se ele precisasse de energia, podia usar a dela, considerando que a partir do momento que eles cruzaram olhares, %Jun% pertencia somente a ela. %Moon% achava a sua fala uma graça, e mesmo sendo um demônio dos sonhos e cuidador do limbo das almas, ele queria se entregar ao amor que estava diante de si, com o desejo de proteger Mahina %Yue% por toda a sua existência. Todas as vezes que ela fugia, eles se encontravam e %Jun% mostrava um pouco do mundo à sua amada, alegando que %Yue% era livre para viver a sua vida como quisesse, por mais que parecesse que o seu destino já estava traçado. A garota, por outro lado, queria manter toda essa experiência para si, e tentava ao máximo não demonstrar que havia mudado ao estar na presença de sua família. Ela não queria perder a sua liberdade e o seu amor, e por meses pensou em como poderia de fato se livrar do seu destino escrito por seus parentes, contudo, seus pais cada vez mais falavam do casamento, o que a fazia ficar extremamente tensa e correr contra o relógio.

  %Yue% tentou ao máximo pensar nas possibilidades para fugir, mas sabia melhor do que ninguém que toda a cidade estava sob o comando da sua família e a do seu noivo. A família %Boo% era conhecida por sua grande força política, e o seu herdeiro, assim como %Yue%, estava na idade de casar, e tanto os seus parentes quanto os dele fariam de tudo para que não houvesse empecilhos no caminho. Era impressionante como ninguém sabia dos encontros noturnos que %Yue% tinha com %Jun%, e por mais que ela pudesse pedir ajuda ao seu amor, a jovem não queria envolvê-lo nos problemas de sua família, sem contar que havia conseguido um jeito de se livrar do seu destino: se tornar uma youkai.

  Mahina pesquisou bastante diversas formas de se livrar do seu futuro, até que chegou em um livro sobre anjos, demônios, fantasmas e outras criaturas, o devorando em uma única madrugada. Na parte dos youkai, ela descobriu que precisava encontrar o espírito certo para ajudá-la e de um item muito valioso para si, então, a julgar que o cordão que sua avó havia lhe dado faria o papel desse item, %Yue% saiu em busca desse espírito, e para sua surpresa, o achou bem rápido. Claro que ela checou a veracidade do fantasma e o encheu de perguntas ao ponto em que o pobre ser fantasmagórico quase pediu para ser levado ao submundo, no entanto, Lux, o nome do espírito, não conseguia ignorar um pedido daqueles que estavam sofrendo, mas alegou que não podia conceder o seu pedido se Mahina não tivesse o item verdadeiramente valioso para si. Enquanto tentava pensar no que podia fazer, %Yue% se via em um labirinto, ainda mais com os preparativos do casamento batendo na porta e seus pais a forçando a ficar dentro de casa. Seus encontros com %Jun% se tornaram mais espaçados por conta dos afazeres dele como demônio, e aqueles dias felizes em que se sentia livre iam desaparecendo diante dos seus olhos.

  A lua azul era um fenômeno que acontecia raramente, mas não era incomum. Nas lendas, diziam que ela podia significar tanto um rompimento quanto um recomeço, seja em relações ou em ciclos da vida, mas %Yue% nunca imaginou que aquela aparição marcaria o último encontro dela com o seu amor.

  A estação havia mudado e as folhas da cerejeira caíam lentamente, causando uma sensação angustiante no coração da mulher. Ao olhar para %Moon% %Jun% sorrindo apaixonado para si, ela sentiu que o seu coração foi cortado ao meio, e a sua única reação foi abraçá-lo, enterrando o seu rosto na curvatura do pescoço de seu amor. Era como se o seu estômago estivesse na boca, e o nervosismo a estava consumindo por completo, no entanto, %Jun% afagou os seus cabelos e cantou uma música para %Yue%, que se acalmou aos poucos. Ele odiava vê-la assim, e por mais que quisesse fazer mais por ela, tinha plena noção de que Mahina não queria que ele se envolvesse nos seus assuntos familiares, especialmente pela família da mulher ser conhecida por sua religiosidade e ser totalmente contra demônios, fazendo de tudo para exorcizá-los — e se eles descobrissem a sua real natureza, quem sofreria as consequências seria %Yue%.

  — Minha querida Cherry — a chamou pelo apelido que lhe deu no primeiro encontro por causa da árvore —, eu tenho um presente para você. Sei que o meu trabalho nos impede de sairmos e teremos que ficar algum tempo longe, mas saiba que o meu amor por você ultrapassa a barreira dos três mundos. Seja em um sonho, ou em um sonho dentro de um sonho; no mundo humano ou no submundo, a gente sempre se encontrará, minha metade.

  Os olhos de %Yue% brilharam ao ver o enfeite de cabelo em formato de lua, um símbolo que significava que ela era dele. Ao colocá-lo contra a lua azul, o adereço reluziu, e por um breve momento a jovem acreditou que tudo ficaria bem no final. Eles ficaram nos braços um do outro apenas aproveitando o tempo que tinham juntos, e ao se despedirem, %Yue% sentiu mais uma vez que o seu coração havia se despedaçado.

  Depois daquele dia, Mahina não teve mais notícias de %Jun% a não ser por cartas que cada vez mais demoravam a chegar. Sua suspeita era que alguém estava dificultando o seu contato, e conforme os preparativos do casamento iam tendo andamento, %Yue% ficava ainda mais aflita, até que ela decidiu fugir. A garota queria se encontrar com Lux e ir atrás de %Jun%, mas para isso, precisava ir no alto da montanha, só que seus pais a proibiram de ter suas saídas por causa do casamento, além, claro, de perceberem as pequenas mudanças em seu comportamento ao longo dos meses.

  Com uma pequena bolsa e sua determinação, a jovem conseguiu fugir, no entanto, quando estava perto de concluir seu caminho, ela foi interceptada pelos guardas que estavam na floresta, que não eram nem um pouco amigáveis. Para sua sorte, seu noivo estava por perto, e logo contornou a situação dizendo que ele a chamou para encontrá-lo, e os guardas a liberaram com a condição de que ela teria que voltar a mansão. Era a primeira vez que ela via o homem pessoalmente, até então só o conhecia por fotos e pinturas, e %Yue% podia dizer que aquele belo rapaz não estava apaixonado por si como seus pais alegavam, muito menos estava feliz com o casamento arranjado, porém, %Boo% %Seungkwan% se mostrou ser uma pessoa acolhedora e simpática, e durante os duros meses em que ficou longe de seu grande amor, o seu noivo foi a sua companhia, e Mahina acabou descobrindo que assim como ela, %Seungkwan% também vivia um romance proibido, o que fez com que os dois se aproximassem bastante.

  Por mais que tenham conseguido adiar o casamento diversas vezes com a desculpa de quererem se conhecer melhor, a data final havia sido anunciada aos quatro ventos, e os jovens se viram em um beco sem saída ao encararem as suas roupas características de um casório. As duas famílias já tinham sido maleáveis o suficiente em permitir que eles tivessem contato antes da união, então, elas queriam que aquele casamento acontecesse o mais rápido possível, principalmente por conta dos grupos que eram contra as famílias estarem ganhando força pela cidade. Com o casório, o poder que ambas possuíam estaria garantido, e quanto mais cedo conseguissem esse marco, mais cedo seus bolsos ficariam ainda mais cheios de dinheiro.

  No entanto, nem tudo ocorreu como planejaram.

  A família %Boo% e Mahina não sabiam que, quando seus únicos herdeiros saíam em “encontros românticos” pela cidade, na verdade, eles estavam em busca de meios de não concluírem a cerimônia. %Yue% já sabia como atingir o seu objetivo, e ajudou %Seungkwan% a ir atrás do dele, por mais que tenha demorado mais do que imaginaram. Ter se apaixonado por uma cidadã comum enquanto era um dos lordes no topo da hierarquia social não era o ideal, mas era compreensível, afinal, não mandamos no coração. Contudo, ter se apaixonado por uma cidadã comum que ainda por cima era uma vampira enquanto a família %Boo% era conhecida por caçarem vampiros tornava tudo muito mais complicado. Quando %Yue% descobriu, percebeu que eles definitivamente estavam no mesmo barco, e com a ajuda de Lux, encontrou um vampiro viajante que podia ajudar %Seungkwan% com o seu objetivo.

  Então, no dia do casamento, eles fugiram.

  Todavia, ao chegarem na cidade vizinha, apenas um deles conseguiu ir embora, e por mais que quisesse ser livre, %Yue% abriu mão da sua fuga para ajudar o seu noivo, se vendo obrigada a retornar ao inferno que chamava de casa. Para a sua sorte, sua família usou da situação para acusar a família %Boo%, alegando que eles os enganaram e %Yue% era uma vítima; Mahina, cansada e com seu coração despedaçado, se viu mais uma vez presa naquele quarto sem vida, se perguntando se um dia ela e %Jun% poderiam viver felizes para sempre. A barreira espiritual que seus pais colocaram em volta da mansão era forte, e os amuletos pareciam estar grudados nas paredes de maneira que nem raspando saíam, tornando o seu contato com Lux impossível. Ela não podia enviar ou receber cartas, e todos os seus dias se tornaram monocromáticos e dolorosos, e %Yue% já não tinha mais forças para lutar.

  Até que uma descoberta a fez tomar uma atitude que nem mesmo Lux poderia imaginar.

  Em um dos jantares, seus pais anunciaram que haviam encontrado um novo pretendente para %Yue%, e por mais que essa notícia por si só a irritasse, o que veio a seguir fez com que o seu corpo gelasse: os mais velhos sabiam de %Moon% %Jun%. É claro que eles não tinham ciência de tudo, mas em suas visões, Mahina estava fazendo o seu trabalho como exorcista, e ambos deixaram claro que se o demônio continuasse aparecendo, eles mesmos lidariam com isso. Mas essa foi a prova de que %Yue% continuaria com o legado da família, e não satisfeitos, eles falaram que todas as cartas destinadas a ela haviam sido queimadas sem serem abertas, independente do remetente — já que, para continuarem a prendê-la no casulo, eles não queriam que a jovem tivesse contato com ninguém. A garota apenas engoliu a seco e usou a desculpa de estar indisposta para retornar aos seus aposentos, e, nessa mesma noite, Mahina %Yue% ateou fogo em seu quarto com todos os pertences preciosos da família, conseguindo resgatar apenas a fotografia dela e de %Jun% e um pequeno caderno no meio das labaredas, sem se importar em se queimar durante o processo.

  As chamas ganhavam tanta força que a mulher acreditava que elas estavam sendo alimentadas por toda a sua raiva e tristeza, e por mais que quisesse chorar, as lágrimas só vieram quando chegou no alto da montanha, assistindo sua “família” preocupada apenas com os bens materiais. %Yue% respirou fundo, sentindo uma dolorosa pontada em seu coração misturada com uma sensação de alívio, porém, sabia que as suas forças para continuar a jornada haviam se esvaído juntamente do fogo, e com a voz baixa, chamou por Lux, que veio ao seu encontro. Por mais preocupado que estivesse, Lux não podia deixar os seus sentimentos transparecerem para não influenciar nas escolhas de seus clientes, e o seu coração fantasmagórico doía ao ver sua amiga na situação que estava.

  — Tem certeza do que desejas, Mahina %Yue%?

  — Sim — respondeu com o olhar vazio, ainda observando a casa em chamas. — Posso te pedir um favor?

  — Se estiver ao meu alcance.

  — Se nos esbarrarmos por aí — ela entregou o pequeno caderno juntamente da foto, tirando o enfeite de cabelo em seguida —, você poderia me entregar esses itens de volta? Não vou poder levá-los comigo, já que em breve me tornarei uma youkai sem memórias — sorriu tristonha — e não quero correr o risco de perder esses itens.

  — Farei como desejar.

  — Obrigada, Lux. Você foi um ótimo amigo para mim durante esse tempo. Espero que você consiga reencontrar os seus amigos, talvez %Jun% possa te ajudar no futuro.

  O espírito iniciou o ritual, e como pré-estabelecido no contrato, as memórias de %Yue% e de %Jun% — através da marca do pacto que ele colocou em Mahina, mas que ela nunca usou — em relação ao tempo que estiveram juntos seria selada, no entanto, Lux optou por ir um pouco mais devagar, dando espaço para a amiga ir se acostumando com as mudanças que o seu corpo já ia sofrendo.

  %Yue% queria ser livre.

  Queria correr pelos campos floridos até o entardecer e assistir o nascer do sol sem se preocupar com nada, apenas sendo feliz. Queria bater suas asas para onde bem entendesse e queria conhecer cada canto do mundo e conhecer novas pessoas e culturas.

  Queria poder se reunir com aquele que amava e que lhe mostrou que o mundo era muito mais do que o casulo onde foi criada.

  Nessa tarde fria de verão, %Yue% sabia que desaparecia por um tempo. Nada exato, mas tinha plena noção de que todos se esqueceriam da sua existência a partir do momento em que o ritual fosse completado. Esse seria o preço da sua liberdade, e apesar do medo e da dor, ela queria se aventurar no que sua nova vida lhe ofereceria, e rezava todos os dias para que quando fosse a hora, ela e %Moon% %Jun% pudessem se encontrar.

  — Ei, %Jun% — sorriu em meio às lágrimas —, será que quando nos encontramos, você me verá? Sabe, eu vou me tornar um espírito, mas continuarei a te procurar mesmo sem lembrar de você... — Suspirou ao fechar os olhos, sabendo que o ritual estava quase no fim. — Será que um dia eu poderei desaparecer em você para podermos ficar juntos para todo o sempre?