Capítulo 1
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— Terminei, pai. Essa mesa foi a última. — Afasto o pano da mesa redonda de madeira, e levo as mãos até minha cintura.
— Obrigado, minha filha. — Papai surge do meu lado, colocando uma de suas mãos sobre o meu ombro.
— Acabamos por hoje? — Pergunto, ao mesmo tempo que minha mãe atravessava a porta que levava para uma pequena cozinha escondida. Ela carregava uma cesta com pães.
— Acho que sim. — Mamãe coloca a cesta sobre a mesa, enquanto papai e eu nos sentamos nas cadeiras ao redor. — Comam um pouco, quero todos muito fortes e atentos para o turno da noite. — Ela limpa suas pequenas mãos no avental em torno da cintura.
— Mal posso esperar para passar um tempo com aqueles malditos bêbados. — Papai resmunga sem humor, enquanto pega um dos pães doces da cesta.
— A ideia foi sua, Zac. — Mamãe se senta do meu lado.
— Eu sei. Não tínhamos muitas escolhas, só os pães não estavam nos dando um bom lucro. — Papai dá uma grande mordida no pão, falando de boca cheia, o que faz com que mamãe o olhe com reprovação.
— Uma padaria que serve rum de noite. — Mamãe nega com a cabeça, rindo.
— Eu gosto de conversar com os bêbados, eles são mais simpáticos quando não estão sóbrios. — Dou de ombros, pegando um dos pães da cesta.
Encaro a massa salpicada com coco e depois dou uma mordida, sentindo o gosto da banana. Minha mãe era a melhor quando se tratava de pães, principalmente os pães doces.
— Não gosto que fique aqui de noite. Não é bom para uma moça solteira andar no meio dos bêbados.
— Mas eu estou trabalhando, pai. — Arqueio uma sobrancelha, enquanto mordo o pão outra vez.
— Mesmo assim, se continuar como está, você nunca vai se casar. — Papai suspira alto, pegando outro pão.
— Como nós chegamos nesse assunto? Eu só tenho dezenove anos. — Encaro minha mãe, que dá de ombros.
— Já está na idade, Serena. A filha do vizinho se casou a pouco.
— Eu não sou a filha do vizinho. — Bato minhas mãos, limpando as migalhas de pão.
Papai suspira outra vez.
— Por mais que eu adore a ideia de ter a minha garotinha comigo, eu não quero que você passe o resto da sua vida trabalhando nesse lugar. Você merece muito mais do que eu e sua mãe te damos.
Encaro a expressão preocupada de meu pai, e seguro em sua mão que estava sobre a mesa, apertando-a de leve.
— Eu estou feliz em passar o resto da minha vida ajudando vocês dois aqui. — Sorrio para ele, que mesmo não aprovando minhas palavras, sorri de volta.
— E o Adam? — Mamãe pergunta e eu a encaro com o cenho franzido, enquanto solto a mão de meu pai.
— O que tem ele?
— Adam é um rapaz muito bonito. — Mamãe solta seus longos cabelos negros, me olhando com inocência.
— Adam é meu amigo e não gosta de mim dessa forma, mãe.
Ela levanta as mãos em frente ao corpo.
— Tudo bem, não está mais aqui quem falou.
— Adam é pobre como nós. Serena precisa arrumar um marido rico. — Papai interrompe.
— Você está certo. — Suspiro falsamente, olhando de forma significativa para minha mãe; ela já sabia o que eu estava prestes a fazer. — Talvez eu devesse arrumar um marido com dinheiro e mais velho, alguém que já tenha passado por alguns casamentos. Um homem rico que quando posar ao meu lado, todos pensem que sou sua filha, mesmo que sejamos casados.
O semblante de meu pai se contorço em desgosto.
— Você só tem dezenove anos. — Ele bate sua mão contra a mesa, de forma frustrada.
Espio minha mãe, de canto de olho, e ela me lança uma piscadela antes de rir.
— Independente de sua idade, Serena já é uma mulher adulta, e eu tenho certeza que na hora certa ela vai encontrar alguém que a ame, da mesma maneira como nós a amamos. — Mamãe se levanta e beija entre meus cabelos e, em seguida, vai até à cadeira de meu pai, o pegando pelo braço. — Agora, deixe de chateá-la e me ajude a limpar a cozinha.
Contra sua vontade, papai se levanta da cadeira, mas é salvo no último segundo, quando Mony abre a porta da loja, tão exasperado quanto um furacão.
O homem com poucos fios de cabelos e roupas simples, corre aos tropeços até meu pai, o segurando pelos ombros, enquanto o encara com olhos amedrontados.
— Zac... — Mesmo que eu ainda esteja sentada, posso ver os dedos de Mony tremerem sobre os ombros de papai.
— O que foi, homem? Parece que vai tirar o pai da forca.
Tento segurar o riso, em respeito ao exaspero do nosso vizinho.
— Você não ficou sabendo? Outro corpo foi encontrado morto perto da orla, e esse também tinha a boca cheia de moedas de ouro. — Suas íris tremiam.
Mamãe se afasta dos dois e caminha com tranquilidade até à porta da cozinha.
— Já avisaram a guarda? — Sem ser rude, meu pai retira as mãos de Mony de seus ombros.
Mony acena freneticamente.
— Sim, Jose já avisou.
— Então se acalme, homem. Sente-se aqui um pouco. — Papai puxa uma das cadeiras da mesa, e Mony se senta e, em seguida, retira seu pequeno chapéu de pano sujo, o apertando entre os dedos.
— Como eu posso ficar calmo? Os piratas estavam atacando as cidades vizinhas e, de repente, mais um corpo aparece aqui. Eles estão chegando, Zac. O que será de nossos filhos? — Mony passa a mão nervosa pelo rosto, quase chorando.
Desvio minha atenção da sua cena e procuro com os olhos, o pequeno cachorrinho que deixei deitado em um canto da loja. E como sempre, lá estava Duque, sendo um preguiçoso, nem mesmo a algazarra de Mony foi capaz de acordá-lo.
Rio baixo comigo mesma.
— Aqui, tome um pouco de água, Mony. Se continuar nervoso desse jeito vai ter um ataque.
Quando volto a prestar atenção nas pessoas ao redor da mesa, vejo que minha mãe voltou da cozinha com um pequeno copo d'água nas mãos.
— Obrigado, Agness. — Eu nunca pensei na hipótese de que alguém poderia se afogar com um copo d'água, mas vendo Mony beber com tanta pressa, essa ideia não me parece tão louca agora.
Ele bate o copo de vidro contra a mesa de madeira e arrasta a cadeira para trás, se levantando.
— Eu preciso ir, tenho que avisar os outros vizinhos. — Mony coloca seu chapéu de volta. — Serena, tome cuidado.
Aceno para seu alerta e, assim, Mony deixa nossa loja de pães e rum.
— Isso é uma grande besteira. Já tem mais de um mês que o rei mandou sua guarda para esse lugar, eles estão cuidando de todos nós. — Papai nega com a cabeça.
— Isso não é desculpa para não nos cuidarmos. — Mamãe coloca as mãos na cintura, encarando papai com seriedade. — Serena, não quero você perto da orla por enquanto.
Penso em responder, mas seria apenas uma perda de tempo, por isso assinto, e depois jogo minha cabeça para trás, pensando em como os meus dias seriam chatos ser poder visitar o mar.
***
Depois de convencer mamãe de que eu não iria para a orla, ela me deixou sair um pouco, antes que o turno da noite começasse.
Duque havia acordado e resolveu caminhar comigo. Ele ainda parecia meio sonolento, então tive que andar devagar; mas, no final, tive que pegá-lo no colo, onde ele fez questão de dormir outra vez.
Acabei optando por perder algum tempo nas colinas opostas às colinas da orla, onde a única coisa que se podia ver eram mais colinas, tudo verde, sem o azul do mar. Não é uma vista desagradável, pelo contrário, era muito bonita, mas nada se comparava a imensidão do mar. Nós temos essa ligação, onde eu me sinto completamente calma e relaxada apenas por ver as pequenas ondas se quebrando na orla, enquanto o vento traz a maresia e o som do mar.
Paro debaixo de uma grande árvore, aproveitando a sombra que ela me oferecia nesse momento. A brisa era gentil, tocando com suavidade meu vestido e meus cabelos, os balançando como um só.
— Você viu isso?
Salto para o lado, deixando um pequeno grito escapar, o que acorda Duque, que fica um pouco irritado.
— Já disse para não chegar desse jeito, Adam. — Bufo, irritada, segurando Duque com uma mão, enquanto levo a outra até meu peito, tentando acalmar meu pequeno momento de susto.
— Me desculpe, Serena. Mas você viu isso? — Adam estende um cartaz de "procura-se", bem próximo ao meu rosto.
"Capitão Hanna"
Eu já havia visto isso tantas vezes que já perdeu a graça.
— Você pode, por favor, tirar isso da minha cara!? — Empurro a mão de Adam para o lado, e ele encolhe os ombros.
O garoto de cabelos escuros e sardas no rosto expira frustradamente.
— Como você pode ser tão calma? Se eu mostrar esse cartaz pra qualquer um aqui, todos vão morrer de medo.
Me sento no chão de grama e encosto as costas contra a árvore que projetava a refrescante sombra. Cruzo as pernas e deixo um espaço vago entre elas, colocando Duque nele, que não já conseguia mais dormir.
— Essa não é a primeira vez que vejo um pirata. E isso é só um cartaz. — Dou de ombros, e Adam se senta do meu lado, desajeitadamente.
Ele dobra o cartaz e o deixa sobre suas pernas esticadas, e depois apoia as mãos na grama, se inclinando em minha direção com os olhos grandes.
— Está falando daquela vez na praia, não é? Como é que você não ficou com medo? — Adam me encara sem piscar.
Rio de sua expressão. Era sempre engraçado como ele ficava interessado em histórias de piratas.
— Eu fiquei com medo, sim, já te disse isso. Eu era muito pequena, acho que por isso ele não fez nada comigo. — Respondo, enquanto começo a afagar o pelo branco de Duque que, por um momento, fecha os olhos.
— Eu acho que teria chorado se estivesse no seu lugar. — Ele nega com a cabeça, com os olhos ainda arregalados.
Rio de novo.
— E como estão as coisas? E a Maria? — Decido mudar de assunto, querendo aproveitar esse tempo com meu amigo de uma maneira menos dramática.
O cartaz sobre as pernas de Adam, voa para longe, mas ele não se importa, pois a simples menção do nome "Maria" o faz desviar o olhar e coçar a parte detrás da cabeça.
— B-Bem... — Ele gagueja e depois limpa a garganta. — Eu estava querendo falar com você sobre ela.
— Imaginei que sim. — Continuo afagando os pelos de Duque, que agora estava de olhos abertos e admirava as belas colinas a nossa frente.
Adam respira fundo, ficando com as bochechas levemente avermelhadas. Eu até poderia dizer que se tratava do sol, mas o sol já havia ido embora.
— Fala logo, Adam, antes que eu mande o Duque te morder. — Brinco, e ele faz uma careta.
— Acho que vou pedir ela em casamento. — A confissão faz suas bochechas ficarem ainda mais vermelhas, quase camuflando suas sardas.
— Finalmente. — Paro de afagar Duque e ergo as mãos para cima, encarando o céu de fim de tarde.
— Você acha que ela vai aceitar? — Ele me olha receosamente.
— É claro que vai. Eu já te disse que conversei com ela, e ela me disse que também gosta de você. — Sorrio para o meu amigo, tentando tranquilizá-lo um pouco.
— M-Mas e se ela só tiver te falando aquilo porque sabe que você é minha amiga e iria me contar depois, e não queria me magoar? — Ele fala tão rápido que quase preciso pedir para que repita tudo com calma.
— Deixa de ser besta. Ela gosta de você. E se você não pedir ela em casamento, eu peço no seu lugar.
— Você não faria isso. — Adam se inclina para trás, arregalando os olhos de novo.
— Faria sim. — Ele sabe que eu estou falando sério, por isso, engole em seco.
Adam fica alguns segundos em silêncio, antes de suspirar e assumir uma expressão mais confiante.
— Eu vou pedir ela em casamento.
— É assim que se fala. — Bato palmas, animada por ele.
— Ano que vem.
— Adam... — Suspiro, rindo derrotada. — Diga a ele o quanto ele é um frouxo, Duque. — Pego o cachorrinho no colo e estico em direção a Adam.
Como se nos entendesse, Duque late para Adam, que encolhe os ombros e abaixa o olhar, como se tivesse acabado de levar uma bronca.
— Está vendo, o Duque nunca mente. — Sento o cachorrinho nas minhas pernas, e abraço Adam de lado. — Não se preocupe tanto, quando você tiver coragem, ela vai aceitar. Só não demore muito, ou alguém vai roubá-la de você.
Adam levanta a cabeça, me encarando espantadamente.
— Vou pedi-la em casamento agora. — Ele se levanta em um pulo e, com calma, faço o mesmo.
— Não era bem isso que eu estava falando, Adam, mas... — Sou interrompida por gritos, que reconheço como sendo os de Maria.
Adam me fita desesperadamente, e eu o encaro de volta como se dissesse "calma, ela não sabe do que estávamos falando".
A garota de cabelos curtos sobe a pequena colina correndo, e quando se aproxima o suficiente, coloca as mãos nos joelhos, tentando recuperar o fôlego.
— Ma-M-Maria, eu gostaria de te perguntar uma coisa... — Mais uma vez, Adam me encara, e enquanto me abaixo para pegar Duque, faço um sinal de positivo para o meu amigo.
— Os piratas estão aqui!
— ...casar comigo?
Os dois dizem ao mesmo tempo.
Meu corpo fica tenso.
— O quê?! — Adam grita tão alto quanto Maria gritou antes.
O tronco de Maria subia e descia com rapidez. Ela passa a mão sobre a testa suada, onde alguns fios de cabelo estavam grudados.
— Os piratas! Eles acabaram de invadir e estão destruindo tudo! Eu fiquei desesperada, estava no mercado quando aconteceu! — Ela engole em seco, e agarra na barra do seu vestido florido de algodão. — Antes, encontrei Adam e ele me disse que viria te encontrar! Por isso, vim aqui avisar!
Por um segundo, era como se todo barulho ao meu redor sumisse, enquanto as batidas do meu coração, preenchiam tudo.
— Os meus pais. — Sussurro, antes de apertar Duque nos meus braços e começar a descer a pequena colina correndo.
Exasperado, Adam começa a gritar, mas não olho para trás, pois tudo que eu consigo pensar são nos meus pais e no que pode acontecer com eles.
As colinas onde estávamos ficava na direção contrária do mar, e esse foi o motivo de não vermos nada. Mas conforme começo a me aproximar das casas e do comércio, consigo escutar os gritos de desespero.
Me apresso e me escondo com Duque atrás de uma árvore, espiando com cuidado. A poucos metros, havia uma pequena feira de frutas montadas com caixotes, onde alguns piratas chutavam a madeira, derrubando laranjas para todos os lados. Eles também estavam arrombando algumas portas e invadindo casas.
De maneira nervosa, passo a língua sobre os lábios e encaro Duque, que me encara de volta sem entender. Olho para o topo da colina, vendo dois pequenos pontos descendo-a correndo, mas não espero por Adam e Maria, pois assim que percebo mais piratas invadindo algumas casas, aproveito desse momento para correr, passando por entre as frutas no chão.
Duque tentar saltar do meu colo, mas o aperto com força, caso contrário, poderíamos nos perder.
Em meio a gritaria, me escondo atrás de um barril quando dois piratas com espadas atravessam a poucos passos de mim. Tento controlar minha respiração e torço para que eles saiam logo, e quando isso acontece, me ponho a correr mais uma vez, indo em direção à loja dos meus pais.
Percebo que as luzes estavam acessas, então tenho cautela ao me aproximar, espiando por uma das janelas retangulares. Mais piratas estavam do lado de dentro, comendo todos os pães que minha mãe havia preparado para vender. Um deles, baixinho e gordo, sai da cozinha arrastando um tonel de rum.
Com Duque agitado, permaneço ali por mais algum tempo, e só quando tenho certeza de que meus pais não estão na loja, me afasto sem que me vejam.
A noite começa a dar seus primeiros sinais, e isso, de certa forma, me ajudou a me camuflar por onde eu passava. Mas meu corpo tremia toda vez que eu via algum conhecido sendo atacado por um dos piratas, tendo suas casas ou comércios invadidos. Eu queria ajudar, mas precisava encontrar os meus pais primeiro.
Atenta a tudo ao meu redor, sigo exatamente da mesma forma até que eu consiga chegar na minha casa. E a primeira coisa que vejo, é a porta da frente aberta e torta, com alguns pitos soltos, e isso é o bastante para fazer meu coração saltar dentro do peito.
Torcendo internamente para que o pior não tenha acontecido, corro até à porta arrombada e coloco Duque no chão, que vem correndo atrás de mim. O interior da casa estava escuro e tudo estava revirado, deixando que os piores cenários possíveis se formassem na minha cabeça.
Sem conseguir me controlar, começo a chamar por meus pais, enquanto passo pela sala e vou em direção ao corredor dos quartos.
— Ahoy! O que temos aqui? — Um homem alto e careca sai do meu quarto, me fazendo parar de andar. — Jason, acho que encontramos uma. E essa aqui é uma belezinha. — Ele sorri em minha direção, antes que outro homem, esse menor, também saia do meu quarto.
Dizem que os cachorros conseguem sentir nossas emoções, e acho que Duque sentiu as minhas agora, pois entra no corredor latindo para os dois homens.
— Vamos, Duque. — Rapidamente me abaixo e pego o cachorrinho, me virando e correndo por onde vim. E assim que saio do corredor, além de escutar as botas pesadas dos dois piratas atrás de mim, um terceiro surge na entrada, me obrigando a correr na direção contrária, indo para à cozinha.
Desesperada, olho em volta, pegando a primeira coisa que vejo: uma chaleira vazia sobre a pia.
Duque late ainda mais alto no meu colo, quando os três piratas me cercam na cozinha.
— É melhor vocês não se aproximarem. — Tento ameaçá-los, mas uma chaleira de metal amassado e um pequeno maltês de pouco mais de dez anos não assustam ninguém, muito menos piratas.
O pirata alto e careca anda calmamente até onde eu estou, enquanto ri. Ele ergue as mãos no ar e simula garras, gritando para Duque, que se encolhe no meu braço, com medo.
À medida que ele se aproxima, eu ando para trás, até me encontrar sem saída, pois havia o terceiro pirata desse lado. Sem saber o que fazer, acerto a chaleira na testa do pirata careca que, por um segundo fica tonto, chacoalhando a cabeça rapidamente para os lados, fazendo suas bochechas chacoalharem, enquanto ele faz um barulho com a boca.
O pirata menor ri alto, o irritando e o fazendo partir para cima de mim, me agarrando. Duque tenta mordê-lo, mas o pirata o assusta de novo. Começo a gritar e me debater, mas o terceiro pirata vem por trás e cobre minha cabeça com um saco de linho. E sou jogada no chão, mas não solto Duque, que começa a resmungar como em um choro baixo.
— Ela não solta o vira-lata. Eu vou matar.
Encolho meu corpo, tentando aprisionar Duque em um casulo para protegê-lo.
— Não temos tempo. Vim avisar que os guardas do rei estão chegando. Precisamos voltar para o navio agora, portanto, levo o maldito pulguento junto, lá nós damos um jeito nele.
Sinto meu corpo ser levantado, antes que um deles me pego no colo, me carregando. Aperto Duque, que para de choramingar e fica quieto nos meus braços.
Sinto o vente fraco da noite nos atingir quando sei que eles me levaram para fora da minha casa.
— Não! Não! Me solta! — Começo a me debater de novo, mas sou jogada sobre os ombros de alguém, fazendo Duque e eu ficarmos pendurados de cabeça para baixo.
— Não pense que só porque é uma belezinha, que não posso te comprar um belo caixão. É melhor ficar quietinha.
Meu corpo fica tenso, e minha respiração começa a ficar abafada, batendo contra o saco de linho e voltando para o meu rosto. O som da maneira como eu respirava, preenchia os meus ouvidos dentro do saco, enquanto eu tentava enxergar alguma coisa por entre os milhares de buracos costurados do saco. Eu só conseguia ver sombras e, mesmo assim, de um jeito muito ruim, mas definitivamente eu podia escutar com clareza os gritos e até mesmo tiros.
Os pelos do meu corpo se arrepiam e tudo que eu posso pensar são nos meus pais, e como eu torcia para que não seja eles na frente desses tiros disparados. O meu coração apertava, estava descontrolado. Eu precisava saber sobre os meus pais.
Por favor, que eles tenham se escondido. É tudo que eu peço.
Quem me carregava, parecia estar subindo uma inclinação, fazendo meu corpo balançar com seus passos.
Mesmo estando em uma posição ruim, tentar afagar sutilmente Duque, para tranquilizá-lo. Esse cachorrinho é tudo que eu tenho agora.
Os vestígios das sombras somem quando tudo se torna mais escuro, e logo depois quem me carrega começa a descer escadas de madeira, pois eu escutava o ranger.
Meu corpo é jogado no chão outra vez, e acabo batendo meu braço em Duque, que choraminga.
— Pega o pulguento. — Alguém diz, e Duque é puxado com força dos meus braços. Me desespero quando o cachorrinho começa a latir. — Quietinha ou ele morre. — A mesma voz sussurra perto do meu ouvido, me obrigando a obedecê-la.
O saco de linho é retirado da minha cabeça. Pisco os olhos algumas vezes, percebendo que estava em um lugar feito de madeira e completamente escuro.
— Anda, de joelhos. — A mesma voz masculina, fala.
Olho para os lados, vendo mais pessoas onde eu estava, mais reféns. Todos estavam lado a lado, de joelhos e com as mãos para trás.
Uma luz fraca vinha do alçapão que nos escondia.
Ainda sentada, alguém segura meu rosto pelo queixo e o ergue.
— Ora, ora, parece que vocês trouxeram um peixão. — A mão áspera se aperta em meu queixo, mas não consigo ver o dono dela.
Todos que estavam de pé tinham seus rostos sombreados pela falta de luz, então eu não sabia para quem estava olhando, mas conseguia reconhecer as vozes, vez ou outra quando os piratas que me sequestraram falavam.
— Uma maravilha, não é? Vejo só esses olhos, azuis como o oceano. — Reconheci a voz do pirata careca que acertei com a chaleira. Ele tenta tocar meu rosto, mas desvio. — Tome cuidado, porque esse peixe está mais para piranha. E ela morde.
— Sabe, piranha, o Capitão adora alimentar os tubarões com quem se revolta. — O pirata que segurou meu queixo, diz entre um riso alto.
Ele solta meu queixo e eu fico em silêncio.
Mais pessoas são trazidas para onde estávamos e, aos poucos, eu conseguia sentir tudo se movimentando em um balanço sutil. As batidas do meu coração ficam descompassadas quando percebo que fui trazida para um navio que estava começando a zarpar.
— Escutem bem, seus cães do mar. Vocês estão a bordo do Vingança de la Rainha Hanna, e a partir de agora precisam tomar uma decisão muito importante. — Um dos piratas começa a andar em frente a fileira de reféns.
Não querendo qualquer tipo de retaliação, fico de joelhos também, imitando a posição dos demais.
— É simples e eu só vou perguntar uma vez: ou vocês aceitam fazer parte da tripulação, ou irão para prancha, alimentar os tubarões e as piranhas. — Mesmo longe e sem conseguir enxergar seu rosto, noto sua cabeça se virando em minha direção, e sei que ele sorria.
— Você aí. — Ele para em frente ao primeiro da fila, e logo outro pirata se aproxima, dando para ele, uma longa espada. — Está com a gente? — A ponta da espada é colocada perto do pescoço do garoto encolhido, que chorava silenciosamente. — Não vou perguntar de novo.
— N-Não. — Com a voz trêmula, ele responde.
Os piratas ficam em silêncio por segundos torturantes, antes da espada ser afastada do pescoço do garoto.
— Certo. Levem-no para a prancha. — E dada essa ordem, o garoto é puxado com brutalidade, obrigando a se levantar e subir a curta escada de madeira do alçapão.
Todos ficam em silêncio, sem saber o destino do garoto.
— Como viram, o companheiro de vocês fez uma infeliz escolha, e agora ele vai alimentar alguns peixinhos. — Os piratas riem. — Não estamos brincando, as coisas aqui são sérias. E estamos dando-lhes a chance de uma nova vida, uma no mar.
Engulo em seco e passo a língua entre os lábios, tentando me manter quieta entre as pessoas que choravam e tremiam.
O pirata vai para o segundo da fileira e faz a mesma pergunta e, dessa vez esse aceita, sendo "saudado" com a resposta de que fez uma boa escolha. Os piratas se preparam para o próximo, o terceiro, e percebo o quanto este está nervoso; ele tenta não encarar a cena que acontecia do seu lado, por isso, acaba colocando sua atenção nos demais reféns, fazendo seu olhar encontrar o meu. Pela má iluminação, vejo suas sobrancelhas se movimentarem lentamente e seus olhos se arregalarem de surpresa ao me ver.
— Ei, é sua vez. — Um dos piratas o cutuca com a ponta da bota, o fazendo quebrar nosso contato visual. — Está com a gente ou não?
A boca dele se abre, mas não diz nada. Eu o conhecia de vista, da nossa cidade, sabia que ele estava completamente apavorado agora, mas precisava responder que sim, ou acabaria como o primeiro da fila.
Seus olhos castanhos me procuram e, sutilmente, aceno com a cabeça para que ele aceite.
— Anda, não temos a noite toda. — O pirata o cutuca com mais força, agora, encostando sua espada no peito dele.
— S-Sim. — Ele responde, e meu corpo "relaxa" por um momento.
Os piratas seguem fazendo a mesma pergunta, e quase todos dizem sim, exceto por um senhor que acabou surtando por conta de toda essa situação, e foi levado para cima como o primeiro da fila.
— Sua vez, piranha. Mas já aviso que seria um desperdício ver esse rostinho lindo ser desfigurado pelos tubarões. — A ponta da espada gelada toca a parte inferior do meu queixo, o erguendo para cima lentamente. — Então, o que vai ser? Vai se juntar ao Vingança de la Rainha Hanna?
A sombra dos três piratas permanecem na minha frente.
— Sim. — E aqui estava a minha condenação, assinada e selada dentro desse navio pirata.
Após separarem as maças podres da cesta, como disseram, os três piratas nos fizeram ficar de pé em uma fila. Depois nos fizeram caminhar na direção contrária do alçapão. E assim, fomos guiados para outra direção do navio - que balançava de forma lenta -, entrando em um ambiente ainda mais escuros, dando em uma bifurcação, onde havia um homem e uma mulher, ambos um de cada lado.
— As mulheres, venham comigo! — A mulher, que mais se assemelhava a uma garota, por ser bem jovem, grita, antes de se virar e entrar na bifurcação da esquerda. E após fazermos uma pequena virada, entramos em um longo corredor de portas. — A partir de hoje, vocês viverão aqui. E vão dividir os quartos com outras tripulantes. — Ela se vira de novo para começar a abrir as portas, mas para e nos olha. — Quase me esqueci: sejam bem-vindas ao Vingança. — Ela sorri, como se nos desse a melhor notícia.
Por ordem da fila que formamos, a garota de cabelos loiros-escuros e botas marrons começa a nos distribuir em quartos, dando instruções. E enquanto via a fila diminuir, começo a pensar no Duque, o que faz meu coração doer igualmente ao pensar em meus pais.
Que eles estejam bem, por favor.
— Esse é o seu quarto. — A garota de cabelos loiros-escuros diz, me encarando enquanto abre a penúltima porta do lado direito.
Em poucos segundos, a imagem de um pequeno quarto se materializa: havia uma cama de solteiro e um beliche, com uma janela pequena e redonda entre eles, uma pequena cômoda com cinco gavetas largas e um pequeno guarda-roupas, e isso era tudo.
— Dana, Jack, cuidem da novata aqui. Ela é a nova colega de quarto de vocês. — A garota loira diz, apontando em minha direção com a cabeça.
A mulher de cabelos curtos e vermelhos sentada sobre a cama de solteiro, se levanta, e a garota escondida no beliche debaixo, coloca sua cabeça para fora da sombra.
— Pode entrar. — A pirata fala, e eu respiro fundo.
Em silêncio, entro no quarto com quatro passos e escuto a porta ser fechada atrás de mim.
— Oi. Sou Dana, você é? — A mulher de olhos verdes, se aproxima de mim, sorrindo simpática.
— Serena.
Ela abre bem os olhos, levantando as sobrancelhas.
— Você não parece muito animada.
— E quem é que fica animada depois de ser forçada a fazer parte de uma tripulação pirata? — A garota de cabelos pretos e olhos castanhos sai do beliche e também se aproxima. — Eu sou Jack.
Assinto, em silêncio.
As duas se entreolham.
— Você pode ficar com o beliche de cima. — Jack aponta para trás. — Tem bastante espaço no guarda-roupas, e também deve ter uma gaveta sobrando na cômoda. Pode ficar à vontade.
— Obrigada.
Dana suspira.
— Vamos, não fique assim. Não é tão ruim quanto parece.
— Eu não sei se os meus pais estão vivos, e eles levaram o meu cachorrinho. — Pisco os olhos algumas vezes quando eles fazem menção de marejarem.
— É ruim, sim. — Jack suspira, me fitando com pesar. — Eu sinto muito. Nós também passamos por isso.
— Você trouxe um cachorro? — Dana pergunta, e eu assinto.
— Eles costumam dar ou vender os animais trazidos para o navio. Sinto muito. — Jack segura as próprias mãos na frente do corpo, compadecida com a minha dor.
— Se isso colocar um sorriso no seu rostinho, nós te ajudamos a recuperar o seu cachorro. Mas ele precisa ser pequeno. — Dana diz, e meus olhos se arregalam minimamente.
— Isso é sério? Ele é pequeno sim. Um maltês bem pequeninho. — Com dois passos, me aproximo de Dana, que ri.
— O quê? Do que você está falando, Dana? Nós não podemos trazer um animal para o quarto. Se eles descobrirem, estamos ferradas. — Jack fala apressada.
— O Duque é quietinho, eu prometo. Estou dando a minha palavra. Ele é um cachorrinho que não faz bagunça e nem barulho.
— Olha para ela, Jack. Como você pode dizer não para esses olhinhos azuis? Ela parece um peixinho. — Dana segura minhas mãos. — Chegou aqui completamente triste, e só de mencionarmos seu cachorrinho, já virou outra pessoa. Precisamos ajudá-la.
— Nós acabamos de a conhecer. Não podemos nos meter em confusão por ela. — Jack nos fita de uma para a outra.
— E isso importa? Ela é como nós agora. E sabemos muito bem como os primeiros dias são difíceis. Também perdemos nossas famílias, mas ela tem, ao menos, um animalzinho para ajudá-la a passar por esse momento. Falo isso porque meu neto tinha uma gata que tratava melhor que seus pais, era um membro da família. — Dana aperta minhas mãos, mas sem desviar seu olhar de Jack, que fica em silêncio, pensando.
A garota de cabelos pretos até os ombros, solta um longo suspiro.
— Se nos pegarem, você vai ter que assumir a responsabilidade.
Sinto uma pontada de esperança dentro de mim.
— Não se preocupe. Eu sei muito bem como lidar com esses piratas. Estou aqui por quatro anos. — Dana sorri confiante. — E quanto aos seus pais, pense positivo.
Pela primeira vez, sorrio para a mulher de cabelos vermelhos, me sentindo um pouco melhor dentro desse navio pirata.