Parte 5
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Os dois se sentaram frente a frente e então %Sunhee% começou a servir a comida para %Eric% que agradeceu em um sussurro enquanto a observava de novo.
Ele a observava como se quisesse decorar cada novo detalhe dela — o jeito como o cabelo caía solto sobre os ombros, a forma tranquila com que ajeitava os talheres, o cuidado quase tímido de alguém que não sabia mais como se recebia visitas assim.
— O que foi? — ela perguntou, ao notar o olhar fixo dele.
%Eric% desviou os olhos por um instante, mas o sorriso não sumiu.
— Nada… é só que… você parece diferente.
— Diferente como? — Ela arqueou uma sobrancelha, levando o copo à boca para esconder a ansiedade que crescia no peito.
— Mais tranquila, talvez. Mais... você.
%Sunhee% soltou um riso baixo, sem saber exatamente como responder àquilo. Sentiu-se vulnerável, mas não de um jeito ruim.
— A cidade tem esse efeito, eu acho — ela disse, mexendo devagar o arroz no prato. — Ou talvez seja só o silêncio. Faz a gente se escutar mais.
— E o que você tem escutado?
Ela ergueu os olhos devagar, encarando os dele.
— Que talvez eu tenha me afastado de muitas coisas que me faziam bem... e nem percebi.
%Eric% assentiu lentamente, como se entendesse mais do que ela dizia.
— Eu também. Mas algumas dessas coisas… às vezes, voltam.
O silêncio entre eles ficou mais espesso, mas não desconfortável. Era um silêncio que falava. Um que preenchia.
O cheiro do bulgogi ainda pairava no ar, mas agora havia outra coisa naquela sala: a sensação de que aquele jantar era mais do que comida. Era reconexão.
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%Sunhee% estava prestes a pegar mais uma concha do molho de bulgogi quando a tampa do pote escorregou da sua mão. Em um movimento desajeitado, ela tentou segurá-la no ar, mas acabou virando um pouco do molho direto no próprio colo — bem no tecido claro da calça de moletom.
— Ai, não! — murmurou, largando a colher e se levantando de imediato, olhando para a mancha escura com uma careta de pura frustração.
%Eric% arregalou os olhos por um instante e depois soltou uma risada curta, abafada pela mão que levou à boca.
— Desculpa — disse entre risos. — Mas isso foi…
muito cinematográfico. — Ótimo — ela respondeu, bufando e tentando conter o riso também. — É isso. Minhas chances de parecer minimamente interessante no meu próprio jantar acabam de escorrer com o molho de soja.
— Na verdade, você só ficou mais real. E molho é só prova de que a comida tá boa.
%Sunhee% riu, envergonhada e divertida, enquanto pegava um guardanapo e tentava limpar a calça com rapidez, sem muito sucesso.
— Tá, chega, eu vou pegar um pano úmido antes que isso vire um mapa permanente da Coreia.
— Espera aí — %Eric% se levantou também, estendendo a mão. — Deixa que eu ajudo.
Sem pensar muito, ele se aproximou e pegou outro guardanapo da mesa, ajoelhando-se ao lado dela e tentando limpar a borda da mancha com toques leves. Por um instante, ambos ficaram em silêncio. Os dedos dele encostaram nos dela, quentes e firmes, e o tempo pareceu desacelerar um pouco.
%Sunhee% parou de respirar por um segundo. O riso ainda pairava no ar, mas agora havia algo mais denso, mais calmo. Ela olhou para baixo, observando a concentração no rosto de %Eric%, a maneira como ele franzia levemente a testa ao tentar ajudar, como se aquele gesto — tão simples — exigisse toda a atenção dele.
— Obrigada… — ela disse, quase num sussurro.
Ele ergueu os olhos para ela naquele momento. E o toque das mãos ainda ali, mesmo que breve, deixou um calor pairando entre eles.
— De nada — respondeu baixinho.
Os dois se olharam por alguns segundos que pareceram longos demais. Não havia palavras, mas também não havia pressa. Quando ele finalmente se afastou, colocando o guardanapo de lado, os dois riram de novo — um riso mais contido, mais cúmplice agora.
— Da próxima vez, vou servir o molho — %Eric% disse, tentando quebrar o clima com leveza.
— Ou a gente come de colher direto do pote e evita acidentes diplomáticos.
Eles voltaram a se sentar, mas o ar entre eles tinha mudado. Era mais leve, mais íntimo. Como se aquele pequeno desastre tivesse feito mais do que apenas manchar uma calça — tivesse aproximado dois corações que já se conheciam… mas estavam se reencontrando agora.
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— Meu Deus %Eric%, você é visita, eu já disse! Vá se sentar por favor que eu vou lavar as louças.
— Vai tomar um banho %Sunhee%, tirar essa calça manchada, não me custa absolutamente nada lavar isso aqui enquanto você toma seu banho. Eu sou super rápido e eficiente lavando louças, você deveria se lembrar. Quantas vezes não jantei aqui e ajudei com a louça?
Assim que %Eric% disse aquilo, o silêncio caiu entre os dois por um breve momento.
“Quantas vezes não jantei aqui e ajudei com a louça?” A lembrança veio sem pedir permissão — como uma brisa morna que atravessa uma janela entreaberta.
%Sunhee% se viu mais nova, sentada na mesma cozinha, com os cabelos presos de qualquer jeito e as pernas balançando sob a cadeira. A avó lavava os pratos, enquanto ela e %Eric% secavam, passando panos floridos nas panelas como se fosse uma grande missão. Às vezes competiam para ver quem terminava primeiro — e sempre acabavam molhados, rindo, com espuma nas mãos e gotas na camisa.
Ela lembrou da sensação do braço dele roçando no dela, das piadas bobas, do som abafado das risadas ecoando entre as paredes daquela mesma casa.
%Eric% também ficou quieto por um instante, com o olhar suavizado — como se estivesse vendo a mesma cena, mas do lado dele. A lembrança do cheiro de sabão neutro, da luz amarelada da cozinha acesa enquanto o mundo lá fora escurecia devagar.
Com aquele sorriso torto e a risada que ainda morava em algum lugar dentro dele.
— Eu me lembro sim — %Sunhee% disse por fim, com a voz mais baixa, quase como se falasse para si mesma.
Os olhos dos dois se encontraram. Não precisavam dizer mais nada naquele momento.
As lembranças já haviam feito o trabalho.
Reavivado a intimidade que o tempo não conseguiu apagar.
— Então vai lá tomar seu banho, eu sou de casa, não é?
%Sunhee% assentiu lentamente para ele com a cabeça e então, com um sorriso sem mostrar os dentes ela se virou, pronta para caminhar até o banheiro.
Antes deu uma olhadinha no gatinho, deitado em sua cama, dormindo tranquilamente. Suspirou, soltando a respiração que nem ela sabia que havia prendido, e foi tomar seu banho.
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O vapor quente ainda dançava em torno de seus ombros quando %Sunhee% saiu do banheiro, os cabelos úmidos escorrendo pelas costas e o moletom largo e confortável abraçando seu corpo recém-aquecido. Sentia-se mais leve, como se tivesse deixado parte do cansaço para trás junto com a água do banho.
Enquanto caminhava pelo corredor até a sala, o som suave de uma respiração ritmada e um leve ronronar chegaram aos seus ouvidos antes mesmo da imagem. Quando virou no batente da porta, o coração apertou de leve com a cena que se formou diante dela.
%Eric% estava afundado no sofá, com uma das pernas dobrada sob o corpo e a outra esticada no chão. O gatinho malhado dormia profundamente em seu colo, encolhido contra a camiseta cinza dele, que agora trazia pequenas marcas de pelos. A mão de %Eric% fazia movimentos lentos sobre as costas do bichano, num carinho distraído e constante. O rosto dele estava virado um pouco para o lado, como se também estivesse à beira do sono, com os olhos semicerrados e o queixo apoiado levemente no ombro.
%Sunhee% ficou ali parada por alguns segundos, observando os dois.
E de repente, aquela cena —
tão simples, tão silenciosa — pareceu gritar dentro dela.
De algo que ela não via fazia tempo.
De algo que, talvez, nem soubesse que queria tanto até aquele instante.
Ela apoiou a lateral do corpo na parede, cruzando os braços enquanto deixava um pequeno sorriso surgir. Não queria interromper — mas também não queria que ele pensasse que estava sendo ignorado.
— Acho que ele escolheu o colo certo — disse suavemente, a voz baixa para não assustar o gato.
%Eric% abriu os olhos devagar, e quando a viu ali, com o cabelo ainda úmido, envolta naquele moletom folgado, um sorriso sonolento se formou sem esforço.
— Vocês dois têm uma energia parecida — completou ela, se aproximando devagar.
— Quietos, desconfiados e com cara de que vão sair correndo se alguém fizer carinho demais? — ele brincou, sem se mover.
Ela riu, sentando-se ao lado dele, sem encostar, mas ficando perto o bastante para sentir o calor que ainda emanava de onde ele estava.
— Talvez… mas no fundo só estão procurando onde se sentir seguros.
%Eric% a olhou por mais um instante, e o sorriso dele não era mais sonolento — era leve, verdadeiro.
— Então acho que ele encontrou.
%Sunhee% sentiu o peito aquecer. Não sabia se ele falava do gato.
Quando ela se sentou ao lado dele no sofá, sentiu a respiração começar a ficar descompassada, ainda afetada pelo que ele havia dito. As palavras tinham sido simples, quase casuais, mas carregadas de algo que ela reconhecia — um sentimento antigo, que agora voltava a pulsar com força.
O calor do corpo dele tão próximo, o som do ronronar baixinho do gato entre os dois, e o silêncio cheio de significados formavam uma atmosfera densa, difícil de ignorar. %Sunhee% tentou focar em qualquer outra coisa — nas mãos, no tapete, no próprio colo — mas os olhos teimavam em voltar para o perfil de %Eric%, para a forma como ele acariciava o gatinho com leveza e parecia tão absurdamente tranquilo ali, naquele espaço que era dela.
— Sabe… — ele começou, num tom mais baixo, sem virar o rosto — Fiquei feliz por você ter voltado. Mais do que achei que ficaria.
A confissão pairou no ar por alguns segundos. %Sunhee% engoliu em seco, os olhos ainda fixos em um ponto qualquer à frente, tentando entender como responder àquilo sem deixar escapar tudo o que também sentia.
— Eu… — ela começou, hesitando por um instante. — Estou surpresa com o quanto me sinto bem aqui. Na casa. Na cidade. Com…
Ela não terminou. Mas não precisava.
%Eric% virou o rosto, só um pouco, só o suficiente para olhá-la nos olhos. Ela sustentou o olhar por um segundo a mais do que gostaria, e então sorriu, pequeno, meio sem jeito.
A distância entre eles diminuiu sem esforço.
Primeiro os ombros, que se tocaram de leve.
Depois os joelhos, que se encontraram ali, lado a lado, imóveis, como se hesitassem em se afastar.
Era um toque simples. Quase nada. Mas carregado de tudo.
— Não achei que fosse me sentir tão… em casa de novo — ela murmurou, quase como se falasse com ela mesma.
— Talvez nunca tenha deixado de ser — %Eric% respondeu, tão baixo que ela mal ouviu, mas entendeu.
O gato se remexeu no colo dele, como se sentisse o peso da tensão crescente, e depois se ajeitou entre os dois, como uma ponte silenciosa. %Eric% sorriu e olhou para baixo.
— Ele tá oficialmente em paz. — disse, quase como uma desculpa para continuar falando, para não deixar o momento escapar.
%Sunhee% assentiu, mas seus olhos ainda estavam nele. E naquele instante, não havia mais dúvida.
Se ele se inclinasse… ela não recuaria.
E se ela respirasse mais fundo, talvez ele sentisse que seu coração estava batendo por dois.
Quando voltaram a se encarar, ela viu o pomo de Adão dele subir e descer quando ele engoliu seco, voltando a encarar os olhos dela. A distância entre os rostos, começou a finalmente diminuir, o coração dela acelerado, os olhos se fechando, foi então que, no exato segundo em que seus narizes quase se encostaram, o gato soltou um miado alto — agudo, exigente, como se estivesse protestando contra ser ignorado.
Num pulo súbito, ele se esticou entre os dois, espreguiçando as patas com toda a falta de cerimônia felina, e acabou colocando uma delas diretamente no peito de %Eric%, empurrando-o de leve para trás enquanto se ajeitava, como se estivesse reivindicando de volta o espaço que julgava seu por direito.
%Eric% se afastou com um leve solavanco, surpreso, e %Sunhee% soltou uma risada abafada, cobrindo a boca com a mão. O momento havia se quebrado — ou melhor, sido sequestrado — pelo pequeno intruso ronronante, agora deitado com o focinho enfiado no moletom de %Eric% como se nada tivesse acontecido.
— Bom… acho que temos um chaperone felino. — %Eric% comentou, ainda sorrindo, mas visivelmente frustrado de forma divertida.
— Ou ele só tem um timing impecável. — %Sunhee% respondeu, balançando a cabeça, os olhos ainda brilhando de riso e… talvez, de um pouco de nervosismo contido.
O silêncio voltou, agora mais leve, mais cúmplice. Não havia beijo — ainda. Mas havia algo ali. Algo que nem mesmo o gato conseguiria espantar.
Pelo menos… não por muito tempo.
Ainda sorrindo com a interrupção felina, %Eric% se ajeitou no sofá, recobrando aos poucos o fôlego — e a compostura. Passou a mão pelo cabelo, tentando disfarçar o rubor nas orelhas, e então olhou para o gatinho agora calmamente deitado entre eles, como se nada tivesse acontecido.
— Bom… — ele começou, a voz um pouco mais baixa, mas firme. — Antes que eu esqueça e esse carinha me distraia de novo… deixa eu te explicar direitinho o que fazer com os cuidados dele.
%Sunhee% endireitou a postura, ainda tentando organizar os próprios pensamentos. Assentiu com um aceno leve e atencioso, como quem precisava muito se concentrar em algo técnico… antes que o clima voltasse a desestabilizá-la.
— Eu deixei os remédios na sacola ali perto da porta — %Eric% apontou com o queixo. — Tem antibiótico líquido que você precisa dar duas vezes ao dia, de preferência após a comida. Ele não costuma reclamar, mas se recusar, pode misturar com um pouco de pasta de malte. Eu deixei uma amostra também.
— Certo. — ela murmurou, pegando mentalmente as instruções.
— A patinha ainda tá sensível, então evita deixar ele pular muito nos próximos dias. E o curativo… eu fiz um hoje, mas você pode tirar amanhã à noite e colocar um novo. Tem mais gaze, fita e solução antisséptica na sacola.
— Ok… tá. Acho que consigo fazer isso.
— Se ele começar a mancar mais forte ou parar de comer, me avisa. Mas sinceramente? — ele sorriu, olhando para o bichano — Acho que ele já entendeu que tá em boas mãos.
%Sunhee% seguiu o olhar dele e sorriu também, mais suave agora, mais confortável.
— Obrigada, %Eric%. Por tudo. De verdade.
Ele assentiu, e por um instante, o silêncio entre eles voltou — não mais tenso, mas cheio de promessas que não precisavam ser ditas naquela noite.
%Eric% se levantou devagar, pegando as chaves no bolso e jogando o capuz do moletom sobre os ombros.
— Eu vou indo, antes que ele ache que vou dormir aqui também.
%Sunhee% o acompanhou até a porta, o gato observando de longe com os olhos semicerrados, como um guardião preguiçoso.
Quando ela abriu a porta, o ar noturno entrou suave, trazendo consigo o perfume das flores do quintal e um restinho de brisa fresca.
— Até logo, %Sunhee%. — ele disse, já do lado de fora.
Ela hesitou por um segundo antes de responder.
E naquela despedida simples, havia uma coisa clara para os dois:
Eles ainda não haviam terminado de se reencontrar.
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