Parte 4
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Assim que estacionou o carro do outro lado da rua, suas mãos estavam levemente trêmulas. A clínica ainda estava no mesmo lugar — na rua lateral ao mercado, ao lado de uma casa com janelas azuis e um pequeno jardim de hortênsias. A placa oval de madeira, agora restaurada e com o nome
“Clínica Veterinária %Sohn%” em letras brancas recém-pintadas, balançava levemente com o vento. Havia um vaso com lavandas na entrada e um sininho preso à porta de vidro.
Desceu do mesmo e em poucos passos alcançou a porta do banco de trás e com cuidado e até certo medo, segurou o gato nos braços, apesar dos protestos fracos do bichinho.
%Sunhee% segurava o gato com firmeza contra o peito, o tecido do moletom dela agora levemente úmido da respiração fraca do animal. Empurrou a porta com o ombro, e o sino tilintou suavemente. Lá dentro, o ambiente era limpo, tranquilo e aquecido, com cheiro de antisséptico e chá de hortelã.
— Já estou indo! — ouviu a voz vinda do fundo da clínica. Era ele.
Poucos segundos depois, %Eric% surgiu no corredor, tirando as luvas descartáveis das mãos. Quando a viu, parou por um instante — como se estivesse tentando entender se aquilo estava mesmo acontecendo.
— Oi de novo — ela disse, o tom um pouco hesitante, mas carregado de urgência nos olhos. — Eu… acho que é o mesmo gatinho do supermercado. Ele apareceu no meu quintal, embaixo da magnólia. Tá machucado. Na pata.
%Eric% não precisou de mais que um segundo para se recompor. Aproximou-se rapidamente, os olhos passando do rosto dela para o gato.
Ela entregou o animal com delicadeza, observando a forma como ele o acolheu nos braços, com o mesmo cuidado de anos atrás. O olhar dele suavizou ao perceber o estado do bichinho — havia dor, mas também segurança ali.
— Ele confiou em você. Isso é raro. Ele é arisco — disse %Eric%, enquanto começava a examiná-lo com leveza.
— Ele parecia cansado demais pra fugir. E com medo também.
— Pode sentar, se quiser. — Ele apontou para uma cadeira perto da bancada. — Eu vou limpar aqui e dar uma olhada mais a fundo.
%Sunhee% assentiu, sentando-se devagar. Ficou observando enquanto %Eric% lavava a patinha do gato com uma solução clara, murmurando palavras baixas que pareciam tanto para o animal quanto para si mesmo. O ambiente ficou em silêncio, exceto pelos estalos dos frascos sendo abertos e o som da respiração sutil entre eles.
— Você nunca mudou — ela falou, sem pensar muito.
— Esse jeito seu… calmo. Cuidadoso. Quando éramos crianças, eu já sabia que você ia fazer isso da vida.
Um sorriso pequeno surgiu nos lábios dele.
— Engraçado… eu nunca soube ao certo. Mas no fundo, acho que foi o único caminho que sempre fez sentido.
Eles se encararam por alguns segundos — não havia pressa, nem explicações urgentes. Apenas uma conexão silenciosa sendo reconstruída aos poucos.
— Ele vai ficar bem? — ela perguntou, quase num sussurro.
— Vai sim. Nada grave, só um machucado superficial. Um pouco de antibiótico, descanso e carinho… ele vai se recuperar logo.
%Eric% se virou, pegando uma caixa acolchoada com um cobertor dobrado dentro.
— Eu posso cuidar dele aqui, se quiser. Mas… se preferir levar pra casa, posso te mostrar como cuidar também.
%Sunhee% olhou para o bichinho deitado, agora mais tranquilo.
— Acho que ele já escolheu onde quer ficar — disse, com um sorriso discreto.
— Então é oficial — %Eric% sorriu de volta, colocando o gato com cuidado na caixa — Temos um hóspede em comum.
E foi ali, naquela pequena sala de azulejos brancos, entre o cheiro de lavanda e desinfetante, que o primeiro convite não dito aconteceu. Não foi pra um chá. Nem pra um passeio.
Foi o convite silencioso de alguém que dizia, com o olhar:
Fica. Mesmo que só um pouco mais.🫰🫰🫰
Depois de algum tempo, as pernas dela começaram a balançar involuntariamente, um pouco agoniada pela demora e por não ter o que fazer ali parada dentro da clínica.
“Será que o gatinho estava bem mesmo e o corte era superficial?” “Ou será que %Eric% está demorando de propósito, para me evitar ou algo assim?” Os olhos saltaram automáticamente com esse último pensamento, e ela resolveu se levantar um pouco, beber um copo de água e esticar as pernas que ainda doíam da faxina.
Quando ainda estava de pé ao lado do bebedouro com o copo de plástico cheio de água nas mãos, ela ouviu a porta do consultório de %Eric% ser aberta. Os olhos dela foram direto para o rosto dele. O gatinho não estava em seus braços — e aquilo apertou algo em seu peito, rápido e fundo, como um susto silencioso. Por um instante, o coração dela perdeu o compasso, tomado por um medo irracional que subiu feito um arrepio pela espinha.
A mente correu, pintando cenários que ela não queria ver:
“Será que ele piorou? Será que cheguei tarde demais?” %Sunhee% apertou o copo de plástico entre os dedos, o som quase imperceptível do plástico cedendo sob a tensão refletia a súbita onda de ansiedade que a atingia. Tentou encontrar alguma pista na expressão de %Eric% — mas ele estava sério, contido, e isso só aumentou o peso que se acumulava dentro dela.
— Cadê ele? — Seus olhos foram direto para a porta do consultório aberta atrás de %Eric%.
Um sorriso leve começou a surgir aos poucos no rosto dele, que passou a mão pela nuca.
— Está na área de internação. Estou aplicando um soro nele para que ele possa ficar mais forte e se recuperar mais depressa. Mas já já acaba e eu libero ele para você. Você pode ir para casa se quiser %Sunhee%, eu levo ele lá depois.
Por um segundo, o coração de %Sunhee% bateu mais alto — não de alívio, mas de dúvida.
“Será que ele está dizendo isso só pra ter uma desculpa pra ir até a minha casa?” “Será que… ele quer ficar sozinho comigo de novo?” O pensamento veio rápido, atravessando sua mente como uma faísca inesperada, e ela sentiu as bochechas esquentarem sem motivo aparente.
Logo depois, balançou a cabeça discretamente, tentando afastar aquela ideia tola. “
Não é sobre você, %Sunhee%. Ele só está sendo gentil. É o %Eric%. Sempre foi assim.” — Tudo bem, então — disse por fim, com um sorriso leve. — Obrigada por cuidar dele.
%Eric% assentiu, ainda com aquele mesmo sorriso tranquilo que ela lembrava tão bem.
— Pode deixar que em breve ele tá de volta com você. Vou bater na porta com ele no colo como nos velhos tempos — brincou, dando de ombros.
Ela riu, ainda um pouco sem jeito, mas genuinamente.
— Espero que ele não estranhe o sofá novo.
— Se estranhar, ele me conta. Eu sou bom com reclamações de felinos exigentes.
%Sunhee% apenas sorriu de novo, e então, com o copo de água vazio nas mãos e o coração estranhamente leve, se despediu com um aceno antes de sair da clínica.
Não queria admitir, mas parte de si… estava esperando por aquela batida na porta. E não era só pelo gato.
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O cheiro do
bulgogi estava tão estranhamente gostoso que %Sunhee% fechou os olhos inspirando o mesmo ainda mais para dentro, como se quisesse guardar aquele aroma dentro de si.
Ela nunca havia sido boa com as panelas, por mais que a avó e a mãe sempre fizessem questão de ensiná-la os pratos, os temperos, as receitas de família e tudo mais. Ela sempre havia sido básica na cozinha, sabia cozinhar para sobreviver e até então aquilo era o suficiente.
Mas aquele
bulgogi, cheirava diferente… era como se ela estivesse inspirada! Pelo que? Bom… talvez pelo prelúdio de uma possível visita de %Eric%? Quem sabe ele não aceitava ficar para o jantar? Então ela precisaria cozinhar pelo menos o básico, muito bem, não é?
Depois de tudo pronto ela pensou em tomar um banho, mas acabou sendo interrompida pelo som de batidas na porta.
O coração deu um pequeno salto — quase imperceptível, mas real. O tipo de reação que ela não tinha há muito tempo.
A pergunta veio antes mesmo da razão. E mesmo sem saber a resposta, ela já sabia que esperava que fosse.
%Sunhee% ficou imóvel por um instante, o pano de prato ainda nas mãos, os pés descalços no chão frio da cozinha. Sentiu a pele do rosto aquecer e um friozinho bobo se espalhar por dentro, começando no estômago e subindo devagar.
Seu olhar correu pela sala, como se tentasse verificar se estava tudo minimamente apresentável. O cheiro do bulgogi ainda pairava no ar, aconchegante, convidativo.
“
Bom… pelo menos já está pronto”, pensou, ajeitando instintivamente os fios soltos do cabelo.
Respirou fundo, tentando parecer natural — mesmo que por dentro tudo nela estivesse acelerado demais para isso.
Então, caminhou até a porta, sentindo cada passo ecoar uma expectativa que ela nem queria admitir em voz alta.
Quando abriu a porta, lá estava %Eric%, com o gatinho nos braços, uma caminha acolchoada na outra mão e uma sacola com ração provavelmente…
%Sunhee% acabou se antecipando:
— Eu também comprei um pacote de rações, assim que saí da clínica, acredita? — Ela sorriu de forma espontânea e logo o sorriso se transformou numa risada.
%Eric% soltou uma risada nasalada ao observar ela levando uma das mãos pequenas até o rosto, para cobri-lo enquanto ria, e então ele teve que desviar o olhar, abaixando a cabeça. Aquele gesto e o som da risada dela, fizeram seu coração acelerar tanto dentro do peito que ele achou que infantaria ali, na frente dela.
— Me desculpe, eu nem sabia se você podia ou queria cuidar mesmo dele…Só subentendi pela forma como você demonstrou preocupação quando apareceu com ele na clínica. Se você quiser eu mesmo levo ele para a minha casa…
caramba, que cheiro gostoso! %Eric% mordeu o lábio, como se estivesse se repreendendo pelo comentário e com aquela mordida estivesse parando a si mesmo, ou se contendo. Pelo menos tentando…
%Sunhee% piscou algumas vezes, um pouco surpresa com a sinceridade repentina dele — e ainda mais com o jeito atrapalhado como ele tentou se corrigir. O tom da voz dele, o jeito como mordeu o lábio e desviou o olhar... tudo aquilo mexia com ela de um jeito silencioso e descompassado.
Ela sorriu, ainda com a mão parcialmente sobre o rosto, e depois a abaixou devagar, olhando para ele com mais clareza.
— Eu quero cuidar dele, sim. — respondeu com firmeza, mas suavidade. — E não só por ele… mas porque acho que… é bom ter alguma companhia por aqui.
%Eric% ergueu os olhos para ela devagar, e os dois se encararam por alguns segundos a mais do que seria necessário. Um silêncio breve, mas carregado de algo que nem um dos dois conseguia — ou queria — nomear.
— E… — ela continuou, agora rindo mais discretamente — já que você sentiu o cheiro do bulgogi, não seria muito justo te mandar embora agora, né?
Ele riu, relaxando os ombros, e sacudiu levemente a sacola com a ração.
— Então é isso. Jantar e posse compartilhada de um gato. Parece um bom acordo.
— Entra logo antes que esfrie. — ela disse, abrindo mais a porta com um gesto acolhedor.
Ele entrou com cuidado, ainda segurando a caminha e o gato, que se aninhava tranquilo, como se já reconhecesse aquele lugar como casa.
%Sunhee% fechou a porta atrás dele, sentindo o coração bater firme e quente no peito.
Era só um jantar. Só um gato. 🫰🫰🫰
%Eric% observou a casa depois de colocar a caminha do bichano no chão, perto da poltrona que havia ao lado do sofá, e com o gatinho ainda aninhado nos braços ele se lembrou das vezes em que estivera ali com %Sunhee%, para os trabalhos escolares, para brincarem e etc…
Ele se sentou devagar no tapete, ainda com o gato nos braços, e por um instante ficou em silêncio, como se algo dentro dele estivesse voltando no tempo.
— É estranho — disse, com a voz baixa, quase num pensamento alto — Eu já estive tantas vezes aqui… e mesmo assim, parece tudo novo agora.
%Sunhee%, que ajeitava os talheres na pequena mesa de apoio da sala, ergueu os olhos para ele, curiosa:
— Como se fosse a primeira vez que eu realmente estivesse prestando atenção — ele sorriu de lado, olhando para a parede onde ainda pendia uma moldura com bordado antigo, feito pela avó dela. — Lembro da gente sentados nesse mesmo tapete fazendo cartazes de ciências… e da vez que você colou purpurina na minha calça sem querer.
Ela riu, colocando uma das mãos na cintura.
— Aquilo foi totalmente sua culpa. Você virou o tubo em cima do cartaz!
— Mas fui
glitterizado por semanas por sua causa.
— Sobrevivi. — ele confirmou, e os dois sorriram por alguns segundos, sem pressa.
%Eric% passou a mão com delicadeza sobre o dorso do gato, que agora dormia tranquilo no seu colo. Aquele gesto o fez desviar brevemente os olhos, e quando voltou a encarar %Sunhee%, havia algo diferente ali — um brilho silencioso, um calor contido.
— É bom estar aqui de novo, %Sunhee%. — falou, sincero. — Com você.
Ela sentiu a respiração falhar por um instante, e desviou o olhar, sorrindo com suavidade enquanto levava as mãos até os potinhos de bulgogi fumegantes.
— Espero que o jantar esteja à altura dessa recepção nostálgica — disse, tentando manter o tom leve, mas sentindo o coração bater mais rápido do que gostaria.
— Se estiver metade tão bom quanto tá cheirando… vai ser perfeito.
Eles se sentaram, os dois mais próximos do que imaginavam que ficariam naquela noite. O gato dormia como se já pertencesse àquele lar — e talvez, no fundo, soubesse que estava fazendo um trabalho maior do que o esperado.
Conectar o que o tempo separou.
E reacender o que nunca chegou a apagar.
🫰🫰🫰