Capítulo 36
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Depois que o Padre Abel saiu do quarto, ainda permaneci aqui por mais algum tempo, pensando sobre a nossa conversa.
Ainda parecia tudo muito louco na minha cabeça.
Após quase queimar os miolos, acabei trocando de roupa. E quando já estava pronta, resolvi sair do quarto e seguir o conselho do Padre, de conhecer um pouco dessa capela misteriosa.
De pé perto da porta velha de madeira, a abro, sendo recebida pelo silêncio do outro lado. Caminho pelo corredor, indo direto para as escadas. Olho para cima, vendo a falsa parede que escondia esse lugar. Em seguida, começo a descer os degraus iluminados pelas lamparinas presas nas paredes de concreto.
Logo depois de descer mais alguns lances, encontro mais dois corredores similares aos do quarto onde eu estava ficando, então julgo que esses também devem abrigar quartos.
Continuo descendo, até chegar ao final dos degraus, tendo duas opções de portas de madeira para escolher. Me sinto um pouco inquieta ao ter que escolher uma delas; por conta da conversa que tive, qualquer decisão que eu tome, por mais boba que seja, como escolher uma porta ou roupa que eu usaria hoje, me causava essa sensação.
Acabo optando pelo lado esquerdo, tocando a maçaneta redonda e fria, girando-a tão lentamente, tentando abrir a porta sem fazer muito barulho. Empurro a porta para dentro, revelando apenas uma pequena brecha, que já me permitia ver uma velha estante de madeira com muitos livros em suas prateleiras.
– Bem-vindo! – Alguém diz do lado de dentro, era uma voz masculina.
Fico parada no lugar segurando a maçaneta com força. Eu me sentia uma criança que estava prestes a aprontar e foi pega.
Isso é bobagem, o Padre disse que estava tudo bem, fazer isso.
Relaxo um pouco meu corpo, e empurro mais a porta para dentro, e sou acolhida por um sorriso gentil, que vinha de um garoto de estatura baixa e que usava um par de óculos redondos. Ele estava segurando um espanador, e retirava o pó dos livros que estavam na estante.
– Você deve ser a Elena. – Mesmo me encarando, ele não para de espanar os livros.
Assinto.
– Pois bem, vamos, entre, entre. – Com a outra mão, ele faz um gesto para que eu me acomode do lado de dentro da sala.
– Com licença. – Curvo minha cabeça em um gesto rápido e sutil.
– Não seja tímida, o Padre já nos avisou sobre você. – Ele mantém o sorriso.
Encosto a porta atrás de mim.
– Que lugar é esse? – Pergunto, olhando para cada detalhe da sala.
Ela era pequena e simples, tinha duas estantes com livros, um carpete liso de cor vinho, duas poltronas e uma pequena porta de madeira no fundo.
– Acho que podemos chamar esse lugar de biblioteca particular. – O garoto ri de maneira descontraída. – Todos esses livros contam as histórias dos vampiros, da igreja, dos Van Helsing. – Ele me olha de maneira significava, me deixando um pouco sem jeito. – Tudo que precisamos saber, todos os segredos. – O garoto sussurra e ri.
– E-E eu posso ver um deles? – Pergunto, acanhada.
Ele sorri e acena positivamente.
Me aproximo da estante que ele limpava, e encaro os inúmeros livros ali, escolhendo aleatoriamente um deles. Puxo a capa escura e grossa, fazendo um pouco de poeira sair com o livro.
– Nosferatu. – Leio em voz alta o título do livro.
– É uma palavra de origem húngaro-românica para vampiro. Uma das línguas maternas dessas criaturas. – O garoto se aproxima e aponta para a capa escura.
Olho para ele e assinto, antes de abrir o livro de páginas velhas e me deparar com a mesma escrita que encontrei nos livros de vovó.
– É latim. Você sabe latim?
– Não. – Suspiro.
– Todos os livros estão em latim.
– Por quê? – Pergunto, depois de devolver o livro de volta para estante.
– Latim não é uma língua popular nos tempos atuais. Provavelmente, noventa e cinco por cento dela só é falada pela igreja, e isso facilita que as informações fiquem só entre nós. – Ele explica, enquanto gesticula, fazendo o espanador em sua mão balançar de um lado para o outro.
– O Padre Abel está por aqui? – Mesmo que o garoto seja amigável, me sinto um pouco simples perto dele. Não consigo me sentir tão à vontade perto de pessoas que conheci há pouco, de maneira tão rápida como minha irmã faz.
Wendy... como será que ela está? Espero que bem. Assim que eu ver o Padre novamente, irei perguntar sobre minha irmã.
– Ele saiu, estava resolvendo alguns assuntos importantes desde ontem, e é sobre você. – O garoto ajeito os óculos no rosto, quando eles escorregam por seu nariz pequeno.
– Sobre mim? – Levanto as sobrancelhas, curiosa e surpresa.
– Sim. Creio que o Padre já te falou sobre o Vaticano. – Assinto para confirmar. – Pois bem, eles são bem rígidos e logo irão querer te conhecer. – Ele aponta seu espanador em minha direção. – Você tem uma decisão muito importante para tomar e, por essa razão, o Padre está fazendo todos os preparativos necessários.
– Mas eu ainda nem decidi. E se eu falar não? – Pergunto exasperada, encolhendo os ombros, me sentindo encurralada.
O garoto ri, antes de se curvar em minha direção, me fazendo inclinar para trás.
– Pois, tudo será cancelado. Você não precisa se preocupar, ninguém aqui vai te forçar a nada, Elena. Mas se sua resposta for sim, então é melhor que tudo já esteja preparado. – Ele continua com seu sorrido, e volta a postura anterior.
– Tudo o quê? – Cruzo os braços, sentindo minha atadura, lembrando dela só nesse momento em que ela toca meu braço.
– Você só vai descobrir isso se sua resposta for sim.
– Isso não seria chantagem? – Pergunto, com o cenho franzido.
Ele dá de ombros.
– Não sou eu quem crio as regras. – Ele toca meu rosto com o espanador, rindo.
Afasto o espanador do meu rosto, cuspindo invisivelmente, como se alguma das plumas tivesse ficado na minha boca.
– A propósito, meu nome é Alef.
– Muito prazer, Alef. Sou Elena, mas você já sabe. – Digo, passando a mão pelo meu rosto, ainda tendo a impressão de que haviam plumas, mas era apenas a sensação pinicante que o espanador causava.
– Sim. Todos aqui sabem.
– Hum, eu gostaria de entender como vocês sabem tanto assim, não acho que seja só porque o Padre conhece a minha avó.
Alef arruma seus óculos outra vez, antes de responder.
– Pois bem, você está certa. Como você já deve saber, o Vaticano tem conhecimento sobre todos os Van Helsing, mas não é do tipo de saber apenas da sua existência. Digamos que eles devem ter uma pastinha com seu nome e todas as suas informações, talvez, até coisas que nem você mesma saiba. – Alef responde um jeito estranho, como se tentasse me assustar.
Ele ri da expressão que faço.
– Isso não é um pouco estranho? Pessoas que nem conhecemos sabem mais de nós do que nós mesmos?
– Mas isso é necessário. – Ele dá de ombros, de novo.
– Hm... posso te fazer uma pergunta meio pessoal agora? – Pergunto, um pouco sem jeito.
– Mas é claro que pode, se você vai ser uma de nós, não vou esconder nada de você.
Eu ainda nem decidi o que vou fazer, e ele age como se eu já fizesse parte disso.
– Por que escolheu... isso? – Faço um gesto com a mão, tentando indicar as coisas ao redor.
Ele cruza os braços e toca o queixo com a mão sem o espanador, enquanto faz uma cara pensativa.
– Pois bem, a maioria das pessoas aqui acabam se juntando a igreja porque tiveram alguma experiência ruim com vampiros. Mas eu não tive isso. Minha família sempre foi religiosa e eu sempre ia à igreja, e se me lembro bem, escutei uma conversa do Padre Abel, e fui curioso o bastante pra perguntar, mas o Padre não queria me falar. – Seu dedo que antes estava no queixo, agora é erguido no ar, enquanto ele faz uma falsa feição séria, como se contasse algo de extrema importância. – Depois disso, todo domingo passei a atazanar o Padre, até que ele me aceitasse em sua equipe.
Não consigo segurar o riso fraco que escapa de minha boca, ao imaginar esse garoto franzino de óculos, que agora segura um espanador, importunando o Padre de uma igreja.
– Não foi fácil. As pessoas não gostam muito de falar sobre isso.
Minha risada some.
– Eu não concordo com isso. – Confesso.
– E nem eu, Elena. – Alef comprimi os lábios em um sorriso compreensível. – Como diz a palavra do nosso bom Deus, “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”
***
Algumas batidas na porta, interrompem minha conversa com Alef. Nós passamos horas e mais horas conversando, e ele se dispôs a tentar a me explicar o trabalho que era feito nesse lugar.
– Com licença, estou entrando agora. – Padre Abel coloca apenas metade de seu corpo para dentro da sala.
– Oh, Padre! Vamos, entre, entre. – Alef logo se levanta da poltrona em que estava sentado, e faço o mesmo.
– Poderia vir comigo por um instante, Elena? Você tem visitas. – O Padre pergunta, gentilmente, e eu assinto.
– Chegou a sua hora. Você pode voltar aqui sempre que quiser. Foi um prazer te conhecer, Elena. – Alef estende sua mão para mim, e trocamos um rápido e sincero, aperto de mão.
Aceno com a cabeça para ele, e me afasto, indo até à porta, que é aberta pelo Padre, me dando passagem. Depois que saio e ele fecha a porta, o Padre faz um gesto para que eu suba as escadas e, em silêncio, ele me guia de volta até o quarto onde eu estava ficando.
Assim que o Padre Abel abre a porta, sinto os meus olhos lacrimejarem instantaneamente, ao ver minha mãe e Wendy sentadas na cama da qual passei a pior noite da minha vida.
Quando minha mãe se levanta da cama, sem pensar duas vezes, corro em sua direção e a abraço tão fortemente, que não tenho vontade alguma de soltá-la.
– Vamos, não chore, filha. A mamãe está aqui agora. – Ela seca meu rosto quando nos separamos.
Seu nariz vermelho, entregava toda sua vontade de chorar.
– Vou deixá-las a sós. Estarei esperando aqui do lado de fora. – Padre Abel diz, antes de fechar a porta.
Minha mãe segura em minha mão e me guia para a cama, me fazendo sentar entre ela e Wendy, que tinha a ponta do nariz vermelha, exatamente como a nossa mãe.
– Como você está? – Seguro em uma das mãos da minha irmã, que me abraça e coloca sua cabeça no meu ombro.
– Eu é quem deveria estar perguntando isso. – Wendy soluça, e posso sentir suas lágrimas molharem minha camiseta. – Me desculpe por não conseguir fazer nada.
Expiro profundamente, tentando controlar a ardência nos olhos e na garganta.
– Wendy, está tudo bem. Você me ajudou muito. – Digo, e ela se afasta lentamente do meu ombro, limpando o nariz com as costas da mão.
– O que você está fazendo em Upiór, mãe? – Pergunto, segurando em sua mão também.
Aqui e agora, estando com as duas pessoas que mais amo no mundo, sinto meu coração apertar de um jeito agoniante, como se todos os momentos bons que já tivemos, fosse resumido a esse único encontro.
– O Padre me ligou ontem à noite e contou o que aconteceu. Vim o mais rápido que pude. – Com a mão livre, minha mãe toca o topo da minha cabeça, fazendo um leve afago em meus cabelos. – Eu sinto muito por estar passando por tudo isso, filha. A culpa é toda minha. – O avermelhado de seu nariz se espalha por suas bochechas, enquanto ela continua segurando o choro.
Ela sempre fazia isso, nunca chorava quando eu ou Wendy estávamos passando por um momento ruim, ela sempre dizia que não havia tempo para chorar quando suas filhas estavam tristes.
– Mãe, a culpa não é sua. – Wendy se apressa ao falar, e eu assinto, concordando com ela.
– É sim. Se eu nunca tivesse escondido tudo isso, você não estaria nessa situação agora. – Sua mão escorrega do meu cabelo para o meu rosto, acompanhando algumas lágrimas que escorrem de meus olhos.
Quando suas próprias lágrimas ameaçam escorrer, ela solta minha mão e limpa seu rosto e, em seguida, ajeita seus cabelos curtos e loiros, tentando disfarçar.
– É hora contar tudo pra vocês duas, não quero mais esconder nada. – Ela diz, em seguida, colocando as mãos sobre os joelhos.
– Eu sempre soubesse o que sua avó fazia, não tinha como ela esconder isso de mim, morávamos juntas, então, foi natural que eu me tornasse parte da igreja como ela. – Aos poucos, o avermelhado de seu rosto vai sumindo, à medida que as coisas ficam menos emotivas. – Alguns anos depois de começar a me envolver com tudo isso, conheci o pai de vocês, mas eu não podia contar pra ele o que eu era.
– O tempo foi passando, ficamos juntos por um longo período, e ele começou a me questionar sobre ter filhos, mas eu sabia que se isso acontecesse, tinham grandes chances dessa criança carregar essa mesma marca. – Ela aponta para as próprias costas. – E foi quando eu decidi mentir e dizer que era estéril, que não podia ter filhos; no final, acabamos adotando a Wendy. – Um pequeno sorriso surge em seus lábios finos.
– Depois de me tornar mãe, fui incapaz de continuar com essa vida que eu levava escondida do Will. Eu não queria colocar a vida da minha filha em risco com as coisas que eu fazia, por isso, eu conversei com a minha mãe, e decidi fazer o que toda a geração dela fazia, continuar escondendo tudo. – Seus olhos encaram suas mãos, e posso sentir toda a culpa que ela carregava.
– Eu pensei que as coisas seriam boas assim, eu estava morando com a pessoa que eu amava, e tinha uma filha linda. Mas acho que Will acabou descobrindo que não queria essa vida, no final das contas. E foi quando ele nos deixou, indo embora sem saber que eu estava grávida.
Os meus olhos voltam a arder.
– Wendy só tinha dois anos quando você nasceu. No começo, fiquei desesperada... – Ela ergue sua cabeça outra vez, nos encarando. – mas quer saber, eu nunca fui tão feliz. Eu não precisava mais dele, eu tinha algo muito melhor e em dobro.
Wendy funga do meu lado.
– Escondi a verdade e privei vocês de terem um contato maior com os seus avós, porque pensei que assim estaria protegendo vocês. Eu já estava afastada dessa vida de qualquer jeito, então não havia motivos para contar a verdade, minha mãe me apoiou nessa decisão, dizendo que se pudesse voltar no passado, nunca teria contado a verdade pra mim também. A única vez que a mentira me trouxe uma coisa boa, foi quando adotei Wendy, fora isso, sei que agi completamente errada.
– Não. Por favor, não se culpe. – Seguro outra vez na sua mão, a apertando levemente.
– Agora, quero que você saiba, Elena, que não importa a decisão que você tomar, sua irmã eu eu vamos estar do seu lado. – Seus olhos levemente avermelhados, encaram a atadura em minha mão esquerda.
– Mesmo se eu escolher fazer parte disso? – Engulo em seco.
Ela sorri fracamente.
– Você já faz parte disso, Elena, desde que nasceu.
Meu corpo se arrepia com suas palavras.
– Agora que já conversamos, eu preciso ir na casa da sua avó. Wendy, fique com a sua irmã, na volta, passo aqui e te pego, você vai embora comigo.
– Não, mãe. Não vai pra lá, eu não quero que a vovó brigue com você. – Wendy estende sua mão sobre minhas pernas, e segura a mão dela, com exaspero.
– Quem vai brigar com ela, sou eu. Não posso perdoar o que ela fez. – Ela diz com um tom de voz firme e se levanta da cama, fazendo Wendy e eu a acompanharmos.
Eu estava nervosa agora, nem posso imaginar o que vai acontecer quando elas estiverem juntas.
– Não quero que ela seja rude com você. – Confesso, sentindo meus olhos marejarem de novo.
– Até o mais perigoso dos vampiros tem medo da fúria de uma mãe, quando se mexe com os filhos dela.
– Mamãe. – Wendy resmunga chorosa do meu lado, antes de se jogar nos braços de nossa mãe.
Não resisto e acabo fazendo o mesmo.
– Vocês são as coisas mais preciosas que eu tenho, e eu brigaria com qualquer um pelas minhas filhotinhas, mesmo se esse alguém for a minha própria mãe. Eu não me importo se ela não consegue lidar com a personalidade Van Helsing dela, nada justifica o que aconteceu.
Após um longo abraço que recarregou todas as minhas energias, Wendy e eu acompanhamos nossa mãe até à porta, encontrando o Padre Abel esperando no corredor, como disse que faria.
– Antes de você ir, mãe, tenho uma coisa importante pra dizer. – Revelo, sentindo as batidas de meu coração, começarem a se agitar aos poucos.
– Tudo bem, pode falar. – Ela diz, parada ao lado do Padre, enquanto Wendy fica do meu, segurando levemente meu pulso.
– Padre, eu já tomei a minha decisão. – Meu coração se agita por completo agora.
– Você ainda tem algumas horas, Elena. Tem certeza que não quer pensar um pouco mais?
Nego com a cabeça.
– Certo, e qual seria a sua decisão? – O Padre pergunta.
Meu peito subia e descia de forma aparente sobre a camiseta, enquanto sinto peso o dos olhares dos três.
Respiro fundo, antes de responder.
– Eu vou me juntar à igreja.
