Capítulo 26
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– Acorde, criança.
Sinto uma pequena mão tocar meu ombro descoberto, enquanto chacoalha suavemente o meu corpo.
Aos poucos, de forma preguiçosa, começo a abrir os meus olhos, encontrando vovó sentada na beirada da minha cama, me olhando de forma preocupada.
Rapidamente, me sento sobre o colchão, só agora notando a presença de minha irmã. Wendy estava parada na entrada do quarto, nos observando com aparentes olhos amedrontados.
– Aconteceu alguma coisa? – Entreolho de vovó para Wendy, me sentindo completamente acordada agora.
Vovó comprime os lábios em uma linha fina, expressando sua preocupada.
– O jardim da loja pegou fogo e queimou tudo, inclusive os caixotes que eu trouxe de viagem e havia deixado lá fora. Tudo que restou foram alguns poucos frascos de ervas e buquês de flores que ficaram a salvo nas prateleiras dentro da loja.
Demoro alguns segundos para assimilar o que vovó acabou de me falar, me sentindo totalmente atordoada e, por um momento, era como se eu ainda estivesse dormindo.
– O que aconteceu? – Inclino meu tronco para frente, chegando mais perto de vovó.
Olho outra vez para minha irmã e ela mantém sua expressão amedrontada.
– Você se lembra que Lydia foi buscar a encomenda na loja? – Vovó pergunta, e eu assinto. – Ela estava com uma lamparina, ajudando nas buscas por Caleb na floresta. Sebastian a levou até o jardim e, provavelmente, ela acabou deixando a lamparina lá, e foi isso que começou o incêndio.
Vovó respira pesado.
– Quando cheguei na loja, a lamparina estava caída no chão. Não tinha mais fogo por conta da garoa, mas ainda havia um pouco de fumaça.
A cada segundo eu ficava mais atordoada.
– Ninguém viu o fogo? – Pergunto, achando um tanto estranho esse repentino incêndio.
Vovó nega com a cabeça e, em seguida, se levanta da cama.
– Estou voltando para loja agora, Sebastian está me esperando. Nós vamos ver o que podemos fazer a respeito disso. – Vovó passa as mãos pelo tecido de seu vestido azul-claro, ajeitando-o e desamassando-o, para depois começar a se afastar, indo até à porta e passando ao lado de Wendy, antes de nos deixar sozinhas no quarto.
Em silêncio, encaro minha irmã, sem conseguir acreditar no que aconteceu.
– Você não estava usando um pijama amarelo? – Pergunto para Wendy, depois de passar alguns segundos a encarando.
– Não. Estava usando esse branco mesmo. – Wendy ajeita seu cabelo de maneira nervosa. Foi um gesto sutil, mas convivo com ela minha vida toda, então posso perceber quando isso acontece.
Assinto, em silêncio.
– Por que você não me espera lá embaixo? Vou só escovar os dentes e já desço pra fazer o nosso café da manhã. – Sugiro, e Wendy assente quase que imperceptivelmente.
Minha irmã se vira e, lentamente, sai do quarto.
Eu sei que ela pode estar assim pelo que aconteceu na loja de vovó, mas tudo parece tão estranho para mim. Um incêndio causado por uma lamparina e ninguém vê o fogo? Fora que, tenho certeza que o pijama que Wendy vestiu ontem era amarelo.
Por ora, não posso fazer nada a respeito do incêndio mal explicado, mas posso descobrir sobre Wendy.
Tiro a coberta que cobria minhas pernas e saio da cama, caminhando até a porta aberta do quarto. Coloco apenas minha cabeça para fora e checo os dois lados para me certificar de que Wendy não estava mais no segundo andar. Vendo apenas o corredor vazio, volto minha cabeça para dentro do quarto e fecho a porta, enquanto tento não fazer barulho.
Em passos apressados, vou para o banheiro e, a primeira coisa que faço ao entrar no ambiente coberto por azulejos, é procurar pelo cesto de roupa suja, que estava ao lado da pia.
Afobada, retiro a tampa de plástico do cesto e começo a vasculhar por entre as roupas sujas, jogando todas no chão até que eu encontrasse o que procurava.
O pijama amarelo de Wendy estava soterrado debaixo de todas as peças de roupas que joguei no chão do banheiro. Com isso, eu até poderia pensar que estava errada, ao achar que minha irmã havia vestido ele ontem, se não fosse pelas barras do pijama, que estavam úmidas, como se alguém tivesse tentado lavá-las.
– Terra. – Falo baixo para mim mesma, depois de conseguir encontrar alguns resquícios marrons no tecido fino e úmido.
Wendy tentou limpar terra de seu pijama e depois escondeu ele, bem quando um incêndio aconteceu no jardim da loja.
Mais difícil do que acreditar em vampiros, é acreditar que uma pessoa importante para mim possa ter feito algo tão ruim.
Desde que cheguei em Upiór, todas as minhas crenças têm sido testadas, agora sei e acredito que algo de muito estranho acontece nesse lugar. Eu simplesmente não posso mais tentar me convencer de que coisas como essas não passam de lendas e mentiras contadas por todo mundo.
Quando eu finalmente me permito acreditar na existência de vampiros, toda aquela bagunça acontece na floresta e até agora não sei como Lydia e eu estamos vivas. Depois, Caleb "viaja" misteriosamente e, por fim, Wendy e o jardim da loja.
De agora em diante, não terei sossego até descobrir como tudo isso se interliga, mesmo sabendo que não fui bem-sucedida nas minhas tentativas de solucionar esses mistérios. Porém, estando aqui, sozinha com Wendy, penso que finalmente posso encontrar alguma coisa.
Coloco todas as roupas sujas de volta no cesto, deixando o pijama de Wendy soterrado, como ela fez. Depois, me arrumo e arrumo minha cama para, enfim, descer para o primeiro andar, já sabendo o que eu deveria fazer.
Passo rapidamente pela sala e aviso Wendy que vou preparar o café. Uma vez na cozinha, começo a pegar nos armários e geladeira, tudo que vou precisar para fazer torradas e ovos com muita Erva-Verde.
Essa ideia não é nova, eu já tentei colocá-la em prática antes, mas acabei desistindo, agora não posso desistir mais. Tenho algumas teorias loucas se formando na minha mente, e vou comprovar ao menos uma delas durante o café da manhã.
Após colocar os ovos e as torradas em pratos, deixo-os sobre a mesa e vou até à geladeira para pegar um suco de laranja pronto.
– Wendy, o café já está pronto! – Grito da cozinha, enquanto procuro por copos e garfos.
Minha irmã demora apenas alguns segundos para vir até à cozinha. Ela se senta em uma das cadeiras e puxa um dos pratos para perto.
– Está bom. – Wendy diz depois de dar uma pequena garfada nos ovos que preparei.
– Obrigada, é o sabor da Erva-Verde. – Sorrio para minha irmã, me sentando na cadeira à sua frente, do outro lado da mesa.
Em silêncio, começo a comer meus ovos e torradas, atenta a todos os movimentos e expressões de Wendy.
– O que foi? – Wendy pergunta, quando percebe meu olhar.
– Nada. Só estou pensando no que aconteceu com o jardim da vovó. Você não achou um pouco estranho? – Tento manter meu tom de voz neutro, para que minha irmã não desconfie de nada.
Wendy desvia seu olhar, encarando o prato com apenas metade dos ovos.
– Foi a lamparina, vovó já explicou. – Ela dá uma grande mordida na torrada, provavelmente, para não ter que falar mais.
Não digo mais nada e Wendy permanece calada durante o restante de nosso café da manhã, o que não é muito habitual, tendo em vista que minha irmã é uma pessoa extremamente falante.
– Você lava a louça. – Falo, depois de tomar o que sobrou do meu suco de laranja.
Wendy assente.
– Vou usar o banheiro primeiro. – Ela se levanta da cadeira, levando seu prato e copo para a pia.
– Você não está tentando me enrolar, está? – Estreito os olhos, e Wendy ri.
– Não. Eu só quero usar o banheiro. – Ela abana sua mão, e sai da cozinha.
Permaneço sentada, esperando escutar os passos de Wendy no segundo andar. E, quando escuto, rapidamente me levanto e saio da cozinha, deixando meu prato e meu copo sobre a mesa.
Na ponta dos pés, começo a subir as escadas para o segundo andar, tentando ser extremamente silenciosa, enquanto ando pelo corredor.
A porta do nosso quarto estava encostada, e precisei de muito cuidado para não fazer barulho.
Olho ao redor e não vejo Wendy no quarto, mas não preciso de muito para saber que ela estava no banheiro, já que um grunhido estranho vinha de lá.
Sinto meu corpo ficar tenso quando começo a caminhar em direção ao banheiro. E com a palma da mão direita, toco na madeira da porta, sentindo uma grande onda de ansiedade me preenche.
Escuto o grunhido de Wendy de novo, seguido de outro grunhido e mais um.
Tomando coragem, empurro a porta do banheiro, mostrando Wendy caída no chão de azulejos, enquanto vomitava uma enorme quantidade de sangue dentro da privada.
...exatamente como aconteceu com Jimin, e exatamente como aconteceu com ela na loja da vovó.
Automaticamente, os meus dedos apertam o batente da porta com força. Meu peito começa a subir e descer com rapidez, tornando minha respiração alta.
Wendy nota minha presença e vira sua cabeça em minha direção, assumindo uma expressão assustada.
– Por que você não pode comer Erva-Verde?
Ela não me responde, mas seus olhos começam a marejar.
– Por que, Wendy?! – Grito exasperada, assustando Wendy, que se encolhe no chão de azulejos.
Sem nenhum controle sobre essa situação, como um tornado, quase voo para cima de Wendy, me abaixando nos azulejos claros para segurar os braços de minha irmã, com força, obrigando-a me olhar.
– Eu te fiz uma pergunta! – Minha voz era tão alta que criava um solitário eco dentro do banheiro.
O corpo de Wendy começa a tremer em minhas mãos enquanto ela chora, fazendo alguns pingos de sangue escorrem por sua boca suja.
– E-Eu não sei. – As lágrimas escorriam em seu rosto como uma chuva forte. – Eu não sei, Elena. Toda vez que eu como essa porcaria de erva, alguma coisa dentro de mim sempre fala que eu preciso vomitar tudo. – Ela fala tão apressada em meio ao seu choro, que quase se embola nas palavras.
Minhas mãos ficam mais suaves em seus braços, e Wendy aproveita deste momento para afastá-las e jogar seu corpo contra o meu, me abraçando de forma tão desesperada que faz ter enjoos.
– Eu não quero mais fazer isso. Não quero. – Com a cabeça contra o meu ombro, Wendy começa a soluçar suas palavras.
– Não quer fazer o quê? – Pergunto, com as batidas do meu coração martelando de uma maneira incomoda.
As lágrimas de Wendy molham minha blusa.
– Eu... Eu não posso te falar... Eles não deixam. Eu não consigo fazer isso.
Afasto o abraço de Wendy, e a seguro pelos ombros outra vez.
– Eles quem, Wendy? – A encaro com exaspero.
Ela pisca algumas vezes e continua chorando. Seus lábios tremem, mas ela fica em silêncio.
***
Este dia se tornou longo.
Depois do que aconteceu no banheiro, tentei perguntar mais algumas coisas para minha irmã, e tudo que ela fez foi chorar e repetir inúmeras vezes que não podia me contar. No começo, fiquei irritada, mas, em seguida, foi inevitável não lembrar das coisas que li naquele livro da loja de Caleb. Ele me contou sobre o poder de hipnose que os vampiros têm sobre os humanos, tornando impossível que eu não associasse isso a Wendy.
Minha irmã nunca agiu dessa maneira estranha antes dessas férias em Upiór, nem mesmo quando éramos pequenas e vínhamos para esse lugar. Por isso, "eles" só pode ter uma única explicação.
Quando estava mais calma, ajudei Wendy a se limpar e pedi que ela não saísse para lugar nenhum pelo resto da semana, nem mesmo para ir à loja de vovó, pois eu diria que ela pegou um resfriado e precisava ficar de repouso.
No momento em que minha irmã dormiu, depois de chorar muito, fui direto para sala esperar vovó, que só voltou de noite.
– Como está lá? – Pergunto, assim que vovó se senta ao meu lado no sofá.
Ela suspira alta, e coloca as mãos sobre os joelhos.
– Perdi tudo.
Sinto meu coração apertar ao ver a expressão desolada de vovó.
– Amanhã vou viajar com Sebastian para buscar novas ervas e flores. Eu ainda tinha encomendas para entregar essa semana. – Seus olhos adornados por pequenas rugas, se fecham por alguns segundos. – Quando eu voltar, vocês vão embora.
Me sinto zonza e a encaro com confusão.
– Embora? – Franzo o cenho.
– Sim. Com tudo que vem acontecendo em Upiór, eu mal tenho tempo de ficar com você e sua irmã. – Vovó se levanta do sofá e eu me levanto junto.
– Mas a senhora...
– Sem “mas”, Elena. Eu já disse, vocês vão embora assim que eu voltar dessa viagem, entendeu? – Seus olhos me encaram de uma maneira tão séria que, por um momento, fico assustada.
– Sim, senhora.
