Capítulo 16 • Parte I
Tempo estimado de leitura: 18 minutos
Durante grande parte do meu expediente na loja de vovó, era inevitável não pensar em tudo que enchia minha cabeça nos últimos dias. Mesmo ontem, quando passei na loja de Caleb, eu não encontrei nada de tão relevante, a não ser a Erva-Amarela, que era tão estranha quanto a Erva-Verde. Aproveitei daquele momento e tentei encontrar qualquer coisa relacionada a Alter ego no livro Drácus Dementer, mas sem sorte. Haviam tantas páginas faltando naquele livro que parecia impossível responder a qualquer coisa.
Eu tenha essa sensação de que, quanto mais eu procuro por uma explicação, mais elas se tornam confusas. Nem um simples sonho eu sou capaz de compreender.
Minha cabeça estava tão cheia, que me tornei desastrada com alguns clientes, e vovó já me olhava com desconfiança, enquanto perguntava se alguma coisa havia acontecido. E precisei me virar muito bem para contornar essa situação, por sorte, Wendy me ajudou.
Às vezes, penso que deveria esquecer tudo isso, inclusive, deixar de visitar Jimin e seus irmãos, mas depois daquele sonho, sei que não posso. E o fato deles serem sempre tão legais comigo não ajuda. Talvez soe um pouco difícil, quando paro para pensar na hipótese de que eles podem ser completamente diferentes da imagem que criei.
Vovó estava nos fundos, como sempre, trabalhando no jardim, e Wendy estava lá fora, varrendo a entrada da loja, enquanto eu ficava parada atrás do balcão, encarando a porta aberta e os fracos raios de sol sobre o chão, sem conseguir tirar toda essa bagunça da minha cabeça. Quem diria que as minhas férias se tornariam algo tão estranho.
Suspiro e fechos os olhos, passando as mãos pelo rosto, como se pudesse afastar tudo isso por um momento.
Escuto a voz de minha irmã me chamar em um tom baixo, quase como um sussurro, e ao abrir os olhos, vejo Wendy inclinada com metade do corpo para dentro da loja. Ela faz um gesto silencioso para que eu vá até ela, e depois some, deixando a porta vazia.
Me sentindo lenta e preguiçosa, saio de trás do balcão e vou até à porta, alcançando o lado de fora da loja, que emoldurava um dia de sol fraco, possibilitando qualquer um de usar desde um vestido até uma blusa.
– Olá, Venator. – Blarie, que estava próxima de Wendy, sorri para mim.
– Oi. O que está fazendo aqui? – Pergunto, um pouco confusa com sua visita repentina.
Blarie – enrolada em seu lenço preto, chapéu, luvas e óculos escuros – ri.
– Você é sempre tão receptiva. Aprenda a receber melhor uma amiga. – Ela retira seus óculos escuros, deixando as íris escura à mostra.
Wendy ri também, se apoiando contra vassoura que segurava.
– Me desculpe. – Encolho os ombros, e ela sorri.
– Não se preocupe. E eu vim aqui para te fazer um convite.
– Convite para o quê? – Pergunto, interessada, sentindo os fracos raios de sol esquentarem minha pele.
– Nós conversamos ontem, Amia te chamou pra sair. Vim aqui saber se podemos fazer isso hoje de noite? E antes que você responda, quero que considere o esforço que Amia está fazendo pra sair com você. Ela passou mal pra caramba ontem, não disse o motivo, mas achei que acordaria pior hoje, mas ela já está bem e faz questão de sair essa noite. – Blarie explica, me deixando completamente intrigada com a situação.
Não posso deixar de associar isso aos bolinhos de Erva-Verde que entreguei para Amia ontem... será que foram eles?
– Wendy pode ir também. Será uma noite de garotas. Nós podemos fazer alguma coisa legal. – Blarie mal termina de falar e já percebo os olhos de Wendy brilhando em excitação, mas dessa vez, não será preciso que ela me convença, eu já estou decidida.
– Claro, nós quatro podemos sair hoje à noite. – Sorrio.
Se Amia passou mal por conta dos meus bolinhos, esse é o real motivo pelo qual ela quer sair comigo, e eu estarei pronta para isso. Fiz aqueles bolinhos com um único propósito, e se eles parecem ter funcionado, não posso dar um passo para trás agora.
– Isso é ótimo, achei que ia perder o resto da tarde te convencendo. Mas fico feliz que esteja mais à vontade perto de nós. – Blarie sorri, de novo, e volta a colocar seus óculos escuros. – Estou indo agora, vou avisar Amia. Vocês duas nos esperem na ponte de Upiór, ela fica perto daquela loja onde nos encontramos. Estejam lá às dez.
– Dez horas da noite? – Pergunto, quando Blarie se vira para ir embora.
– Sim. Por acaso você não pode sair de noite, criancinha? – Blarie arqueia as sobrancelhas por detrás dos óculos escuros.
– Não se preocupe, nós estaremos lá às dez. – Wendy responde por mim e acena para Blarie, antes que a garota de cabelos púrpura entre no caminho da floresta.
– Não sei se a vovó vai gostar disso. – Falo para minha irmã, assim que o corpo magro e pálido de Blarie, some entre as árvores altas.
– Se nós ficarmos pelo vilarejo, vovó não vai reclamar. E também, já somos adultas, Eleninha.
***
De alguma forma, Wendy conseguiu fazer tudo com tranquilidade, ela conversou com vovó e disse que nós duas estávamos querendo sair esta noite, nos divertir um pouco – sem citar Blarie e Amia –, e vovó disse que tudo bem, desde que ficássemos por aqui. Wendy também convenceu vovó a nos deixar sair mais cedo, já que ela queria comprar uma roupa para esta noite.
Nós duas só trouxemos o necessário para férias em um vilarejo, e não tínhamos nada que nos arrumasse para uma saída, se bem que não faço a menor ideia de onde vamos, talvez passar a noite em alguma loja de ervas, já que é tudo que parece ter nesse lugar.
Depois de sairmos da loja de vovó e andarmos um bom tempo pelo centro de Upiór, fiquei completamente surpresa ao descobrir uma loja que não vendesse nada que você usaria para um dia de trabalho na terra. Com sua determinação e incansável vontade de gastar dinheiro, Wendy nos levou a uma lojinha pequena e simples, a única que trazia coisas da cidade grande para Upiór. Então por aqui existia uma variação de coisas mais modernas, tanto em roupas quanto em acessórios e perfumes.
Wendy me fez entrar no provador de cortina florida pelo menos umas oito vezes. Era como se ela pegasse todas as roupas que encontrasse e jogasse para mim. Eu já estava farta, mas, no quarto vestido, ela meio que me obrigou a comprá-lo, junto com botas pretas, que eu não sabia se iriam combinar, mas segundo ela, eu deveria confiar em sua intuição de irmã mais velha.
Agora eu encarava com dúvida o vestido longo, azul e mangas longas, com a frente mais curta. Não parecia o tipo de coisa que eu usaria normalmente, e também, não é como se essa fosse uma noite especial ou algo do tipo. Se arrumar para andar em Upiór? Isso parece uma besteira, mas o que eu posso fazer quando minha irmã é a Wendy? Não há muitas saídas para isso.
– Eu tenho certeza que vai ficar lindo em você. Aposto que a Blarie e a outra garota vão usar aqueles vestidos bonitos e chiques, então não podemos fazer feio. – Wendy para o meu lado, enrolada em sua toalha úmida de banho e ergue seu dedo indicador como se falasse algo realmente sério. – Agora vá se arrumar, porque já está escuro. Eu comprei um batom vermelho que vai ficar lindo em você.
– Batom vermelho? – Encaro minha irmã, com desanimo.
– Nem adianta vir com esse olhar, não. Nós vamos nos divertir hoje, não tente estragar as coisas antes mesmo de sairmos de casa. – Wendy passa por mim e vai em direção à sua roupa, que ela deixou dobrada sobre uma das pontas da cama.
Procuro por meu celular e vejo o visor marcando oito horas da noite. Respondo algumas mensagens e falo brevemente com a minha mãe, antes de tomar um banho para me arrumar, pois sabia que Wendy ficaria atrás de mim se eu enrolasse.
***
– Pronto! – Wendy sorri, enquanto afasta o batom vermelho. – Pode olhar.
Ela dá espaço para que eu olhe meu reflexo no espelho do banheiro, onde preciso de alguns segundo para me acostumar com a cor escura que pintava cada parte da minha boca. Não havia ficado tão ruim quanto eu imaginei, mas ainda era diferente me ver em cores tão marcantes.
– Você está linda.
– Nós não estamos exagerando um pouco? – Me viro para Wendy, encarando seu vestido vermelho.
– Você deveria estar mais preocupada em se divertir, não na sua roupa. Depois de tudo, vai ser bom pra nós duas. Eu vou estar lá, então tudo vai ficar bem, Eleninha. – Wendy aperta um dos lados de minha bochecha e, de certa forma, me sinto melhor.
Talvez eu esteja levando essa noite muito a sério, esse nem é o real motivo, minha irmã quer se divertir, enquanto os meus pensamentos são outros. A verdade é que eu não faço ideia do que pode acontecer com nós quatro juntas no mesmo lugar, ainda mais depois do que Blarie me contou. Por isso, vou precisar contar tudo para que Wendy não ache estranho, pois sei que ela não acreditaria no que eu tenho para compartilhar.
– Você quer ir agora? Eu nunca vi a ponte que a Blarie falou. Acho que seria bom se fôssemos um pouco mais cedo, caso a gente demore pra encontrar ela.
Assinto, concordando em fazer isso de uma vez.
Minha irmã procura em suas coisas, uma bolsa pequena para que levássemos nela o necessário, ela disse que poderia cuidar disso, por isso, entreguei meu celular para Wendy.
Depois, nós duas fomos atrás de vovó, que estava em seu quarto assistindo televisão debaixo das cobertas. Nos despedimos e ela deu um rápido sermão sobre tomarmos cuidados, e avisarmos quando voltássemos. E com um breve elogio dela, nós duas deixamos seu quarto e, posteriormente, a casa de vovó.
A noite não era gelada, pelo menos não agora, por isso, não foi um problema sair de vestido. O céu não era estrelado, mas também não haviam sinais de nuvens de chuva ou coisa do tipo. O vento não acompanhava a rua, assim como as pessoas. Tudo estava calmo e quase deserto, exceto pelas luzes que vinham das janelas de algumas casas.
O som dos nossos passos sobre as ruas de ladrilhos pareciam o único barulho que nos fazia algum tipo de companhia agora. E, ajeitando melhor a bolsa de alça fina sobre seu ombro, Wendy foi tagarelando o caminho todo, sobre como estava animada em sair um pouco da nossa pequena rotina de Upiór.
Com alguns minutos de caminhada, Wendy e eu passamos em frente à loja de Caleb, que ainda parecia aberta. Até cogitei em ir até lá, mas sabia que escutaria a mesma coisa de sempre, sobre como ele não tem nada novo além das crendices populares.
Não demoramos tanto tempo para encontrar a tal ponte, que era pequena e feita de pedra, ficando sobre um estreito rio que corria para direção contrária de onde estávamos.
– Bem na hora.
Sobressalto em meu lugar, me virando e encontrando duas silhuetas paradas no final da ponta, opostas à direção que Wendy e eu estávamos. Blarie dá alguns passos até sair da escuridão, enquanto Amia continua parada no mesmo lugar, mas eu podia sentir que seus olhos estavam em mim, essa sensação de ansiedade correndo pelo meu corpo, querendo encará-la de perto.
– Nós vamos por aqui. – Blarie aponta para onde ela estava, se virando e andando na outra direção. E assim, nós duas a seguimos.
Tudo que eu via de Amia, era seu longo vestido vermelho que beirava ao chão e seu cabelo rosa-claro que balançava em sincronia aos seus passos. Ela e Blarie andavam na frente, e Wendy e eu atrás, nós quatro em silêncio.
Parecíamos nos afastar cada vez mais das casas e comércios, até que estivéssemos em uma parte de Upiór que eu não conhecia, com nada além de uma casa média de madeira com todas as luzes acessas. Ela ficava, provavelmente, na outra ponta do vilarejo, rente às árvores que cercavam o lugar.
Seguindo até a porta, percebo que o lado de dentro se assemelhava a uma taverna um pouco mais moderna. Eu não podia imaginar isso, já que não havia letreiro ou qualquer coisa que indicasse do lado de fora.
O local estava quase vazio, a não ser pelas duas garotas sentadas em uma mesa mais afastada. Mas isso não impedia uma suave música de transitar pelo ambiente, onde funcionários estavam a postos atrás do balcão ou perto de portas que deveriam indicar a ala de funcionários.
Amia olha sobre os ombros, pela primeira vez me mostrando seu rosto bem delineado em cor preta nos olhos, e um batom de cor similar ao meu. Ela sorri, fechado, e faz um gesto de mão para que a seguíssemos.
Nós nos sentamos em bancos altos e redondos de madeira. Amia entre mim e Blarie, e eu entre ela e Wendy.
– Quatro licores de mirtilo, por favor. – Amia pede para o homem de cabelos brancos, que estava parado na ponta do balcão com um pano dobrado em seu braço.
O homem acena positivamente e se vira em direção à grande estante de fundo do balcão, pegando uma das inúmeras garrafas enfileiradas. Depois, junto da garrafa, ele pega mais quatro pequenos copos de vidros. Ele deposita os copos, cada um em frente a uma de nós, e os enche com o conteúdo de cor escura e vermelha. Por fim, o homem de cabelos brancos, deixa a garrafa por perto e se afasta.
– A nós. – Amia sorri, e ergue seu pequeno copo no ar, propondo um brinde.
Todas nós repetimos a ação, mesmo que eu encare o conteúdo do copo de forma receosa.
– O que foi, Elena querida? Você não gosta de licor? Se quiser, eu peço outra coisa... ou talvez você não beba? – Amia pergunta, estreitando os olhos, enquanto me encara com seu copo vazio.
O licor parecia ter deixado seus lábios ainda mais vermelhos.
Olho para o interior do copo, me sentindo estranha de alguma forma apenas pela cor que o licor possuía. Sinto Wendy colocar uma mão sobre meu ombro, e quando a olho, ela sorri, dizendo que a bebida não era ruim.
Amia e Blarie me encaram com expectativa, e me sinto nervosa por isso.
Respiro fundo, e levo o copo até a boca, virando-o receosamente, sentindo uma quantidade pequena da bebida tocar meus lábios. O gosto doce invade minha boca, e reconheço o sabor da fruta misturado ao álcool, e isso me dá mais segurança para beber todo o licor.
– Não foi difícil, foi? – Blarie, que estava ao lado de Amia, se inclina sobre o balcão de pedra para me encarar.
– Eu vou tentar. – Respondo, entre um suspiro mais relaxado.
– Assim que se fala. – Blarie sorri.
Amia pega a garrafa aberta e começa a encher o meu corpo outra vez.
– Exatamente, vamos nos divertir hoje. – Ela olha do copo cheio para mim, antes de encher seu próprio copo e o de Blarie e Wendy.
– Você pode aumentar um pouco a música? – Blarie pergunta para o mesmo homem que nos trouxe o licor.
Outra vez ele assente, mas agora caminha até uma das portas de madeira, sumindo entre ela para, segundos depois, escutarmos a música ficar mais alta, nada que chegasse a ser incômodo.
– Como vocês descobriram esse lugar? Vocês sabem, Upiór não tem muitas coisas. – Wendy fala ao meu lado.
Menos hesitante dessa vez, bebo devagar todo o licor do meu copo.
– Foi por acaso. Acredite, nós também ficamos surpresas ao encontrar esse lugar. – Blarie responde, puxando a garrafa para perto e enchendo seu copo de novo.
Ela vira a bebida com rapidez e depois se levanta em seu vestido escuro.
– Alguém quer dançar comigo? – Ela pergunta, colocando seu cabelo púrpura para trás da orelha.
– Eu não danço. – Respondo.
– Nem eu. – Amia fala de forma lenta, ainda me encarando.
– Eu vou então. – Wendy arrasta seu banco ao meu lado, e se levanta, indo com Blarie para perto das mesas, onde elas dançam solitárias em uma taverna quase vazia.
Que noite.
– Fiquei contente por ter vindo, Elena. – Amia diz, me fazendo olhá-la.
Ela apoia um de seus cotovelos sobre o balcão de pedra, e apoia seu rosto sobre sua mão fechada.
– É bom sair às vezes. – Digo, e ela assente. – Blarie comentou sobre você ter passado mal ontem à noite, o que houve? – Pergunto o que eu realmente queria saber, atenta a qualquer reação que a garota de cabelo rosa-claro, poderia ter.
– Foi só um mal-estar, não se preocupe, já estou bem. – Amia responde calmamente, enquanto enche seu copo vazio.
– Isso é bom. – Aceno. – E os bolinhos que te dei? – Mesmo que eu tente parecer tranquila por fora, por dentro sinto que a ansiedade fica indo e vindo.
Amia toma um gole do seu licor, afastando o copo de seus lábios avermelhados pelo batom e bebida.
– Estavam ótimos, você foi muito gentil em me oferecer. – Ela sorri sem mostrar os dentes.
Queria poder saber o que ela pensava agora, não posso dizer que Amia foi ruim, e mesmo assim, me sinto estranha perto dela, não é nada natural, como é estar com Blarie, por exemplo. Eu não consigo explicar ou entender isso, era como uma relação mascaradamente hostil.
Amia estende sua mão livre, tocando em uma das mechas loiras de meu cabelo.
– Você está tão bonita hoje. – Seus olhos correm devagar por meu rosto, e seus dedos passando por meu cabelo.
Fico alguns segundos em silêncio, e automaticamente olho para Wendy e Blarie, que pareciam animadas se divertindo em sua própria dança.
– Obrigada. Você também está bonita, como sempre. – Sorrio fechado e ela retribui.
– Mas me diga, Elena. – Pela segunda vez, Amia enche meu copo. – Você tem namorado? – Seus olhos encontram os meus, assim que ela afasta a garrafa do meu copo.
– Não, eu não namoro. – Respondo, antes de beber um pouco do licor, que a cada gole parecia adquirir um gosto mais doce e agradável.
– É uma pena que uma garota como você não namore. Sabe... – Ela segura em outra mecha de meu cabelo – eu até que poderia ser sua namorada, se não estivesse com o Taehyung. – Amia sorri para mim, e eu me forço a sorrir de volta.
– Vamos brindar ao seu namoro. – Sugiro e ela me olha interessada, pegando seu copo quase vazio.
– Ao meu namoro com o Taehyung. – Amia leva seu copo para perto do meu, batendo o vidro levemente, que faz um barulho baixo, selando o nosso brinde.